terça-feira, 15 de abril de 2025

RAQUEL GAIO (1981)


DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA



O poema passa por nós como uma sombra em busca de seu corpo correspondente nos lugares mais remotos e imprevisíveis. É como uma linha invisível que mascara o horizonte a ponto de nos vermos renascer em todos os lugares. Ao lermos a poeta Raquel Gaio (Brasil, 1981) descobrimos por que certos traços existenciais que desenhamos como rabiscos obsessivos desaparecem como uma certa sensação de abandono, luz ou escuridão, de modo que refazemos os perfis do sol e da lua, do tempo e do espaço. Não só em seus versos, mas também em seus estudos fotográficos, que são como um laboratório que ladeia a costura de abismos que ensaiamos dentro de nós. Ou como ela mesma gosta de dizer sobre a soma de suas figuras criativas, seus fantasmas errantes, que são como um semblante fugidio, que lhe permite desenvolver um trabalho entre a fotografia, a performance e o objeto, investigando a esfera do íntimo, do tempo e sua característica inevitável. Essa mulher transbordante parece estar acima de todas as limitações da criação artística, mas na verdade ela está no seu cerne, no centro que produz todos os efeitos mágicos da vida humana. Graças à magia de sua criação, permite investigar o corpo e suas paisagens, inscrições e pistas. Pelo seu olhar, todas as criaturas do misterioso passam, como as escrituras bordadas em suas mãos, uma caravana de feitiços que acentuam a grandeza de sua alma. Os títulos de seus livros são como uma bênção, uma centelha inesgotável de sugestões que abrigam nossa vontade de viver: das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), mantar a memória do fogo (2019) e com as patas no grande Hematoma (2023), assim como os títulos dados às fotos: uma mulher suficientemente arqueada, estar diante de uma língua que se fraturou e formas de lidar com o trauma, entre inúmeros outros. São técnicas mistas que reúnem imagens, objetos, negativos, desenhos, efeitos de sobreposição e a intimidade do corpo do poeta. Este material pode ser encontrado aqui: https://raquelgaio.tumblr.com. [FM]

 

[ESTAMOS SEMPRE PERFURANDO O TEMPO]

 

estamos sempre perfurando o tempo

temos abismos que rasgam os antebraços

e uma cicatrização forjada na língua dos dias

criamos sempre os mesmos calabouços

e nenhuma procissão nos salva

nossa linguagem é picada pela desmemoria

e nossa vigília é abastecida pelo erro

deus fala uma linguagem indecifrável

mas estamos sempre a traduzir

como poço, cavalo ou nós mesmos.



[TENHO A NOITE]


tenho a noite estilhaçada na jugular

 

e uma fome que não abandona seu canil.

esta carne permanentemente em queda.

há um pônei desidratado no peito

e uma puta carecendo de abrigo

sou a encarnação de quedas passadas

imploro por perdões e ossos melhores

mas não há céu que me ouça.

 

tento fotografar meus batimentos cardíacos

para emoldurá-los nas paredes de casa

mas antes mesmo do click

regurgito-os cheios de ontens intactos.

 

sujo as imagens para vislumbrar a queda.

 

 

[QUISERA EU]

 

quisera eu evitar os desertos e os acidentes

os silêncios e os pântanos

não confundir os nortes nem as marés

o lodo da espera com a dissimulada inteireza do corpo

 

mas há a noite batendo desencarnada no céu de nossas bocas

a medula de nossas palavras roçando obstinadamente nesse poema

 

meu corpo se abre tentando te alcançar

fissura é meu nome

 

porque há esse querer de amanhecer dentro de teu escuro

abri-lo como quem solta um pássaro

a vertigem de um deus o amor prometido

a infância mutilada.

 

 

[SOU UM MAMÍFERO]

 

sou um mamífero ensopado de desejo

um rio que não para de desaguar

um leito inchado de tantos porvires

 

tenho o corpo amolecido pela mutilação dos dias

e um pássaro que se debate no escuro de minhas coxas

 

sei do fracasso da palavra desejo

da imensa guilhotina do século XIX que nos acompanha

 

– não há um tempo justo para cada corpo

 

isso que vês aqui,

nesse corpo que não para de minguar,

é apenas uma futura ruína

 

– cartografia dos dias inevitáveis

 

não tenha medo, porque a tua

tão escura mas evidente

também estará junto a minha

evaporando toda a queda do nosso desejo.

 

 

[É PRECISO]

 

é preciso inaugurar uma nova pobreza

para viver dentro do nevoeiro

em verdade, te digo:

sou estratosférica

tenho nos pés um musgo que delira

para esquecer o Nome

através de seu som, nasce em minha bacia uma mulher feita de arquipélagos devastados

 

como aceitar o irreconstituível?

sigo falhando os começos como posso

 

estruturando mapas na tentativa de acolher o ferimento que vem da voz

 

é preciso pactos com a doença

para viver nos rochedos assombrados pelo fogo. 




ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 260 | abril de 2025

Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

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