sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1991 PEDRO BLANCO


[ DEZ POEMAS ]

[UMA NAUVE PARA BISPO DO ROSÁRIO]

uma nauve para bispo do rosário:

sobrevoar a nado o nada
a ponte de safena plantada no sonho desenha a concha pra se ouvir o céu
um chinelo que saiba alçar
a bainha portando flor
joias de pendurar na alma

bússola apontando o triângulo das bermudas capital de andrômeda
o leme guiado pela sorte
motor movido à lágrimas
um náufrago de imediato
o capitão que afunde só

uma tesoura que cole
um carrasco rebobinado
um ataúde que ressuscite
um carlos torto um torquato alado
rita lee sua imagem e semelhança
um pugilista taxidermizando  mariposas e libélulas que atracam as línguas

metade de um lobo x 8 j'é matilha

- um pássaro + relógio = 00:00

X

as 365 luas entre o ovo - larva- pupa- fase adulta

um celular com requeijão
um pão com a tela virada pra baixo
os dois a 80 por séculos XXI?

um auto um labirinto uma arca cheia
de estranhas
com animais que a natureza esqueceu de inventar
o quanto de centauro que cabe no atalho de cada paralelepípedo

uma vara de pescar nuvens num jardim suspenso pra levar os dogmas pra passear

esquecer de levar o que se lembra do mundo
exceto os inseticidas pros etnocidas

a poesia quitando o aluguel


[FLAGREI O TEMPO]

flagrei o tempo em que a galinha consegue correr sem a própria cabeça
o tempo do sossego
sem peso pra pensar religião previsão do tempo atestado médico se vai ser ovo cozido ou escorpião na mistura ou se o cavalo dorme na própria janta ou janta o próprio descanso ou me lembrar de amarrar os sapatos antes de mergulhar


[TRAJAR TRAPO]

trajar trapo
tirando cartola de coelho
dando canja pra desafinar de galo
com voz de cigarra
ser o piolho que descabela o mundo
ser murro ao ser mudo
ser ponte ao ouvir de muros
ser diminuto enquanto os outros tem hora
rir com as bruxas pois se é caipora
e ir embora ao perceber que ficou

armado até os dentes de dente
pra desfilar sorriso
um camelô de sonhos matando sedes
um aras no deserto dum peito

de uns séculos pra cá
há de se reinventar os abraços
os toques

deve-se lembrar que a pele é pena
pena que de tão leve ninguém leve a sério

deve-se um arrepio em cada pio revisado à quem mandou calar
deve-se febre aos médicos
e devem ser tartarugas as lebres
deve-se desaprender das contas do tempo
deve-se desobediência, pois
quem prometheus o fogo não avisou da conta do gás
deve-se ignorar a conta da luz
deve-se queimar a conta das trevas
devemos chama ainda em chuva
deve-se barracos os balões
deve-se pipas ao céu
deve-se o véu sereno da noite
ao coração de uma criança etíope

deve-se
sobretudo
alongar o espírito
adocicando
nosso abissal

[DES]

des
desfoucault da questão des
desfoucault da questão des
desfocault da questão
seus juramentos de hipócrates!
des
desfoucault da questão
é tanto adorno
des... des...
desfoucault da questão
tudo tão confúcio
des
desfoucault da questão que freud estraga...
desfocault da questã - não freud! 
desfoucault da questão
but i kant!
des... des...
descartes!
des
desfoucault da questão... des... seus juramentos de hypocrates!

desfoucault da questão que
é tanto adorno
tudo tão confúcio

que nada fica nietzschedo

a vida mais parece o gato de schrödinger amarrado num pão com requeijão


[A LÍNGUA LIXA FELINA]

a língua lixa felina
limpando o pelo
da carcaça que
apela
limpando o que sobra dela no limbo entre o dente e a mandíbula

a língua
formiga
a língua lagarta

a língua afogada em outra
feito peixe afogando em ar
feito um feito natural
fato
a língua
das  coisas
mordida queimada
ainda
a língua lâmina riscando o verbo no chão
fatiando o vento fóssil

a língua migrando de carne em carne
de cerne em cerne
a língua que faz dos trapos coração

a língua sem freio poeta na minguação da lua
mendigando um oral


[O PEIXE GOELA ABAIXO]

o peixe goela abaixo
nível do mar
as moelas céu da boca
acima
são os dentes das aves
e ficam boas se bem temperadas
a carne cu a fora
forma a merda que dentro tem carne
que dentro tem capim
que dentro tem chuva e sol
goela abaixo
tudo goela abaixo
deglutido ainda que não curtido
ainda que seja cru ainda que já tenha passado

é necessário se portar feito avestruz
e engolir tudo: pranto, bala, sapos
é necessário imitar cachorro:
ter fome de lixo sempre
e ainda ter que abanar o rabo
e ainda ter que fazer festa
pro seu bandido de estimação


[DESJEJUAR UM SACO SEM FUNDO]

desjejuar um saco sem fundo
engolir o murro no centro do umbigo
a seco
tirar a farinha do porão da cabeça e jogar no pirão
nem que seja a palo
nem que seja pela asma da vaca
desjejuar um saco sem fundo até não caber o mundo
pra suportar a lombra dos húmus


