O
fundamento teórico
desse obra
icônica da teoria teatral
do século XX constitui uma
crítica à civilização na esteira
de Nietzsche que
interpreta a história do Ocidente sob ponto de vista da ruptura entre vida e cultura, força e
forma, energia e signo.
Correspondente a uma expansão do problema corpo-mente
à civilização ocidental
inteira, a cisão da relação
de potência entre devir e linguagem levou, segundo Artaud,
ao “colapso generalizado
da vida” [2] e resultou
no domínio de um
ideal cultural passivo e contemplativo caraterizado por
sistemas simbólicos
desprovidos de força e sentido.
Ecoando o primeiro Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, Artaud responde ao diagnóstico
de declínio civilizatório com um apelo fervoroso
a uma cultura apaixonada e ativa capaz de renovar o sentido
da vida através do teatro. No prefácio, redigido
sob o impacto de sua viagem ao México, em 1936,
o poeta explicita o ambicioso caráter existencial de seu projeto:
É preciso acreditar num sentido de vida renovado pelo teatro, onde o homem se apodera destemidamente
do que ainda não existe e permite que aconteça. E tudo o que ainda não existiu pode ainda existir, desde
que não nos contentemos em permanecermos órgãos apenas absorventes.
O
teatro da crueldade quer ser entendido como teatro metafísico encarregado
de “questionar não apenas todos os aspectos do mundo externo objetivo e descritivo,
mas também o mundo interno, isto é, do homem em termos metafísicos”.
Metafísico denota para Artaud “a concepção
mais elevada do teatro (…) aquela que nos reconcilia filosoficamente com o devir”.
Contudo, o poeta vislumbra o exercício dessa “metafísica ativa” como a operação
de uma “poesia no espaço” por meio “de linguagem, gestos, posturas, equipamentos
e música”,
não como veículo de representação, mas como criação plurimidial de realidade.
Na
referência ao metafísico, ressoa novamente O Nascimento da Tragédia. Em Prefácio a Richard Wagner,
Nietzsche fala da “arte como a tarefa mais elevada e atividade realmente metafísica
desta vida”. [3] E comparável à defesa
nietzscheana do mito trágico contra o “socratismo da moral” e o pensamento dialética
e analítico, Artaud combate a ditadura da palavra escrita, do logocentrismo e do
psicologismo do teatro ocidental a favor da ritualidade dos mitos e dramas cósmicos.
De
acordo com Artaud, o reencontro com o devir pressupõe uma ruptura com “sistemas,
formas, signos e imagens” [4] de pensamento que definem
o ideal cultural
contemplativo da civilização ocidental porque:
“Ou esses sistemas estão dentro de nós e estamos tão preenchidos
por eles que vivemos através deles, e então o que importam os livros? Ou não estamos
preenchidos por deles e então eles não merecem tornar a vida possível para nós;
e, de todo caso, não importa se desaparecem.
No entanto, o teatro de Artaud não postula uma ruptura geral com sistemas
da cultura, mas incita à revolta contra formas culturais separadas
da intensidade vital – “daquela espécie de fogo delicado e vivo que nenhuma
forma toca” – que já não permitem “compreender e exercer a vida”. Como
antídoto, o (ator do) teatro da crueldade “maltrata as formas” sem força vital,
“mas por trás dessas
formas e ao destruí-las, ele
recupera o que sobrevive às formas
e garante sua sobrevivência”.
Em
analogia com Das três transformações do espírito em Assim falou Zarathustra,
o ator da crueldade pronuncia seu “sagrado dizer não” [5]
por meio da destruição de formas exauridas de linguagem e do retorno
às suas forças genéticas subjacentes, como uma pré-condição para “criar liberdade
para si mesmo para criar coisas novas”. O ator – quer dizer, o ser humano,
na medida em que a vida é um duplo do teatro – deve “romper com a linguagem para
apoderar-se da vida”. [6] Segundo Artaud, somente
a contínua reinvenção
da linguagem (do teatro) permite
“rejeitar as limitações habituais do homem (...) e expandir até ao infinito os limites
do que se chama realidade”.
Através
da criação de uma linguagem sensorial e virtual específica ao teatro, uma linguagem
que, devido à sua violência anárquica, não só desorganiza as ordens físicas, sociais
e morais, mas provoca o pensamento, Artaud quer avançar para o plano das intensidades
criativas que constituem o pré-requisito do surgimento de novas formas de soberania
humana.
