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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

FLORIANO MARTINS | Uma conversa com Marco Lucchesi


FM | Em um poema teu intitulado “Meu conflito” (Meridiano celeste & Bestiário, 2006) encontro esta intrigante imagem de um falante que se debate “vida afora à procura de Ulisses”, invertendo o curso mitológico entre busca e extravio. Começamos então nosso diálogo por esta inversão sugestiva. Quem é o interlocutor que procuras?

ML | Ah, Floriano, você aponta para a ferida. O norte. A demanda do santo Graal. A ideia de uma procura que se torna capítulo de outra busca. Ulisses tentando voltar para a sua rochosa Ítaca. E Telêmaco, nos rastros de Ulisses. Uma procura que se procura. Uma demanda que não se consome. Houve de fato uma Telemaquia. Mas pouquíssimos versos nos chegaram desse poema. Eu me aflijo por essa dupla ausência e me enamoro deste ainda-não: a ilha não alcançada e Ulisses não encontrado. Assim, desde cedo fiquei intrigado diante desses textos sugestivos e inatingíveis. A literatura como a demanda de uma contrademanda. Presença e Não-presença. A obra futura e – portanto – inacabada. E uma espécie de verificação do sistema, medindo os limites daquela obra. Ou então: a poesia em estado absoluto, como a de Ulisses, em seus dez anos de errância, e a vigilância do metro, da beleza, da verdade, na inespera crítica de Telêmaco. E esses aspectos cresceram na obra de Dante – quando eu estudava o canto XXVI do Inferno. E me deparo com Ulisses que não volta para Ítaca, indo naufragar nas praias da eternidade, junto ao Purgatório… Mas eu preciso responder, Floriano. Que uma primeira ideia de Telemaquia – para mim – se resolve na busca do Outro. Em Dante, essa visão tremenda do Paraíso XXXIII – de um Deus-livro, no Poeta – e cada um de nós – volta para a sua Ilha. Rochosa e perdida. O meu interlocutor são os que têm na literatura uma pátria de coisas perdidas e inacabadas, cuja beleza se origina precisamente desse estado. O ainda-não como a coroa do rei. Uma telemaquia interna e perigosa. Bela e simultânea.

FM | Em entrevista que fiz ao poeta Sérgio Campos, ele me disse que suas margens de atividade criadora são “a primeira sílaba da primeira palavra de um conjunto e a última do movimento polifônico de vida que ela desencadeia”. É também assim que buscas “o outro lado da noite”?

ML | Bela definição, essa do Sérgio Campos. Metáfora valente. Ora, o outro lado da noite, está em Saudades do paraíso, o livro que me levou para as minhas sílabas, as inserções primeiras de meus dias. Por onde passam Antonio Carlos Villaça, Nise da Silveira, Roger Garaudy, Eco, Rubens Corrêa, Nagib Mahfuz, Adélia, Esquivel, em formas de crônica, ensaio poético. O outro lado da noite, portanto, depois de uma palestra que assisti de Carlo Rubbia, Prêmio Nobel da Física, na Praia Vermelha. Pensava nas potências da palavra. Verso e anverso. Os infinitos infinitos. O grande e o pequeno. Dos universos-bolha. E dos paralelos. Pensei na potência das palavras (Cecília: que potência, a vossa). Palavras capazes de tudo. De guardar e transformar. Pensei em Lucrécio. E de repente – Floriano – precisei respirar vida, o aqui e o agora. Caminhei pelo Bem-Te-Vi, que é o outro lado do Pão de Açúcar. Pensando em amores. Pensando em tanta coisa. Mas tanta, Floriano, tanta, que mal consigo dizer. Influxo. Influência.

FM | E ali em Teatro alquímico (1999), esta configuração preciosa da integração entre aquilo que nos influi e a maneira como também influímos em toda escolha, em todo domínio. “Pertenço a Georg Trakl tanto quanto este me pertence”, dizes. E assim destroças toda uma pasmaceira em torno da influência e suas pequenas angústias. Somos modificados pela história na medida em que a modificamos. Contudo, nosso tempo rompeu desastrosamente com esta identificação profunda entre ser e tempo, e o hiato nos fez perder o lugar de origem, o que nos impede o curso da viagem. Como vês a relação de forças entre ciência, religião e arte, a esfera de poder em que agem e desertificam o mundo?

