sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1995 IAN VIANA


[ DEZ POEMAS ]


[O HORROR É VOCÊ DIANTE DAS COISAS]

o horror é você diante das coisas

ele acordou beijando a mulher ao seu lado – ontem completaram dez anos de casamento –
deu três beijinhos na testa de cada um dos três filhos
como faz todos os dias
assistiu o telejornal da manhã enquanto preparava cuscuz com manteiga e ovo
“cinco mil pessoas foram assassinadas no ceará em dois mil e dezessete”, em sua conta rápida, de cabeça, encontrou a média
de dezessete mortos por dia: “é uma guerra”, pensou
terminou o café e esperou todos os gols da rodada
de estaduais do final de semana para sair de casa
na altura da esquina percebeu ter esquecido um texto
de baudelaire sobre a modernidade – numa péssima tradução-
não saber francês era uma de suas mágoas e não aprendeu
por conta do tempo que os filhos despendiam
no íntimo sentia uma raiva dos filhos
mas os amava com um amor profundo
voltou para casa, pegou o texto e partiu novamente
não conseguia esperar no trânsito parado – graças a ansiedade –
sem ler esse texto – sempre o mesmo – ou qualquer poema de rimbaud, ou lautremont, ou nietzche, quase sempre em traduções terríveis – o que aumentava sua mágoa –
então abria páginas de travestis garotas de programa
e deliciava-se com o lirismo dos comentários pornográficos
em cada uma das fotos – não havia tradução possível para o “brasileiro pornográfico”, pensava saciando em vingança suas
carências intelectuais e
de vez em quando encontrava-se com algumas delas
– sempre pelo horário do almoço –
e durante todo o programa apenas as observava nuas
e, ao final, as presenteava com algum livro de poesia
e esses sempre em uma ótima tradução – a generosidade
o acompanhara desde a infância –
todas as putas que o conhecerem se apaixonaram – até hoje –
e depois vinha a culpa, vinham os pensamentos na mulher
e nos filhos e era tudo tão verdadeiro como era o amor pelas putas mas a catequese não ensinou esse amor a escola não ensinou esse amor a universidade não ensinou esse amor
a universidade não ensinou nada além de alguns bordões
que em nada mudam o curso da civilização então
todas as quintas ele afogava a culpa em cachaça – tinha nascido para a boemia assim como tinha nascido para o amor
ou para alguma espécime de amor
se reconhecia um bicho, um animal, um mamífero capaz de amar;
na sua mesa guardanapos e guardanapos de mulheres apaixonadas, mas, bêbado, este só pensava no colo da sua mulher, no sorriso dos filhos, na forma que os olhos de uma travesti brilham quando são cumprimentadas em público e chamadas pelos nomes que elas escolheram
e pensava no fracasso de marat e sua revolução francesa
e no fracasso de jefferson e sua revolução democrática
e no fracasso de lenin e sua revolução proletária no país
em que hoje as crianças se aquecem em esgoto – mas vai sediar copa – que ele ia assistir e vibrar e chorar
então se sentia vazio, oco como um bambu da china agrária
que é sempre mais oco que um bambu encontrado em qualquer outro lugar, e se percebia de frente para si mesmo e sabia
que não há nada que enfie no esquecimento, porque o vazio é próprio aos elefantes e sua memória imensa como é a memória dos poetas mas ele não era poeta, era um burocrata,
tinha tudo para ser poeta, mas teve medo como os homens
costumam ter, teve medo de explodir como tim maia explodiu,
teve medo de ser encontrado inchado como elis regina foi encontrada em seu apartamento, teve medo de assassinar a própria esposa como fez burroghs teve medo de enlouquecer
como kerouac, como artaud, como sade, como sua mãe
e esse medo ele ainda tem e é por isso que sai para passear com os cachorros pela madrugada porque assim esquece os cachorros latindo em seus bolsos, esquece dos sonhos que largou na juventude, esquece os abusos que sofreu do pai, esquece a infidelidade à mulher amada, esquece que sua família inteira – mulher e três filhos – faleceu num acidente de carro ontem esquece o horror que é estar diante das coisas como elas são e não como deveriam ser.


