DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA
o mundo feito com as mãos
no universo antropomágico
do mundo feito com as mãos
existem seres bonitos em sua simplicidade
uns visíveis e outros invisíveis
essa comunhão que frutifica
uma espiritualidade suave
de mãos dadas com a mística do mundo
o ciclo cósmico renova ruínas
e a força transformadora
produz alimentos
molda idades abstratas
reluz palavras na escuridão
a humanidade come na mão da natureza
a grandeza do rinoceronte
a grandeza do rinoceronte
habita na exclusividade de sua ternura
na paciência circular que digere o dia
faz sol e chuva ao mesmo tempo na sua circunferência
– um encanto
de sua natureza
a grandeza do rinoceronte
está na missão que sustenta no olhar
conservar os ritmos internos e externos
de sua própria materialidade
– manter a
vida florestal a salvo da civilização
a grandeza do rinoceronte
passa por sua ecologia sobrenatural
pelo microcosmos invisível que leva nas costas
pela ética da caça e
o limiar de
sua extinção
o rinoceronte carrega na sua ancestralidade
a linguagem
da sobrevivência
uma porção de vida felina
dorme em minhas mãos
observo a força vibrar
no corpo de 200 gramas
por um instante, penso
na poeira cósmica que nos cobre
do nascer do mundo ao algoritmo
uma inteligência artificial
que planeja o nosso futuro
esse lapso que dura
uma eternidade de incertezas
oferece margens difíceis de saber
onde pôr os pés
qual melhor forma de plantar?
para qual deus dar atenção?
agora mesmo
uma performance pandêmica
sincroniza a atenção dos expectadores
no seu espetáculo mortífero
transforma nomes de família
em vazio numérico
em algum lugar do país
uma pessoa precisa encher os pulmões de ar
mas a atendente diz que está em falta
explica que é uma espécie de castigo
por maltratarem o planeta
volto para a pequena porção de vida
em minhas mãos
contemplo sua saúde
pelo rastro que deixa
pela vontade de comer de hora em hora
uma infância se prepara para a inconstância dos fluxos.
farrapos da imprecisão
é privilégio dos vivos ter lembranças
coisas guardadas onde não sabemos:
de um avô, lampeja a velhice esbranquiçada em passos bem curtos
palavras que não criavam raízes dentro da frase.
do outro, a matéria dos olhos assertivos-esverdeados
semeando a terra, plantando cajus e lutando contra as formigas.
de uma avó, ficou a potência de uma mãe de muitas mulheres
que não tiveram a sua mesma força.
da outra, a doçura-alegre de quem gostava de bananas
e nos enchia o bucho com coisas boas.
o que fica são os farrapos da imprecisão
alguns flashes não revelados da máquina.
o escuro dos sentidos
ver as palavras e não enxergar nada
olhar o oco da grafia, tudo vazio
nem corpo, nem aura, nem fluido
ouvir um som sem voz de palavra
um ar estático, mordaz
sem matéria que penetre os ouvidos
andar no escuro dos sentidos
passo a passo sobre a falha tectônica
morfologia difícil de percorrer
– foi o que disse um experiente pajé
quando avisou sobre a queda do céu
ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 260 | abril de 2025
Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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