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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

JOVINO SANTOS NETO | Hermeto ligado na Rede


Abre | Escrevi esta historieta sobre uma composição do Hermeto, Rede. A música pode ser ouvida aqui neste link: https://youtu.be/9zwUx1oLX_U na versão de estúdio. A versão ao vivo na TV está aqui: https://youtu.be/I8IEjhqBS6c.


1978 – Fazia um pouco mais de um ano que eu estava tocando no Grupo do Hermeto Pascoal, quando tivemos a oportunidade de gravar pela gravadora Warner Zabumbê-Bum-À, um disco no Estúdio Transamérica, no Rio de Janeiro. Era a primeira vez que eu, um ex-futuro biólogo de 24 anos, estava participando de uma produção fonográfica profissional como músico. Eu olhava para tudo aquilo com os olhos bem arregalados, enquanto os ouvidos iam descobrindo as paisagens sonoras do Campeão Hermeto.
A tecnologia era atual para a época – tínhamos o Vitor Farias pilotando a mesa e uma banda coesa: Nenê na bateria, piano e violão; Cacau Queiroz nos sopros, Itiberê Zwarg no baixo, Celso Mendes na guitarra, Zabelê (Rosemarie Pidner, esposa do Nenê na época) na percussão, voz e violão,  o saudoso Pernambuco na percussão e vozes, e Mauro Senise como convidado na flauta. Eu tocava o piano Rhodes, o clavinete e participava dos coros criados pelo Hermeto, o produtor e mestre de cerimônias do projeto. O Campeão tocou de tudo nesse disco– mesas, flautas, piano, percussão, todos os saxofones, violão, etc.
Durante os ensaios preparativos para as sessões de gravação, Hermeto nos aparece com um arranjo cuidadosamente escrito à mão por ele, com nossas partes individuais copiadas com capricho. Chamava-se Rede. Depois de tantos meses aprendendo com o Hermeto e tocando músicas que me desafiavam em todos os sentidos, esse tema indicava apenas pares de notas bem espaçadas para cada instrumento. Eu, tocando o clavinete, percebi que os outros instrumentos tocavam algo similar. Nada aparentemente revolucionário ou difícil de tocar; apenas grupos de duas notas, diferentes entre cada parte. Eu gravei o clavinete sem problemas, mas continuava sem entender o que o Hermeto queria com essas notas.
Veja aqui um pedacinho da partitura:



Foi apenas mais tarde, ao ouvir a faixa já editada e mixada, percebi que todos estes instrumentos estavam na verdade reproduzindo o ranger de uma rede pendurada na varanda, naquele pendular masmorrento de preguiça em tarde de domingo. Isso mesmo, aquele barulhinho que os dois punhos de qualquer rede fazem quando balançam no gancho... nhéééc, nhiiic....
Quer dizer: o Hermeto, deitado numa rede, percebeu no som do encontro dos ganchos com o pano, uma música diferente, que ele soube captar com notas e timbres de instrumentos convencionais. O que seria um ruído irritante transformou-se numa poesia rítmica, em que a rede gira feito um pião, alça voo e leva o sonho do sujeito que na rede descansa a um remanso pastoral idílico, onde Zabelê recita esses versos:

Me dê a rede , quero dormir
O ar é puro, não vou sair
Balance com força, mais um pouquinho
Pro sono vir devagarinho...
Quero sonhar bem diferente, talvez igual a um  passarinho
Quando acordar de manhãzinha, vou ver o sol nascer  sozinho
E logo o dia vem clareando, os donos das matas vão se encontrando,
Andando e voando nos ares, cantando nas matas,
Cuidando de tudo que é belo
Quanto a natureza, que é linda, ainda
Que é linda, ainda
Que é linda, sim.

A cada repetição do tema com seus pares de notas enferrujadas, novas cores são adicionadas com pios de aves, sininhos chamando os elementais – os “donos das matas” – e uma nova pausa, essa mais abstrata, onde, montado na garupa do piano elétrico, o poeta sonhador clama, na voz vibrante do Pernambuco,

Ah, coisa natural, coisa linda, coisa bela a Natureza!
Vejam, vejam o florestal! Veja, veja a Natureza!
Veja quanto verde, quanto verde está existindo na Terra!
Terra linda, é obra da Natureza, luz divina!
Ah… quero u’a rede! Quero u’a rede!

Hermeto havia escrito um verso adicional, que não foi gravado. Dizia assim:

Dai-me u’a rede pra eu dormir com minha amada por trás das colinas,
Longe da poluição, perto da brisa...

O Pernambuco às vezes se embatucava e trocava as palavras, querendo dormir “perto da poluição e longe da brisa”.
O Hermeto que criou estes versos em 1978 não é um ecologista de revista, desses que apareceram bem depois. Ele apenas fala com a pura propriedade de quem nasceu no sertão alagoano, conversou com os passarinhos quando tinha seus 5 anos de idade e aprendeu harmonia com os pedaços de ferro do monturo do seu avô ferreiro aos 8. Tudo é Som, ele diz, e Som é Vibração.
Participar da criação dessa peça foi uma lição para minha percepção musical limitada. O que o Hermeto criou com Rede foi uma pintura sonora, um tableau vivant, onde a rede é uma cápsula espacial que leva o redeiro sonhador a um outro plano astral, de onde ele vislumbra a Terra vestida de verde: vista assim do alto, mais parece o céu no chão...
Na última passagem do tema, surge o sax barítono do Cacau de Queiroz urrando como uma fera louca enquanto a rede e o Grupo rodopiam cada vez mais rápido, até que as amarras se soltam – o sonhador é projetado de volta ao silêncio das noites frias do agreste alagoano.

ACAMPAMENTO MUSICAL


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JOVINO SANTOS NETO (Brasil, 1954). Músico, compositor, arranjador, editor.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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