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segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Flanando por Claudio Willer – essa vila, essa cidade

 


Começo por demarcar bem o meu território de errâncias dentro da obra de Claudio Willer, o beat-surrealista mais simpático, amável, cavalheiro e gentleman de que já tive notícia.

Escolhi por mero acaso – e “acaso” é nele uma palavra temerariamente marcada – incursionar pelo seu livro de poemas Jardins da Provocação e por um outro, em prosa poética – é claro! – enigmaticamente nomeado Volta.

Deste, não sabemos se o título registra um pedido de retorno a alguém ou mesmo um verbo conjugado no imperativo – “volta!”; ou se se institui como um substantivo – “a volta”; ou se indica tão só um semáforo de orientação circular, como uma placa de rua colocada numa interminável rótula, balão ou rotunda sem saída. Ou, mesmo, se esse título quer indicar um oroboro – a serpente que morde a própria cauda e que, no esoterismo, contém o universo.

Acho que teremos oportunidade de especular a respeito dessas acepções no transcorrer desta exposição.

O Jardins da Provocação é, por outro lado, um título claro, que escapole de Breton (cujos versos constam da epígrafe), e que reúne poemas compostos entre 1979 e 1980. Foi publicado pela Massao Ohno no ano seguinte, em 1981.

Quanto ao volume Volta, este só sai em 1996, portanto 14 anos depois, pela Iluminuras, e creio que possamos ir perscrutando melhor o sentido desse título enigmático, a partir da capa que traz nesta edição.

 Esta capa pende, graficamente, para um insistente movimento rotativo, o qual remete, aliás, a uma anterior capa de outro livro do Willer, ou seja, para a capa de Dias Circulares – que, como se verá, há se revelar mágica ao longo da narrativa de que é tecido o livro Volta.

Dias Circulares, como o Jardins da Provocação, foi editado pelo Massao Ohno, então em 1976. Portanto, trata-se de uma produção poética imediatamente anterior a Jardins da Provocação.

Se detalho assim as indicações gráficas e bibliográficas destes três volumes de Willer é porque, creio, eles vão desenhar juntos um triângulo, formulando-se em três ângulos que vão se conjugar e se tocar, para além de manifestarem e expandirem o selo dessa editora muito considerável para a poesia brasileira de tal momento histórico-cultural – a era dos ditos Novíssimos, onde Willer se insere – editora que é a de Massao Ohno.

O Samurai da Sombra, como é conhecido o maior editor independente do Brasil, foi responsável pela publicação dessa também chamada geração de 60, onde se incluem, além do Willer, o Sérgio Lima, o Antônio Fernando de Franceschi, o Décio Bar, o Roberto Piva, o Luiz Fernando Pupo, para citar apenas alguns.

Massao também foi editor daquela geração que se seguiria a esta, e na qual se encontra um grupo de mulheres muito significativas, tais como a Hilda Hilst, a Renata Pallottine, a Lupe Cotrim Garaude, a Olga Savary, a Marly de Oliveira. Trata-se de uma editora na qual artistas plásticos do naipe de Manabu Mabe e de Tomie Ohtake frequentaram a capa de muitos dos cerca dos 700 livros ali publicados.

O gosto de Massao Ohno pela edição de poesia brasileira foi herdado por outra editora paulistana, a Iluminuras, então responsável, em 1996, pela publicação desse volume de que também vou tratar, o Volta, do Willer.

Em Jardins da Provocação, [1] Willer, iluminado e magnetizado pelo surrealismo, vai lançando versos memoráveis que recolho, meio a esmo, para o nosso encanto inicial.

Por exemplo: ao tocar no “mar”, um dos seus reservatórios poéticos preferidos, fundura em que se depositam o “primitivo sonho” e “os refúgios mornos”, ele escreve: mar, “borbulhante conspiração de gelatinas”; mar, “guardião dos nomes dos suicidas” cujas “ondas fazem valer seu interminável instante de rugidos”. Mar, em que a praia é “o lábio de vagina úmido dos continentes”; mar, “dorso de gato angorá roçando a terra firme”.

E, seguindo adiante nos restantes poemas de Jardins da Provocação, eis que o leitor fica sabendo que “a verdade” pode ser transmitida “por anos de revólver”; que “por vezes é necessário penetrar no inferno e ver a mão do último esquartejador envolta nas cortinas”; que há uma “inquietude nas tesouras”; que é preciso usar de “movimentos vagarosos para descobrir o que a linguagem desconhece”; que é necessário “celebrar o reencontro do corpo com a planta dos pés”; que é preciso notar que o “albatroz arrepia a sua trajetória”; que o oceano tem a cor dos “camaleões enlouquecidos” e que há uma “umidade que só o amor pode criar”.

E, por fim, que somos “saltimbancos para uma nova ordem das coisas” pois que há “coisas” que “não devem ser ditas, mas apenas esculpidas em jacarandá”.

Deslocados, assim, num átimo, da escrita, para a profunda inscrição na madeira do jacarandá, repentinamente nós, leitores, somos assaltados por um outro tipo de proferição dentro do mesmo encadeamento poemático. E, isso. porque eclode, no meio das peças de Jardins da Provocação, quase mesmo no seu centro, um texto muito alongado, não mais em versos como os restantes, mas em prosa e entre parênteses.

Muito diferente das outras peças de Jardins, esse texto é registrado em caracteres minúsculos, assolando por inteiro – sem espaço entre as linhas – 26 das páginas do luxuoso volume de 27x18 cms que compõe o Jardins da Provocação.

Esse específico escrito, que escapa, portanto, à conformação espacial e à própria natureza dos poemas que o rodeiam, se identifica então como sendo o de número “6”, do grupo intitulado “Viagens”. E ele traz, pois, o seguinte título: “Viagens 6. Quase um manifesto”.

Ora, essa jornada poética que, até então, o Jardins da Provocação avançava e planteava, e que parecia já por si errática – nos faz aportar – por meio desse grande parêntese intermediário – num tempo ocorrido 20 anos antes da publicação desse volume ao qual tal escrito pertence. E vamos estacionar, no parêntese, em 1976, no Teatro Municipal de São Paulo, numa tal Feira Paulista de Poesia e Arte, onde está sendo lançado um dos referidos volumes de Willer – o Dias Circulares.

De maneira que, já agora, alertados por esse parêntese do “Viagens 6”, que fabrica, evidentemente, um olhar temporal em retrospectiva, se formos, também a posteriori, prestar atenção no começo da nossa leitura de Jardins, observaremos que já havia surgido, no primeiro poema dessa mesma obra, um mesmo procedimento entre parênteses. Ou seja, tal poema inicial já anunciava o fenômeno de parêntese que ocorreria depois, no centro do próprio Jardins.

Assim, esse poema inaugural, que tem por título “Faz tempo que eu queria dizer isso” – se encerrava desembocando as suas águas marítimas (uma sofreguidão de novelos agitados) num movimento que termina e recomeça – portanto, num movimento muito semelhante ao eterno fluir do oceano.

O alongado poema se dizia, pois, uma torrente que arrastava consigo um feixe de biografias entrelaçadas e que se executava em dois poemas entrelaçados, mordendo-se como a serpente mítica.

Entretanto, agora em “Viagens 6”, não se trata apenas de um poema que se enrosca no outro – como ocorre em “Faz tempo que eu queria dizer isso” – mas de um desembocar de um livro no outro, ou seja, da entrada dos Dias Circulares em Jardins da Provocação.