Cerca
de dez anos depois, após
o fim da Segunda Guerra Mundial e seu retorno do confinamento psiquiátrico, Artaud
retomará essas considerações, dando-lhes
uma reviravolta radical por meio do corpo sem órgãos, um conceito que transcende
ainda mais o
domínio do teatro como forma de arte culturalmente institucionalizada.
Superação da Representação
Segundo Artaud, a crise de vitalidade da civilização europeia
que é, simultaneamente, uma crise da linguagem, é refletida
no estado caricatural do teatro ocidental onde se torna explícita na produção de obras
sem intensidade poética e profundidade filosófica, mas sob o
predomínio de uma
linguagem anti-teatral, a linguagem da palavra – seja na forma de diálogo escrito ou
da estrutura lógico-narrativa subjacente à ação cênica – sem tocar
nas causa do problema: o problema da representação (crucial em termos de uma filosofia
da diferença).
Dada a essência criativa
do teatro como “o único lugar no mundo (…) onde um gesto
é
irrepetível” e considerando
que “todo sentimento genuíno” é singular e “na realidade intraduzível”, Artaud quer “fazer do teatro uma realidade”, não uma “imitação da realidade”. Na perspectiva artaudiana, a função do teatro
(e das artes em geral) não consiste na representação e no debate de atualidades
quotidianas, mas na tentativa extemporânea “de romper com a linguagem para agarrar
a vida” através de meios
físicos concretos
que afetam diretamente os sentidos e a mente.
Por consequência, as ambições de Artaud não se limitam
a correções estéticas do desenvolvimento histórico do teatro, mas visam tanto
o protesto crítico contra um conceito equivocado e reducionista de cultura (por
separar vida e cultura) quanto a redescoberta das forças (totêmicas) que formam
a base de toda cultura verdadeira e ativa e possibilitam não somente os
“encontros com o devir”, mas até mesmo a reconciliação “com o universo”.
Teatro do devir
Desejo e virtualidade
Com uma encenação enquanto “batalha de símbolos” que remetem às “forças escravizadas”,
o teatro artaudiana pretende libertar o “inconsciente
comprimido”. Através dessa
batalha, engaja-se numa “espécie de revolta virtual” contra as leis que
constitui a “culminância da
própria poesia”
ao fundir a liberdade absoluta como o perigo absoluto. Com a libertação do insconsciente,
o teatro se torna essencial, provocando “a irrupção de uma camada profunda de crueldade”. Uma camada composta
de caos, conflito e criação em que “toda a verdadeira liberdade (…) se funde, inevitavelmente,
com a liberdade do sexo”, ou seja,
com o “poder ainda mais insondável” da libido, cuja “energia natural e impura” libera forças e possibilidades
que “leva[m] à
dissolução do corpo
social”.
Artaud invoca a peste e a alquimia como duplos do teatro.
Enquanto o efeito epidêmico e dissolutivo
da peste opera como revolta social virtual e possibilita a conexão com o caos,
a arte virtual da alquimia permite, por via de símbolos, o processo
de transmutação espiritual.
Segundo Artaud, o teatro e a alquimia são artes que compartilham,
em seus princípios, “uma misteriosa identidade de essência” definida
por realidade virtual e eficácia virtual
e operam de maneira simbólica.
Os símbolos da
alquimia e os objetos simbólicos do teatro são miragens ou simulacros. Todavia,
existem e se desenvolvem como “veículos de comunicabilidade” em um “plano virtual, meramente hipotético e ilusório” onde “indicam o que se poderia chamar de estados filosóficos da
matéria”.
Ao efeito da alquimia – enquanto duplo material de uma realidade
espiritual – corresponde o efeito do teatro, não como cópia da “realidade diária e direta”,
mas como duplo virtual, “segunda etapa da criação” ou “drama essencial” que torna
palpáveis os estados
intensos da realidade não humana e perigosa do caos.
Força à fome
Filosoficamente relevante para o projeto artaudiano da superação do hiato
entre corpo e mente, vida e cultura, não é apenas o diagnóstico de decadência cultural
de inspiração nietzscheana
nem o apelo a um
teatro não-representacional
que conduz às zonas de intensidade não codificadas do caos produzindo
signos energético-materiais.
