segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

1995 MARIAYNE NANA


[ DEZ POEMAS ]

[CADA VEZ QUE EU PISCAVA OS OLHOS]

[…] Cada vez que eu piscava os olhos, teu corpo ia, gradativa gota — muscular imensa — adensando a espessura da noite. Meus olhos viviam: uma lenta e pesada convulsão de boca presenciando o futuro líquido.
Dissolução da dualidade entre negro e branco. Eu também arriscava meus montes de silêncio só para alongar — um pouco mais, o pouco de toda diferença — o puro decote em que eu te sonhava, o fundo constante da tua respiração.
Enquanto a hora, no ar, transparecia seios — algumas vezes entre fios do tempo que trançavam mechas de cabelo — forçando o vestido do relógio contra o instante preciso da cintura, ela abria com ponteiros nossa alma.
Não sei se duraremos para acender outra vez a lâmpada. Antes que tua mão apague, conto miudamente o número de cílios que a umidade na borda do olho agrupa — luz.
Último piscar — farejo a carnadura pronta da noite, leio o fio que reparte uma gota rasa colada firmemente no teu peito. Digo: você ainda tem vestígios de água e chega a mim, sem moldura de beijo, uma onda tua que cobre minha inteira boca.


COMPOSIÇÃO DE DESTINO PARA OLHOS

1
Arranjo onde o meu par paira suave, finca no ar — o teu são duplas corolas de flores que se abrem — sustentadas pelo vento — sendo soerguidas
Eles iam — e íamos — corporais rimas — mistério da vontade
Encontrávamos — nossas mãos — florindo parte pequeníssima dos grãos — dos gestos.

2
No tempo eu andava — flores circundando o ventre do ainda — coisas que estão na gente por brotar:
Sem falas — achar a mocidade — princípio verde daquilo que nasce.

3
Cortar como pá — teus olhos — cava do corpo — vento antigo — forja da moldura: “para pétalas futuras”
Profundávamos valas — requerendo o avesso — das almas —
4
Na borda quente do calado — eu te tocava — minhas palmas — punhado fósforo — riscadas tentativas
Finco palavras na margem do teu ouvido — pergunto ao mar se você vai entrar:
O segundo luz — teu espírito — desprende do cais — e vira — o barco sonoro que flutua.


[CHICOTE DO OLHAR QUE RONDAVA]

Chicote do olhar que rondava — bordas do coração — ele quase se partia — e ainda inteiro ia — rodar peão:
Ditado dos círculos da vida — o amor primeiro nomina o chão, depois trama pela boca a pronúncia da saída.
Maré cheia — meu peito alvo — tua luz — disparo:
Limpo de nuvens — ave — vem erguendo em meus ares — a Lua-mão.


[OUÇO O ROSTO QUE TUA VOZ PREPARA]

Ouço o rosto que tua voz prepara
Princípio fósforo
Risco faiscante

O curso da cabeça ardente
Forja o feitio de cada linha

Trêmulo rosto
Que tua voz prepara

A luz decanta sobre o explorado da palavra
O último fio vibra a memória

Traço o rosto que tua voz não prepara
Ele depõe sobre minhas palmas
Marcas

Livre do dia e da pronúncia,
Redondo pelo calor das mãos,
Vai sendo entregue no ar
Para o círculo de novas bocas



[BROTA O MOVIMENTO DA ÁGUA]

Brota o movimento da água — tocada pelas mínimas extremidades — do teu rosto que ondular flutua:
Leio a pálpebra que se abre — o risco dos cílios que vinca a correnteza — o negro arco que brilha e dura —
Em dois eixos o Sol a si mesmo reparte — por onde antigas pedras agora caminham.


PÁGINA AGRESTE OU MISTÉRIO

O Seco
Brota-se
Em Flor:
               Mofo
Pura Boca
Botão Branco—
Branca Hora
Da Sombra
Sobre a
Sombra.


[REVESTEM TORCIDAS MÃOS]

Revestem torcidas mãos
Luvas internas da noite—
Casulo.

 (O silêncio, imóvel, pulsa
a hora ali,
caída do relógio)

Até que —
Asas distendam
Ao —
Espinho sonoroso

(A perfurar,
tátil,
 gargantas.
Com sede do dia,
ágeis)

Frêmito,
A borboleta
Rasga na luz o negro
Traço

Traz —
Traçado da luz —
O que amarelo urge:
Um novo corpo.


[VÉSPERA-LUZ]

Véspera-luz,
Depoente auri-sopro

Os anos vazam
Entre branco e cabelo
Ninguém apara o corte

O ano medra durezas
Na negra raiz das tuas costas


Tudo é sombra de dedos:

O dia
Que linha a linha
Sob escrita pétala
Descurva agora
Amanhece

Hoje,
É só raio no manejo dos teus lábios
Mãos no fio da pedra
Até que estale a palavra relâmpago
D’onde advéns nitidamente.


DECISIÓN OU “ESTA NOITE QUERO JANTAR A CHUVA”

A mão rude medita uma rosa
Diz abaixo das casas, dos muros:
“Eu vou cortá-la agora.”

Consciência é o que registra no infinito—
Cada corte.

Então a rosa fixou-se
Parêntesis:
(“Não será da minha alma eliminada?”)

Ainda em perfume,
Seus espinhos cravam a hora
Na eternidade onde o agora é pontuado.

“Não”:
O golpe letal, a negra alquimia
Desemboca no Punhal
O sangue quente dos recomeços—
Tudo desabrochando outra vez
E mais ainda.