De modo que os dois citados livros, imbricando-se um no outro, começam por desenhar o primeiro dos ângulos do triângulo que referi como o desenho primário dessa trinca de volumes, vistos que – sublinho! – o Jardins da Provocação se toca, então, com os Dias Circulares, abrindo repentinamente um canal insuspeitado entre ambos os livros.

Retomo a questão, que é um bocado complexa, para que fique claro o que Willer está arquitetando.

Assim como em “Viagens 6. Quase um manifesto” há uma espécie de enorme suspensão no ritmo versificatório de Jardins da Provocação, acolhendo, através do parêntese e da diversa natureza da prosa e dos caracteres gráficos diversificados, um buraco na massa corpórea composta pelas outras tantas peças – também no primeiro dos poemas do mesmo livro ocorre idêntico procedimento.

Assim, em “Faz tempo…”, Willer, ocupando-se do mar, recolhia, do espraiamento aquático, a própria “simetria deste poema”. E deveras. Esta primeira peça também mimetiza, no que concerne ao desenho espacial dos seus próprios versos, uma irregularidade de ondas oceânicas que se revelam imparáveis.

Todavia, rompe, dentro desse poema inicial o tal parêntese que nomeei, e o desenho da versificação se altera, disturbando o ritmo anterior, e implantando outra ordem e outra tonalidade até que aquele se feche. Depois que tal parêntese se encerra, retorna, ao poema, o escoar das ondas versificatórias anteriores, e Willer finda esse moroso poema “Faz tempo que eu queria dizer isto” – que fica, finalmente, pronunciado.

E é então que esta peça pode ser vista, já agora, em retrospecto, como sendo o microcosmos do próprio livro em que se localiza, já o que ela traça, por antecipação, a configuração espacial do dito Jardins. E porque ela reúna um poema a outro, ela também estabelece um segundo ângulo do triângulo que nomeei antes.

De modo que eis que flagramos, em Jardins da Provocação, uma inaugural formulação do um dentro do outro, imagem surrealista do l’un dans l’autre, tomando a obra a feição da boneca russa – da matrioshika. Assim, é tal aparte inicial que antecipa e preconiza o segundo enorme aparte de 26 cerradas páginas que se abre no mar das palavras dos poemas que o circulam, e que se intitula “Viagens 6. Quase um manifesto”.

Pois bem. Detendo-me agora sobre esse texto central do livro, constato que tal parêntese moroso está, ali, para legitimar aquilo que o livro (em que se encontra) pratica e propaga. Porque, nele, Willer vai discutir a sua poética, já então a partir de outras plataformas de conhecimento, como a semiótica, a linguística, a história, a teoria literária. Acho que, por isso mesmo, este “Quase um manifesto” pode ser dito uma espécie de remissão em outro patamar, ou mesmo de um glossário semântico, em defesa da práxis poética que Willer enraíza no Jardins.

Mas esse pretenso ensaio, quase um manifesto, não defende apenas o comportamento poético desse volume, porque, como veremos, o que se diz ali vai ecoar, tanto na continuidade do Dias Circulares, quanto na escrita narrativo-poética do outro volume: o Volta.

E daí que aquele esboço do triângulo semântico que supus, comece a se armar definitivamente a partir deste terceiro ângulo.

O parêntese central do livro dedica-se, pois (num ato de hibridismo, que é um traço recorrente em Willer), a buscar dilucidar a sua própria história e a tradição cultural da sua poesia, o que demonstra que Willer produz, metalinguisticamente, poemas à medida em que os pensa.

A verdade é que tal tendência crítico-poética se manifestará, nitidamente mais tarde, em 2008, aquando da defesa da sua tese de doutoramento na Usp – um magistral estudo sobre as relações entre literatura e gnose.

Fiz parte da banca examinadora desse extraordinário trabalho que foi publicado, em 2010, pela Civilização Brasileira do Rio de Janeiro, com o título Um Obscuro Encanto. Gnose, Gnosticismo e Poesia Moderna.

Mas retornemos a essa longa digressão no centro de Jardins da Provocação – a essa sua fonte de água pura.

Seu porto de partida fica situado, como referi, nessa decisiva Feira de Poesia e Arte, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1976 – 20 anos, portanto, antes de Jardins da Provocação. E esse texto contido no parêntese, tece, de início, uma espécie de homenagem a todos os que dela participaram, visto que além de Willer, temos o Massao Ohno, que lançava ali, nessa Feira, as novas publicações dessa dita geração. Tudo isso ocorrendo num teatro de peso cedido pelo Sábato Magaldi, na altura Secretário da Cultura, espetáculo esse que contava com a direção de Maurice Vaneau e com a coordenação de artes plásticas de Augusto Peixoto.

Este derradeiro participante do evento, num frenesi de profanação da vida pública, tivera, como projeto de abertura para o espetáculo, envelopar todo o prédio do Teatro Municipal com arame farpado, de maneira a providenciar que, para a inauguração da Feira, fosse usado um alicate especial para o corte de metais, em lugar de uma singela tesoura a romper uma simples fita…

O furor dessacralizante de Augusto ficava, pois, também ostensivo nas obras da sua lavra ali expostas: um painel gigante do Jimi Hendrix no alto do saguão do Teatro; umas imensas luvas infladas, que pipocavam luzes indicando as entradas; uns panôs que, pendurados do terceiro andar, esvoaçavam até a altura do térreo.

Pois bem. Esse sujeito, considera Willer, que viveu sempre no avesso da sociedade burguesa, com enorme vocação pela marginalidade, teria merecido, aquando da sua morte, mais do que uma diminuta notificação nos faits divers paulistanos. Infelizmente, essa alma surrealista, só pudera contar, como necrológio, com a seguinte nota:

 

pintor homossexual esfaqueado por dois rapazes.

 

E Willer remete em rodapé a indicação da data em que isso havia ocorrido: “3 de setembro de 1980”.

E é justo nesse momento em que eu consultava o rodapé desse grande parêntese, que o escrito de Willer começa a se irradiar para além, e a contaminar o meu próprio real.

Por alguma razão, a data me chama a atenção e vou me certificar da suspeita que me toma. E constato, deveras, que o dia em que releio esse “Quase um manifesto” de Cláudio Willer é exatamente o dia 3 de setembro de 2024 próximo passado, precisamente há 44 anos do dia do assassinato de Augusto Peixoto!

Estremeço com a coincidência que, aliás, vai se adensando ainda mais, porque, de repente, o aparecimento de Augusto neste “Quase um manifesto” começa a iluminar, de súbito e a posteriori, o primeiro poema de Jardins.

Ora, só agora, aquele primeiro parêntese do poema inicial começa a ganhar um sentido que o transcende ainda mais. E a explicação vem dada, então, nesse “Quase um manifesto”, quando ali leio o seguinte:

 

Há um fato muito estranho a assinalar a propósito de Augusto Peixoto, qual seja, o modo como ele inadvertidamente se transformou em personagem de um dos textos que integram o presente livro de poemas “Faz tempo que eu queria dizer isto”: ele é [ali] o “velho e inesperado amigo” que eu encontro “na cidade de prédios inúteis que contemplam o mar certos da sua fatal corrosão”.

 


Ora – e então me dou conta! – o tal pequeno parêntese que irrompe, interrompendo o fluxo das águas oceânicas daquele poema inaugural de Jardins da Provocação, trata precisamente do inesperado aparecimento desse “velho amigo” de Willer chamado Augusto Peixoto, na praia onde aquele estava hospedado. Willer escrevia o poema no apartamento quando desceu para a praia e encontrou casualmente o Augusto e botaram a conversa em dia.