ML | Vivemos da quebra das possíveis harmonias primordiais. Somos Filhos do Plural e da Névoa. Separados da Origem. Exilados no Futuro. As perspectivas não são maravilhosas. Mas há que aceitá-las, como Nietzsche, tremendamente chocado e apaixonado pela intuição de Sils-Maria. Separações neopositivistas parecem impor uma exclusão absoluta entre os pólos da ciência e da religião. E minha vida tem sido a do diálogo. Trabalho com teólogos. E com cientistas. Sou amigo do físico Ildeu de Castro como do teólogo Faustino Teixeira. Do astrônomo Ronaldo Rogério Mourão, como do matemático Ubiratan D’Ambrósio. Conversei com metropolitas ortodoxos de vários cantos da Europa e do Oriente Médio, como com bispos e aiatolás, no Brasil e no Irã. Com Frei Betto e Leonardo Boff. Cícero – com lágrimas nos olhos – e percorri as mesquitas de Shiraz. A minha paixão tem sido a de conjugar as partes quebradas de um diálogo. E tenho como certo que a cidadania vem dos âmbitos de uma conversa toda marcada de adição. Não quero “ou”. Quero “e”. Dou um exemplo. Estou em Recife. Tenho quinze anos. 1979. Levam-me à casa de Cussy de Almeida, em Piedade. Talvez o maestro não se lembre. Eu era um rapazola tímido. Ele, sem o Stradivarius. Havia terminado de tocar Vivaldi na Sala Cecilia Meirelles. Era uma tarde linda no Recife. E havia um senhor de rosto que me parecia familiar. Sabe quem era, Floriano? Luis Gonzaga. E tratou de tocar “Asa Branca”, como se fosse aquela a primeira vez. Cussy e Gonzaga. Não era “ou”. Era “e”.

FM | Esplêndido ejemplo. Defendia o poeta argentino Aldo Pellegrini que “a imagen poética em todas as suas formas atua como desintegradora desse mundo convencional, mostrando-nos sua fragilidade e seu artifício, substituindo-o por outro palpitante e vivente que responde ao desejo do homem”. Como crês que atua ainda a poesia, considerando sua condição essencialmente subversiva, em nosso tempo?

ML | Quanto admiro o Pellegrini! Sempre criou situações novas e, mais que novas, seminais. Gosto dele. Do Girondo. Da Alejandra. E do Temperley. Pra ficar com os ausentes. Creio ainda – em tempos escuros e sombrios como os nossos – na força imagética. O arquétipo jamais poderá perder sua grande sinergia. E todas as suas implicações. Estamos na era dos homens, bem entendido. Mas a era dos deuses – para falar com Vico, para dividir as ideias de Herder – não creio que ela cesse de todo. Em outras palavras, lembro do impacto tremendo da poesia de Hölderlin, quase que ferido de abstração. E – de repente – nos anos em que se manifestava a loucura, o poema “Patmos”, a espera dos deuses e a vitória absoluta das imagens. Uma tempestade imagética. Um triunfo absoluto da poesia. Das altitudes rarefeitas, esbatidas de um elemento misteriosamente concreto. Pellegrini não erra. E a poesia não conhece limites. Proibições. Sabe apenas de desafios. Desde as Janelas altas, de Philip Larkin, aos livros de Mario Luzi e Milosz, vemos que mesmo depois de Auschwitz, ou por causa de Auschwitz, a poesia não cessa. Mesmo em Celan. Não cessa. O Aleph de Borges. A Dublin de Joyce. Os Cronópios de Cortazar. Tudo em tudo.

FM | Em teu segundo livro de poemas, Alma Vênus (2000), nos deparamos com uma epígrafe de Guimarães Rosa: “Tudo, para mim, é viagem de volta”. Anteriormente se publicou Saudades do Paraíso (1997), um livro de memória. Ali há outra epígrafe, de Mário de Andrade, onde lemos: “só o esquecimento é que condensa”. Tudo nos leva sempre ao passado, ou a esta “nostalgia do mais”, como intitulas uma edição dedicada a Artaud que organizaste em 1989. Se tudo é supostamente memória, em que radica o desejo? Como pensas no futuro?