CANÇÃO DA SERPENTE


você se lembra de quando sentiu teu sexo pela primeira vez?
você se lembra da sensação?
foi no banho, não foi?
não?
foi embaixo das tuas cobertas numa manhã de domingo?
não importa, criança
só peço que relembre o prazer desse dia
vim para contar que aquela é
a sensação que tarsila sentia quando pintava seus quadros
você sabia?
foi com aquele ardidinho que oswald escreveu seu manifesto
e aquele medo do desconhecido que vez hilda parar no mato
quando waly salomão leu montaigne pela primeria vez
uma cobra coral picou seu tornozelo deixando o veneno
do primeiro poema brasilis em seu sangue
depois disso a bahia nunca mais foi a mesma.
uma criança que descobre o orgasmo
é um um vilarejo em chamas
é um acasalamento de cobras
é um gole de vinho cortando a noite escura
não sei se te contaram
mas é isso que os poetas tanto buscam
essa memória da infância
esse passado perdido
e por aí se arrasta toda a história da literatura
você já assistiu o acasalamento entre cobras?
muito provavelmente não e o retorno a infância
é tão difícil quanto porque a partir da descoberta
orgásmica se inicia a contagem da vida e a partir de então
a civilização trata de vestir com panos pretos – como são o dos padres – as tuas retinas de contemplação
e é difícil a retomada tendo consciência do haiti
é difícil a retomada tendo consciência do iraque e afeganistão
é difícil a retomada após assistir ao vivo o massacre em columbine ou na candelária
é difícil a retomada assistindo a porra do programa da sônia abrão
é difícil a retomada vendo o exército revistando lancheirinhas
de crianças pretas na favela da rocinha
é difícil a retomada quando tuas mãos estão sujas de sangue
(esse é o momento em que olha as tuas mãos)
e não há por perto uma bica sequer


VOCÊ É UMA NEGOCIAÇÃO COM DEUS


eu sinto teus olhos brilhando
quando os meus se fecham
venho exercitando minha solidão
enquanto você aparece como uma onça pintada
arranhando minhas costas e dizendo “agora está tudo bem”
mesmo não estando

eu quero ser teu beato e teu devasso
tudo é sagrado e você sabe
quero o meu corpo de quatro
quero o teu corpo de quatro
sua boca mordendo a nossa almofada de nuvens

quero ser teu boato e tua certeza
nossas mãos entrelaçadas
você me trocando por um piloto da fórmula 1
no dia do nosso casamento
nossos esqueletos enterrados em alguma posição tântrica

minha boca sendo lambida por alguma árvore

eu quero o cheiro das tuas axilas
enquanto você se masturba
teu ventre contorcido pela música das esferas
gauguin beijando a nunca de van gogh pela última vez.