Papearam, pois, sobre os velhos amigos, de uns “que se mataram”, de outros “que foram mortos”, de outros “que se afugentaram de si mesmos e ingressaram na definitiva condição de fantasmas, os navegantes para todo o sempre”.

E o próprio Willer, relendo-se agora em “Faz tempo que eu queria disse isto”, registra em “Quase um manifesto”, o quanto, naquele texto antigo, o próprio Augusto é descrito na sua condição – sublinho! – de aparição fantasmática, que coincide, na escritura do poema, com o movimento cósmico do cair do sol no mar, e que traz consigo a dissolução, a irrelevância da contradição entre vida e morte diante do nada, do vazio absoluto.

Bem. É natural que Willer, diante de tal evidência, sinta necessidade, em “Quase um manifesto”, de justificar ao leitor que não pretende, com isso, “posar de profeta ou taumaturgo”. Se, de um lado, o tema da morte está sempre presente em toda a sua obra, o mesmo ocorre com a celebração do amor, da vida e do prazer.

Ao mesmo tempo, sustenta ele que seus poemas não são “construídos” e resultantes de um esforço intelectual sistemático, mas que eles acontecem. Que “a sequência das imagens vai se organizando espontaneamente”. E que foi em exato o que se passou daquela vez na praia, sendo que o registrado ali corresponde rigorosamente ao que aconteceu:

 

desci para a rua, e dei de cara com o Augusto; conversamos uns quarenta minutos, ele foi embora e continuei o texto, abrindo um parêntese no qual relatava nossa conversa.

 

Assim, esse parêntese transborda, como já sublinhei, desse poema para o “Viagens 6. Quase manifesto”, que, por sua vez, vai desaguar… no livro de 1996, no Volta. [2]

Ora, é em Volta que Willer retornará por inteiro a esta cena e a povoará de mais detalhes que, uma vez tocados parcialmente em Jardins, se desenrolarão com novos pormenores, engalhando-se para mais longe, irradiando-se, alcançando mais fatos e obras, enfronhando-se definitivamente numa outra viagem de cunho autenticamente surrealista. A discussão parte do desaparecimento do autor diante do texto que redige, o que aproxima a criação literária à experiência mística e à vidência rimbaldiana.

Em Volta, as origens ardentes da sua poética serão revisitadas, desde a tradução, e o entendimento dos beats americanos, até o estudo do esoterismo. Acontece que, ali, os jogos surrealistas não serão somente referidos ou conceituados, como ocorre no “Quase um manifesto” de Jardins, mas praticados e demonstrados à exaustão, assim como a pré-história da confluência destes com o ocultismo.

Ora, é logo neste “Viagens 6”. Quase um manifesto” que, como vimos, começam a palpitar as inquietações acerca do imbricamento da fantasia com a realidade – também um dos temas providenciais do surrealismo, e que vai reaparecer no Volta. De maneira que Willer vai se deter sobre a constatação de como, nas artes, as previsões, as antecipações, as profecias, os vaticínios, os fenômenos que comparecem no campo do paranormal, ocorrem com frequência na vida e na obra de artistas.

Aliás, eu mesma acabara de experimentar isso, mercê da coincidência das datas do assassinato de Augusto e da leitura que eu refazia dessa mesma notícia – eu mesma, como leitora, vivendo na minha carne as especulações que o texto nos demandava…

O caso do pintor surrealista Victor Brauner é famoso nesse aspecto, apontará Willer: ele tinha um sestro, ou uma particularidade artística, digamos assim, de representar os seus personagens com um único olho ou com um, dos dois olhos, vazado. Ora, tal recorrência acabou por se revelar um verdadeiro vaticínio concernente a si mesmo, pois que tendo sido acidentalmente atingido por um projétil, perdeu um de seus olhos. Assim, Brauner – pateticamente! – acabou por se tornar o seu próprio personagem.

E quem dirá que nesses eventos não há uma porção de algo oculto?!

Segundo Willer – e de acordo com o surrealismo e as ciências ocultas – há “uma vida secreta que pulsa ao redor de nós” e da qual nos apropriamos inopinadamente por meio de pequenos flashes, faíscas, brilhos, indícios, traços, fragmentos que, enfim, mais tarde, acabam por se montar e se mostrar diretamente a nós o que são e representam.

As ocorrências desse tipo de revelação, em Breton, são claramente explicitadas em Nadja, em L’Amour Fou, em Le Pas Perdu, em Le Champs Magnétiques, que ele escreveu com Soupault. O que leva a crer que exista deveras uma aproximação – e não uma distância – entre o sagrado e o profano, entre o transcendente e o imanente, e que tais hipotéticas barreiras resultam extintas graças ao Desejo ao Princípio do Prazer.

O desaparecimento da pessoalidade do poeta, a soberania do texto sobre o autor, que faz com que a linguagem caminhe sozinha, num livre fluir indomesticado – permitem descobrir nexos insuspeitos entre as coisas, como ocorre nestes que venho de nomear. Enfim, esse estado da linguagem desenfreada é conquistado por meio dos jogos mágicos surrealistas, da escrita automática, do cadavre exquis, do l’un dans l’autre etc.

Porque o acaso objetivo talvez explique o comparecimento de Augusto Peixoto, com aquelas tintas funéreas, no interior do poema de Willer, o que ultrapassa os limites do tempo, da lógica, da causalidade, transportando um acontecimento de uma para outra esfera. E é sobretudo, nesse tipo de acaso, que o campo do estético se desloca para o campo da gnose, da revelação, que concerne tanto ao poeta quanto aos alquimistas, aos magos, aos médiuns, aos cabalistas, aos astrólogos, aos quiromantes etc.

Tendo experimentado não só desta feita, mas por muitas vezes na minha vida o tal acaso objetivo, eu me atreveria a defini-lo como sendo o modo como uma casualidade ou uma impressão fortuita transmutam-se em inesperadas causalidades. Dessa maneira, acabo por aproximá-lo (mas não por identificá-lo) àquilo que veio a ser conhecido no mundo oriental – oriundo do antigo Ceilão – com a denominação de serendipidade ou, popularmente, como o sétimo sentido.

Você sai em busca de algo específico e acaba por encontrar outra coisa que, majoritariamente, é muito mais importante e necessária para você (e que, no entanto, você o ignorava), do que aquilo que você procurava. As pesquisas científicas, aliás, por muitas vezes, encontram seu êxito graças a tal fenômeno.

Isto porque, sabemos, pelo menos no mundo mágico, tudo é signo de outra coisa: uma palavra remete a outra e outra através da concepção analógica do universo. [3]

Trago-lhes, a propósito dessa lei da analogia, um pequeno poema apenas para demonstrar a poeticidade capaz de exalar do emprego de outro de um dos jogos surrealistas, o l’un dans l’autre. Veja-se como, neste, a contiguidade entre objetos diversos descobre propriedades em comum – e até então inexistentes – entre eles.

No meu caso, vou tomar uma cadeira e um galo, dois signos que nada possuem em comum. Eis o pequeno exemplo rasteiro que lhes passo apenas para que se possa ter uma ideia do que estou tratando:

 

Uma cadeira é algo que impede o voo.

Quanto mais não seja, tem pernas.

 

Um galo fazendo dela seu assento

é um animal aprisionado ao assunto.