Mais crucial ainda (em particular no que diz respeito ao
desejo deleuziano) é a localização da produção dessas energia-signos – que superam a
separação entre vida e cultural de um modo imanente ao seu próprio processo
constitutivo – no reino da virtualidade.
Ao associar a potência virtual dos signos à autorreferencialidade
do desejo criativo, Artaud define o mundo pela “força de ter fome” e condiciona
a superação do hiato que separa vida e cultura à criação de
signos e formas cuja “força viva é inseparavelmente una com a da fome”. A
ideia de uma autopoética força à fome, ou seja,
uma fome não como carência, mas
como capacidade, remete inevitavelmente à vontade de potência de
Nietzsche e antecipa a reformulação deleuziana desse conceito
na figura do desejo.
Sob o aspecto de uma cura civilizatória imanente ao próprio
processo poético, ações, sentimentos
e acontecimentos teatrais são
para Artaud “infinitamente mais valiosos” do que o “sentimento realizado”. Embora fundada
em realidades “empiricamente perceptíveis”, a virtualidade
desses acontecimento constitui uma “força espiritual” capaz de prescindir
da “realidade”
por operar no “campo fechado” do teatro sem “perder o contato com a força que a inspira”.
Criação de realidade
Artaud não critica conceitos, signos e formas enquanto tais, mas seu estatuto
transcendente e seu afastamento das energias empíricas que ocasionaram sua gênese.
A ideia de que formas sem vínculo orgânico com suas forças de origem sejam incapazes
de afetar a vida, explica a insistência artaudiana numa linguagem da encenação não derivada
da literatura, uma linguagem pura do teatro concebida como intelectualidade
não verbal baseada na intensidade e capaz de “estimular o pensamento” por meio de
abalos sensoriais, de forma físico-atmosférica, espacial-cinética, acústico-visual
e através de “imagens violentas (que) esmagam a sensibilidade do espectador”.
Ao levantar a “questão (…) do efeito intelectual da expressão que trabalha
com formas concretas”, o modelo alquímico de recepção de Artaud
antecipa o que mais tarde Deleuze denominará de uso transcendente da faculdade da
sensualidade através do qual o pensamento ocorre.
A partir da ruptura com desvitalizadas formas de linguagem e códigos extra-teatrais dominantes, a poesia cruel do teatro artaudiano visa orquestrar uma variedade frenética de signos-energias – em que formas-forças atuam de modo indistinguível – para provar que a “intensidade da vida está intacta” e dar origem à pré-condição de uma nova realidade.
Uma realidade que Deleuze chamará de intensidades puras e em que os “limites ordinários do homem e dos poderes do homem” são superados. Neste plano hipotético, o homem se tornará “dono daquilo que ainda não existe”, quer dizer, criador de realidade.
Teatro como diferença sintética
Segundo Artaud, a “intensa poesia da natureza” do Teatro da Crueldade “faz uso de todas as linguagens”, mas está “em nada”. Isso significa que o Teatro da Crueldade não é idêntico às linguagens que mobiliza nem a uma estética específica (inclusive a de Artaud), e tampouco denota a instituição sociocultural do teatro, mas opera como diferença sintética entre as múltiplas formas-forças (espaço, luz, som, movimento, corpo etc.) que compõe a linguagem do teatro.
Por sempre estar “exatamente no lugar” “onde a mente precisa de uma linguagem para produzir suas manifestações” e por corresponder de forma sinestésica e imediata, “como que através de canais bizarros”, em uma “rede sonora” de movimentos, gestos e gritos, o modo de operação do Teatro da Crueldade poder-se-ia descrever como rizomático.
Forças e afetos
Cabe
ao ator localizar e fazer irradiar “certos poderes” “nos
órgãos” que permitem cativar o espectador e colocá-lo
sistematicamente num estado de “transe mágico”, fazendo uso consciente e intencional
do ritmo regenerativo da respiração para promover transfusões
espirituais por vias corporais-pneumáticas.
O
conhecimento deste “ponto de partida físico” das paixões e da alma permite, por um lado,
uma expansão da soberania como “poder sobre as paixões” e implica, por outro lado,
a possibilidade
de reconexão da alma com seu ser físico.