PRA QUE EU LEMBRE DE NÃO ESQUECER


conheci o inferno da cocaína apelidado de pânico
e o desemprego da minha mãe
tornei-me amigo das taquicardias e dos ventos.
conheci poetas babosos.
gaivotas do céu azulado.
atirei em todos.
assim me tornei amigo dos pássaros.
conheci o amor e a fúria dos anjos ciumentos
conheci a compaixão e seus desejos espúrios
como a vontade de salvar o mundo de nós mesmos.
conheci prostitutas que me ensinaram mais que a universidade
conheci a solidão das prostitutas e seus olhinhos margaridas negras de amizade
conheci seus pais suas mães e fingi ser seu namorado para conservar
a moral que bombardeou hiroshima
fiz por amor.
conheci mulheres que me revelaram verdades universais
com os dedinhos dos pés
conheci as estradas e suas flores azuis
conheci a vertigem. conheci a dádiva.
conheci a maldade pródiga da indiferença.
conheci crianças que nunca sonharam
conheci menores infratores leitores de nietzsche
com quatro tentativas de suicídio
eu evitei a quinta
conheci covardes e queria não ter conhecido
desses não extendo nada mais que esses versos.
conheci mestres & mestras da vida cotidiana
conheci quase afogamentos e quase overdoses
conheci leitores gaveta e leitores incendiários
tenho simpatia pelos últimos
conheci figuras detestáveis e simultaneamente admiráveis
jamais poupei palmas.
minhas preferências pessoais nada interferem no sucesso alheio
conheci o primeiro e o último
conheci a venerada e a desprezada
a estéril e a que tem muitos filhos
conheci omama e yoasi.
e a vida ainda nem começou
a vida
ainda nem começou.



LEIA APÓS O ORGASMO, DEITADO NA CACHOEIRA COM AS PERNAS APONTADAS PARA O SOL



há 100 anos atrás
um rio corria as veias do teu antebraço
o pôr do sol é belo enquanto se despede e
assim mesmo é o meu amor, minha musa
eu estava, vi e assino embaixo
a beleza dos primeiros mosquitos desse planeta
eles eram amarelos-ouro e levavam patinhas como pantufas negras de camurça
eu estava lá quando capturaram a princesa da nigéria
e a venderam como escrava na bahia
de todos os santos
quando orixás travessos tocam seus tambores
na madrugada da chapada dos veadeiros
milhares e milhares de casais adolescentes
do litoral brasileiro transam o bailado de seus corpos
corados e quentes após matar aulas
e passar o dia inteiro no sol
ontem me ofereceram um projeto de reforma universitária
mas eu sinceramente não sei se reformas bastam
porque as universidades hoje transformaram-se em conventos
e da última vez que reformaram conventos surgiram
as igrejas neopentecostais
sim, eu ando capengando de amor em amor
de flor em flor com a minha comitiva
de passarinhos em fase de reintegração
às matas originárias então, por favor,
não nos peçam coerência
pois a contradição se tornou a moeda do dia.


EGOÍSMO NATURAL DAS FLORES


ontem, enquanto escrevia uma carta para você queimaram seis crianças numa creche em minas gerais,
enquanto eu almoçava um pai vendia um filho para um estuprador numa cadeia de sergipe
enquanto eu respondia emails do escritório pela tarde
trinta cabeças de índios yanomamis foram arrancas de seu tronco
e com eles se foram seus gaviões totêmicos
enquanto você e sua namorada discutiam sobre o filme
mães de santo apanhavam e eram obrigadas a quebrar suas guias
e destruírem seu fundamentos por traficantes crentes
no subúrbio do rio de janeiro
xibé, o índio cubeu, contava-me histórias de entidades habitantes
das nuvens amazônicas enquanto dona iracy morria na fila
do hospital público de santa efigênia com seu rosário na mão.
amanhã, após despertar, colherei frutas silvestres no parque
e o mundo desabará sobre os meus pés.
algo me diz que as amoras continuarão docinhas.


DOIS MIL ANOS


ontem eu disse
eu preciso escrever um poema para essa mulher
porque quando se fecham os olhos no chuveiro
imaginando outros olhos e daí explodem caleidoscópios lisérgicos é preciso escrever um poema
ontem eu vi o laranja do seu vestido
incendiando uma casa da minha vida
uma casa da minha rua
e o barulho das janelas trincando
tinha a sinfonia de um forró tocado por um violino
um forró que ainda não dançamos
ontem eu senti vultos em minha caminhada
e eles me perguntavam a todo tempo quem é você
e de quem era aquele cheiro de chuva no meio da seca
de quem era aquele sorriso que fez curimba no meu peito
como grilos perguntam os nomes das estrelas na escuridão da noite
ontem eu entendi & apoiei os romanos expulsando cristo de roma
porque antesdeontem queimaram o meu terreiro e quebraram minhas guias e há 2 mil anos
quando gritaram “esse não é o meu reino” uma bomba atômica varreu tudo e eu pensei:
“caralho o que eles vão fazer com o reino que não é o deles”
e num piscar de 2000 mil anos eles produziram uma armadilha
chamada ciência e levantaram fábricas
e soterraram deuses
e fumaram florestas inteiras com suas chaminés
e quebraram
esculturas maravilhosas
e o que me garante que eles não vão levar você de mim?


