terça-feira, 1 de janeiro de 2019

AS CORES PREFERIDAS DE ANITA BORGIA


TORRE DO TOMBO, VISTA AO ROMPER DA AURORA [ZS]

O mais belo azul é o dos rolos de anil das formosas Tágides do Tejo, iluminadas pelo Sol Infante, ao romper da Aurora, soberbas desfilando, de róis de roupa à cabeça, cantando belas mazelas de Camões, ante a Torre do Tombo, de que o Cronista-Mor Zé Muraro, se debruça, duma ameia, e sua Musa pessoal, fiel Clotilde, surge de outra, segurando a bandeja com uma taça de vinho verdelho, e a garrafa de que no rótulo vê-se o escudo das Quinas (quantas?… quem acertar… ganha uma caixa de dúzia de cascos da Cerveja Caravela cada uma no respectivo rótulo levando o autógrafo de um dos Doze Pajens Lusitanos que foram à Corte de… (que Reino?… quem acertar leva uma latinha de sardinha Sagres).


O AZUL TRANSFIGURADO DE ANTONIO BANDEIRA [FM]

Manhã bem cedo dar uma mordida no céu. Deixar sangrar um pouco, para que o vermelho se espalhe pelos vasos comunicantes do acaso. Algumas linhas dissecadas formarão um mapa em que se misturam arbustos e fachadas, rede elétrica e contornos em movimento perene. Quanto mais à distância se observa o resultado mais se distinguem as figuras que circulam por um cenário que parece imaginário. A realidade transmite ao delírio as noções secretas de fixidez e contrastes. O azul palpita em sua selva de relances furta-cores, e extrai do ventre da abstração os truques da paisagem e da figura. Os olhos da noite jamais serão os mesmos.


O CÉU E O COPO [AB]

O psicanalista sonolento escuta o sonho recorrente daquele pintor paciente seu, amante de impossíveis. O sonho começa com ele frente à tela, a paleta e os pincéis prontos para seguirem a mão, em um ateliê obsessivo – uma cama desarrumada a meio metro do cavalete, esboços amassados jogados pelo chão. Prepara a tela com fundo branco. É então quando vê, em 1936 e ali, um homem de ar severo, vestido de gravata e paletó, caminhando irritado pelo lugar, rapidamente e de um lado para o outro. O engravatado vira a cabeça volta e meia para a tela e para o pintor, ao que fuzila com o olhar, bradando: “– ¿Cómo no te das cuenta? ¡Tiene que ser azul!” E o pintor sabe que o homem está falando de Deus, e Deus é um copo d’agua. O homem argumenta em azul: “O céu não é a pele de Deus?”, ou então fala de “un coagulado azul de lontananza, un vaso de tiempo que nos iza en sus azules botareles de aire” e não deixa o pintor trabalhar. O ambiente do ateliê vai se tornando mais e mais angustiante com uma série de vozes que começam a ecoar desde todos os labirintos da História, todas dando razão ao engravatado. De 1854 escuta-se: “Mon âme dans sa nuit redit ta gamme immense; je frissonne à tes bruits d’orage ou de clémence, vivant psaltérion; sur ma lyre, qu’émeut l’esprit des Zoroastres, les sept notes jadis tombèrent des sept astres du bleu septentrion.” “– ¿Ya ves?” – diz o homem, com ar de vitória. E um índio nicaraguense com mãos de marquês confirma repetindo simplesmente: “Azul…” “Azul…” E os tambores pré-históricos tocam a-zul, a-zul, a-zul… Até que o próprio Deus fala palavras azuis com voz azul e o pintor não está mais frente ao cavalete, mas deitado na cama e suando… E abre os olhos ao sentir uma mão tocando a sua. É uma freira, bela e jovem, o ateliê mudou-se para 1671 e ela explica, com muita seriedade, doçura e clareza, como o pintor pode usar o céu para realizar sua obra. O pintor sorri ao perceber: no pensamento da freira, ele quer escrever um poema e não pintar um quadro, mas já não lhe importa tanto. A escuta explicar que é preciso deixar o Sol nascer, para que seus raios desenhem linhas na folha imensa do céu até que feche “o giro que esculpira em ouro todo sobre azul safira”. Com o céu assim pautado ele poderá escrever. “O sonho é cobre e azul”, ela diz. “Agora acorda”. E ele acordava.


EXPÔ MANÉ-XANFLORRY [ZS]

Coluna Scultural do Trator Roxo



SOMBRA AZUL DAS RELÍQUIAS DESFIGURADAS [FM]

https://youtu.be/D5PrfGirI-s



O CEGO E AS NUVENS [AB]

Os nenúfares do Cego, todos, sim, mas que seja aquele,
O das nuvens refletidas no lago azul.
Os olhos opacos caçam a luz mais e mais fugidia.
Ele pinta, contudo.
O Cego é nuvem dançante sobre o lago azul.
É nenúfar embalado por um sopro.
É Ofélia viva, coroada de nenúfares, banhando-se no lago azul.
O Cego pinta com os olhos sem Sol.
O Cego é o lago azul.


LETRAS DE ENCARTE [ZS]




MODELO DESFIGURADO DA ATUALIDADE [FM]

A sombra trafega por entre as metáforas de efeitos gastos,
projetando com frequência suas vivendas destinadas a encontros íntimos e a introspecção solar do mistério. Aos poucos a sombra descasca sua geografia interior e a contemplação das escadas no pasto nos faz cada vez mais errar os caminhos habituais. A atualidade predileta desponta na última janela da casa. Um albergue de superstições e mórbido erotismo. O grito anômalo do tempo cuja permanência é uma moléstia temperamental. Alguém me escute. Eu quero desenhar a sombra saindo do banho e a procedência orgíaca de seu crepúsculo nos salões de arte. Uma caixa de grafite e um enredo apanhado às pressas no gavetão de um colecionador. Eu quero. Se me ocorresse agora algum movimento, as linhas surgiriam como uma sociedade consagrada à metafísica. No entanto, a pintura perdeu movimento. A atualidade ocorre como um vício adernado. A sombra reflete apenas a usura do olhar.


BLUE CAVE [AB]

A primeira passagem está sobre as águas ocultas de Yerebatan. É preciso seguir as retas colunas de mármore branco e cinza, branco e púrpura, caminhando não sobre as pontes, mas sobre os peixes luminosos. No final do cansaço, encontra-se a passagem aberta.
A segunda estava na Caverna Azul, em um edifício abandonado em Londres, no feroz Peckham. Sendo tanta sua beleza, a Caverna foi transferida com todo cuidado para o parque de esculturas de Yorkshire, entre suaves colinas. Alguns dizem que a passagem mudou-se junto, irremediavelmente apaixonada pelos cristais azuis. Outros afirmam que não, pois as passagens não se mudam assim e à menor oscilação espacial simplesmente se fecham.


EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

QUARTETO KOLAX é uma carroça de atores percorrendo os escombros da arte contemporânea com seu teatro automático. Seus integrantes são Anita Borgia, Dr. Flor, Pedro Kz e Zuca Sardan. As imagens que acompanham a edição, reconhecidas ou não, por efeito cênico, são estrategicamente anônimas.


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 125 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019





Nenhum comentário:

Postar um comentário