quarta-feira, 1 de novembro de 2017

AGULHA REVISTA DE CULTURA # 104 | Novembro de 2017 | Editorial


VÍTIMAS DA CUMPLICIDADE OU CÚMPLICES DA VITIMIZAÇÃO

1 | Há um curta de Jan Svankmajer, The Flat (1968), que é paradigmático de uma curiosa relação entre o nonsense e a tolice na criação artística. Ao que tudo indica o caminho do excesso não conduz senão ao castelo do desperdício. Cinco ou seis cenas a menos e este curta de Svankmajer seria uma de suas melhores obras. Do jeito como foi editado demonstra apenas que a tolice é um péssimo recurso quando se busca um caminho além da realidade. Comédias e filmes de terror se irmanam em excessos dessa mesma natureza. Não resta a menor dúvida de que a realidade está repleta de tolices, porém nenhuma delas se sustenta como sendo sua representação aceitável. Nem mesmo no Brasil.

2 | Evidente que ninguém em sã consciência aceitaria o retorno do país a uma ditadura militar. Está certo que uma ditadura civil é igualmente inaceitável. De qualquer modo as últimas declarações de militares dão uma medida de nossa extrema situação de risco. E nos colocam diante de uma ambiguidade que apenas confirma um dado preocupante do caráter brasileiro: a facilidade com que, ao eleger um herói, transferimos para o outro a total responsabilidade de correção de nossos erros. Cada um de nós tem quando menos um estilo próprio, porém não menos lastimável, de fugir das responsabilidades, sobretudo quando elas impõem medidas extremas e inadiáveis como é nosso caso atual. Não apenas o sistema político, mas toda a Constituição parece uma tábua de pirulitos ou uma colcha de retalhos. Um remendo a mais não resolve nada. É preciso zerar o cronômetro. Reescrever tudo. De modo mais simples, direto, abrangente. E não há outro modo de fazê-lo senão através de uma presença massiva e constante nas ruas, nas redes sociais, na clara definição de propósitos, na rejeição ao quadro político através do voto nulo, no envio frequente de cartas à mídia etc. Seria oportuno e mesmo inadiável contar com sugestões de todas as partes. Só não me digam que não há nada a fazer.

3 | A vida não é um incômodo para a arte. Tampouco o contrário deve ser aceito. O filme Manifesto (2015) de Julian Rosefeldt, é uma colagem de absurdos que orquestrados alcançam uma reveladora vitalidade ou, ao contrário, é uma colcha de retalhos que vicia a todos no espectro desconcertante da realidade disfarçada de arte? Quando a vida é arte? Quando não? A que tipo de arte interessa discutir quando é vida, quando não?

4 | Máscaras são cúmplices dos algoritmos do tempo a que pertencem. Raramente se reúnem para corrigir o roteiro banal do teatro que representam. Como lagartas meditando no interior de uma berinjela. O que levamos ao palco é uma catedral polida, uma prateleira escalada por divindades de toda ordem, as mais austeras. O invulgar espírito que veneramos é sempre alheio ao que somos. Como podes seguir assim, profanando até mesmo tuas veleidades? As histórias que ouvimos são a frivolidade da memória. No entanto, nos deixamos guiar por elas como náufragos antecipados. Certas palavras ficam melhor quando perdem uma letra. Em qual diário de bordo se oculta a página que aprendeu a separar as letras que fazem mal a determinadas palavras? Como distinguir a recompensa de tua beleza das imagens saltadas dos lábios de uma cartomante? Todos os barcos são ébrios, considerando a inconstância das marés.

5 | Teoricamente deveria haver um sistema político-social de representatividade confiável. No entanto, aos poucos fomos todos nos ausentando do simples exercício de mapeamento de atuações dos representantes que deixaram de ser nossos e passaram a representar seus próprios interesses. Não creio que se possa remendar este quadro. Sua alta voltagem de promiscuidade teria que ser eliminada pela raiz. Cabe a todos nos organizarmos em torno de uma tática que não seja a da violência urbana. No entanto, mesmo em concordância o que se escuta é sobre o paradeiro de um herói que nos lave a alma.

6 | A estatística é uma ciência canalha. Sua principal peça de montagem converte em fato qualquer aspecto meramente casual. A estatística jamais nos dirá o motivo por que mágicos no mundo inteiro escolheram o pombo para retirar de suas cartolas. 53 mil vereadores existem no Brasil. Em toda a pirâmide política esta é a base triunfante da corrupção nacional. Espalhados por 5.570 municípios são eles que preparam terreno para que as castas mais nobres da política embaralhem joio e trigo com exímio cinismo. Tal modelo se reproduz de modo voraz, pelos conselhos tutelares, sindicatos, associações de pais e filhos, sacristias de todas as igrejas etc. Temo que a saída seja nos tornarmos verdadeiros foras da lei. O poeta Dylan Thomas tem uma frase entranhável: "Para ser um verdadeiro fora da lei, há que ser muito honesto". É uma sacada poderosa porque muda por completo o conceito de fora-da-lei.

7 | A realidade raramente se mostra da maneira como a aguardamos. Somos levados – por confortos culturais ou comodismos sociais – a esperar certo padrão de comportamento da realidade e por vezes é justamente o oposto que se mostra. A realidade resulta em algo construído, projetado para atender a princípios morais que se consideram – ou assim necessitam ser considerados – infalíveis e relevantes. Por isto será sempre frustrante quando esperamos da realidade que ela se nos apresente íntima e natural.

