quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

1995 AMANDA VITAL



[ DEZ POEMAS ]


ABERTURA

um cavalo brilhante de crina negra afunda
os cascos nos umbigos do espírito da terra

suas pernas são de fome e marcham dureza
como teimam todas as asas mal resolvidas

atravessa a cidade sob gritos de tempestade
o raio bestial tateia a pele exposta do mundo

mulheres abrem as pernas para suas janelas
invocando a lua sob o nome de seus amores

frutos despencam das copas ao mesmo tempo
ouvindo o coro dos corpos que agem por cima

e assim vibram juntos os herdeiros das flores
entregues ao delírio oceânico ao mel cadente

o orgasmo – essa anarquia de toda a natureza


ANTIGÊNESE

no princípio era a morte
em ruínas estáticas de esgotamento
a desintegração em tecido único
um não-espelhamento em ponto cego
o breu exalando seu odor rançoso
à falta de caminhos possíveis

em seguida veio o verbo
a mão que se ergue no aglomerado
convocando a luz o reinício do pulso
desamassar ao convexo a face composta
fazer das cinzas seu sustenido etéreo
gerar da queda o ímpeto reverso


PROCISSÃO DE BACO

recolhei os profanos sóbrios
os praticantes do contradelírio
recolhei, recolhei as estátuas
de lábios de gesso

as carnes navais estão passando
bailando na ciranda do desejo

recolhei suas crias selvagens
Baco irá comê-las mudas e cruas
para que não germinem
comê-las cruas e cedo

as carnes navais estão passando
bailando na ciranda do desejo

seus pais e mães, as gêneses do perverso,
dos ovos mal fecundados recolhei
toda a casta impura dos muros do sossego

as carnes navais estão passando
bailando na ciranda do desejo

assim como seus pares, cônjuges soturnos
que nunca derramaram uma gota de vinho
em seus corpos de sucumbida virgindade
recolhei, recolhei os estáticos companheiros

as carnes navais estão passando
bailando na ciranda do desejo


VERBORRAGIA

as palavras me engatam a garganta pelas úngulas
escalando paredes massudas de vazio acumulado

sinto o amargo dos farelos as camadas raspadas
a saliva confinada nas grossas grades da afasia
sinto cada gota desse sumo chorumoso e espesso
desgarrado à força na degeneração dos silêncios

tento cobrir a boca reprimir o ímpeto delinquente
numa hipótese vã de fazer descerem os demônios
chego a engolir pressionar empurrar impelir sigilos

mas vozes correm em desespero entre meus dedos
explodindo faringe laringe mandíbula cordas vocais
fere a carne coagula o verbo na arma que impunha

as palavras me sepultam a mudez pela insistência
arrebentando pontos repetidos de eternas suturas


APETITE

basta o desgastante falar das maturações
do tempo do verbo que nunca se alcança

tez algodoada de um azul inquebrantável
onde a palavra é lúcida e a poesia é mansa

que o fruto ainda verde caia sobre as mãos
em um só sentido, uníssono e irreversível
desfazendo-se em grãos ao puir nos dentes

e confronte a etérea solombra atmosférica
com toda a força desgarrada das urgências
interrompendo o tempo sacro da semente

bendita seja a palavra daquilo que se consome
bendita a rebelião do lado de dentro da fome


PRIMAVERA

terra fria de chuva se aloja sob as unhas
germinando arrepios e relvas pele afora

entrelaçando dedos as barbas do jardim
arranham cada partícula da raiz exposta

das mãos espalmadas no campo regado
vem, da garganta de abelhas circulando

e ricocheteia as paredes da minha carne
pelo faro carmim dos Antúrios Sagrados

vem e me descama do súber até a seiva
caído em flor no nosso chão de orvalho


MISE EN PLACE

há um copo de farinha sob a cama
para salvar sonhos aprisionados

meninos com amido entre os dedos
fazem ciranda no limite da ebulição
dourando seus pés no Fogo Sagrado
saltitando em suas simetrias caloríficas
para não se queimarem

meninos um a um desgarrados
trazendo resquícios de brasa na face
nunca retornam ao breve estado do ser

o sal da terra
é duro de moer


POETA

entidade ocupada por portais semiabertos
artífice diluidor das palavras do dicionário
antenas captadoras de sopros imagéticos
sintonizando universos não-catalogados

maestro a reger vozes isócronas avulsas
lentes refratoras das luzes inesgotáveis
extraindo a arte para fora das molduras
linha tênue entre insurgente e selvagem

glândula cravejada no corpo do mundo
imersa na estrutura e sob a pele grossa
vítima preliminar de seu próprio produto

orador das percepções não empilhadas,
é tecelão em tarefa constante e laboriosa:
costurar do homem todas as camadas


