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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

FLORIANO MARTINS | Dois livros de Marco Lucchesi


O primeiro que se pode dizer deste novo livro de Marco Lucchesi, O sorriso do caos (Rio de Janeiro: Record, 1997) é que se trata de uma leitura de leituras, não por labiríntica aventura mas sim pelo que seus fragmentos guardam de vigorosa identidade. Decompõe-se na leitura de múltiplos livros, sem que lhe falte a unidade essencial. Disse Calvino que “a coisa mais importante do mundo são os espaços vazios”. É o que parece haver apreendido, até aqui, Marco Lucchesi de suas inúmeras leituras. E busca então preencher tais espaços com sua paixão pela síntese. Através da prodigiosa polifonia de suas leituras não busca senão a literatura, guiado pelo que chama de “a instância do diálogo e a chama da diferença”. Refiro-me à literatura como totalidade.
Este O sorriso do caos não se evita, contudo, a aventura labiríntica. Trata-se de uma leitura lendo outras, da sagrada virtude das correspondências, onde – e o diz o próprio autor, embora referindo-se à obra do italiano Carlo Emilio Gadda – “toda aventura repousa no texto”. Coletânea de artigos publicados em grande parte na imprensa carioca, pode-se dizer dela o que já salientam suas páginas acerca de um livro de Luís Costa Lima: que não oriunda de suas partes seu encanto e sim do “sistema que as configura”.
Ardente defensor da identidade a partir da diferença, Marco Lucchesi (Rio de Janeiro, 1963) propõe a leitura de dois princípios essenciais: a unidade e a pluralidade. Melhor: só se alcança a primeira graças ao banho ao natural da segunda. Por todo o livro nos fala de aspectos que confirmam tal visão. Ao escrever sobre Auden destaca a “variedade temática de seus ensaios”. Diz de Pasolini que foi “o mais aguerrido defensor da diferença”. Sobre uma exposição de Fernando Diniz comenta o “brilho secreto e fugaz da unidade”. Em uma entrevista com Roger Garaudy reporta-se ao “radical elogio da diferença”. Igual universo em expansão, a malha de exemplos.
Mesmo se nos detivermos nas particularidades dos artigos em si, não temos senão o descortinar fascinante de um tecido múltiplo, o ritmo com que deveria agir a cultura. Ou melhor: ação de determinados criadores – tecendo a diferença justo a partir da unidade – cuja obra vai ultrapassar o front de previsibilidade que se instalou em nossa contemporaneidade. Ardem as leituras de Lucchesi em sua urgência de realçar o que ele chama de “riscos plantados na Diferença”. Ao escrever sobre Henri Michaux, Harold Bloom, Hermann Broch, Nise da Silveira, Umberto Eco e Alfred Döblin, define uma rede de interligações entre esses autores. Trata-se de um “sistema de sistemas”, como diz ao referir-se à visão de mundo de Gadda.
Flagrante a pluralidade – anárquico, busca a diferença na unidade e seu revés –, recai sobre a literatura italiana especial atenção, o que o leva a escrever sobre Gadda, Alberto Moravia, Mario Tobino, Leonardo Sciascia, Pasolini, Giorgio Manganelli e Umberto Eco. Sendo resíduos fascinantes que buscam definir a identidade a partir da diferença, serão válidos os comentários seguintes:
Caracteriza a obra de Emilio Gadda (1893-1973) o intenso jorro metafórico, proliferando a imagem através de vertiginosos espasmos. Operam uma raivosa tensão entre o grotesco e o trágico, escritura furiosa que Lucchesi chama de “uma pluralidade de causas, quase um emaranhado”. Alberto Moravia (1907-1990) abole as fronteiras entre o ensaio e o romance, rejeitando violentamente códigos que limitem a ambos. Sua obsessão por um sentido extremo de depuração crítica fez com que os traços narrativos praticamente desaparecessem de um livro como La vita interiore (1978). Diz Lucchesi que “a vida, segundo Moravia, é um perfeito caos, do qual se pode extrair apenas algum fragmento ordenado, e todavia misterioso”.