Recolho no vendaval
Um branco lenço para cada gota
Um olho para a cega natureza
E, sentada sobre uma cadeira de chumbo imaginário,
Sem dizer nada ao vento,
Leu-me ao longo deste mês apenas uma nuvem:
“Esta noite eu vou jantar a tempestade.”


[QUEM TENTA CONTAR AS HORAS]

Quem tenta contar as horas
Que ele bebe da minha boca
Cai no branco entre as marcas do relógio
Evapora na profundidade da secura

O imponderável arranca
As ondas conhecidas de todos os cabelos

Com ele a minha sombra escreve
Um corpo negro nos vincos de areia
É com ele que minha sombra aprende
A tocar o estômago do vento.


[ TRÊS PERGUNTAS ]


FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

MN | Não acredito que seja possível estabelecer uma vida, no sentido sensível do termo, eliminando qualquer um desses aspectos. Vejo a poesia, o amor e a liberdade como as potências mais fortes, enigmáticas e profundas da alma humana.
Há algum tempo venho sentindo que o amor exige de mim refinamento. O que concluo de sua experimentação quase sempre converge para uma mesma necessidade íntima: desenvolver minha capacidade de amar em termos de qualidade, profundidade, cuidado e entrega. 
Na poesia o que vivencio é a possibilidade de trabalhar intensamente um afeto. Por isso, ela não pode se tornar para mim um exercício puramente técnico.  Vejo-a como empenho energético no campo do espírito: é a própria construção de uma emoção que vai se dando verso após verso. Grande parte da beleza que ela gera se deve a isso.
Assim, acredito que trabalhar poeticamente o amor — o campo dos afetos, a afetividade — seja justamente o que molda a dimensão da minha liberdade: toda emoção sobre a qual me debruço integra-se à minha alma de modo que produz minha inteireza e essa inteireza é exatamente a minha liberdade.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

MN | Ao longo do processo de produção da Pétala Soletrada Pelo Vento (Urutau, 2018) e, mais ainda, depois de terminar sua composição, é que consegui intuir mais claramente algumas afinidades artísticas com outras obras. Antes, não havia para mim uma referência definida.
Acredito que algumas afinidades sejam resultado de certa convivência e, muitas vezes, ela vai se estabelecendo de maneira extremamente sutil. Hoje, o que observo é que meus poemas refletem determinado aprendizado que certamente colhi de outros escritos.
Entre eles, destaco o Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro. Sempre me impressionou nessa obra a lucidez com a qual a natureza é trazida aos olhos do leitor. Caeiro trata todo excesso, vai descascando, verso após verso, cada camada bruta do pensamento. Vejo seus poemas como uma espécie de ímpeto a nos conduzir outra vez para a consciência da natureza, descortinando-a nos planos da exterioridade e da interioridade, simultaneamente. É como a limpidez de uma água secreta — desses recursos mágicos que a arte opera.
De certa forma, busco o mesmo em meu processo poético: tal percepção da integridade entre corpo, espírito e natureza que desmobilize a fixidez de cada um desses conceitos e faça brotar uma sensibilidade apurada sobre a comunicação entre os mundos. O corpo não raramente se torna paisagem para aportar a dimensão de determinada emoção; descubro que o movimento de um cílio tem irmandade com as folhas outonais e o sol tem a capacidade de quarar também as almas. Tudo isso é extremamente simples, no sentido natural do termo. Ocorre o tempo inteiro, mas só se torna milagre quando dedicamos nosso olhar e, em reverência, pronunciamos a sensação.
Também as traduções que chegaram até nós do poeta persa Rumi, e do Cântico dos Cânticos, de Salomão, são fontes das quais bebi e tenho ainda bebido com a intensidade de quem renova a garganta a cada gole. Sinto esses escritos “antigos” como absolutamente não datáveis, porque convocam nosso olhar para as potencialidades do espírito. “Vê como é rica, como é imensa a planície intangível das tuas sensações e desprende-te para ver mais e mais o que antes não vias...” — é para esse sentido que me direciona a voz oculta desses poemas. E é exatamente isso que gostaria de transmitir aos meus leitores: a poesia como via de execução das emoções, como soltura e como forma de impulsionar o êxtase dos sentidos.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

MN | Sinto que a lírica é como um sedimento da alma humana. De alguma forma, ela parece compor o substrato das nossas emoções. Assim, acredito que a relação com ela seja para todo escritor de algum modo inevitável, sobretudo quando ele se empenha na sua superação.
O que não observo atualmente, no entanto, é o lirismo, no sentido popular do termo. Sinto na geração de poetas nascidos a partir de 80, também, um maior interesse pela possibilidade da experimentação poética do que propriamente pela composição de uma linha que oriente a todos.
Por fim, vejo a densidade da escrita e a definição de uma voz própria como anseios universais, que perpassam muitos criadores, independentemente do lugar e do tempo. Particularmente, essas são questões que revisito na minha criação e, apesar do desejo de estabelecer a minha própria voz, vislumbro que o sentido desse delineamento só se cumprirá quando estiver dentro de uma bem executada polifonia.


 [ FOLHA DE VIDA ]

Mariayne Nana (Rio de Janeiro, 1995). Promotora de suavidades na cidade do Rio de Janeiro. Cultiva raios em terras escuras e só coleciona fragmentos mínimos ou quase invisíveis, como cílios caídos nos ombros das pessoas. Publicou em outubro de 2018 seu primeiro livro de poesia, Pétala Soletrada Pelo Vento, pela Editora Urutau.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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