ML | Com saudades. Saudades do Futuro. Saudades do ainda-não. Mesmo que no passado. A volta de Guimarães Rosa como a volta ao primordial, fora do tempo e do espaço. A demanda de Ítaca e do tempo mítico. Eliot fala do pantempo. Jung, do tempo Áion. Fascina-me a ideia do eterno retorno. E de modo ambíguo. Porque, ao mesmo tempo em que me atrai também me assusta. Outra concepção, a do físico Mario Novello, com suas viagens no tempo. Viagens não convencionais: no papel, nos cálculos. Mas viagem. Nas curvas de tempo fechado. Na herança das cogitações de Gödel. Isso tudo em Alma Vênus, que é um livro temperado por questões cósmicas, em cujas águas eu tentei elaborar um micro-lusíadas quântico, marcado por elementos de retorno (“novos pedros e outros vascos, dos quais marítimos ou anfíbios descendemos”), e observações cosmológicas (“o nada sobrenada entre infinitos infinitos”) e o problema da matéria (“mil pássaros do silêncio dão asas ao coração fugitivo da matéria”). Em Saudades, a ideia da condensação me encanta desde Dante. As almas estão – as do inferno e purgatório – em estado de fulminante compreensão do que foram e do que aconteceu. Dizem medulas e essências. A condensação que a morte inaugura lhes deixou uma espécie de triunfo da clareza. Ou do triunfo da brevidade. Um relâmpago. E as coisas emergem com uma clareza terrível e feroz. Como a clareza de Artaud, quando escreve aos diretores dos hospitais na França… Mas não é no passado e nem tampouco para o futuro. O passado e o futuro são dois fantasmas que podem esgotar – assombrando – o aqui e o agora. O que importa é a conquista do presente. Continente imenso, mas que esbarramos com ele todo o tempo e é como se ele fugisse de nós. Saudades, portanto. Saudades do agora. Como se chega?

FM | Seria a “paixão do infinito”, que intitula um de teus livros. Gosto da tua referência ao “Inferno”, em Dante, como um “imenso hospital”, uma viagem ulterior pela psique humana, igual viagem arriscada por Nise da Silveira, ao buscar o fundamento do ser em suas antípodas. Tens razão: a ousadia maior é tocar o presente. E a chave está ali no verso inicial de teu Meridiano celeste: “Bem sei que as partes / que me cercam /não me atendem”. Vou abstrair todo o caráter metafísico desta afirmação, resumindo-a provocativamente à condição mundana de teus pares. Não sei se somos exatamente da mesma geração, Marco, inclusive porque perdemos, no Brasil, a percepção deste componente cartográfico. Quero saber como sobrevives à ausência de pares tangíveis, contemporâneos teus. Com quem dialogas, afinal? – considerando aqui o plano mais terreno possível.

ML | Olha, Floriano, esse é um diálogo dos mais bonitos de que tenho participado. E como gosto de teus reptos. Porque eles saltam. Mas saltam com tanta seriedade. Sou de dezembro de 1963. Sagitário. Acho que lanço algumas flechas. Aponto o meu telescópio para o céu, na condição de astrônomo amador – um pouco relapso nesses dois últimos anos. De pescar não sei. Nunca me atrevi. Gosto de mandar mensagens em garrafas. E lembro do lindo poema de Whitman. Quando a mensagem chegar até o leitor, talvez eu não exista. E pode ser que ao escrever a mensagem o leitor ainda não existisse. Portanto… sempre esse gap. Essa falta. Essa latência. Os meus pares são os que aderem aos horizontes que buscamos. E não aos que militam na burocracia, no inferno das formalidades desfibradas, sem entusiasmo. Sem aderir à tarefa. Os que têm esse pacto – que é o seu, Floriano – das llamaradas. Vejo, por exemplo, em seus poemas uma presença de fogo tão intensa que a sua poesia carrega a maior concentração de incêndios na poesia brasileira. Assim como nunca choveu tanto na poesia brasileira como na obra de Joaquim Cardozo. Os meus pares, Floriano? A nossa possível cartografia? O excesso!

FM | Quando li teu O Sorriso do Caos (1997), o que mais me chamou a atenção eu posso tomar emprestado de uma observação tua, ali, a respeito de outro livro: “o que realmente encanta neste livro não depende das partes, mas do sistema que as configura”, e recordo que foi a partir deste entendimento que escrevi uma resenha, à época, sobre o livro. O desenho ou estrutura de teus livros dá no alvo do que propões. Não tens a presunção do protagonista onipresente. Assim como Per Johns acertou ao dizer que em Os olhos do deserto (2000), “o deserto é o personagem”, podemos dizer que a biblioteca é o personagem em O Sorriso do Caos, ou que Marco Lucchesi é o personagem em Meridiano celeste. Esta “aventura da unidade” é algo que se contrapõe a uma dispersão corriqueira se observarmos como são pensados os livros entre nossos contemporâneos. Como lidas exatamente com este sentido da unidade?