 

De modo que (a partir daí)

a cadeira não só abre suas asas

como anuncia a manhã!

 


Pois bem. Em Volta, obra de 1996 concebida sob tais signos do surrealismo, o nosso Poeta vai se valer de referências luminosas e orientações intelectuais muito relevantes: de Octávio Paz, Herberto Helder, André Breton, Borges, Lautréamont, Cortázar, Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Aragon, Desnos, Soupault, William Blake, Yeats, Eliot, Lorca, Höelderlin, Artaud; e dos seus amigos pessoais e dos poetas colegas de geração – Oswaldo Pepe, Augusto Peixoto, Roberto Piva etc.

Então, detenhamo-nos sobre essa gente mui especial, pois que são esses os partícipes da referida Feira Paulista de Poesia e Arte, 20 anos antes, em novembro de 1976, evento que, segundo o noticiário de época, chegou a enrubescer as cariátides do Teatro Municipal de São Paulo…

Para além dos já referidos surrealistas ou “novíssimos”, como eram chamados, também tiveram presença no acontecimento a Heloísa Buarque de Holanda e os poetas marginais do Rio; o grupo de balé Stagium; os Bendengó; o clarinetista Albertito Martino; a Traditional Jazz Band; os artistas plásticos Maninha e Regina Vater; o poeta Ricardo G. Ramos, para além do garotão carioca que invade a cena e vai tirando a roupa no palco, além de outras bizarrices mais.

Augusto Peixoto conseguira trazer para a Feira nomes consagrados tais como Alfredo Volpi, Maria Bonomi, Gruber, Grassman e até mesmo esse artista Ivald Granato, espécie de discípulo da crueldade de Artaud, cuja arte consistia em nausear o público. Assim, no palco, diante de todos, ele comia um prato de macarronada e depois a vomitava e voltava à função de comê-la para vomitá-la de novo até que os expectadores, completamente enojados, se retirassem da plateia.

Houve, durante essa Feira do Teatro Municipal, além da presença das seis recepcionistas (por inspiração do Augusto) vestidas de ninfas gregas, até mesmo, em certo momento, um pequeno princípio de orgia.

Tais performances levaram Willer a aproximar este espetáculo da Feira ao do Le Vieux Colombier, aquele que Artaud, o criador do Teatro do Absurdo, promovera antes, em 1947, em Paris.

Assim, a Feira funcionou, lotada, como um gesto de recusa, de negação diante do seu momento histórico – a ditadura militar – tendo podido esboçar, de fato, um confronto entre a liberdade individual e a opressão da altura, evento ao qual nem mesmo o Dops faltou.

A Feira transformou-se, assim, como esclarece Willer, num organismo vivo que respira, num labirinto, semelhante ao do Aleph de Borges – lugar onde se encontram todos os pontos do espaço e todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos, em todos os instantes, contendo a simultaneidade e, cito, a sua cota reduzida de revelação, acaso objetivo, maravilhoso, sincronicidade, fantástico, magia.

Este evento marginal, que obteve tanto sucesso e marcou uma geração, continha a marca registrada do Augusto – pelo menos no refletir o movimento particular que ele imprimia a sua vida, como se sempre estivesse de fora, na “órbita periférica”.

Os amigos se divertiam com ele, apreciando a caricata coleção de trancas e fechaduras, que eram os seus troféus próprios – lembranças dos rapazes de baixo-astral que frequentavam o seu apartamento, cuja rotatividade o obrigava a mudar, com uma certa constância, tais peças da porta da casa.

Augusto tivera muitas atividades: desde esculturar cabeças de alfinetes até transformar-se em empresário, em antiquário, em comerciante de artes e antiguidades, em pintor de enormes telões, que pareciam lençóis soltos no ar, tal como aqueles estendidos desde o alto do saguão do Municipal. Ultimamente, havia, como informa Willer, performado pinturas ao ar livre, derramando tintas de várias cores de cima do viaduto que passava sobre a 23 de Maio, na altura do Ibirapuera…

Eternamente vestido com uma bata oriental, Augusto Peixoto podia passar por nativo de alguma região da Índia, tendo se convertido, numa época, ao hinduísmo. Constava que ele batesse papo – telepaticamente – com o Mestre Swami Vivekananda, morto há décadas…

Essa é a personagem, relembro, que invadira o poema inicial de Willer em Jardins da Provocação, e que reapareceria em “Viagens 6. Quase um manifesto” – e a quem ele credita uma estima e uma admiração incomensuráveis agora no seu Volta.

Sobre ele, vou adiantar um tanto a sua trajetória, pois que Augusto ressurge – et pour cause! – quando o nosso Poeta está tratando do futuro surrealisticamente anunciado pela poesia. É quando Willer aborda o L’Amour Fou, de Breton, comentando a tal lei de produção do misterioso intercâmbio entre a matéria e o espírito que refere o sujeito que, movido pela paixão e pelo desejo altera, inverte ou subverte a causalidade, a temporalidade, a aparente ordem natural” (68).

E um dos exemplos se encontra nesse romance de Breton, quando este conhece a sua amada Jacqueline Lamba (com quem na verdade ele irá se casar depois). Nessa noite, eles saem flanando a esmo por Paris, percorrendo muitos lugares emblemáticos, entretidos com aquilo que surpreendem nessa cidade oculta. E qual não é o espanto de Breton quando ele se dará conta, mais tarde, de que já havia descrito esse mesmo percurso num poema que produzira em escrita automática, em 1923, o “Tournesol”, e que fora publicado em Clair de Terre! Como elucida Willer,

 

As dúvidas de Breton sobre o sentido deste poema só foram respondidas onze anos depois de tê-lo escrito, ao perceber que falava [nele] de seu encontro com Jacqueline. (69)

 

O fato é que dados misteriosos existentes nessa escrita automática, e eu pinço apenas dois, ficaram plenamente explicitados nesse passeio ocorrido no romance L’Amour Fou. O poema “Tournesol”, redigido, portanto, 11 anos antes, referia enigmaticamente pombos-correios e uma mulher [que] mais parecia nadar e que no amor insinua [va algo] dessa sua matéria. (70)

Bem, Breton fica então sabendo, depois, que o primo de Jacqueline, que ele conhecia de longa data – e Breton ignorava o parentesco dentre ambos, sendo que naquela altura ele nem sequer a havia conhecido! – teria lhe escrito, na época do “Tournesol”, uma carta, cujo envelope continha o carimbo de um centro columbófilo, no qual aquele rapaz prestava serviço militar…

Sobre a tal mulher do mesmo poema, devo esclarecer que o ofício de Jacqueline era nadar dentro de um aquário de vidro num cabaré – lugar onde Breton a viu pela primeira vez – de maneira que a água a revelava, agora, para ele, como aquela criatura de um outro elemento, tal como previra no seu poema automático redigido onze anos antes.

Através de tais evidências, Willer considera então que

 

os fenômenos provocados pelos signos em liberdade – próprios dos chamados jogos surrealistas são o resultado de suas propriedades magnéticas. (88)

 

E que Breton discorre e comprova, muito suficientemente, os tais champs magnétiques existentes entre as palavras. Portanto, como não conceber os signos enquanto objetos dotados de energia, de cargas e campos magnéticos?