Os Editores

*****

ÍNDICE



ALFONSO PEÑA | Poética del duende: Félix Arburola y su trazo indeleble

CARLOS M. LUIS | Notas sobre Ludwig Zeller

ESTER FRIDMAN | O limiar do instante ou a vida como colagem de instantes

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Andrés Eloy Blanco y Baedeker 2000: vanguardismo y anticipación en la poesía venezolana

GRACIELA MATURO | Páginas del libro “Surrealismo en Argentina”

JAYRO SCHMIDT | Péricles Prade & a gaiola filosófica: poética ready made

KATERINE DUMONT | Três Origens & uma biografia assinada por Moara Guayi

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | O teatro de Sony Labou Tansi ou corre o rio Congo entre suas pernas

SUSANA WALD | Tres veces el oro de los tiempos

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Nietzsche, “a lhama” e a vontade de poder

ARTISTA CONVIDADO | JAIR GLASS | OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO | Jair Glass, um maneirista hoje
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/11/olivio-tavares-de-araujo-jair-glass-um.html





*****

Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.

***

Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80







OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO | Jair Glass, um maneirista hoje


Li recentemente [1] em um jornal paulistano – um pouco pasmado com a peremptoriedade de quem o escreveu – que a figuração está definitivamente banida do universo da arte contemporânea. É tão inexata quanto aquela outra morte, tantas vezes anunciada, a da própria arte – que no entanto jamais se consumou. Revela antes de mais nada a desinformação do autor sobre o comportamento cíclico das linguagens artísticas, seu ir e vir entre pólos opostos que se alternam. Dizer que a figuração está esgotada é desconhecer que ela, assim como sua antítese, a abstração, repontarão sempre no tempo, aqui e acolá, igualmente legítimas e sem qualquer hierarquia, em culturas diferentes, em lugares diferentes, mas sempre perenes.
Além de figurativo, o desenhista Jair Glass está ligado à tradição da arte fantástica, na qual – como escreveu Goya numa de suas gravuras da série dos "Caprichos" –, "o sono da razão engendra monstros". Isso o põe definitivamente fora de moda, pelo menos no Brasil dos anos 1990, onde as forças formadoras da opinião estão a serviço de um tipo de arte diametralmente oposto. O que se determina hoje como contemporaneidade – se não como modelo hegemônico – é uma espécie de neo-minimalismo ligado à geometria e construído só com a cabeça. Mas – de novo –, nenhuma arte, só por sua opção estilística, pode ser decretada como a melhor, a desejável, a que deve ser estimulada. Não existem regras a priori para que um modelo de linguagem seja bom e o outro ruim. Pode-se ser bom sendo Mondrian ou Jackson Pollock, Mira Schendel ou Farnese de Andrade.
Não é por acaso que cito o nome de Farnese, pioneiro da box form entre nós, que mereceria figurar internacionalmente ao lado de um Joseph Cornell – de quem aliás ganha, em matéria de profundidade dos universos tratados e densidade da poética. Farnese também não está na moda, [2] justamente por ser o mais perfeito representante de criador visceral no Brasil de hoje.
A despeito de outros raros exemplos – talvez uma curta fase de Flávio de Carvalho, algumas aquarelas de Cícero Dias, quadros pontuais do fim da vida de Ismael Nery, mais tarde a escultura de Maria Martins –, a vertente surrealista, como se sabe, não prosperou muito por aqui. Teríamos que investigar com mais calma por que motivos vingaram com muito mais brilho os movimentos de natureza construtivista, começando pela influência do cubismo sobre os modernistas, e culminando com o concretismo e o neoconcretismo nos anos 50. Faltando-nos, pois, uma tradição surrealista, artistas como Farnese – que não é um surrealista, mas tem algumas afinidades com a corrente – acabam sendo deixados à margem.