ML | O sentido da unidade, Floriano, é uma necessidade tão delicada e dramática em mim… Começou quando eu estudava metafísica – nos livros latinos –, quando eu estava enamorado de universais e de transcendentais. A procura da unidade. A procura da causa. Esses fantasmas que me tomaram de assalto na minha juventude. Veja só, Floriano. Eu estava dividido e levei tempo para aglutinar a metafísica e a revolução. A ontologia e a dialética. Tempos em que eu estudava muito lógica e matemática. Tempos árduos em que eu acreditava – quinze, dezesseis anos – que o mistério podia ser matematizado. Pensava nisso. Mas desconfiava. A ideia da unidade, como transcendental puro. Depois, com Dante, sempre Dante, apostando na unidade de cada pedra na Comédia. Pedra. Astro. Nuvem. Tudo muito cerrado. Muito articulado. Não uma enciclopédia booleana, apenas, mas uma rede profunda de remissões, desprovida de acidentes ou gratuidades. E tudo isso, contudo – e essa era a parte mais admirável – tudo isso começando a se dissolver no último canto do Paraíso. A liberdade na linguagem. A unidade como segurança ontológica. Depois, porque sempre tive uma espécie de repugnância por uma coleção de livros, ou de ideias, que não se tornassem mais abrangentes e interdependentes. A ideia não é a de fechar os olhos diante do caos que nos circunda, e de não ler os saltos, os cortes, os devaneios, clivagens e fragmentações. Essas questões são reais, existem assim como são – e o trabalho da razão está em amar a biodiversidade dionisíaca e lançar um diálogo luminoso através de Apolo. Sem oposição. Concordo plenamente que em O sorriso do caos a biblioteca é a personagem. Leio os livros que me lêem. E tento uma espécie de breve cartografia pessoal dos livros que formam a minha república. Em Meridiano o poeta é o tema do livro. Da busca de si mesmo. Cheio de livros. Mas de vida. De viagem. E minhas loucuras. Meus venenos. Minha insensatez. A unidade e a dispersão. Eu gosto de trabalhar na beira, no limite. Dante tem a belíssima ideia de como narrar Deus. Se o decide fazer, a ideia é a do sonho, que se desfaz pela manhã. Ou da neve que se liquefaz sob o impacto do sol. Ou quando finalmente trata de Beatriz e diz ser impossível descrever sua beleza – Borges amava essa passagem: E qui convien saltar ogni costrutto. Não dá para avançar no seio da unidade… então convém saltar. É disso que eu gosto Floriano: a coisa minuciosa e flexível. A unidade quase se quebrando. Mas sobretudo a liberdade. Responsável. De acordo. Mas sempre a liberdade. Porque o que conta é a intangibilidade do rosto de Beatriz.

FM | E naturalmente os muitos rostos de Beatriz, a exemplo da Camila que encontramos em Bizâncio (1997) ou desta ainda mais enigmática Leila que buscas em Os olhos do deserto, estou certo?

ML | Claro! Claro! Embora exista um abismo entre ambas, trata-se de um mesmo rosto perdido. O rosto da poesia. Os seios do futuro. Túmidos de espera. Leila é outro momento de libertação. Foi um livro – sobre o qual você escreveu com tanta beleza – que me veio de uma felicidade. A de estar em nova geografia. Novo céu. Nova cidade. A experiência da guerra. E da paz. Como e quanto se acenderem as minhas esperanças, Floriano, em outra língua, em destinos impensados e insabidos. Nos olhos de Leila – personagem puramente fictícia – o lugar em que cumpro o que me resta de paz e a luz inesperada de minha possível redenção.

FM | Chega a ser desnorteante para o leitor afeito à poesia deparar-se com declarações de um mesmo crítico no tocante à condição excelsa de cada poeta que comenta, ou seja, a cada resenha sempre afirma ser aquele o poeta que produz o que há de melhor na poesia brasileira. Quando não age assim a nossa crítica ela simplesmente se cala, deixa passar despercebidos valores expressivos. Completa o quadro a recusa em aceitar determinados fatos poéticos que se impõem por si mesmos, claro, porém que são prejudicados por um verdadeiro sistema de rejeição. Os motivos, nos três casos, são sempre da ordem da cegueira, da presunção e dos interesses cartoriais. Com tudo isto, o leitor se ressente de confiabilidade, vive em desamparo, ou pior, é induzido a uma falsa convivência, a uma falsa aprendizagem. Acreditas que esta seja uma situação remediável? Dá para avaliar seu custo e apontar alguma perspectiva de mudança?