Um conceito
filosófico da
crueldade
Artaud introduz seu conceito de crueldade no seio de uma concepção teatral
voltada a superar a ditadura do discursivo no teatro ocidental. Nesta concepção
que faz do teatro “uma realidade” e não a representação da realidade, a noção artaudiana
de crueldade descreve “uma espécie de poesia cruel através de ações estranhas (…)
que demonstram que a intensidade da vida continua intacta”.
Crueldade define aqui o ato criativo
em seu mais alto grau de intensidade. O ato criativo não consiste na reprodução
da realidade cotidiana, mas na criação de “imagens do pensamento” oníricas e surreais
cujo grau de intensidade garante também seu grau de realidade.
As ideias e os temas do teatro da
crueldade – expressas de modo espacial, cinético, material e audiovisual
– são de “natureza cósmica” e têm “a ver com criação, devir, caos. O poder comunicativo
dessas ideias e imagens visa “desvendar toda a nossa vitalidade” e permite,
graças à violência vibratória das forças vivas que mobilizam, a mediação entre corpo
e mente.
Com uma “linguagem nua” e radical, o teatro de Artaud pretende
provocar a
“destruição anárquica” de
formas e ideias que determinam
a consciência e o pensamento ocidentais. Almeja o questionamento do “mundo externo” e “do mundo interior” através da “superação das fronteiras
habituais da arte” e da realização “mágica e em termos reais [de] uma espécie de criação abrangente que,
ao mesmo tempo, redefine o status da existência humana”.
Numa
série de cartas endereçadas ao editor Jean Paulhan e ao poeta Rolland de Renéville,
Artaud esclarece que seu conceito de crueldade não deve ser confundido com uma apologia
ao horror sanguinário. Em uma carta a Paulhan, escreve:
Pode-se facilmente imaginar uma crueldade
pura, sem dilaceração da carne. E o que é, filosoficamente falando, a crueldade?
Do ponto de vista do espírito, crueldade significa inexorabilidade, implementação
e determinação impiedosa, irreversível e absoluta determinação. O determinismo mais
comum é, do ponto de vista da nossa existência, uma das imagens da crueldade.
O determinismo superior de Artaud, compreende crueldade
como um aspecto intrínseco do pensamento e, portanto, como um elemento consciente
e ativo:
Acima de tudo, a crueldade é lúcida,
ela é uma espécie de orientação inexorável, uma submissão à necessidade. Não há
crueldade sem consciência, sem algum tipo de consciência aplicada. A consciência
confere ao exercício de qualquer processo vital a sua cor de sangue, sua nuance cruel,
pois a vida é, reconhecidamente, sempre a morte de alguém.
Numa carta posterior, Artaud amplia seu conceito de crueldade
com referência aos
conceitos de desejo de vida ou vórtice da vida, “em sentido gnóstico”.
Segundo Artaud, a possibilidade de vida é condicionada
à inevitável ou cruel necessidade
de criação. A
criação (o bem) torna a destruição (o mal) igualmente necessária. A
necessidade de criação se efetua tanto como agência consciente
quanto como cega vontade (ou voracidade) de vida.
O bem é desejado, é o resultado de uma ação, o mal persiste. Quando o Deus oculto cria, obedece à
cruel necessidade da criação que lhe é imposta; é impossível para ele não criar, portanto, é impossível para ele não tolerar sempre uma parte menor e cada vez mais consumida do mal no centro do vórtice
voluntário do bem.
Crucial para a poética da crueldade é sua exigência de compreender o “teatro no sentido de criação contínua”, ou seja, como dinâmica, simultaneamente, consciente (lúcida) e inconsciente (cega) da vontade e da vida. Em carta a Renéville, Artaud defende mais uma vez o significado metafísico da crueldade,
pois parece-me que a criação e a própria vida são definidas por uma espécie de inexorabilidade, ou seja, uma crueldade fundamental, que conduz as coisas ao seu destino inevitável.
Sêneca: Crueldade do Destino
A problematização do destino e da necessidade é um motivo antigo da filosofia. Já dizia Heráclito: “Nunca, penso eu, escapou um dos mortais ao destino”. Entre os autores de comprovada influência sobre Artaud, no que diz respeito à crueldade, figuram Sêneca e Nietzsche.
