DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA
[ESTAMOS SEMPRE PERFURANDO O TEMPO]
estamos sempre perfurando o tempo
temos abismos que rasgam os antebraços
e uma cicatrização forjada na língua dos dias
criamos sempre os mesmos calabouços
e nenhuma procissão nos salva
nossa linguagem é picada pela desmemoria
e nossa vigília é abastecida pelo erro
deus fala uma linguagem indecifrável
mas estamos sempre a traduzir
como poço, cavalo ou nós mesmos.
[TENHO A NOITE]
tenho a noite estilhaçada na jugular
e uma fome que não abandona seu canil.
esta carne permanentemente em queda.
há um pônei desidratado no peito
e uma puta carecendo de abrigo
sou a encarnação de quedas passadas
imploro por perdões e ossos melhores
mas não há céu que me ouça.
tento fotografar meus batimentos cardíacos
para emoldurá-los nas paredes de casa
mas antes mesmo do click
regurgito-os cheios de ontens intactos.
sujo as imagens para vislumbrar a queda.
[QUISERA EU]
quisera eu evitar os desertos e os
acidentes
os silêncios e os pântanos
não confundir os nortes nem as marés
o lodo da espera com a dissimulada
inteireza do corpo
mas há a noite batendo desencarnada no céu
de nossas bocas
a medula de nossas palavras roçando
obstinadamente nesse poema
meu corpo se abre tentando te alcançar
fissura é meu nome
porque há esse querer de amanhecer dentro
de teu escuro
abri-lo como quem solta um pássaro
a vertigem de um deus o amor prometido
a infância mutilada.
[SOU UM MAMÍFERO]
sou um mamífero ensopado de desejo
um rio que não para de desaguar
um leito inchado de tantos porvires
tenho o corpo amolecido pela mutilação dos
dias
e um pássaro que se debate no escuro de
minhas coxas
sei do fracasso da palavra desejo
da imensa guilhotina do século XIX que nos
acompanha
– não há um tempo justo para cada corpo
isso que vês aqui,
nesse corpo que não para de minguar,
é apenas uma futura ruína
– cartografia dos dias inevitáveis
não tenha medo, porque a tua
tão escura mas evidente
também estará junto a minha
evaporando toda a queda do nosso desejo.
[É PRECISO]
é preciso inaugurar
uma nova pobreza
para viver dentro
do nevoeiro
em verdade, te
digo:
sou estratosférica
tenho nos pés um
musgo que delira
para esquecer o
Nome
através de seu som,
nasce em minha bacia uma mulher feita de arquipélagos devastados
como aceitar o
irreconstituível?
sigo falhando os
começos como posso
estruturando mapas
na tentativa de acolher o ferimento que vem da voz
é preciso pactos
com a doença
para viver nos rochedos assombrados pelo fogo.
ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 260 | abril de 2025
Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com






Nenhum comentário:
Postar um comentário