 Tampouco Jair Glass é surrealista, nem no sentido estrito (o uso de métodos para liberar a criação inconsciente, o "automatismo psíquico puro"), nem no sentido largo com que a palavra é empregada pelo público, pensando, por exemplo, em Salvador Dali. Pertence à estirpe que nasce, na cultura ocidental cristã, com os anônimos autores de certa estatuária gótica fundamentalmente expressiva e chega até o neoexpressionismo; aquela estirpe que trata com "a noite escura da alma" (para usar a bela expressão de San Juan de la Cruz), da qual é originária e à qual dá vazão. A simplicidade pessoal de Glass e a (pelo menos aparente) espontaneidade de sua produção não sugerem que ele esconda abismos dentro de si próprio – embora eles tenham que, inevitavelmente, existir. Surpreende o contraste entre sua doçura e timidez, a humildade intelectual e espiritual (o que não quer dizer qualquer tipo de ignorância), e sua obra povoada de estranhezas. Quão insondáveis são os desvãos da psiquê humana, provando que continuam verdadeiras ainda hoje – pelos menos nesses casos exemplares – as teorias freudianas (ou delas derivadas) sobre o mecanismo da catarse.
Pois no fundo do Jair com que convivemos tão amenamente reside uma fogueira escondida, alguma força em ebulição que ele só consegue controlar botando-a para fora metamorfoseada por sua fantasia. A criação se torna instrumento particular de equilíbrio para sustentá-lo no universo; é exatamente o mesmo que acontece com Farnese, Iberê Camargo, Flávio-Shiró. Isso não basta, porém, para que se faça boa arte. É preciso acrescentar que Glass possui uma instigante inventividade e grande articulação formal. Depois de ter apenas desenhado, por muito tempo, nos suportes e formatos habituais dessa técnica, enveredou nos últimos anos por recortes, colagens, costuras, aplicação de materiais diversos, quase assemblages: talvez a assemblage se mostre particularmente apta para estimular e expressar os mecanismos mentais desses ajuntadores obsessivos de sonhos. Além disso, passou a manipular com certo humor negro imagens preexistentes, especialmente dos mestres do Renascimento italiano. Faz paráfrases de quadros ou inclui fisicamente pedacinhos, citações. Não se trata de um projeto erudito e sim de uma espécie de divertissement de artista pobre, que se formou lendo "Gênios da Pintura". De qualquer forma, resulta num trabalho de segunda geração.
A seu modo, Jair Glass é um maneirista neste fim de século – o que não quer dizer, evidentemente, maneiroso nem amaneirado, mas sim ligado àquela forma de ver e se expressar que se manifestou entre o Renascimento e o Barroco, e foi assim denominada. Tem dos maneiristas uma certa volúpia, o encantamento por um discurso meio labiríntico, o capriccio. Para o homem do maneirismo, "a ordem política e moral do mundo encontra-se conturbada. Já não se pode dizer que o universo forme um cosmos harmonioso. O mundo é antes uma terribilità (...). O mundo está repleto de desordens e de angústias, razão pela qual ele não mais se deixa retratar pelas regras do Classicismo". [3] Haverá alguma dúvida de que é o mesmo pano de fundo sobre o qual se move nosso desenhista?
Ainda assim o páthos de Glass não é doentio, é mordaz; sua fantasia é antes lúdica que mórbida. Ultimamente, o tempo se tornou também matéria do desenho, as coisas desaparecendo, se deteriorando, caindo, o papel esgravatado, rompido, como se estivesse entrando em decomposição. Mas não se trata de nenhuma rendição. A falsa fragilidade das obras esconde a firmeza da vontade, tudo posto a serviço de uma consciência crítica, dolorida e aguda.

NOTAS
1. Observar que o texto é de 1990.
2. De novo a mesma observação. No ano em que este livro se publica (2002), Farnese, morto há algum tempo, talvez esteja é entrando na moda.
3. Gustav R. Hocke, Maneirismo: o Mundo como Labirinto, Editora Perspectiva, São Paulo, 1986, pág. 21.


*****

OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO (Brasil). Crítico de artes e curador. Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.