Seguindo entre italianos: Mario Tobino (1922-1963) e Leonardo Sciascia (1921-1989). Morto prematuramente aos 41 anos, Tobino foi um médico que dialogou radicalmente com a loucura, dali extraindo um livro magnífico, que é Le libere donne di Magliano (1953) – talvez tenha faltado ao livro de Lucchesi uma avaliação acerca das relações entre o trabalho de Tobino e o da brasileira Nise da Silveira. Sciascia merece destaque por suas parábolas metafísicas. Contemporâneo de Calvino, sua obra entrava em choque com a ruinosa presença do neo-realismo nas letras italianas. Calvino resgatou a sugestibilidade da fábula e da alegoria fantástica, enquanto Sciascia, mesclando a narrativa à pesquisa histórica, deu-lhe inconfundível sabor.
Também nos fala Lucchesi de Pasolini e Giorgio Manganelli, ambos nascidos em 1922. De exaustiva discussão entre nós o cineasta e o mito Pasolini, perdemos o prodígio de seus textos para imprensa, reunidos em Scritti corsari (1975) e o póstumo Lettere luterane, publicado um ano depois de seu brutal assassinato. Nada sabemos também da fascinante estranheza de um livro como Poesia in forma di rosa (1964). Já o surrealista Manganelli, seu humour noir como que esfola viva a linguagem, cabendo aqui o que Lucchesi chama de uma “selva de ramificações”, obsessão pela precisão, que trama uma estratégia labiríntica, onde cada passagem se multiplica em inúmeras outras.
Tais passagens como que definem o livro, embora Lucchesi alcance uma dimensão mais profunda para seu exercício crítico, sempre um diálogo, jamais um julgamento. Ao escrever sobre alguns autores pertencentes ao mundo árabe, ressalta a “pluralidade fascinante” que constitui aquela literatura, posta em choque com uma cultura do previsível disseminada violentamente entre nós. Não é à toa que Lucchesi, ao dialogar com brasileiros, mostra-se atento à obra de Nise da Silveira, Fernando Diniz, César Leal e Foed
Castro Chamma. Embora raras as substituições – melhor: equivalências –, poderíamos pensar em uma outra face da destruição intencional de um determinado patrimônio cultural: a falta de oportunidade.
Nada se esgota em si. O abismo sempre invocará o abismo. O centro da diferença está em toda parte. Não se trata de uma condição irrevogável, e sim do pleno exercício de uma multiplicidade. Compreende Lucchesi que o ser encontra-se acima da ciência do ser. Empenha-se em abrir portas. Sobre os romances policiais de Sciascia disse: “todas as pistas apontam novas e mais imbricadas realidades”. Recordou que em Alfred Döblin “sua base é a enciclopédia”, alertando, com Artaud, que a anarquia – e “o esforço para reduzir as coisas, reconduzindo-as à unidade” – é a grande chave para liquidarmos o culto ao shopping center instalado em nosso tempo, quando se reduz o pulso da atividade humana a uma barra de código. Ou, no dizer de Cioran: “o derivado substitui em tudo o original, o essencial”.
O sorriso do caos não faz senão sugerir algumas pistas para darmos em uma “pluralidade de causas” que nos vá recompondo, humanidade sem centro. Apenas a identidade, mas toda a identidade. Sugere portanto aquilo que Spinoza chamava de “pequenos modos da substância infinita”, espaço-tempo onde se alcança fundamento naquilo que se nomeia. Em raros momentos na atualidade a crítica literária no Brasil lê-se tão carregada de sentido em si mesma.

2.

Em seu livro O sorriso do caos (1997), Marco Lucchesi já se referia a um “radical elogio da diferença”. Não propriamente como citação de um ou outro artigo que o compõe, mas sim como identificação sua com o fato de que o exercício da totalidade não se fundamenta sem a plena aceitação da diferença, menciono-o pela razão de que este poeta tem-se mostrado perseguido por essa obsessão primária. E primária justamente porque fundacional. A defesa de qualquer linguagem só se legitima na compreensão daquilo que lhe é distinto.