A terminologia de Artaud – “crueldade no sentido de (...) inexorabilidade cósmica” – espelha o vocabulário de Sêneca. Semelhante ao pensador romano e sua Defesa do destino a que devemos “tudo que existiu”, Artaud enfatiza também sua essencial dimensão criativa: “parece que a criação e a própria vida são definidas por uma espécie de inexorabilidade, isto é, uma crueldade fundamental”. Crueldade é criativa e destrutiva, é “o desejo de Eros, crueldade (…) a morte”. Em sua terceira carta sobre a linguagem, dirigida a Jean Paulhan, Artaud sublinha o nexo estreito entre crueldade e destino: “Então, eu disse “crueldade” como teria dito “vida” ou “necessidade”.
Nietzsche: a alegria
festiva da crueldade
Os contornos de um pensamento trágico em Artaud aqui emergentes tornam-se mais claros na comparação com Nietzsche. De O Nascimento da Tragédia até os escritos do espólio, a meditação filosófica sobre a crueldade constitui um motivo recorrente do pensamento nietzcheano. Ao comentar a Genealogia da Moral, em Ecce Homo, Nietzsche afirma que “aqui a crueldade como um dos fundamentos culturais mais antigos e impensáveis é trazida à luz pela primeira vez”. [7]
Referências esclarecedoras relativas à equiparação artaudiana de crueldade e voracidade de vida bem como à correlação dessas noções com o devir são formuladas por Nietzsche no prefácio de O Estado Grego, localizando a crueldade tanto na natureza de cada cultura quanto na natureza do poder:
O que quer viver nesta terrível constelação das coisas, isto é, o que tem que viver, é essencialmente uma representação da dor primordial [Urschmerz] e da contradição primordial [Urwiderspruch], e deve portanto (...) [emergir] como uma insaciável voracidade de existência [Dasein] e como eterno contradizer-se na forma do tempo, ou seja, como devir.
A amplitude e diferenciação das reflexões de Nietzsche sobre a crueldade nos planos do espírito e dos sentidos só podem ser sugeridas no presente contexto. Tal como a discussão das complexas conexões entre a poética de Artaud e a filosofia de Nietzsche, devem ser relegadas a futuras investigações. Porém, alguns aspectos decisivos para este estudo merecem menção.
Em primeiro lugar, vale ressaltar a correspondência entre a afirmação artaudiana de um “determinismo superior” [8] e o amor fati de Nietzsche. Afirmação aqui compreendida como consciente e intencional “submissão à necessidade” e no sentido de uma “vontade” de “criação contínua” com a função “de posicionar-se do lado de uma espécie de vida libertada”. Diferentemente de Sêneca, o amor fati nietzscheano não é fundamentado pela mera renúncia à acusação do destino e seu reconhecimento estóico, mas pela afirmação amorosa do inevitável:
Quero aprender cada vez mais a ver o necessário nas coisas como o belo – assim serei um daqueles que tornam as coisas belas. Amor fati: que este seja de agora em diante o meu amor! Não quero fazer uma guerra à feiúra. Não quero acusar, nem quero acusar os acusadores. Desviar o olhar seja minha única negação! (...) Em algum momento, só quero ser um homem do sim!
[9]
A
afirmação irrestrita da necessidade constitui o fundamento do conceito de arte trágica desenvolvido em O Nascimento da Tragédia. Como “a verdadeira atividade
metafísica desta vida”, a arte trágica proporciona a reconciliação do homem com
a unidade primordial e a “crueldade da natureza” através do “dilaceramento do
principii individuationis”.
O engano de Apolo: a eternidade da bela forma; a legislação aristocrática “é assim que deve ser sempre!”.
Dionísio: sensualidade e crueldade.
A transitoriedade poderia ser interpretada como o gozo da poder gerador e destruidor,
como criação constante.
As qualidades de Dionísio – sensualidade, crueldade, criação, devir – ressoam, palavra por palavra, em Artaud. Em Incursões de um extemporâneo, Nietzsche registra a embriaguez como “pré-condição fisiológica” necessária da criação artística:
sobretudo a embriaguez da excitação sexual, esta forma mais antiga e original de embriaguez, (…) mas também “a embriaguez da crueldade; (…) da destruição; (…) por fim a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade sobrecarregada e dilatada”, cuja característica essencial é “a sensação de aumento de força e plenitude.