[MARTELEI PRA CADA PEGADA UMA MINHOCA]

martelei pra cada pegada uma minhoca pra cada cabeça de seu coração pra cada quadro que me falha lembrar de comprar um pouco de sopa pra pôr nas moscas um tanto de sapo


[LUTO POR TODA FORMA DE AMOR]

luto por toda forma de amor
entre uma menina com fobia de peixe e o mar
um nefelibata e uma roseira
uma hipertensa e uma chorona
do diabético com os lábios de mel

pra que internemos a anatomia de vez

por um esquema mais elétrico pois quem perde tempo pensando é cérebro
- e já não temos mais espaço para isso –
para que nos abrasemos forte e ascendemos

para que aprendamos mais com os fósforos
é que saibamos dar ouvidos ao amor como van gogh


[NO JULGAMENTO DO OLHO]

no julgamento do olho, lua e bola de gude tem o mesmo tamanho

na ótica da alma afetada, o nada serve tanto quanto o tudo

na surdez, trovão é lindo e nada mais
fofo de artifício não tumultua cão

navegando o mar talvez não seja tão bonito

lava é ferida quando tato
cacto é flor vez em quando
água viva de longe é medusa
de perto mijo ou uma espécie de ovo frito de e.t.

dois corpos produzem mais incêndio que especulação imobiliária
fio elétrico é o que liga tênis e anjo
não há chuteira ortopédica que ajeite garrancho
não há garrincha que não entorte a caligrafia

não há guache que a gramática dome

osso é duro, mas par cachorro é baba
gravidade é questão de interpretação
como um sorriso de ponta cabeça é uma expressão triste


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

PB | Amor e liberdade são o motor da poesia. Quem faz poesia acredita nisso, independente do estilo. Tem que ter e querer os dois pra se fazer uma. De alguma forma você quer ser livre, você tem algo a dizer. E se você não ama o que faz, não há sentido em fazer. Poesia é o jeito como significo o mundo, que me encontro nele, por inúmeras razões, mas principalmente porque é o que mais amo fazer e porque acredito em liberdade, pra criação, pra viver. Pode me chamar de romântico, só não me chama de rei de Roma.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

PB | Carla Diacov. Não tenho o que falar de Carla sem ser o exagero que ela merece e ainda não sendo… Essa mulher é a maior de todas as poetas de nossa língua. Minha maior influência. Sinto arrepio de lembrar que ela pertence a essa época, do nosso lado, viva e potente, cada dia mais potente. Junto à Stela do Patrocínio, Carla dá um novo sentido à poesia. As duas merecem muito mais reconhecimento e um pedestal que alcance as nuvens. E ainda é pouco. Muito pouco.
Arthur Bispo do Rosário sem dúvidas é uma das figuras que mais me interessam na vida, esse ser que é 2 e 1000 em uma noite e n’outro dia o triplo, uma máquina pilotada por Pégasus, um santo da criatividade que teve que caminhar pela terra e ainda deu a sorte-azar de pousar no Brasil.
Stela do Patrocínio: já falei um rato dela, mas ela é o reino dos bichos e dos animais, ela é poesia em carne em cerne e sina, não dá pra separar, tudo nela é magia.
Leonora Carrington, Frida Kahlo, Remedios Varo: as mulheres surrealistas que conheci numa exposição aqui em SP, eu creio que em 2015. Fiquei impressionado com a criatividade e com a facilidade delas pra caminhar, ou melhor, voar por diversas plataformas como esculturas e figurinos que me tocam muito. Com a Frida, eu (e milhões de pessoas) tenho aquele carinho a mais, principalmente por partilhar da relação osso-parafuso-parafuso-osso-cirurgia-parafuso-osso, e também pela mesma razão que ela tem de não se considerar surrealista: “Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade.”

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

PB | Nosso país é a voz de tudo, de todos. Mas é uma voz de muito sangue. Temos sorrisos manchados de sangue e muito sorriso correndo nas veias. Um lugar passional onde tudo é muito, do beijo pra guerra é uma campainha. Povo bicho. A gente tende a ser denso, tenso, firme – “mas sem perder a ternura”. Não sei quando dizer que o país foi ou é mais surreal, mais absurdo, mais sei lá o que, mas que a televisão de 1980/90 que era um mix de Xuxa invocando o diabo/montando num anão, seguido do Fofão e sua faca, depois yuyu hakusho, além da imaginação (Twilight zone) e Linha direta antes de dormir, ajudou essa juventude a entortar as ideias, é isso, é fato. As novas vozes aqui são piradas, tem coisa repetida, claro que tem, mas a galera que compra a própria pira e joga na banguela, independente do estilo, do movimento, se é sexy sem ser vulgar, ou seja, o que for, é muito boa e merece muita atenção. Se deixar teria que ter umas três páginas só pra citar quem acho foda. Tenho muito orgulho da nossa poesia, da poetada do nosso país. ‘Tamo muito bem representados.


[ FOLHA DE VIDA ]

Pedro Blanco (São Paulo, 1991). Nascido no sol de Touro. Resiste em São Paulo. Falhador de poesia, pescador de peixe fora d’água e achador de causas perdidas. Usuário de Rita Lee. Fundador e único membro do movimento barroso: vocês podem considerar que tudo o que ele fala é meio Manoel de Barros ou tudo uma completa merda mesmo. Autor de Inmôcodo (Edições Doburro, 2018).



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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