*****

Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80





VIVIANE DE SANTANA PAULO | Nietzsche, “a lhama” e a vontade de poder


Friedrich Nietzsche foi internado em um sanatório, de onde recebeu alta meses depois com o diagnóstico: incurável. O resto de seus dez anos de vida Nietzsche passou apático e delirando, alojado na casa da mãe e da irmã, completamente isolado. Elisabeth Förster-Nietzsche adotou como missão de vida os cuidados com o irmão solteiro. Entretanto, neste período, cresce o reconhecimento das obras do filósofo que até então recebera pouca atenção do público. Agora seus livros são publicados em grande número de exemplares. Entre as publicações está a obra póstuma, Der Wille zur Macht (A vontade de poder) que levará o filósofo à polêmica fama. Adolf Hitler definiu-a como a mais audaciosa e importante obra da época. A vontade de poder serviu para a glorificação do Herrenmesch (o super-homem). Uma propaganda que possuiu consequências brutais e impregnou a imagem de Friedrich Nietzsche por muito tempo. Ele foi considerado o filósofo da vontade de poder, o filósofo do Übermesch (o homem supremo, o super-homem, o além-do-homem), o filósofo propaganda do Terceiro Reich. Mas foi realmente Friedrich Nietzsche que escreveu A vontade de poder? Ele não dispunha mais de capacidades mentais para escrever o que quer que seja, não possuía conexão com a realidade, não reconhecia as pessoas, não pronunciava palavras legíveis, quase não falava e delirava. Nos laudos médicos consta: incurável, paralisia mental por consequência da sífilis. Portanto, impossível que Nietzsche tenha escrito algo coerente depois de seu colapso, em 1888. Talvez ele tenha elaborado a obra anteriormente, neste caso, o manuscrito deveria estar entre a enorme quantidade de documentos que Nietzsche organizava cuidadosamente. Mas nenhum manuscrito de A vontade de poder foi encontrado, em vez disso, seis cadernos de anotações fragmentadas e sem relação, algumas com a letra ilegível que permanecem indecifráveis. Isso prova que o filósofo possuía a intenção de elaborar uma obra com este título, tratando deste tema, mas com certeza jamais concretizou este objetivo. Mas se não foi Nietzsche, quem escreveu a obra? A suspeita recai sobre a sua irmã mais nova. Todos os documentos e manuscritos estavam em mãos de Elisabeth Förster-Nietzsche, ela controlava rigorosamente todas as publicações que eram lançadas no mercado, toda ideia e pensamento que levavam o nome do irmão. Através das anotações avulsas ela falsificou a obra que o irmão não conseguiu escrever. Mas por quê?
A história dos irmãos Nietzsche começa em Röcken, uma cidadezinha na Saxônia-Anhalt. Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Naumburgo, aos 15 de outubro de 1844, e foi batizado pelo próprio pai. Therese Elisabeth Alexandra Nietzsche nasceu dois anos depois, aos dez de julho. Aos quatro anos de idade, Nietzsche passa a ser o centro da família quando o seu pai falece, e deve se tornar padre como todos os ascendentes homens. Entretanto, já na juventude, ele duvida da existência de Deus e dos dogmas da igreja. Enquanto isso, Elisabeth frequenta uma escola para mulheres onde aprende a ser uma boa dona de casa, esposa e anfitriã. Com vinte e cinco anos, por meio de recomendação do seu professor, Nietzsche ocupa o cargo de professor honorário na Universidade da Basileia, sem jamais terminar os estudos de filosofia. Elisabeth é contratada pelo irmão para ajudá-lo com a casa. A vida na cidade nobre da Basileia lhe oferece o que ela aspirava. Porém, ela não é levada a sério, o irmão a chama de "a lhama" (das Lama), apelido que fica conhecido entre os intelectuais e professores de Nietzsche. Os irmãos encontram a informação sobre o animal sul-americano no livro da escola, o lhama carrega pacientemente as cargas mais pesadas, mas ao ser mal tratado, ele se deita e quer morrer. Para Nietzsche, “a lhama” era alguém que o auxiliava nas tarefas práticas, domésticas, mas não possuía nenhuma relação com a sua intelectualidade. Nos seis anos vividos na Basileia, Elisabeth apreciava os jantares, as festas e a vida cultural da cidade. Nietzsche possuía dificuldade de cumprir com suas obrigações como professor e no meio social, ademais, sofria de fortes dores de cabeça e ataque de pânico.
Neste período, ele conhece Richard Wagner. O compositor intencionava regressar à Alemanha, após o exílio na Suíça, e planejava construir um teatro fenomenal, em Bayreuth, o primeiro teatro de ópera nacional. Nietzsche deveria ajudá-lo nesta empreitada encarregando-se da divulgação. Assim surgiu a chamada: abaixo com as igrejas, são as catedrais da arte que devem ser erguidas. Wagner acreditava que a sua arte tinha muito mais a oferecer do que as igrejas, do que a religião, e assim ele poderia contribuir para a grandeza máxima do Império Alemão (Kaiserreich). É recíproca a admiração entre os amigos e ambos são críticos em relação à igreja. Inspirado no talentoso músico, Nietzsche escreve O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik, 1872), em que ele trabalha os pensamentos de Wagner e Schoppenhauer. Na inauguração do teatro, em 1876, o ciclo de quatro óperas épicas, O Anel do Nibelungo (Der Ring des Nibelungen), é apresentado durante três dias, com a presença de muitos convidados ilustres. O festival deveria acontecer anualmente, entretanto, a dívida adquirida com a inauguração permitiu que somente a partir de 1882 isso se concretizasse. A "segunda inauguração" foi o auge do ano, até o imperador
