segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

1999 ISADORA EGLER


[ DEZ POEMAS ]


[A GENTE QUE ENTENDE DO QUE SE ALIMENTA UM URUBU]

A gente que entende do que se alimenta um urubu
cresce com medo de que as gavetas da casa acordem
reviradas e não mais se consiga encontrar
por exemplo um
cachecol

mamãe guardava a chaves sua dor de peixe bruto
um odor incamuflável
aos quinze anos
fui doutrinada a esconder até mesmo
algo como o rio de neruda

o tempo passou
me juntei a grupos de estudo a explorar a
relação entre punhos e cadeados entre
o quinto dia útil do mês e aquele amor
que eu pensei ora planar alto ora pousar sobre
uma estrutura urbana
qualquer

vivi a não alçar voos
tudo pelos baixos beiços me convidava
qualquer ideia de bico me punha a pêsames
aprendi cedo demais que edith piaf se enganara:
as aves, como os cães, não discriminam as cores

ouça com atenção
de tanto ver em tudo
um bicho de sete cabeças,

perto dos 20
prodigiosamente me empreguei como funcionária pública de instintos
habilitada a enxergar de longe
qualquer crustáceo que habitasse
a solidão de uma concha

papai não ligou muito

tudo associado a esconderijos continuou cheirando
ao meu quarto.


[CASO O CORAÇÃO BATESSE]

caso o coração batesse
apenas uma vez ao
dia seria
possível passar
alguns instantes
na ilusão de
acordar escovar os dentes apertar
os cintos
sem perceber
que há horas
se morrera
crescer em uma
casa onde a dinâmica dos
animais se parecia com
aquilo que fazem os camaleões
me ensinou algo sobre
camuflar-se para ataque sobre
uma constante guerra colorida
nenhum lugar para
se pôr os pés me ensinou
uma coisa ou outra sobre
biologia eu nunca
entendi as libélulas
essa coisa bonita que para no ar
sobrevivi para contar
a lenda do miocárdio porém
ainda com muito medo
de que num acaso ele palpite
por qualquer coisa
pouca


[EU TE AMO PORQUE VOCÊ]

eu te amo porque você
nunca usaria uma palavra onde ninguém mais
usaria

porque
uma águia não conhece o termo
ave de rapina e assim pode ser por
uma média de 20 anos algo
exatamente igual a um passarinho

porque
o menor gesto dos meus braços é pior
que os seus cílios

te amo porque
desmembrando qualquer homem
me perdi no panteão da palavra quimera
achei curiosíssimo estampar um brasão
seduzida fui pelas sobrancelhas de sabão neutro
e ainda assim

nada fazia bolhas
nada havia no mundo que fosse
tão importante

quanto quando inventamos o nome
do que parecia ser o oitavo dia,

tem mais presença em nós
tudo aquilo que não existe.


[ENTRE EU E VOCÊ]

entre eu e você
os feromônios já não têm mais coragem de pular de paraquedas
essa coisa de esperança nasce com a boca no pé e me coloca na
posição do caminho de santiago
vivo a calejar meus lábios
nada mais seguro que abolir os freios
é preciso que o beijo seja como a oferta de um atalho

escrevi pra te contar que hoje em dia ninguém anda de pajero


WANNABE ATACAMA

ainda que no final das contas
tudo se torne frágil como
ouriçar um deserto
não levantarei cabeça alguma de
despedida não voltarei à bíblia serei
pra sempre a primeira mulher
para quem não contaste sobre o verão
pra sempre escura nos lugares errados
⅓ criatura, nunca o suficiente para
alimentar um bezerro
sutil como confundir luto com a noite
que vem, te alegra de sermos somente nós, grãos
e não uma avenida principal, somente cristais
cresceremos queimados
me vigiará em cabeceira, há sempre surpresa
em pensar que antigamente
todo mundo admitia
que logo pela noite viria o frio
hoje em dia sabemos, é engraçado
seremos talvez para sempre inconstantes e arenosos
mas jamais áridos
nos amaremos de jeito desolado e encharcado
como os lençóis
desse país brasil


[NESSA DE SE DAR COM OS OLHOS]

nessa de se dar com os olhos 
você compete com o ar e conjuga
nada mais que o índice de um livro de poesia; não fosse essa sua mania de comer pelas beiradas, uma fala de S e 
a impressão de que primeiramente
pavimentamos plutão e logo em seguida
processamos netuno, vê se me entende,
não existissem os astros do estrogênio
regidos pela córnea que provoca o cio
da braguilha da cidade que eu visto, a
ideia de um flerte como a gestão da crise
dos mísseis em cuba, não fosse nada disso,
mas um grito, agudo e palíndromo, ou seja, 
seu nome honrando os instrumentos de sopro,
amanhã mesmo nossas bocas se errariam 
e minha glote te ensinaria
o que fazem e onde vivem 
as professorinhas 
sem magistrado.