E, numa outra nota do espólio, Nietzsche declara: “Três elementos em particular: a pulsão sexual, a embriaguez, a crueldade – todas pertencentes à alegria festiva mais antiga do homem, todas igualmente predominantes no “artista” mais primordial.” Segundo Nietzsche, na obra do artista trágico existência e tragédia coincidem. Com a tragédia, o poeta trágico celebra uma “disposição sem medo do terrível e do questionável (…) diante de um problema que desperta horror” e serve ao homem heróico “a bebida desta mais doce crueldade”.
O valor atribuído por Nietzsche à embriaguez e aos sonhos para a criação artística e a experiência da obra de arte dionisíaca convida a comparações com os estados psicofísicos extra-cotidianos almejados pela encenação e recepção do teatro da crueldade. Nietzsche evoca a pulsão sexual, Artaud Eros ou libido. Tanto Nietzsche quanto Artaud associam em suas concepções estéticas intensidade sensual à criação e destruição. Ambos situam a problemática relação corpo-mente mediante o pano de fundo de uma história cultural decadente e como questão chave da linguagem, bem como da representação e recepção artísticas. No âmbito de suas cosmovisões trágicas, crueldade implica realidade (natureza, vida, necessidade) e possibilidade (de agência). É através da afirmação da crueldade – como afirmação da essência trágica da vida e como afirmação de uma atitude adequada face a essa realidade – que natureza e cultura podem chegar a um acordo no ser humano.
Em Considerações intempestivas, Nietzsche formula a ideia da crueldade enquanto afirmação livre da necessidade, refletindo sobre a obra de Richard Wagner:
Quando se pensa na obra de arte de Wagner, não se pensa no que é interessante ou agradável, nem no próprio Wagner, nem na arte em geral: somente se sente o n e c e s s á r i o. Ninguém jamais poderá imaginar que rigor e uniformidade da vontade, que autossuperação o artista precisou durante o tempo de seu desenvolvimento para finalmente, na
maturidade, fazer o necessário com alegre liberdade,
em cada momento da criação: basta sentirmos como em certos casos sua música se submete, com uma certa crueldade
de decisão, ao curso do drama que é inexorável como o destino, enquanto a alma ígnea desta arte anseia
por vagar, uma vez, sem qualquer restrição, na liberdade e selva.
Tal como Sêneca antes e mais tarde Artaud, Nietzsche estabelece uma espécie de equivalência entre crueldade, por um lado, e natureza, necessidade e criatividade por outro. Nas concepções teatrais de Nietzsche e Artaud, natureza e arte compartilham crueldade como denominador comum e reconciliam – através da interação misteriosa entre necessidade e liberdade – com o devir ou, na linguagem de Nietzsche, com “o subterrâneo dionisíaco do mundo”.
As observações feitas até aqui indicam o quão fundamentalmente o Teatro da Crueldade de Artaud está ligado ao pensamento do trágico em Nietzsche. Segundo o pensador alemão, a ação da grande Circe “crueldade” está na base de toda criação natural e cultural. Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche propõe que “reaprendemos sobre a crueldade e abrimos os olhos”, pois “quase tudo o que chamamos de “cultura superior” é baseado na espiritualização e no aprofundamento da crueldade – esta é a minha sentença”. “A dolorosa luxúria da tragédia”, diz Nietzsche, “é a crueldade”, e “a pessoa que busca conhecimento” age “como um artista e transfigurador da crueldade”, porque
cada tomada profunda e completa [de conhecimento] é um estupro, um desejo de ferir a vontade elementar do espírito, que pende constantemente para as aparências e as superfícies – em cada desejo de saber existe uma gota de crueldade.
A criação do
corpo sem órgãos através do teatro
da crueldade
Na década que separa a publicação de O Teatro e Seu
Duplo dos escritos publicados após a saída de Artaud da clinica
psiquiátrica de Rodez, sua linguagem poética passa por transmutações e intensificações
drásticas. Nota-se ainda um câmbio de foco: o corpo ocupa agora atenção central,
em detrimento do espírito.
Em O Teatro e Seu Duplo, Artaud enfatizava
os
efeitos de uma poética da crueldade sobre a sensibilidade e o organismo humanos, mas em seus textos tardios,
sobretudo, em Para acabar com o juízo de deus, sua crítica da
automatização do corpo e pensamento chega ao ápice no apelo à renovação
da anatomia humana através da criação de um corpo sem órgãos.