Bismarck compareceu. Elisabeth não queria perder esta oportunidade por nada neste mundo. Mas enquanto todos os proeminentes se dirigiam ao teatro, Nietzsche permaneceu em casa. Interrompeu a amizade com Wagner e distanciou-se do amigo. Para Nietzsche, Wagner o havia traído ao encenar Parsifal, o batismo de um cavaleiro, um mistério cristão. A peça é repleta de símbolos religiosos. A obra Humano, Demasiado Humano (Menschliches, Allzumenschliches, 1878), composta de mil aforismas, é também uma resposta à divergência entre eles, alguns aforismas são diretamente contra Wagner. Mais tarde, em 1888, surgiriam as obras O caso Wagner (Der Fall Wagner) e Nietzsche contra Wagner (Nietzsche contra Wagner), nas quais as críticas se reforçam. Nietzsche repete várias vezes ser Wagner o artista da "decadência".
Em uma viagem à Itália com o amigo Paul Ree, em 1882, Nietzsche conhece a escritora Lou Salomé. Ambos se apaixonam por ela. Entretanto, Salomé está interessada nas discussões filosóficas, nas leituras e na vida em conjunto, não em casamento. Eles planejam um grupo de trabalho que não dá certo em razão do ciúme dos dois. Em uma visita a Tautemburgo, Elisabeth percebe o quanto ela é supérflua no meio deles, com as infinitas conversas sobre filosofia e psicologia as quais ela não consegue acompanhar. Da aversão contra Lou Salomé surge o ódio. Quando o irmão lhe conta que Lou estaria pronta para viver com ele em um casamento informal, Elisabeth começa a tecer intrigas entre Lou, "este verme de pessoa", e o irmão. Ela escreve cartas para a mãe e a família de Ree, criando maldosas fofocas, e faz todo o possível para remover Lou da vida de seu irmão, até conseguir.
Em 1883 e 84, o filósofo procura o retiro nas montanhas de Sils Maria, na Suíça. No meio da paisagem repleta de pinheiros e lagos Nietzsche caminha longas horas anotando seus pensamentos e questiona os temas atuais daquela época: a moral cristã e o poder autoritário do Estado. "No que eu devo acreditar senão posso acreditar em nada, em nenhuma salvação, nenhuma vida eterna, erramos no cosmo como um vazio… Deus está morto. Deus permanece morto e tudo vacila. Mas se Deus está morto no que devemos acreditar? Se não existe salvação, se não existe vida após a morte no que devemos acreditar?" A mensagem de Nietzsche é simples: acredite em você mesmo, no seu poder próprio, não espere nenhuma salvação do além, salve-se você mesmo, não siga nenhuma religião, nenhuma ideologia, nenhum dono do poder, livre-se de toda a moral dominante, seja aquele que você é (werde der du bist). A filosofia de Nietzsche é pessoal, seu estilo é a imagem do pensamento na forma de aforismas. Em Sils Maria, ele proíbe a irmã de visitá-lo, sobretudo, após descobrir as intrigas. Aqui ele alcança a sua fase mais produtiva, e escreve Além do Bem e do Mal (Jenseits von Gut und Böse, 1886), O Crepúsculo dos Ídolos (Götzen-Dämmerung, 1888) e O Anticristo (Der Antichrist, 1888). E os irmãos agora seguem caminhos diferentes.
Com trinta e cinco anos ele demite-se do cargo de professor, também por questões de saúde, e não possui mais residência fixa. Elisabeth busca se aproximar de Wagner para obter benefícios e a partir de então ela integra o fã clube do compositor, passa meses na casa de verão da família trabalhando como ajudante na casa ou com as crianças. Richard Wagner, o artista mais influente da época era declaradamente antissemita. O conhecido "círculo de Bayreuth" inicia um movimento antissemita e neste meio Elisabeth conhece o ativista Bernhard Förster. Elisabeth não hesita em apoiar a petição, liderada por Förster e outros, para que os judeus sejam forçados a deixar a Alemanha, demitidos do serviço público, e demais medidas antissemitas (Bismarck recusou-se a aceitar a petição). Depois do casamento, em 1885, o casal segue para o Paraguai, onde pretende construir
uma colônia puramente ária, no meio da selva, a "Neu - Germania". Por sua vez, o irmão tenta criar uma boa impressão do cunhado, mas não consegue. Em uma carta ao amigo Overbeck, Nietzsche escreve: "… o maldito antissemitismo … é a causa de uma ruptura radical entre mim e minha irmã". Para Nietzsche, o antissemitismo era baseado em ressentimentos, que se alimentava da inveja e do preconceito e isso era o que ele abominava e procurava superar.
Ainda em Sils Maria, Nietzsche passa por uma forte crise existencial, toma medicamentos e drogas, experimenta ópio e brinca com a ideia de suicídio. Sente-se traído pela irmã, pelo amigo Wagner, e sente-se solitário. As fortes dores de cabeça agravam-se, acompanhadas de vômitos e dias passados na cama. Doente e com o aumento da cegueira ele escreve Assim Falou Zaratustra (Also Sprach Zarathustra, 1883). Em seis semanas o filósofo levou Zarathustra a descer da montanha do conhecimento, um sábio eremita que dialoga consigo mesmo, um andarilho que comemora a morte de Deus como uma libertação pessoal, que desistiu da necessidade de procurar a verdade absoluta, o eremita que superou o ódio e o ressentimento, que vive em harmonia consigo e com o cosmo, o Übermensch. Nietzsche estava convencido de que em cem anos Assim Falou Zaratustra substituiria o Novo Testamento. Muitos elementos estilísticos nesta obra baseiam-se nos escritos da Bíblia. O filósofo considerava ser essa a sua obra prima e a denominava de “o quinto evangelho”. E nela ele propaga o inverso das ideias da irmã e do cunhado.