VIDÊNCIA


eu vejo um futuro de ministérios esvoaçados
eu posso sentir o gosto do desregramento dos sentidos
eu posso sentir suas mãos depilando o meu corpo para sentir
o meu gosto mais e mais e mais
eu posso ver um líder pobre e populista estampando as paredes do centro da cidade
eu posso ver comboios de percussão e rapé
saindo dos quilombos e expulsando alunos medíocres das universidades
eu posso ver a mão de vó procópia no meu antebraço
eu posso me ver pingando mel na boca de nossas filhas
porque ter sonhos doces nos é um direito universal
eu posso ver nossas flores guerreando
por pernas bonitas e caminhadas nos bosques
eu posso ver a falência dos meus órgãos experimentais e o fracasso das instituições
eu posso tudo porque tudo me é permitido
eu posso prever a ressurreição de bach e seu espetáculo de banquetes coletivos no meio da cidade
eu posso ver maiakovski sendo devorado pelas larvas stalinistas
eu posso ver bobos meninos brincando de stalinismos
como quem brinca com bonecas e carrinhos
eu posso ver orgias entre bichos e homens em exposições patrocinadas
e posso ver o arrependimento dos patrocinadores
eu posso ver mecenas abrigando meu exílio em palácios vermelhos
eu posso ver a fúria da fidelidade nas portas dos puteiros
eu posso ver eleições diretas para o nada
eu posso ver presidiários em rituais de ayahuasca e suas testas tatuadas
eu posso ver cada beijo que dei na minha vida
eu posso lembrar do gosto da minha primeira hóstia e da culpa dela também
eu posso tudo porque nos foi dado o direito de duvidar de tudo
eu posso rever a minha alegria quando você se importou em mudar seus passos
e me cumprimentar
eu posso ver minha dor quando você resolveu ir embora e não me disse nada
aliás você disse
mas eu posso ver o momento da minha vida em que decidi esquecer
o que deve ser esquecido
eu posso ver as crianças brincando embaixo da minha cama
eu posso ouvir tudo isso
porque nos é dado o direito de tudo
eu posso ver meus amigos em putarias ritualísticas no parque da cidade
e eu posso ver o teu primeiro contato com a pornografia
eu posso ver teu gado voando com o furacão irma
eu posso ver a tua vontade de salvar o mundo
destruindo pessoas
destruindo amigos
destruindo o segundo
eu posso ver o desespero do tempo
e eu posso ver o desespero de um político corrupto
que é o mesmo desespero de um político honesto
porque é um desespero que não teve o direito de nascer
eu posso ver seu filtro moral condenando os tropeços dos outros
os outros sempre
o outro e os outros
os nossos inimigos profundos.


NOSSOS CORPOS SÃO MONUMENTOS EM DECOMPOSIÇÃO


O omelete que nós fizemos no Domingo passado tá até agora na geladeira. Eu vou comendo aos pouquinhos, pra sentir o gosto dela o máximo de tempo possível. As bordas tão começando a bolorar, mas eu não me importo. Já comi coisa pior quando as vacas estavam magras. Na Venezuela eu comi um frango que tinha gosto de peixe, depois de esperar 7 horas na fila. E tô vivo, não tô? O importante é sentir o gosto dela.

