MEU ASSASSINO
hoje encontrei meu assassino
dispersa, olhei
para a plateia e lá estava ele
os olhos fixos em mim
soube na mesma hora
de quem se tratava
tentei disfarçar a chuva que deixou a franja
bagunçada na frente dos olhos
mas o assassino me olhava
e eu revidava: era um jogo
sabia que a qualquer respiração
se eu me desconcentrasse ou se tropeçasse
ele não perdoaria nunca (isso já aconteceu antes)
a diferença é que agora sei
como ele se chama sei
o formato do maxilar
e como ele me olha com esses olhos de assassino
pensei em chamar a polícia, os jornais
pensei sobretudo
em mudar de cidade
e não contar para ninguém
assim o meu assassino me procuraria
nos mesmos lugares de sempre
mas frustrando voltaria para casa
e me escreveria longas cartas
dizendo fique avisada, seus dias estão no fim
contudo meu assassino jamais seria
capaz de me encontrar
e por isso as longas cartas
que ele levaria ao correio muito bem
dobradas em envelopes com cheiro
de canetinhas coloridas
não chegariam a parte alguma
pois não constaria o meu nome
em nenhuma página amarela
ou conta de luz
meu assassino bateria na porta
da minha antiga casa
eu o convidaria para entrar
ofereceria um café e diria
que pena! que desencontro! que perda!
ele não mora mais aqui
AUSÊNCIA
tenho te escrito com calma
carta em um caderno azul
arranco da espiral e não posto
por preguiça ou nem morta
tenho medo da espera
durante dias ou semanas um animal horrível
(espécie de raposa) vai me perseguir
por dentro, ou serei a mesma
(um rato?) a me roer
enquanto a resposta não chega
perco muito tempo tentando
dar nomes aos bichos
que sobem a cortina do quarto
MEU AVÔ
deitado com o dedo na boca
o sorriso invertido
curvado como uma montanha
a pele uma cédula
gasta e seca
todos os dias rigorosamente iguais
banheiro, visitas, ampolas de sangue
às vezes tem mordomias como
um pedaço de pão ou uma fruta
doces nem pensar
lá fora passa uma nuvem de carros
sem previsão de alta um táxi amarelo
mais parece uma miragem um filme
na televisão aquele programa da tv5
sobre apartamentos em paris sem saneamento
pessoas que moram em quartos
sem janela, sem ventilação, sem elevador
como será que fazem para subir com a água?
não tomam banho, naturalmente
depois se cansa desse papo
a nuvem se torna mais espessa
na hora do rush o táxi não tem serventia
se não puder tomar o caminho
que leva ao ponto mais alto
de onde se vê a curvatura da terra
SALTO ORNAMENTAL
os poucos segundos
diante da câmera
não fariam jus
anos (uma vida
inteira) de ensaios
e dores musculares
e alimentação
regrada e tantas outras privações
os poucos segundos
mostram
a atleta no trampolim
ela se prepara
para o salto
que quem sabe
vai lhe render
uma medalha
uma vaga nas
olimpíadas
a consideração
de alguém tanta coisa
o treinador apreensivo
finge
tranquilidade
no telão
vai dar certo
já fizemos isso infinitas vezes
ela se prepara
para o mergulho
pensa que o melhor
é não pensar
em nada
transmitir coragem
e autoconfiança
os fotógrafos
bastante entediados
sem conseguir
entender o que dá
a certos atletas
um décimo a mais um a menos
no fim das contas
é só um pulo na piscina
a não ser que
erre feio
que caia de costas
ou de barriga
que uma perna
vá pro lado
que um braço
não fique junto ao corpo
a não ser que
o mergulho seja bruto
e suba muita
água a não ser que seja
algo menos que
perfeito
o passo de dança
ensaiado em cada milímetro
que começa com
um sorriso e termina
com a piscina
recebendo a atleta sem alarde
sem ondas na
água quase
como se nada
tivesse acontecido
a atleta se prepara
é dada a largada
na hora do salto
sabe-se lá
o que se passa
na cabeça
enquanto finge
não passar nada
ela corre com
destreza no trampolim
e mergulha na
água de cabeça
sem o mortal
sem as três piruetas
sem a manobra
prevista
que treinou a
vida toda e lhe valeria
uma medalha ou
patrocinadores ou um aumento
sobretudo a admiração
de alguém
ela esquece
não teve vontade
deu um branco
vai entender
mergulhou na
água de cabeça
UM ENORME RABO DE BALEIA
cruzaria a sala nesse momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela
TREM NOTURNO
nós três rimos muito na cabine e nos assustamos quando o vagão para em uma estação erma, sem gente nos bancos, sem despedidas, o olhar duro do fiscal que dorme sozinho toda noite, o fiscal em sua cabine, sem casa ou mulher, espécie de marinheiro que não embarca em navio algum, que não fica a sós com horizonte algum, mas muito pior, esse fiscal que não pode se perder, está bem firme nos trilhos, em sua rota veneza-budapeste, que se estende por treze horas sem tirar nem pôr, o fiscal que nos recomenda trancar as três fechaduras da cabine, primeiro a de cima e em seguida a do meio, e nós achamos graça de tudo porque ninguém nos levou à estação ou nos espera na plataforma, não conhecemos absolutamente ninguém por estas bandas e por isso mesmo tudo é tão assustador e leve ao mesmo tempo, esse papel com frases em húngaro, algum comando incompreensível que não vamos seguir, as três com os olhos bem abertos fingindo para as outras que estão em sono profundo, quando na verdade as ideias dançam e trocam a ordem dos móveis na cabeça, se bem que provavelmente o único que dorme em todo o trem deve ser o fiscal, ou nem ele, duro que é, talvez prefira fantasiar com gigantes, maremotos
RUBEM GRILO (Brasil, 1946). Gravador, desenhista, ilustrador. Em 1970, estuda xilogravura com José Altino (1946), na Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, passa a frequentar a Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional e entra em contato com as gravuras de Oswaldo Goeldi (1895-1961), Lívio Abramo (1903-1992), Marcelo Grassmann (1925), entre outros. Nesse período, inicia curso de xilogravura na Escola de Belas Artes da UFRJ e é orientado por Adir Botelho (1932). Em visitas ao ateliê de Iberê Camargo (1914-1994), recebe lições de gravura em metal e, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage-EAV/Parque Lage, estuda litografia com Antonio Grosso (1935). No início da década de 1970, ilustra jornais como Opinião, Movimento, Versus, Pasquim, Jornal do Brasil. Na Folha de S. Paulo, cria ilustrações para os fascículos da coleção “Retrato do Brasil”. Em 1985, publica o livro Grilo: Xilogravuras, pela Circo Editorial. Em 1990, é premiado pela Xylon Internacional, na Suíça. Em 1998, participa, com sala especial, da 24ª Bienal Internacional de São Paulo e, no ano seguinte, é curador geral da Mostra Rio Gravura. Tem trabalhos publicados em revistas especializadas como Graphis e Who’s Who in Art Graphic (Suíça), Idea (Japão), e Print (Estados Unidos). Nossos agradecimentos a Jacob Klintowitz pela presença de Rubem Grilo como artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 262 | setembro de 2025
Artista convidado: Rubem Grilo (Brasil, 1946)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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