ML | Esse tema um pouco nos abate a todos. Momentos de desesperação. Não raros. A crítica de poesia – meu Deus, Floriano… Que tema duríssimo, esse. Chega a ser uma afronta, o desentendimento. E no Brasil, quantas capelinhas, ainda. Confrarias. Atitudes maçônicas de críticos e poetas. Que se reconhecem. Desta ou daquela irmandade. Quando não se chega ao cúmulo de se escrever poesia servindo a uma tendência crítica! A crítica deve perseguir a poesia, como alvo da linguagem nova que instaura, e não a poesia perseguir a crítica. A inversão muitas vezes se dá por uma vontade – ligeiramente compreensível, mas realmente entristecedora – de entrar para um circuito. Não necessariamente midiático, mas para um circuito de ligeira compreensão. Sair dos guetos solidários. Encontrar o seu crítico. Mas aí está a morte. Pagar o preço da solidão. Pode ser duro, mas não se mede o preço da liberdade. Uma relação cartorial se estabelece e tudo vai perdido. Depois, contamos nos dedos os críticos de poesia. Livres. Que não precisem de bula para a determinação deste ou daquele caminho. E que, sobretudo, respeitem as diferenças. As dificuldades. Eu penso, Floriano, na delicadeza de um Machado de Assis crítico. No exercício da humildade. Mas atenção da humildade como instrumento da crítica e da metodologia. Para saber que a capacidade de admiração não significa derrota do espírito crítico. Que há sempre um brilho possível. E que é preciso descortiná-lo, antes de estabelecer um juízo de valor superficial, que pode custar talentos. Não vamos lembrar aqui do exemplo de Lobato e Anita Malfatti. Mas olha… Não estamos longe de certas posturas semelhantes…

FM | Sim, um exercício crítico que nos permita inclusive aquele “radical elogio da diferença” que evocas em uma entrevista que fizeste a Roger Garaudy. Ou o deleite ante “os pequenos modos da substância infinita”, como Nise da Silveira recorda Spinoza em outra entrevista tua. A crítica que identifique o diverso e se proponha a iluminar suas eventuais zonas obscuras. Não o carteado de mágoas, invejas, preconceitos e negociatas. O que vivemos no Brasil é que as distorções de crítica assumem uma conotação de transfiguração da história. Não se trata de uma leviandade esporádica que a história naturalmente tritura. É todo um sistema de reorientação do próprio eixo da história. A maneira como se supervaloriza a débil representatividade da Semana de Arte Moderna ou de caprichos excludentes como a Tropicália e o Concretismo, ao lado desta rejeição sistemática à incontestável expressão da obra de Murilo Mendes e Jorge de Lima da parte de um crítico-maior como Wilson Martins etc., tudo isto se ramifica por repetição e ausência de contestação. E se repete de outras maneiras, como a configuração de um cinema brasileiro, uma imposição cartorial que sofremos hoje. Há um outro Brasil, sendo fundado em uma mentira, da forma mais cínica que se possa imaginar.

ML | As coisas nesse campo são ásperas. Parece que ainda estamos numa santa cruzada da indiferença e do alto obscurantismo no campo de uma crítica difusa e perdida. A crítica de poesia, meu Deus! E as exclusões, a pressa em catalogar as borboletas, assassinando-as, impedindo-lhes o voo – penso nas borboletas magníficas do México e da Bolívia. Uma espécie de ontologia de juízos apriorísticos, que impedem qualquer abrangência, qualquer tipo de hipótese. Seria preciso escrever uma história da ausência brasileira. Do cânone rígido. Da exclusão total, absoluta e inexplicada. Onde Joaquim Cardozo? Onde Murilo e Jorge de Lima? Pronunciados com desculpas. Apontados como imprecisos. Ou louvados sem que se saiba ao certo como e por quê. Mas isso não pertence apenas ao campo da literatura. Mas ao da cultura – quero dizer de modo mais abrangente, sem produzir clivagem. Veja o caso da música brasileira. Henrique de Curitiba. Mignone. Radamés. Guerra Peixe… São praticamente matéria inatingível. Por isso eu sugiro o livro A Literatura Brasileira, Ausente de si Mesma.