Em 1889, Bernhard Förster se suicida. Elisabeth segue mantendo as aparências e escreve ao irmão informando ter o marido sofrido um acidente de cavalo e morreu. Em 17 de dezembro de 1888, em Turim, Nietzsche sofre um colapso nervoso, e abraça o cavalo que acabara de ser chicoteado na rua e não o larga mais. As pessoas se detém curiosas com a cena. Seu locador, que acaba de passar, consegue levar Nietzsche para casa. Em 1890, parcialmente paralisado, quase cego, e sem poder ficar de pé e nem falar, Nietzsche recebe alta do sanatório sendo diagnosticado como incurável, e é levado para a casa da mãe, em Naumburgo. A mãe falece em 1897. Elisabeth regressa do Paraguai, viúva e sem nada, em 1893, e logo trata de criar a imagem da irmã fiel que se sacrifica para cuidar do irmão, e de seu testamento literário, em determinados casos, sem escrúpulos. Elisabeth viaja pela Europa a fim de resgatar todos os manuscritos, as cartas e os documentos em posse de amigos e professores, qualquer bilhete ou esboço. Em 1894, ela inaugura o arquivo Nietzsche que se torna também um local de culto ao filósofo, seus discípulos vêm de diversas cidades europeias visitá-lo, e Elisabeth torna-se a sua grande sacerdotisa.
A industrialização, a tecnologia e a velocidade transformaram as perspectivas das pessoas e Nietzsche passou a exercer uma influência decisiva como nenhum outro filósofo da modernidade. Os socialistas, as mulheres emancipadas, os jovens liam Nietzsche. A energia, a radicalidade e a importância da visão pessoal, elementos característicos de sua filosofia, atraíam muitos leitores.
Anteriormente, suas obras possuíam tiragens pequenas. A quarta parte de Assim falou Zarathustra ele mesmo precisou financiar, um total de quarenta e cinco exemplares e apenas sete foram presenteados a amigos, com relação a Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro (Jenseits von Gut und Böse – Vorspiel einer Philosophie der Zukunft. 1886), somente 114 exemplares foram vendidos. Agora, suas obras são publicadas em grande número, o que significou influência e poder para Elisabeth. Além do arquivo, ela abre uma lucrativa editora especializada em Nietzsche, e escreve a sua biografia, publica suas cartas. A partir das cartas, ela denuncia o amor e o respeito entre os irmãos, porém, os documentos são falsificados, alguns deturpados e outros manipulados. Ela apaga o nome do destinatário com gilete, por exemplo, e direciona a mensagem para si, ou queima alguns trechos específicos, tornando-os ilegíveis, ou repica a carta e associa a outra também repicada. Ela deturpa o relacionamento e procura ressaltar a sua pessoa como a única mulher na vida do irmão e a admiração dele por ela. Ao examinar os originais das cartas chama a atenção os evidentes vestígios de manipulação deixados por ela. No caso de uma carta escrita à mãe, no lugar do destinatário, foi inserido o nome de Elisabeth, a carta à mãe era repleta de termos carinhosos e de grande respeito.
Passados sete anos, ao regressar do Paraguai, cuidando dos arquivos do irmão, Elisabeth Förster-Nietzsche conseguiu fama e dinheiro. Passados dez anos de sofrimento, o filósofo falece, em 25 de gosto de 1900. Um ano depois, Elisabeth publica A vontade de poder (Der Wille zur Macht), que logo se torna uma sensação. Provavelmente, o livro já estava pronto e ela aguardava a morte do irmão para publicá-lo. Nietzche pretendia escrever uma obra com este nome, deixou seis cadernos de anotações avulsas e desconexas cuja pesquisa perdura até hoje. Mas algo é indiscutível, Elisabeth usou as notícias como bem quis, suprimiu, alterou passagens, incluiu ideias que não eram as do filósofo, mas as suas próprias. Friedrich Nietzsche nunca teria publicado uma obra assim. E de repente, o filósofo se torna o defensor da cultura de supremacia germânica e antissemita — o oposto de sua filosofia. Em 1933, Adolf Hitler chega ao poder e nada mais a calhar do que um filósofo renomado para propagar a ideias nazistas de supremacia da raça ariana. O ditador visita a senhora Förster-Nietzsche várias vezes e as visitas são acompanhadas da imprensa, fotografias e artigos surgem abundantes nos jornais. Hitler conhecia a importância dos símbolos. Com a idade de 86 anos, “a lhama”, torna-se o centro das atenções, mais do que o seu irmão. Elisabeth Förster-Nietzsche falece em 1935, Hitler comparece ao enterro como um filho desconsolado.
Depois de quase um século de sua morte viria à tona a verdadeira dimensão deste crime. As pesquisas continuam e os resultados são categóricos. Por conseguinte, a irmã obteve grande influência na obra política de Nietzsche, o que contribuiu para prejudicar radicalmente a recepção de sua filosofia durante várias décadas. Friedrich Nietzsche não pode escrever este seu último trabalho, ele não é o autor de A vontade de poder, mas através de suas verdadeiras obras o filósofo deixou uma mensagem que se opõe à loucura que propagaram em seu nome.   