Após dez anos de internação, quase sem contato com o mundo
artístico parisiense, as reflexões artaudianas sobre as dimensões práticas do ofício
teatral saíram de cena dando lugar a questões mais abrangentes. Apenas
ocasionalmente, por exemplo, no período de encenação de Para acabar com o juízo
de deus, chamado por Artaud com um primeiro ensaio do teatro da crueldade, essa
ambiguidade retorna.
O pensamento teatral artaudiano dos anos 1946/48 localiza a causa
da crise ocidental – expressa na cisão entre vida e cultura – na crença em um
Deus transcendente. Por esta razão, a tarefa primordial do teatro da crueldade consiste agora na extinção
da ideia de Deus e de todas formas de pensamento que facilitam a
instalação dessa ideia parasitária no corpo humano.
Para
Artaud, a “baixaria suja” associada ao corpo definido por órgãos reside no fato do “homem / um belo dia / ter
parado a ideia de mundo” para escolher o caminho do finito interior, em vez do
“externo infinito”, nomeadamente, ao concordar de associar a “consciência ao desejo
sexual” [10] e o apetite pela vida
ao “apetite pela comida”.
Em
outras palavras, ao internalizar, identificar e objetivar sua força à fome, o homem
concordou com uma forma de existência finita e, assim, submeteu-se ao juízo de deus.
Em oposição ao juízo de deus, Artaud faz valer a “extrema necessidade urgente” e
“presença incansável” de seu corpo; um corpo ameaçado que precisa renovar a sua
anatomia para libertar-se por inteiro de todos os seus automatismos” e recuperar
“sua liberdade real e perene”.
Em uma resposta mais tardia à
questão “O que é crueldade?”, Artaud esclarece que crueldade contém uma dimensão
destrutiva que constitui o componente indispensável de sua dimensão libertadora
e criativa, pois:
Crueldade significa exterminar Deus,
através do sangue e até o sangue, o acidente bestial da animalidade humana inconsciente,
onde quer que se possa encontrá-lo.
Num texto de 1947, intitulado O Teatro da Crueldade,
Artaud declara que devemos à ideia transcendente da criação de um “universo predeterminado”
por Deus uma “ideia excremental do ser” e critica que, face a essa ideia, “o ser
humano, até hoje nunca conseguiu estabelecer a sua superioridade nos reinos do possível.”
Dessa maneira, sublinha um aspecto da crueldade apenas
sugerido mas não aprofundado em O Teatro e o seu Duplo, a saber, que, para
além da necessidade, a crueldade “leva sempre em conta o grau espiritual de possibilidade”.
Para escapar da predestinação divina, diz Artaud, é preciso
“deixar dançar a anatomia humana”, [11] ou seja, desorganizá-la
e, ao mesmo tempo, afirmar a possibilidade de “completar e construir a realidade”.
Contra
Deus e a ideia de “uma horrível incapacidade de se realizar em sua vida humana”,
Artaud declara o teatro da crueldade como “afirmação de uma terrível (…) necessidade”
e de suas possibilidades criativas. “O teatro”, escreve à Paule Thévenin, “é na realidade
a génese da criação”, sendo que é decisivo “ter alcançado algo
/ fisicamente / em cada apresentação”.
Em O Teatro e a Ciência, Artaud especifica
esta concepção teatral genética. Como operação mágica e revolução molecular, a ação do teatro
da crueldade (“o verdadeiro teatro”) transcende o domínio do espetáculo teatral, visando
“a verdadeira transformação orgânica e psicológica” e
a superação da ideia de mortalidade “do corpo humano.”
Artaud
está convencido de que “nenhuma revolução política ou moral seja possível” enquanto
a “ordem anatômica” sobre a qual “a existência e a duração da sociedade contemporânea
repousa” não for transformada. Produzido, organizado e parasitado por um Deus transcendente
e onipresente, o corpo necessita – como condição necessária da superação da sua
falta de liberdade criativa – de uma revolução psicofísica.
Em Enlouquecer o Ator, Artaud caracteriza o teatro
como um conhecimento e uma prática capazes
de realizar tal revolução: “O teatro é o estado / o lugar / o ponto / onde
a anatomia humana pode ser compreendida / e através dela a vida pode
ser curada e governada.”