FM | Em Bizâncio, há um capítulo dedicado a traduções, um encontro com poemas, mais do que com poetas, que presumivelmente expressam uma afinidade estética. De alguma maneira recordo o mexicano José Emilio Pacheco, ao inserir em Tarde o temprano (1980) um capítulo igualmente dedicado a traduções de poemas. Pensemos na ideia de aproximações, defendida por ele, ou de visitações, como sugeres, é fato que a poesia somente se realiza no diálogo, neste convívio inesgotável com a tradição. Mesmo quando se declara uma imitação ou um pastiche, o que se revela é o diálogo, onde importa essencialmente identificar as duas vozes. De outra maneira, instaura-se uma submissão, com consequente diluição, empobrecimento da linguagem poética etc.

ML | Floriano, você sabe que eu precisei escrever – isso é verdade, não é blague – uma carta para mim mesmo e para várias editoras avisando de minha morte como tradutor. Reproduzi uma parte dessa atitude em A memória de Ulisses. Sobretudo porque a tradução para mim foi sempre um imenso sacrifício. Um trabalho desesperador. Um massacre. Um convite para insônias. Clarões. Exílios terríveis. Abandonos. E veja, as traduções de Eco me maltrataram pelo volume e pelas exigências. Mas o meu duro exercício foi com os russos, o Doutor Jivago, e com o poeta Rûmî, com João da Cruz, Hölderlin e Trakl. Passei anos da minha vida aprendendo línguas – por causa daquela telemaquia referida acima. E a tradução era uma forma de compensar esse esforço extra-muros. Ficar dentro da casa de minha língua. Minha relação com a tradução foi sofrida e por isso decidi que não iria traduzir mais. E assim me mantenho até hoje, às vezes escrevendo um e outro poema em outra língua, ditado pela necessidade, como em Meridiano, o poema que escrevi para a escritora búlgara Svoboda Bachvarova, que tem pelo russo um grande amor, língua de sua religião e de sua pátria literária. Mas, enfim… acho que a tradução é um desafio árduo e magnífico. E quando escolho um autor, eu trabalho com afinidades, com admirações, com zonas de fronteira e de leituras coincidentes, de modo que não haja arbitrariedades perpetradas de mim contra mim, esquizofrenias e pluralidades que não me pertençam – ah!, o fogo da unidade, outra vez. A escolha é fatal. Porque então eu me torno invisível. Tenho certeza de que a invisibildade do tradutor é a melhor parte do que faz. A linguagem, esta sim, é que merece visibilidade. Não admiti complacências narcisistas demasiadas, sequestradoras de textos outros, desrespeitando-os, inclusive, para mostrar a capacidade de melhorar Dante, Goethe, Shakespeare. Em Teatro alquímico, eu defendia uma tênue relação que aproximava o alquimista do tradutor. As escolhas que me escolhem. A economia e as relações bilaterais do texto-origem ao texto-fim. Retortas. Pelicanos. Atanores – de um lado –; dicionários, leituras e palimpsestos – de outro. De modo que não sei determinar onde começo e onde termino, como poeta e tradutor. Exercício de tormento e paixão…

FM | Sim, eu recordo como aproximas tradução e alquimia em um ensaio do livro Teatro alquímico, busca idêntica, da palavra perfeita e da pedra filosofal. Igualmente atormentada e apaixonada, como dizes. Convergentes, em nome da criação. Porém exatamente em nome da criação matas o tradutor que há em ti. Há acaso uma contradição nisto? Ou por outro lado, quem agora recomeças?

ML | Concordo absolutamente com a contradição desavergonhada e quase exuberante, atrás de cuja espessura eu me escondo, assassino de uma dialética sutil. Você percebeu com absoluta precisão. E por causa disso, tento explicar o sofisma, em que eu me perdi. Ou seja: concordo que tradução e criação representam uma só atitude. O problema é que a legislação dos deslocamentos semânticos, as compensações, os equivalentes que não existem e a vontade de chegar ao fim de uma geografia, tudo isso mostrava-se com uma veemência terrível. Eu queria outras dificuldades, liberdades que não me calassem a música interior – em A memória de Ulisses eu trato dos meus pianos, o de verdade e o interno. E porque tive alegrias e galardões bem marcados nesse campo. E só me viam. Só me queriam como tradutor. Nada era mais importante. Por isso decidi acabar com ele. E com a parte dele que trago em mim. Eu não queria que ele, o tradutor, me eclipsasse e me vedasse as partes desejadas que eu trazia dentro. O meu piano. Cheio de dissonâncias. E de alguma harmonia.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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