NOTA
Baseado no documentário de Hedwig Schmutte, Wahnsinn, Nietzsche! – MDR, Alemanha, 2016; livro: Friedrich Nietzsche, Sein Leben erzählt von Otto A. Böhmer, Diogenes – Verlag, 2007; texto de Friedrich Ekkehard Vollbach, Friedrich Nietzsche und seine Schwester Elisabeth, das Lama; texto de Ulrike Ackermann, Elisabeth Förster-Nietzsche, Eine fatale Emanzipation; livro: Carol Diethe, Nietzsches Schwester und der Wille zur Macht, Europa Verlag, Hamburg, 2001.


*****

VIVIANE DE SANTANA PAULO (Brasil). Poeta, romancista, tradutora e ensaísta. Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia” de Curtea de Arges, Romênia. Atualmente, vive em Berlim. Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.

*****

Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80





SUSANA WALD | Tres veces el oro de los tiempos


1. ANIMISTAS | Era muy joven cuando oí por primera vez mención de culturas animistas. Me explicaron que se trataba de comunidades de personas en el África que creían que todo estaba animado, es decir, que, al igual que los seres humanos, todo tenía alma, incluyendo piedras, pastos, animales e insectos. Como me explicaban que los que esto creían eran salvajes y me indicaban que yo y mis maestros no lo éramos, esta información quedó mucho tiempo guardada en un cajón de fondo de mi memoria.
Ahora, con mayor información, reconozco que eso de “salvajes” es algo ficticio, un insulto incluso, que profieren quienes muy erradamente suponen ser más elevados o más sabios que otros seres humanos. En alguna medida, todos somos salvajes, fuera que eso existe, y todos podemos aspirar a alguna medida de sabiduría, al tiempo que eso no nos hará superiores a los demás.
En cuanto al animismo, vale la pena reconsiderar nuestros juicios peyorativos y veremos que en las comunidades africanas en que se practica, guardan los humanos intuiciones y conocimientos muy profundos.
Estamos aprendiendo que los componentes del universo, desde lo galáctico hasta lo microscópico están hechos de un número conocido y aprehensible de elementos. Lo que es más, estamos aprendiendo que los seres vivos estamos constituidos de los mismos componentes, es decir de combinaciones de elementos idénticos. Estamos aprendiendo que los componentes de seres vivos tales como bacterias, pastos, animales y seres humanos son los mismos. Nos enteramos de que los árboles y nosotros compartimos características en nuestros genes.
Cierto es que los árboles viven destinos distintos a los nuestros, estando, como están, por ejemplo, amarrados a vivir en un solo lugar de tierra, mientras nosotros podemos movernos. (Y a veces pienso, adónde irían corriendo los árboles si pudieran hacerlo, cuando se enteran de nuestras intenciones de tumbarlos…)
Sí estamos hechos de elementos distintos, sustancias para las cuales ahora tenemos nombres científicos y que quizás son lo que los animistas llaman alma. Habiendo plantado muchos árboles noto incluso que cada uno tiene algún destino especial, distinto de otros que fueron plantados en el mismo tiempo y en espacios muy cercanos unos a otros. Observamos incluso que hay plantas que cuando sus dueños originales se mueren, también perecen, aunque haya otras personas tratando de cuidarlas. También se ha notado que las plantas gozan de ciertas músicas y prosperan mejor en ambientes donde pueden sentirlas. Noto también que mis dos perros tienen personalidades completamente diferentes. Ambos tienen sed de afecto, pero lo expresan de modo distinto, incluso producen ruidos diferentes. Uno de ellos abre la boca y produce sonidos como los seres humanos, es decir nos imita. ¡Falta que hable no más…!
Los animales que nos rodean viven, es decir están animados. Las plantas viven, están animadas. Incluso las piedras que dábamos por muertas, inertes, resulta que van cambiando con el paso de los milenios. Reaccionan a los elementos, se recombinan, forman cristales. De alguna manera están animadas.
La cultura de esos animistas de los que me hablaron cuando era joven, ¿en qué se diferenciaban de ésta en la que he vivido hasta ahora? En algo muy esencial.
Nuestra cultura es antropocéntrica. Antropos es palabra griega para hombre. Nuestra cultura todavía languidece bajo la plétora de ideas que hemos estado repitiendo y alimentando que profesa que el hombre es el centro de todo. Es dueño de todo. Es el que tiene poder sobre la Naturaleza. Esta noción está tan caduca como la que se guardaba y protegía a ultranza al decir que la Tierra era el centro del Universo. (Hace poco quien dijera que no era así, iba a la hoguera.)
En medio de la ruina y la decadencia de nuestra cultura van surgiendo ideas nuevas. Y creo que en ellas amanece poco a poco nuestra salvación. Somos pedazos y partes de un todo mucho mayor que nosotros. No somos superiores a las piedras ni a los gusanos, ni a los pastos. Compartimos los mismos elementos, nuestra vida está hecha de las mismas sustancias, nuestro destino está inexorablemente amarrado al de todos los seres. Todos los componentes de nuestro planeta Tierra y ésta misma están conectadas, amarradas a la existencia del mismísimo Universo. Algo conecta todo, algo que todavía no logramos nombrar, pero que ya percibimos nubosamente. Hay algo que es santo, sagrado, uno, que todo lo une, algo en que vivimos y en que se desarrolla nuestro destino. No importa qué nombre se le dé, este algo lo penetra y lo domina todo. No es orden. Sabemos que vivimos en el caos. Es un impulso, un vigor, una fuerza que hace que todo sea especial, que hace que haya alma en las piedras, en el pasto, en los animales y en nosotros mismos. Tienen razón los animistas.

2. MAGIA Y ENERGÍA | En su libro La Rama Dorada James George Frazer considera superstición a la práctica de la magia y al pensamiento que rodea todo lo que denominamos mágico. Con visión décimonónica a la superstición la considera a su vez cosa de salvajes, de primitivos, a quienes percibe como inferiores. Las supersticiones y simbolismos de los occidentales los considera menos bárbaros, pero le parecen carecer de visión científica que él asume como propia y también preferible.
A un siglo del texto de Frazer, la interconexión entre realidades percibidas queda demostrada por la misma ciencia que él veía como salvaguardia contra la falacia de las supersticiones y (para él) falsas conexiones entre ideas en que la humanidad toda ha basado sus ritos y sus religiones durante un periodo larguísimo.
Las ideas interconectadas se consideraban sagradas en las religiones antiguas, razón por la que hicieron de ellas asunto de ritos. Estas interconexiones son similares a las ideas que estamos comenzando a percibir en lo que la ciencia nos va diciendo sobre la materia.
Parece que la materia es la misma, en proporciones variables, pero de esencia constante, en todo el universo, en lo micro y microcósmico. Parece también que en lo microcósmico, según vemos en la genética y el estudio de los genomas, hay conexiones entre todos los entes animados y además los elementos de los que éstos están constituidos son los mismos que los que se observan en el plano macrocósmico.
Por la ciencia vemos que elementos como helio, hidrógeno, oxígeno, carbono, nitrógeno y otros se forman y se transforman en sus variaciones atómicas bajo las presiones de la energía y de las condiciones cósmicas, y vemos que parecen todos participar de formas que en el último análisis son universales y están conectadas.
Con afirmaciones de este tipo nos acercamos a conceptos de los cuales la magia es tan sólo precedente, presentimiento e intuición. La magia encierra sentimientos expresados en los niveles a los que el pensamiento de cada época anterior tenía acceso.
Y si contemplamos la unidad, la interconexión de todas las cosas que se nos están revelando, no podemos sino quedar tan perplejos y sobrecogidos como lo estaban los que antes manifestaban sus sentimientos con las prácticas mágicas.
Porque si todo está interconectado, si estamos formados por los mismos elementos materiales que los cometas, si somos genéticamente parientes de pastos, venados, conejos, serpientes y bacterias, ¿acaso no es tiempo de que cambiemos nuestra conducta y aprendamos nuevos modos de contemplar todo? ¿Será que vivimos en un vacío cultural y espiritual solamente porque estamos ciegos a la clara
manifestaci6n de la sacralidad? ¿Será que nuestro problema está en que nos sentimos separados de la unicidad, de la interconexión evidente de todo? ¿Será que esta separación estúpida es una costumbre, una parálisis a la que nos condiciona un pensamiento caduco? ¿Será que esta es la hora en que comienza una era en la cual debemos repensar todo?
Creo que la necesaria deconstrucción que fue un proceso de varias centurias en las que se examinaron los pensamientos ahora vacuos será remplazada por la elaboración de nuevas síntesis y que éstas vendrán de nuestros conocimientos aprendidos de los descubrimientos de la interconexión de la materia, interconexión que da la energía, misteriosa y universal y que es producida por ella.
Siento, como lo esbozo más arriba, que pensar en esta energía que todo lo conecta es posiblemente lo que más nos acerca a la idea de la magia, a la idea que es el fondo de todo sentir religioso, de todo ritual, lo que más nos acerca a lo trascendente.