Bem, é no contexto dessa discussão que o nosso Poeta retoma Augusto Peixoto. Porque algo de muito estranho se passara aquando da sua morte anunciada no seu poema contido naquele parêntese do “Faz tempo que eu queria dizer isso”. A cena real é a seguinte:

– Os rapazes que vão esfaqueá-lo e com quem estava no seu apartamento da Jesuíno Pascoal naquela precisa noite fatídica, parecem não ter agido com agressividade quando Augusto os acompanhara até à portaria. Ninguém diria que aquele desatinado ato poderia suceder ali.

Segundo testemunhas, não houvera razão forte para que Augusto tivesse aquela reação tão inusitada, gritando e gritando contra eles, chamando-os de nomes, como se os provocasse. De maneira que, é de se convir, o crime teria ocorrido gratuitamente, sem intenção, sem quaisquer explicações mais plausíveis, como se a própria vítima tivesse suscitado o seu assassinato. Augusto fora morto apenas porque se irritara.

Roberto Piva também ligara a Willer para pô-lo a par dessa enorme catástrofe, comentando já tais suspeitas baseadas nos testemunhos e no conhecimento que o grupo tinha da personalidade de Augusto, completamente avesso a tais discussões desarrazoadas. Já se vê que os amigos artistas, suspensos e estupefatos com uma surpresa assim tão tétrica, estiveram à volta desse assunto, trocando informações e tentando dilucidar o enigma.

E eis que um deles, o Borges, lhes sai com algo ainda mais espantoso!

Que, há cerca de 30 anos, ele e Augusto haviam visitado um médium na zona norte de Sampa. E que este teria segredado a Augusto que ele encontraria o seu fim na lâmina de uma faca

Já agora passo a palavra para Willer, neste que é um dos mais excelsos trechos da sua narrativa de Volta:

 

Essa lâmina só gume e ponta em sua direção, ele a recebeu do vidente. Ganhou-a como se fosse um presente. Desde então, até a hora de ela deixar sua bainha e mostrar sua extensão metálica, a faca o acompanhou. Por três décadas, de um modo às vezes mais nítido, outras mais vago, seguiu seus passos, instalou-se na intimidade dos seus dias e noites. A proximidade da faca, do punhal, quem sabe navalha ou estilete, acabou por tornar-se algo seu, tão de sua propriedade quanto seus objetos de arte, suas telas, seus panos de arabescos, sua coleção de livros de ioga, as batas orientalizantes. Seus lampejos, indicadores do tempo em uma escala distinta daquela dos relógios, investiram Augusto de um poder, a capacidade de ver sua morte, para dela esquivar-se ou escolher a hora de encontrá-la. Desde então, sentiu-se como se tivesse um pé no outro lado. (…)

Não acho que os acontecimentos do saguão junto ao pátio interno do prédio de Santa Cecília tenham sido apenas um acidente, momentâneo desvario ou previsível fatalidade. Foram o resultado de uma decisão, associada a uma lucidez exacerbada que o levou a encarar, de peito aberto, a faca voltada em sua direção. Ele quis o enfrentamento. Deliberadamente o provocou. (…)

Vejo-o, nesse momento, pela cega decisão com que rapidamente construiu sua morte, como artista que tenta realizar uma obra impossível. Como se fosse um músico, agitado regente de um coral de gritos e imprecações gesticulando, de braços abertos. Pintor, a trabalhar o seu último quadro, painel de relâmpagos na paisagem crepuscular, luzes fugidias clareando o abismo em que se atirava. Escritor, autor de um poema sem palavras, feito de sons dilacerantes traduzindo emoções extremas. Ator a encenar com extremo realismo um sangrento ritual iniciático. Xamã, bruxo sacerdotal que se prepara para a caminhada entre os dois mundos, o dos viventes e o dos mortos, e refaz o ritual de perda e recriação do próprio corpo, o percurso pelo tronco da árvore invertida, copa fincada na terra, raízes viradas para o alto, suas ramificações escondendo uma única imagem, a do vazio, do seu pleno e absoluto Nada. (82-83)

 

Vi-me obrigada a restringir esta citação de Volta, mas creio que essa brilhante passagem delira poética e magnificamente sobre a questão básica ali situada: o fato de, no seu poema “Faz tempo que eu queria dizer isso”, Willer ter anunciadosem se dar conta! a morte futura do seu amigo. Fato que quer comprovar apenas esse “acaso subjetivo” que emerge desse campo magnético libertário, onde as palavras estão soltas e à vontade para decidirem o que bem quiserem.

E uma das maneiras de deixá-las à deriva e mercê das suas próprias energias, é flanar baudelaireanamente pela cidade. No caso, não por Paris, mas pela São Paulo de então.

Nesses percursos a esmo, Willer irá descobrindo pouco a pouco a cidade submersa que palpita por baixo da que conhecemos, e topará com episódios os mais espantosos, tendo como bússola, primeiro o Nadja e em seguida L’Amour Fou, como indiquei. Diria que ele descobre a São Paulo oculta tendo como farol tais obras de Breton que, aliás, aos poucos, se reunirão a outras mais.

São as camadas mais profundas do sonho que invadem certas ruas e vielas de certas cidades, conferindo-lhes a impressão de que se encontram fora do tempo. No entanto, são os textos lidos por nós que tornam auráticos tais lugares, tais passos perdidos, que redundam, afinal, em palavras encontradas. E os exemplos abundam: a rua Vivienne de Lautréamont; a Lopes Chaves, o Largo do Cambuci, a Ponte das Palmeiras, de Mário de Andrade; o Marais, o Quartier Latin de Cortázar; a Paris de Desnos, de Breton, de Aragon, de Baudelaire, de Octávio Paz.

Assim, buscando a sua Sampa invisível, Willer tem no Bixiga a sua zona de aprofundamento mais propícia para tais perquirições. Interessa-lhe, pois, o mapa oculto que vai se descerrando à medida em que percorre esse antigo bairro.

De modo que, assim como, para o casal surrealista Breton e Nadja, a Place Dauphine é revelada como um território maldito, também Willer se apercebe de uma região que o afeta sobremaneira. Há, no princípio da 13 de Maio, nos dois quarteirões acima do seu início na Santo António, um trecho que ele chama de nefasto – e esse é apenas um dos locais marcados pela tal estranheza.

Ocorre que foi nessa mesma rua 13 de Maio, na altura do antigo Persona, que ele cumprimenta – sem bem entender por que com tanta efusividade – uma das duas garotas que vêm na sua direção, como se a conhecesse há tempos.

Tratava-se de Soninha (o pseudônimo da real mulher) que, deveras, ele nunca vira, mas que, em contrapartida, ela já o conhecia de outra oportunidade na Augusta, num evento em que Willer lera seus poemas. E, antes ainda, ela o havia reparado numa praia – sem que ele se desse conta disso. Willer não duvida em absoluto das informações dela, porque reconhece legitimamente a descrição que a moça faz dele e de suas vestimentas da ocasião.

Entretanto, o que mais o impressiona nessa conversa, é que ela havia lido os seus Dias Circulares!!! Tratava-se, de novo, de uma grande coincidência!

Ora, tal constatação os aproxima, a ponto de conviverem, de escreverem juntos alguns cadavres exquis, de dividirem leituras de Eluard e de Breton. E, de tal maneira se aproximam, que ambos começam a ter a sensação de que desenvolvem, na vida real, situações que liam nos livros, como se pudessem estar a viver a extensão das obras de que se ocupavam, como se estas praticassem uma confluência do texto na vida.

E daí que faça espécie para Willer que comece a nascer, para si, um sentido muito particular do universo gráfico contido na capa dos Dias Circulares – justo o livro antigo que primeiro unira a ambos.