A ideia da cura da vida constituía o ponto
de partida de O Teatro e seu Duplo, mas reaparece agora condicionada a duas
necessidades (de alcance considerável para
o papel da esquizofrenia no pensamento de Deleuze): a “constituição
e INSTITUIÇÃO desta
nova e emocionante anatomia fugaz” do corpo
sem órgãos, e o
consentimento com uma existência como “louco definitivo”. No postskriptum, Artaud equipara
a criação dessa anatomia sem órgãos ao super-homen
de Nietzsche:
PS:
O carvão inoportuno do esqueleto não-carnal
do homem / o do super-homem / que um dia foi projetado e que logo será eterno e
completo / quando não houver mais sol nem lua / mas dois dedos de brasa crepitante
para responder às línguagens profundas / às duas cavernas de linguagens profundas
do crânio da dança da morte, parecido a / um farol / eternamente / inflamado.
NOTAS
1. Texto originalmente escrito em alemão e traduzido e atualizado
pelo autor. Todas as citações foram também traduzidas pelo autor.
2.
Artaud, Antonin: Das Theater und sein Double (O Teatro
e seu duplo). München: Matthes
& Seitz 1996. Igualmente as citações subsequentes.
3. Nietzsche, Friedrich: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Die Geburt der Tragödie
ais de Geiste de Musik. München: Deutscher Taschenbuch Verlag/De Gruyter 1999. Igualmente a citação seguinte.
4. O Teatro e seu Duplo. Igualmente as citações subsequentes.
5.
Nietzsche. KSA. Igualmente a citação seguinte.
6. O Teatro e seu Duplo. Igualmente as citações subsequentes.
7.
Nietzsche. KSA 1. Igualmente as citações
subsequentes.
8. O Teatro e seu Duplo. Igualmente as citações subsequentes.
9.
Nietzsche. KSA. Igualmente as citações
subsequentes.
10. Artaud, Antonin: Schluss mit dem Gottesgericht. Das Theater der Grausamkeit
(Para acabar com o juízo de deus. O Teatro da Crueldade).
München: Matthes
& Seitz 2002. Igualmente as citações subsequentes.
11. Para acabar com o juízo
de deus. O Teatro da Crueldade. Igualmente as citações subsequentes.
WOLFGANG PANNEK | Diretor, performer, autor, tradutor e produtor. Integrante (1992) e codiretor (1994) da Taanteatro Companhia. M.A. (filosofia, letras e psicologia) pela FernUniversität Hagen (Alemanha). Diretor de produção da Mostra 95 Butoh e Teatro Pesquisa, idealizador e diretor de produção de Artaud 100 Anos, coordenador do Intercâmbio Cultural Matola-Brasil (2005) e organizador da Hans Thies Lehmann Brasil Tour 2010. Idealizador e produtor da Ocupação Artaud (2016) e da Ocupação Deleuze (2017) no Teatro Aliança Francesa de São Paulo. Atuou como coreógrafo e ator em Os Sertões, sob direção de José Celso Martinez Corrêa. Criou e dirigiu a trilogia cARTAUDgrafia (2015) sobre a vida e obra de Antonin Artaud e o espetáculo 1001 PLATÔS (2017) baseado na obra Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Idealizou e produziert o filme coletivo The Theatre and the Plague (2020). Na televisão participou como ator do seriado “fdp” (HBO Brasil), da telenovela “Além do horizonte” (TV Globo) e da série “El Presidente: Jogo da Corrupção” (Amazon Prime).
DAVIDE GALBIATI (Itália, 1976). Para el artista, el tema de la conexión Cuerpo-Espíritu existe desde el principio de los tiempos y probablemente continuará indefinidamente. En esta dirección, Davide Galbiati busca un lenguaje plástico con formas simples y singulares que evoquen tanto a pueblos ancestrales como a civilizaciones de un futuro sideral. Sublima el aura humana en materia para hacer visible lo invisible. Se inspira en el trabajo de escultores antiguos, como Tutmosis (escultor del faraón Akenatón) y en las esculturas griegas arcaicas. El artista alimenta el ardiente deseo de oponer el ruido del mundo al silencio vibrante del quieto. Huye, pues, de las contorsiones dinámicas de las esculturas barrocas o neoclásicas para pensar en la calma telúrica de los antiguos faraones. Galbiati nos lleva a la escultura por el camino del silencio. Gracias al cariño inagotable de nuestra colaboradora Berta Lucía Estrada, Davide Galbiati es el artista invitado de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 258 | dezembro de 2024
Artista convidado: Davide Galbiati (Itália, 1976)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
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