3. LA MATERIA | Las palabras “materia” y “madre” vienen de la misma raíz. Anteriormente hablé de la necesidad de volver a evaluar la idea de lo femenino creando una paráfrasis, una frase imitando a otra que ya conocemos. La frase conocida es “Padre nuestro que estás en los cielos”. La frase creada a partir de ésta es “Madre nuestra que estás en la tierra”. Padre y madre van unidos para formar una unión de la que parte la vida. El padre que está en el cielo es venerable y venerado y la madre que está en la tierra debe ser venerada de igual manera para que de la unión de los dos surja la vida nueva.
Durante siglos hemos buscado la trascendencia a través del manejo de ideas unidas a la imagen del padre celestial. Es ahora tiempo de buscar la trascendencia a través del manejo de la materia, la madre terrenal, recordando que en ella está toda la energía que mantiene la vida. Si consideramos que la materia es venerable, la vamos a considerar como algo que se tiene que manejar con enorme cuidado. Dejamos de despreciarla. Dejamos de derrocharla. Dejamos de malgastarla. Hay ejemplos de esto.
Entre las materias, los elementos que necesitamos para nuestras vidas, para el funcionamiento de nuestro mundo, están las que nos dan energía. Hablemos del petróleo. El uso del petróleo se puede considerar trascendente si en su empleo pensamos en su origen. Nos viene de la tierra, nos viene de vidas pasadas mucho antes de la nuestra. Nos viene de materia orgánica, igual que nosotros. Si nosotros valemos, si tenemos significado, así también lo tiene el petróleo. Si usamos por ejemplo la gasolina pensando en que es parte de nuestra madre que está en la tierra, es parte de lo santo y sagrado, lo haremos con cuidado. Gastaremos lo mínimo. Usaremos sólo lo imprescindible. Emplearemos la gasolina como el boliviano que recuerda que su chicha procede de la tierra y derrama unas gotas al suelo para ofrecer algo de su deleite a la Pachamama. Si usamos la gasolina pensando en que es parte del cuerpo de la tierra que es sagrada y venerable, dejaremos de andar en autos diseñados para transportar tres cuartos de tonelada de carga en terrenos inaccesibles, cuando de hecho sólo vamos a comprar algunos kilos de víveres a una tienda que está en alguna calle pavimentada. Derrochar la gasolina de esa forma es un ultraje a la tierra que es sagrada. Todos tenemos algo de culpa en esto. Malgastar la energía es ultrajar lo femenino que nos mantiene y alimenta.
Manifestamos también nuestra veneración de la tierra cuando manejamos sus frutos, los alimentos, de manera trascendente. Necesitamos comer, cierto. Pero sólo necesitamos comer lo que es imprescindible para nuestra vida diaria. Ni poco, ni mucho. Lo justo. No se trata de privarse. Pero servirse más comida de lo que se puede comer y dejar sobras en el plato, es violar el cuerpo de la tierra, es malgastar y despreciar sus frutos.
Manifestamos nuestra veneración de la tierra cuando usamos nuestra ropa en forma responsable. Necesitamos ropa, cierto. Que sea buena y bella, mejor. Pero es necedad y falta de trascendencia tener más de lo necesario.
Ya ven hacia dónde voy.
Es necesaria la materia. Es imprescindible. Es irrenunciable para mantener la vida. Pero su uso puede ser asunto de crecimiento, de creatividad, de verdadera humanidad trascendente.
Se trata de unir al padre celestial, cuya veneración es cosa del espíritu, a la madre terrena, cuya veneración es cosa del cuerpo. El cuerpo es materia santa, la tierra es materia santa, los seres humanos sabemos sobradamente, hace milenios, que manejar la materia, el cuerpo, en forma espiritual y trascendente nos eleva, nos da vida. Si amamos la vida, amamos forzosamente la tierra que nos la da, el cuerpo que es el modo de transmisión de la vida terrenal.
Hay quienes proponen que elevarse hacia lo espiritual se logra a través de la negación del cuerpo y de la materia. Pienso que están errados. El acercamiento hacia todo lo material de modo venerante es elevador. Sentir que compartimos una misma madre con pájaros, animales, aves, pastos, flores, árboles nos acerca a una idea de trascendencia. Si tenemos la misma madre que un árbol, tendremos, como lo hacen algunos, que pedirle perdón por derribarlo. Si entendemos que nuestro mueble procede del árbol que es hermano nuestro, los trataremos con cuidado, veneraremos al árbol del que fue hecho. Si comemos la carne de un ave con consideración y amor hacia su vida que es hermana de la nuestra propia, el mismo comer se convierte en un acto trascendente.
Somos hijos de la misma materia que la Luna y el Sol, la misma materia que las piedras bajo nuestros pies. Somos hijos de la misma materia que el petróleo que extraemos de la tierra. Somos hermanos de la gasolina, de la bencina. A ver cómo la cuidamos.


*****

SUSANA WALD (1937). Artista plástica, ensayista. Uno de los grandes nombres del surrealismo. Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.

*****

Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80