Os traços da capa indicam, de fato, um tempo circular e poético, como a substituir a sucessão irreversível. A roda do Tao está centrada ali, com seu Yin e Yang, dentro de uma espécie de redemoinho em tons de vermelho, que sublinha a circularidade – a qual, aliás, aquele tal primeiro poema de Jardins da Provocação tematizará. De modo que tais traços parecem agora espelhar, para ele, e por antecipação, junto à pequena foto sua contida na parte de baixo dessa capa, o trajeto desses dois amantes, dele e de Soninha, enfim reunidos.

E enquanto registro isso – e preciso advertir que eu mesma estou flanando meio a esmo! – ocorre, de novo, aquela contaminação de que eu já havia sido vítima. A liga que a literatura constrói com a vida prática, não me parece nem um pouco gratuita, porque, neste passo, o meu celular toca indicando ter-me chegado uma mensagem.

Nunca dou a mínima a tais advertências sonoras enquanto estou trabalhando, mas, desta vez, interrompo a leitura. Sei que é difícil acreditar, mas a mensagem vinha de um tal Wiler – com dábliu, mas com um único ele – que representa uma empresa chamada Revista & Decoração!!!!


Reparem que aquele vento do eventual que está em Breton e que encontrara seu antigo furor em Willer, acabara de passar por mim!

Isso ocorreu no dia 16 de setembro às 16:08 horas. E eu fiquei me perguntando se, para além de todas as evidências, eu precisava de algo como uma decoração ou como uma revista – certamente ambas de cunho surrealista ou ocultista.

Sem falar que eu ouvira, ao mesmo tempo, passos no corredor. Como estivesse sozinha em casa, me assustei e me levantei da escrivaninha para espiar: não havia ninguém, a não ser os passos perdidos do Willer.

E me lembrei, então, de que o casal de Breton não se cansava de topar, em suas andanças por Paris, com tabuletas, com inscrições recorrentes, com cartazes. Havia mesmo uma insistência em surgir do nada um anúncio do “bois-charbon” que, impossível duvidar de tais energias, é a palavra que fechava a obra de Breton e Saupault, o Les Champs Magnétiques. Título que, aliás, alumia de vez tais contaminações, tais magnetizações, tais sintonias, tais sincronias – tais imantações, como gosto de chamar.

Acontece que esses fenômenos não eram apenas privilégio dos surrealistas franceses, mas que atravessaram, por sua vez, o Canal da Mancha.

Yeats escreveu A Vision (uma espécie de tratado sobre as relações entre personalidades humanas e a ordem cósmica) através dos transes de sua esposa Georgina Hyde-Lees, ocorridos entre 1917 e 1925. E o curioso é que, a esse tipo de prática, ele também denomine “escrita automática”, tal como os franceses.

Ao mesmo tempo, o interesse pelos médiuns e pelo sono hipnótico é uma constante entre ambos os intelectuais dos dois lados da Mancha.

Uma vez, em 1922, Desnos, em transe, vê Breton no círculo do Equador “por causa de Nazimova” – fato que se lê em Les Pas Perdus, um dos dois livros que Breton trouxera para a leitura de Nadja, no segundo dia do encontro casual entre ambos.

Ninguém sabia naquela altura quem era aquela criatura responsável pela viagem enigmática de Breton. Ocorre que, dezoito anos depois, Breton se vê obrigado, em 1940, a se refugiar, durante a Segunda Grande Guerra, na Martinica e depois nos Estados Unidos. Desnos, por sua vez, será capturado, nessa altura, pelos alemães, e despejado num campo de concentração, local em que morreria miseravelmente. Assim, a tal misteriosa “Nazimova”, que ninguém sabia de quem se tratava na época, e que aparecera a Desnos no sono hipnótico, revelava-se, agora, quase 20 anos depois, como sendo, assombrosamente, o Nazismo!

Nos passeios do casal surrealista por Paris, Nadja tem, por exemplo, a premonição de que uma janela de uma casa da Place Dauphine acenderá a seguir sua lâmpada, e que as cortinas se tornarão vermelhas – e tal e qual ocorre!

Num outro momento, Nadja se agarra às grades do Palais de Justice insistindo ter estado lá através de um túnel secreto, fato puramente insano na época, mas que será confirmado, em 1963, mercê de pesquisas arqueológicas levadas a cabo pelo biógrafo de Breton.

Para além disso, Nadja vê uma enorme mão em chamas navegando no Sena. A esta, ela reencontrará depois, em cartazes e mesmo nos quadros de De Chirico; enfim, uma torrente de símbolos perseguirá o casal surrealista durante as caminhadas por Paris, a ponto de suporem que os livros que estão lendo reverberam na sua própria realidade.

Tais fatos confirmam, para Breton, que o aparecimento de Nadja (e de Soninha, para Willer) seja a prova de realidade do surrealismo, a ideia do inconsciente como fonte de imagens, e o fato de que essas imagens são mágicas, interferindo no presente e prevendo o futuro. Assim, a cidade interessa para tais passantes porque se transmuta num organismo vivo, mutante.

E cito Breton a propósito de Paris: Ela desliza, arde, soçobra no frêmito de relvas loucas. Diante dessa cidade escondida que se deixa ver por tais indícios, eles podem apenas contemplar – cito – os escombros fumegantes do velho pensar e da sempiterna vida. De maneira a se perguntarem, afinal

 

em qual latitude poderíamos ficar sossegados, entregues desse modo ao furor dos símbolos, possuídos pelo demônio da analogia?”

 

O mesmo vai ocorrer com o casal Soninha-Willer.

Willer conta, em Volta, que nunca mais tivera notícias dela. No entanto, dois anos depois de terem-se conhecido, eles voltam finalmente a se encontrar porque ela o procurara para devolver o exemplar de L’Amour Fou, que ele lhe emprestara. Há, portanto, fatos intervalares que podem bem animar a conversação à mesa do Café do Bixiga onde ambos se sentam então.

Deveras. Entre outras coisas, Soninha narra a Willer uma história prodigiosa acerca de uma amiga querida que acabara de falecer. Essa amiga era dada a frequências de umbanda e, duma feita, em que Soninha a acompanhava, a mãe-de-santo teria sido possuída por uma pomba-gira, que reclamava de pedidos feitos e não atendidos, e que, por isso, a ia levar – ou seja: provocar a morte da amiga.

Pouco tempo depois, essa moça toma conhecimento de que se encontra com câncer e vem a falecer. Soninha, que a acompanhara e presenciado as sessões de mediunidade, bem como a doença da amiga, estava abismada com tais coincidências, fato que partilha nessa noite com Willer.

Depois de tal conversa, concluem que aquilo que – eu cito – falara

 

por intermédio daquela moça, valendo-se da sua voz, pode ter sido seu câncer embrionário, sua morte anunciando-se,

 

de maneira que a religião (quaisquer uma delas, e, para o caso, a umbanda)

 

não seria a fonte do fenômeno ou o signo da sua origem, porém sua forma, a mediação para que chegasse [até elas].

 

Nesse papo, o casal deixa o Café do Bixiga e sai vagando na direção da casa de Soninha. Passam pela Praça Oswaldo Cruz, rumando para o Paraíso, quando Soninha, de repente, se sobressalta! Perplexa, ela aponta a Willer a placa da padaria, cuja entrada atravessam. Nesta estava escrito a palavra “Marajoara” – certamente o nome dessa casa de comércio.