Ao publicar agora seu primeiro livro de poemas, Marco Lucchesi é recebido, logo nas orelhas do mesmo, por uma lúcida observação de Ivan Junqueira, a de que o poeta revela-se não somente através de seus próprios versos mas também no exercício tradutório e ensaístico, desde que o faça – acrescento – com absoluta inteireza de princípios. Pois bem, dedicando-se à leitura do que tem produzido Lucchesi, tanto nas traduções como nos artigos para imprensa, percebemos esta sua identificação com uma escritura da diferença que tão bem fundamenta e rege a poesia através dos tempos. Diferença que é a celebração de uma inconfundível unidade.
A poesia não está exatamente no verso, mas sim em tudo aquilo que é tocado pelo poeta. A poesia de Leopardi ou de Trakl, lida em brasileiro, foi acrescida dos inconfundíveis traços estéticos de seu tradutor. É possível ler ambos sem se sentir traído pela tradução. O texto não busca ser modificado, embora saiba que não será o mesmo sem a presença dessa ação modificadora. Também não exige ser copiado em sua exatidão, porque sabe que ali nada encontraremos. Essa essencial arbitrariedade contra o ego do tradutor é o que pratica com digna competência Marco Lucchesi.
A mesma frequência de diálogo mantida com a tradução observamos no tocante à crítica literária. Não impõe uma razão de ser da crítica em seu objeto de estudo. Antes busca um diálogo, uma raiz (imperceptível) de identificação. Não altera ou reduz, corrige ou falseia – em grande parte hábitos vorazes da crítica. Sabe que toda aventura repousa no diálogo. Assim é que a variedade temática de seus artigos para imprensa podem muito bem caracterizar um único e identificável texto em expansão, cuja assinatura já se percebe logo da leitura de uns poucos.
O poema, contudo, pode ou não confirmar uma estética (tanto quanto uma ética) ambientada no ensaio ou na tradução. Neste sentido, Bizâncio (1997) traz em si uma
chave com dois códigos de abertura. O livro é o espaço de confluência do poeta, do ensaísta e do tradutor. Divide-se em três partes: o poema “Bizâncio”, a série intitulada “Sonetos marinistas” e uma coletânea de poemas traduzidos. Esta última, “Visitações”, recorda outras aventuras idênticas, a exemplo do capítulo final de Tarde o temprano, do mexicano José Emilio Pacheco (1939): “Aproximaciones”. No caso de Lucchesi, trata-se de textos de poetas russos.
A parte intermediária do livro parece-me a mais inventiva, ao mesmo tempo que a mais problemática. Como o próprio autor identifica, temos ali um copista encantado com os versos de um indeterminado poeta (possivelmente outro copista). São dez sonetos que sequer procuram forjar um diálogo. Os dois copistas não parecem se perceber entre si. O autor de ambas encarnações inventa uma ponte impossível, ao pretender que um busque (em seu português arcaico) arremedar o outro (em seu italiano atual). Diálogo descartado, exceto no desejo do autor. E traz ainda implícito um ardil: se podemos ler com tranquilidade em vários idiomas, qual a função do tradutor?
Por último o Lucchesi onde se poderia esperar propriamente sua estreia como poeta. O poema “Bizâncio” percorre uma esfera diversa daquela apontada por Foed Castro Chamma no prólogo do livro. Não se trata de uma nostalgia referenciada, e sim de um abismo provocado pelo rompimento (moto contínuo) entre memória e desejo. Eis a contradição reinante do poema, seu irresoluto paradoxo: não importa que Lucchesi tenha estado em Istambul e que ali tenha sentido saudade da Bizâncio que não viveu, o poema evidencia, antes de tudo, o jogo de espelhos entre linguagem e realidade.
As três partes se unem e se desunem. Têm a medida de seu autor, de sua defesa de uma escritura da diferença, porém carregam consigo alguns pedregulhos que a impedem de sua plena realização. Seja como for, não se trata (ainda) de uma estreia de Marco Lucchesi no poema, embora na poesia já tenha estreado há muito. E refiro-me a isto porque a entrada na matéria está muito além dos primeiros acordes, das inaugurais formas dedilhadas. Leio Marco Lucchesi com clara identificação. E sei que ainda teremos, por sua pena e crença na diferença, a plenitude de seu verso, com a mesma intensidade da inconfundível voz de seus ensaios e traduções.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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