COSTAS

eu te conheço pelas costas, irmã
pela forma como tua pele se acomoda na carne
entre pintas salpicadas e marcas de nascença
nadando soltas em cada curvatura

te saberia de longe, essas costas orquideais
por onde passa toda a tua seiva e sumo

: compostas tom a tom em paletas brancas,
pétalas deificamente bem delineadas, banhadas
de odor abaunilhado, cria das serpentes órficas

da nuca ao último ponto que tua espinha toca


CASCA

o tempo da delicadeza se dissipa feito a espuma
que se forma na crista da taça de vinho corrente

insiste no gozo sereno, nas bolhas que explodem
entre o tato da janela aberta e seu cálice-ventre

na carne que habito, sutileza é puro impropério

há finas fagulhas que se desprendem do inferno
e pairam em meus poros e esperam pelo sangue
na linha tênue da pele que se afunda em cordas

o meu corpo se debate sob gritos escorchados,
refém de estalos intrínsecos e manias sórdidas

e nós gozamos sob o cheiro de atrito do couro,
sob o sangue que irrompe, sob velas queimadas

: pelo prazer das nossas camadas descascadas.


ENSAIO

cheirava ameixas como quem cheira seu próprio pulso
sugando a atmosfera-fêmea do fruto pulmões adentro
praticava beijos os lábios tocavam cada curva da casca
os dedos quase tangendo o rosto as mãos em conchas
englobando cada vestígio de saliva sobre a película fina
o cuidado de manter cada fruto sem marcas de dentes

e ensaiava a delicadeza dos movimentos preconcebidos
como quem dança a língua em círculos no mesmo lugar
como quem sabe o rumo o destino final da própria boca
o momento certo para rasgar a casca e mastigar a polpa
abrir uma única ameixa e tê-la inteira desvelada e maciça
cumprir a necessidade do fruto em apenas uma mordida


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

AV | Analisando cada parte desse tríptico, inicialmente, a poesia me é essencial por ressignificar minha existência. Apenas sob suas lentes é que consigo gerar e desenvolver ideias, percepções, visões que me fazem criar, e tenho ela como a minha razão de ser e estar no mundo, meu principal elemento da vida. O amor me é essencial por fazer tudo isso pulsar com uma intensidade e uma energia inexistentes em qualquer outro sentimento. Ele representa a vontade, o ímpeto, a força criativa. A liberdade é um suporte pelo qual a poesia e o amor possam ser genuínos, é uma folha de papel em branco e a caneta voando da mesa para as nuvens – é um pássaro mártir.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

AV | Minhas principais afinidades são Roberto Piva, Hilda Hilst, Marceli Becker, Adélia Prado, Fiori Ferrari e Cecília Meireles, por serem autores que sempre movimentam engrenagens escondidas, abandonadas em minha mente. Me despertam para o novo a cada leitura. Surpreendem, assombram. Vão abrindo infinitas janelas de possibilidades.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

AV | Também consigo perceber esse renascimento na poesia pós-1980. A poesia vem tentando cavar cada vez mais fundo na alma e se cristalizar. O desejo pelo eterno é latente. Os poetas vêm mantendo redes interessantes entre si, apesar de ainda bastante pulverizadas. Ainda há muitas pontas para conectar, mas estamos andando num caminho bonito e afetuoso.


[ FOLHA DE VIDA ]

Amanda Vital (Minas Gerais, 1995) cursa Letras com ênfase em Estudos Literários na UFMG, em Belo Horizonte, transferida da UFPB. Autora dos livros Lux (Editora Penalux, 2015) e Passagem (Editora Patuá, 2018). Entre 2014 e 2016, participou do grupo de declamação Aedos, em João Pessoa. Atualmente posta seus poemas nos blogs “Amanda Vital Poesia” e “Zona da Palavra”, e também produz videopoemas experimentais. É colaboradora da revista de arte e literatura Mallarmargens.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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