Ora, era justo esse o nome da tal anunciadora da morte, da pomba-gira supostamente portadora do malefício para sua amiga!!!

Como deduz Willer, o misterioso intercâmbio entre a matéria e o espírito não está presente apenas nos surrealistas franceses, mas é algo que ele próprio experimenta em si em muitas ocasiões. De uma feita, Willer fora à Livraria Cultura à procura do livro de Cortázar, A Orientação dos Gatos. Não o encontra e então inopinadamente lhe vem à mente um outro título para perguntar: O Oculto, de Colin Wilson.

Assim, em vez de Cortázar, Willer leva para casa esse que, no lugar do outro, vai – entretanto – lhe explicar que tais fenômenos pelos quais ele tem passado, têm origem no ocultismo. Ali, ele lê que os magos, os videntes, os profetas, os poetas – cito –

 

são seres que despertam um sentido arcaico, adormecido no homem civilizado, cuja raiz está no instinto de orientação dos animais migratórios, e dos gatos.

 

Reparem que os gatos de Cortázar a ele retornam indiretamente – por serendipidade…


E, deveras, em Colin Wilson, Willer se apercebe das íntimas ligações entre literatura e ocultismo, conhecendo, por exemplo, a maneira como o Là-Bas de J. K. Huysmans fora concebido. Teria sido baseado num duelo entre bruxos que ocorrera no final do século XIX, precisamente entre Stanilas de Guaitä (autor de A Serpente da Gênese, que falece aos 23 anos) e Bullan, um prático da magia negra. O próprio Huysmans teria sido iniciado por Sar Péladan, e o seu personagem Des Esseintes teria migrado, mais tarde, para Mallarmé.

Ora, todos esses exemplos levantam a hipótese de o universo ser, permanentemente, uma incessante produção de sentido. E, quanto mais não seja, no instante em que Willer recebe tais informações e, entusiasmado, passa a folhear a Nova Refutação do Tempo, de Borges, seu telefone toca. 

Willer estava decidido a reeditar o Dias Circulares, mas não possuía, nem para si, um único exemplar. Andava à procura do livro pelos sebos, coisa que era do conhecimento dos amigos. E era justo por isso que Raul Fiker lhe ligava naquele momento.

Fiker contava que havia topado com um volume do Dias Circulares num sebo assim-assado, e até o tinha mais ou menos escondido numa pilha situada na sala tal, para facilitar a Willer a busca do livro – e fornece ao amigo o mapa do tesouro.

Ocorre que isso não era tudo e nem o mais significativo!!!!

Fiker surpreendeu ainda mais a Willer quanto lhe revelou que aquele exemplar em causa estava autografado por ele e dirigido a – nada mais nada menos! – que a … Augusto Peixoto!!!!

Nem me atrevo a fazer qualquer comentário a respeito…

O fato é que, com o endereço do sebo em mãos, Willer segue rapidamente ao encontro do livro, sem nada mais a fazer, segundo cogita,

 

senão continuar [assim, pelas ruas] a leitura [que fazia em Colin Wilson] sobre as forças capazes de impulsionar o oculto até a superfície, [até] o mundo dos fenômenos aparentes, como aquele romanceado por Meyrick, [que ele estava lendo em Wilson] quando o rabino Loew de Praga encontra o tal Golem, [seu personagem] o homúnculo por ele moldado.

 

Porém essa caminhada, que não seria nada longa, é quase épica pelas ruas e lembranças, pela travessia da chuva, por um cruzamento de fronteiras entre luz e sombra. Ele repara, entre outras coisas, que passa diante do edifício onde morou uma antiga amiga e colega da Maria Antónia, que se suicidou quando soube que o Dops a havia localizado.

Ele cruza a chamada zona religiosa, aquela da Editora Virgem Maria e do Colégio dos Claretianos, e acaba sendo obrigado a se esconder, devido à repentina chuva, numa das sedes da TFP – não sem antes esboçar para si mesmo uma geografia absurda: ora, a sede da TPF ficava, na verdade, quase contígua ao prédio em que residiu a sua amiga Iara Iavelberg, a mesma de quem se lembrara minutos antes.

Até que, por fim, Willer alcança o sebo que, labiríntico, claustrofóbico, subterrâneo, de atmosfera abafada, parece antes ser aquela biblioteca universal de que fala Borges – só que desarrumadíssima, uma espécie de permanente caos do conhecimento,

 

submetendo os textos a uma caprichosa lógica da desordem.

 

E Willer fica imaginando como teria sido possível construir, mercê do movimento dos leitores à procura de seus interesses, tal arrumação absurda e desenfreada, e como teria sido possível que tal conformação e (des)ordenação babélicas tivessem imprimido essa evidência ao volume dos Dias Circulares a ponto de depositá-lo nas mãos do amigo Fiker!

E, deveras, constata ele, toda essa história parecia agora resultante de uma magia quiromântica, como se o Augusto ainda quisesse lhe falar, lá desde o reino onde se encontrava; ou como se o livro tivesse, afinal, ascendido ao topo daquela pilha, num grande esforço desconhecido e carente de retorno a seu autor. De maneira que Willer abre, então, o volume para ler nele a seguinte dedicatória:

 

Para Augusto Peixoto, na proximidade do vórtice. Novembro de 1976

 

– exatamente a data da Feira Paulista de Arte e Cultura, aquela ocorrida no Teatro Municipal! Aquela do lançamento de Dias Circulares, com a sua capa indicando o tal redemoinho, a voragem simbólica da vida, a tal imagem de todo o seu trajeto e, já agora, por fim, a volta que o livro dera para desaguar, então, neste outro livro em que ele narra o mesmo evento. Uma Volta, tal qual a serpente que morde o próprio rabo – o oroboro!

E, no que me concerne, o triângulo das referidas obras se fecha, agora, tal como eu havia antes anunciado.

Aquele Dias Circulares que então Willer tomava nas mãos, ali, no sebo, retinha em suas páginas uma energia acumulada, um poder inerente às fórmulas mágicas de invocação. Tratava-se de um livro magnetizado, de um livro-talismã.

Ora, este livro realizava, ele mesmo, os próprios movimentos que indicava na capa: ele circulava; seu título indiciava, já agora, mais que um nome: uma programação de tal movimento.

A Cabala, como sabem, acredita que o Torá, se bem lido, pode tanto mover o mundo quanto refazer a gênese ou precipitar o apocalipse, promovendo um começo e um fim. Assim, cito Willer,

 

o livro sagrado [o Torá] seria uma metamorfose, por um sistema de permutas, do sentido imaginário, das palavras fundantes, ditas no momento de criar o mundo: a palavra em sua flamejante plenitude, a insistente circularidade.

 

E Willer participa assim, da graça do reencontro com esse ser que vive no livro, em circuito, e que, ele crê,

 


esteja ainda escrevendo em cada uma das frases, trechos soltos destes capítulos [do Volta]. E que através das mulheres e do feminino, de Nadjas, Melusinas, pitonisas, sibilas, videntes ou visionárias, ambíguas hierofantes, foi-me dado o contato com o que se situa além dos limites, a aproximação do indiferenciado, o verdadeiro sobrenatural – a experiência de, ao nos perdermos um no outro, também nos perdermos no instante, abandonando nossa identidade.

 

Assim, Breton e Borges seriam respectivamente, para ele, Platão e Aristóteles, a dupla que efabula a consciência moderna, a consciência crítica repleta de dúvidas sobre a realidade, sabendo que a literatura produz a realidade, pois que as obras lidas se infiltram na configuração do real.