Acho que a literatura me levou mais um amor. Ontem eu passei a noite inteira chorando e me perguntando porque diabos eu não consigo ser feliz e ter uma família e lutar por um apartamento e um carro pra levar meus filhos pro passeio aos sábados. Faz um tempo que resolvi que era hora de parar de culpar meu pai pelo meu desespero. Ele partiu com minha torcida nas peladas da escola, com o arranhar da barba e com os telefonemas no aniversário? Partiu. Mas e aí? Ele não me batia. Nunca encostou um dedo em mim. Ele deve ter os motivos dele pra ter ido embora.

Isso tem a ver com Baudelaire e aquela obsessão dele por tudo que está em decomposição. Uma flor em decomposição é uma das paradas mais poéticas que eu já vi na vida. Aquela beleza & aquele perfume virando podridão e larvas. Morrendo e trazendo vida. Porra. Isso é lindo demais. É difícil, sabe. Ninguém quer abandonar as flores, mas de vez em quando – ou quase sempre – é importante estar do lado das larvas.

Eu resolvi que vou pra Amazônia. Assim que terminar as pendências do meu emprego vou preparar minhas malas e me meter numa missão antropológica dessas. Meu currículo é bom, eles vão pensar que vou ajudar. Foda-se. Eu vou atrás do mais além que levou Artaud pro hospício. Desde a última vez no Candomblé ando sonhando com cobras. Devo encontrar uma Jibóia nessa viagem e é aí que minha vida vai mudar. Levarei mapas, livros, patuás de exu e xango, um punhal que meu vô me deu quando eu era moleque e quase me tomou quando eu rasguei a barriga do Carlinhos.

Amanhã mesmo começo a despedir-me dos amigos e familiares. Vou excluir todas as redes sociais e jogar meu celular no rio na primeira balsa rumo ao destino final, porque se ela me ligar eu volto e ainda trago um sapato de pele de jiboia pra ela.

VIOLETA


a noite estrelada do pintor holandês
despencando no meio da tarde de terça

tua face recebendo a água d’uma cachoeira
de 30m de altura
tua amada e suas pernas quentes & abertas
no lugar dessa cachoeira
– e sua face no mesmo lugar –
tua corrida vencida, tua glória, teu joelho arregaçado na infância, a arnica sagrada
e o alívio
algo genial que pensaste ontem no banho
mas agora esqueceu
andré breton emocionado na Lapa
seus filhos sendo presos pulando o carnaval
fora de época no século passado
tua primeira namorada e suas coxas
dançando coco
teu ciúme
sonhos de babás adolescentes
sob o efeito de sementes lisérgicas dançando ao fundo
um menino cabeçudo & órfão segurado pelo braço
seus pais mortos ventando o capim
o horizonte violeta.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

IV | Engraçado. De certa forma sou um homem tríplice. Fui criado por três mulheres, possuo três grandes amores na vida, três entidades me acompanham pelas noites enquanto durmo e outras três me acompanham em meu estado de vigília. Roberto Piva, Glauber Rocha e Oswald de Andrade andam me visitando nos sonhos com seus conselhos irresponsáveis – que eu sigo. A tríade surrealista se manifesta no meu cotidiano desde o momento em que acordo. Levanto, bato três palmas para meu Exu, faço minhas orações ao Sol, nosso Astro-Rei, realizo minhas leituras e saio para o dia como quem vai para o Selva. Me imagino como um tupinambá indo para a caça. Me sinto uma criança sonhando com a vida adulta. Desde que segui o conselho de um amigo e ando lendo menos Pasolini e mais Oswald, me sinto um cara mais feliz. Paso, torno súbito com a política dos 3 pês: Pasolini, Panqueca e Paquera. Enfim. Trabalho com revitalização urbana por meio de festas, atividades culturais, ecológicas e recuperação de moradores de rua. É uma loucura. Minha vida tem se tornado uma aventura. Uma novela mexicana cheia de apaixonamentos e dias ensolarados: “Meu coração e o sol são feitos da mesma substância”.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