[CONVERSA DO TEMPO EM QUE AINDA NÃO JULGÁVAMOS IMPORTANTE O USO DE BLOQUEADOR SOLAR]

conversa do tempo em que ainda não julgávamos importante o uso de bloqueador solar
sabes
muito se fala sobre ser o sol na vida de alguém
intrometido
ícaro deporia não considerar muito boa ideia diria um astro é um fuzil
raios! UV
mutação alguma DNA, escute lá, não ouses seja nada mais
que o escuro deitado entre dois corpos

achei cafona arder pelo outro

amo das 9 ao meio dia
raras exceções às quatro.


[SOLUÇÃO]

assumir teu gosto por ciências

ouvir atenta ao fato de que limões dão mais
sumo após alguns
segundos no microondas

encontrar motivos pra clamar a
são josé inspiração a tal plano maligno

manter-me por dias na casa de pólvora
carregando somente um fósforo
entre as pernas.


[TEM PARTES DA MULHER QUE O HOMEM NUNCA TOCARÁ]

tem partes da mulher que o homem nunca tocará
o terceiro olho os
ossos do ofício a
garganta extra o cabresto jugular
essas coisas & entre outras

a virilha de dentro


[COMPARO SEUS DENTES COM QUALQUER]

comparo seus dentes com qualquer
objeto branco também
no cômodo

rezo pedindo tentar te enxergar
o sinônimo de sinônimo
a primeira
frase neutra de uma língua

chamo de um jeito você fala de outro
não tem saída há sempre
uma tendência de
substituir o céu por uma cor

você de noite me pergunta o quanto
te aproximo de um deus

respondo que ainda na igreja sem pedestal
não ouso entrar
sem antes me pôr de joelhos


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

IE | Acho que o surrealismo é, em si, não uma fuga da realidade, mas um realce dela em cores mais fortes. O amor, na minha vida, faz isso: não aceita nenhuma cena que se preste a uma explicação racional de qualquer tipo. Não aceita nenhum tom pastel, e a poesia nasce justamente dessa não aceitação do ambiente natural e fácil, dessa luz que só mostra uma parte da cidade. A poesia só existe porque odiamos meios termos, porque a gente não dá conta do limite do aceitável e precisa contrariá-lo. Esses dias um amigo meu me contou que tinha a estranha tarefa de escrever sobre algo que ama odiar, para um trabalho na faculdade. E ficou espantado quando eu disse que amar o ódio a algo é poderosíssimo. Liberdade pra mim é ter um lugar onde eu posso transformar o corriqueiro naquilo que as tintas fizeram depois que veio a fotografia: dar o troco, falar mais alto, pra que as pessoas ouçam também. Porque eu não aguento o banal. Aí eu escrevo.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

IE | Quando eu tinha 15 anos, eu ganhei dos meus pais a obra completa do Manoel de Barros. Eu não sei ou não consigo dizer uma frase que resuma tudo o que acontece até hoje vindo desse homem, mas sei, por causa disso, que “uma palavra abriu o roupão pra mim”. E quando alguém te diz que uma palavra quer que você a seja, você entende que esse mundo aqui você então passou a não querer mais dominar. E isso é sério, é importante. Gosto também da Hilda Hilst, acho tudo muito corajoso, tento redescobrir a cada dia, é coisa pra uma vida. Talvez não seja exatamente uma afinidade, isso seria muita presunção. Mas gosto demais dela. E a Sophia de Mello Breyner Andresen tem me ensinado sobre o tempo. Não sei, são muitas pessoas, muitos contemporâneos também, a lista iria até amanhã.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

IE | Acho que muitos escritores contemporâneos se sentem desperdiçados pela crítica e isso cria um ciclo eterno porque não se permite espaço a quem não é lido e ao mesmo tempo não se lê quem não está dentro desse espaço. Mas, enquanto isso acontece, também estamos reinventando nossas formas de circulação, nossas formas de burlar esse meio em que vários poetas não estão sendo lidos por questões muito pouco a ver com suas literaturas. Isso é a cara desse pessoal que anda sendo garimpado por aí e achando novos jeitos de jogar contra essa indústria doida que a gente já sabe que virou a cultura. Esse sentimento de quem já entendeu o comércio e a repetição por trás do que chamam de poesia, lírica, e quer fazer algo. A pouca esperança que a gente tinha de que algo mudasse acabou, mas ainda não é tempo de ficar parado. É uma coisa de quem tem e quer usar o tempo prestando atenção no que tem algum valor. E são tantos, nossa, tantos artistas incríveis conseguindo se estabelecer que eu fico até sem saber o que dizer sobre a coragem dos poetas com quem eu hoje convivo e os quais felizmente tenho a chance de ler.


[ FOLHA DE VIDA ]

Isadora Egler (Brasília, 1999). Poeta. Possui textos publicados em revistas físicas e virtuais e, em 2018, foi vencedora do terceiro lugar do Prêmio Off Flip na categoria poesia.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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