E que devemos olhar para tal fato com um espírito que desafie, ao mesmo tempo, o espírito de barraca de feira e aquele do consultório médico. Que os mistérios do mundo ficarão melhor apreciados se não usarmos nem da credulidade ingênua e nem do reducionismo cientificista.

Que temos apenas de permanecer à disposição do vento do eventual, daquele que percorre os caminhos do acaso.

E Willer, sagrado por tais certezas, abandona o volume ao sebo desarrumado e empoeirado. Deixa o Dias Circulares lá, onde permanecia.

Afinal, cogita, as duas tradições, a literária e a oculta explicitam, à vontade, mercê desse a acontecimento, que dialogam entre si todo o tempo (ao longo das histórias ocorridas ou imaginadas, inventadas ou transformadas) como duas serpentes mercuriais – o símbolo do hermetismo e de todo o saber – entrelaçando-se, cruzando-se e confundindo-se.

O reverso do escrito é o que acontece depois do escrito. É a magia, o modo como os signos contêm um futuro.

E a propósito dessas sincronias e das prestidigitações que envolvem na obra de Willer que aqui tenho exposto, do triângulo e das circularidades que tenho aqui sublinhado, vou encerrar esta homenagem a esse tão querido poeta-amigo, lendo a vocês um poema que lhe dediquei em 2011.

Não sei se ele chegou a ter conhecimento deste, um poema deveras enigmático, e que é propositadamente escrito como um soneto decassílabo!

Trata-se do meu olhar esotérico que tentava abarcar o conjunto das seis tapeçarias medievais que recobrem a sala do Museu de Cluny, em Paris – aquele conjunto intitulado La Dame à la Licorne.

Como sabem, em cada uma dessas belíssimas tapeçarias medievais se encontram a Dama, o Unicórnio e o Leão – respectivamente o atanor (o lugar onde se produz a Grande Obra), o mercúrio (elemento feminino) e o enxofre (elemento masculino). Cada uma das telas representa um dos cinco sentidos: o tato, o olfato, o gosto, o ouvido, a vista. A sexta tapeçaria ostenta, entretanto, um título específico: trata-se de “À mon seul desir” – a meu único desejo – que, pela tradição, é interpretado como implicitando o amor ou o entendimento – a sabedoria – enfim, o casamento da alma com o espírito – o casamento alquímico –, o encontro da Pedra Filosofal, ou como consta na tradição italiana, o livre-arbítrio.

Esse ciclo de tapeçarias é tido, pois, como a formulação do Mutus Liber, ou seja, do livro mudo, que representa os estágios para o alcance da Grande Obra Alquímica. Cada uma das tapeçarias representaria, assim, os atores principais, e neles, cada uma das operações para a obtenção da Opus Magnum, passando pela obra ao negro, pela obra ao branco e pela obra ao rubro.

Como a relação entre as diversas ciências ocultas é sempre muito íntima, eu aproveitei, no poema dedicado ao Willer, para tentar demonstrar em hipótese a visão que a Cabala pudesse ter a respeito desse conjunto de tapeçarias.

Antes de ler a peça, quero só lembrar que o unicórnio é um cavalo mítico com um único chifre.

Assim, sem mais delongas, e para me despedir de vocês, exponho aqui, vagarosamente, o soneto que dediquei a Cláudio Willer há 13 anos atrás, o qual também diz respeito às elocubrações todas que andei trilhando até aqui. Ele tem por título

 

CABALA

 

É um triângulo o que a vista alcança

por sobre a ilha que é no mundo órfã;

quase invisível, nasce ele da aliança

entre o leão a dama e o unicórnio.

 

Redondo é o mundo em sua quintessência

(a pirâmide do olhar o sustenta)

– são simulacros que a vida suspende

terreno que o retângulo encerra.

 

É o zero, é o três, é o quatro, é o sete – é Deus.

É o mercúrio a seduzir o enxofre.

As plantas, e os animais, e eu

 

somos transpostos para outra esfera

onde o prodígio da Grã-Obra impera.

Licorne: cavalo solar – cavala.


NOTAS

1. WILLER, Claudio. Jardins da Provocação. São Paulo: Masso Ohno-Roswitha Kempf Editores, 1981

2. WILLER, Claudio. Volta. São Paulo: Iluminuras, 1996.

3. Da minha parte não posso deixar de testemunhar algo que me ocorreu há menos de seis meses e que me deixou embasbacada. Não há mais volumes do meu primeiro livro de poemas, e tento encontrar algum exemplar na Estante Virtual. Então, me chegou às mãos um Livro de Auras (esse é o nome da minha ora inaugural, publicada em 1994) com um imenso autógrafo meu que ocupava a primeira página – o que era muito significativo, pois que me alertava que alguém que eu estimava e amava havia desprezado a minha obra e desocupado um espaço nas suas estantes para vende-la a outrem. Ora – e em seguida me dei conta! – era o exemplar que eu havia oferecido ao meu querido e amado professor José João Cury, morto há alguns anos, e a quem eu dedicava ali um dos poemas. Fiquei, de início, perturbadíssima, porque me esqueci que ele havia falecido. Mas não! Ele estava morto e toda sua biblioteca que, seguramente, não interessou a nenhum de seus herdeiros, foi vendida a sebos etc. Mas essa descoberta era o menos!!!! Quando abro o livro – e revelo isso com lágrimas nos olhos! – a sua letrinha lá estava, em cada página do volume, fazendo apreciação de cada um dos meus poemas!!!!! Assim, creio que o “acaso objetivo” me favoreceu desmesuradamente, porque jamais poderia conhecer sua avaliação, tão cara a mim, tão detida e detalhada, se aquele volume não me tivesse chegado – e que guardo como relíquia que é!!!!




MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil, 1944). Poeta, ensaísta e conferencista, autora de quatro livros de poesia que se destacam entre os melhores de nossa lírica: Livro de Auras (1994), Livro de Possuídos (2002), Alumbramentos (2012), Terceto para o fim dos tempos (2017), e Livro de erros (2024). Além deles, é autora de um livro de contos, Inquilina do Intervalo (2005) e dois outros de crítica literária: O Narrador Ensimesmado (1978) e A Alquimia da Linguagem (1994), este último em Portugal.





DAVIDE GALBIATI (Itália, 1976). Para el artista, el tema de la conexión Cuerpo-Espíritu existe desde el principio de los tiempos y probablemente continuará indefinidamente. En esta dirección, Davide Galbiati busca un lenguaje plástico con formas simples y singulares que evoquen tanto a pueblos ancestrales como a civilizaciones de un futuro sideral. Sublima el aura humana en materia para hacer visible lo invisible. Se inspira en el trabajo de escultores antiguos, como Tutmosis (escultor del faraón Akenatón) y en las esculturas griegas arcaicas. El artista alimenta el ardiente deseo de oponer el ruido del mundo al silencio vibrante del quieto. Huye, pues, de las contorsiones dinámicas de las esculturas barrocas o neoclásicas para pensar en la calma telúrica de los antiguos faraones. Galbiati nos lleva a la escultura por el camino del silencio. Gracias al cariño inagotable de nuestra colaboradora Berta Lucía Estrada, Davide Galbiati es el artista invitado de esta edición de Agulha Revista de Cultura.




Agulha Revista de Cultura

Número 258 | dezembro de 2024

Artista convidado: Davide Galbiati (Itália, 1976)

Editores:

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