IV | Brinco que sou um discípulo espiritual de Roberto Piva. Sua absorção do surrealismo francês, ao meu ver, é a plena realização antropofágica sonhada por Oswald. O cara comeu todos aqueles gringos sem nem pedir permissão, colocou na panela com dendê, vatapá, ostras e adolescentes e fez questão de raspar o tacho. Seu compromisso Conservador- Nacionalista-Anárquico (temos aqui outra tríade?) é uma benção de contradições maravilhosas. Como Câmara Cascudo e Mishima, foi progressista em seus pensamentos “conservadores”. A verdade é que pelo Piva conheci minhas outras influências.  A começar por Murilo Mendes. Esse cara mudou minha vida. Até hoje busco a minha Jandira. Tenho um poema cujo título é um verso de Mendes: “Eu te ofereço minha aridez e o meu pecado”. Das leituras de Piva cheguei em Willer, que conheci pessoalmente. Uma generosidade absurda. Anda sempre acompanhado por um Caboclo. Acho que ainda não sabe. Ainda vou apresentá-lo ao Davi Kopenawa, com quem conversei sobre Poesia e Xamanismo. O brasileiro, o latino-americano, o terceiro mundista tem que ser isso: um cavalo de Breton, de Kopenawa, Dalí, Cícero Dias, Gonzalo Arango, Waly Salomão. Etc., etc, etc. Tudo ao mesmo tempo. Uma zona. Glauber Rocha com batendo uma olhando pra lua. Quizumba. Pega-pra-capá. Mais entusiasmo que esperança. Se não a gente não funciona. Eu quero é a mistura. Hoje fiquei imaginando se o Jim Morrison tivesse lido Oswald de Andrade pegando o Sol em Moreré. Vocês já imaginaram algo assim?

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

IV | Há um movimento em curso no país. Afirmo num poema de 2017. Já mudei de ideia. Com tristeza. Parece que nosso teto está cada vez mais baixo. Pase lo que pase, temos movimentações literárias de muita qualidade a todo vapor. Só precisamos ter cuidado com os panfletos. Os poetas jovens, guiados por hermosos desejos de solidariedade, acabam perdendo sua lírica na catequese e moralismo das militâncias. “Cinza é toda teoria, mas verde é a árvore da vida”. Poeta tem que aprender a correr risco, a sujar as mãos. Poeta brasileiro tem que fazer três vezes mais. Nem duas, nem quatro. Três é o número ideal. É o número do burro no Jogo do Bicho, esse resquício maravilhoso do folclore urbano. Esses dias li o Manifesto Regionalista do Freyre e me arrepiei todo. Porra. Eu gosto das coisas sendo ditas. Tenho tesão. As pessoas  não  andam dizendo. Fofocam. Dizer é outra coisa. Dizer parte da escuta. Poeta no Brasil tem que saber ouvir as estrelas. É aquilo que o Cascudo fazia buscando o encantamento do passado: escutando sobre “(...) a convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios (...)”. Estamos longe disso. Sou pessimista com essa geração. E me sinto muito sozinho por isso. Afago meu coração com meus amores  e com os meus amigos da rua. Verdadeiros xamãs urbanos. Também escrevo manifestos em busca de interlocutores. O Manifesto Vìbora e o Manifesto Curupira são meus preferidos. Ambos publicados pelo Jornal Tranca Rua, aqui de Brasília.


[FOLHA DE VIDA ]

Ian Viana (Brasília, 1995). Ex-militante, ex-cafajeste, ex-búfalo galopante dos sonhos. Discípulo espiritual de Roberto Piva – por enquanto. Instiga-se pelo que seria (e o que pode ser) o surrealismo brasileiro queimando junto a labareda de nossas tradições culturais. Crente-fiel-e-leal a América Latina & seu Folclore cotidiano. Contato: ian.viana.s.r@gmail.com.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019




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