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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

MARCO LUCCHESI | O livro do amor, de Marsilio Ficino


I – A COISA AMADA | O Comentário ao Banquete de Platão é ainda capaz de despertar admiração e surpresa no leitor contemporâneo. Isso porque a obra de Ficino é clara e apaixonada. E a poesia sobrepaira em todas as suas páginas. Um rasgo de entusiasmo e um rasgo de melancolia constituem o seu percurso dialético. Outras vezes, é o desespero que suprime a malha conceitual. Uma filosofia da imortalidade estruturada em duas pontas: Deus e o Amor. É o que vamos ler em seu Comentário.
Ficino partiu do Banquete e do Fedro, dois grandes diálogos que ensinavam a relação entre o bem e a beleza, da Ética de Aristóteles e do Lélio de Cícero. A todos estes, juntou São Paulo e Santo Agostinho, que ensinavam a dimensão da caridade, bem como os poetas do dolce stil nuovo como Guinizelli e Cavalcanti. A Comédia de Dante e o Cancioneiro de Petrarca perfazem a síntese de sua filosofia do amor. Perfazem, mas não determinam. Marsilio Ficino sabe destramar a tradição e a reorganizar dentro de um sistema novo e de todo fascinante. Ultrapassa a condição de fragmentos para instaurar um discurso.
Para o filósofo, o amor humano é uma preparação para o amor divino. Tudo parte da semelhança. E quando o amor é verdadeiro os amantes se identificam um com o outro. Passamos do amor solitário ao amor recíproco. Semelhança e reciprocidade fundamentam a sua estrutura:

A semelhança gera o amor. A semelhança é uma certa natureza igual em vários. Pois se eu sou semelhante a ti, tu também és necessariamente semelhante a mim. Portanto, a mesma semelhança, que impele que eu te ame assim como tu me amas, obriga-te também a me amares.

Algo parecido com o poema de Camões: o amador se transforma na coisa amada e em si mesmo possui a parte desejada. Lemos no Comentário que

na verdade cada um tem a si próprio e ao outro. Pois este existe naquele. E aquele existe, mas neste. Com efeito, enquanto eu te amo, eu me encontro amante, em ti, estando eu a pensar em mim, e recobro-me por mim mesmo, perdido na minha negligência, conservando-me em ti. A mesma coisa fazes em mim.

E prossegue:

Pois eu, depois que perdi a mim mesmo, se por ti me recobro, por ti tenho a mim; se por ti tenho a mim, eu te tenho antes e mais que a mim mesmo, e estou mais próximo de ti que de mim, visto que me ligo a mim precisamente por ti.

Todavia, apesar dessa profunda união, os amantes não sabem exatamente o que buscam um no outro. Querem sempre mais e já não sabem o que significa esse mais. Sentem uma nostalgia arraigada, mas não sabem determinar a sua extensão. Sofrem quando amam e desconhecem por que sofrem. Têm saudade do imponderável. A semelhança e a reciprocidade não resolvem esse mistério divino. Primeiro, porque a sede de quem ama não se aplaca ao ver ou ao tocar o corpo do amado. Não deseja este ou aquele corpo, mas o resplendor divino infuso no outro. A presença de Deus é como um suave perfume que faz pressentir o sabor de um fruto ignorado. Igualmente, o temor e a reverência do amante ao ver o amado é um temor inconsciente em face de Deus.
Tais argumentos demonstram que o amor não se limita a duas pessoas, mas a três: dois seres humanos e um Deus: o amante e o amado são como espelhos que guardam a imagem imperfeita do Pai. É isso que os aproxima um do outro. Precisam compreender a profundidade desse Bem. Pois amar é voltar à Origem. Vejamos.

II – MOTIVOS DE INQUIETAÇÃO | Num conhecido diálogo de Platão, o desejo da filosofia é o desejo da morte. Inicialmente terríveis, as palavras de Sócrates ganham maior clareza à medida que avançamos na leitura do Fédon. Filosofar é libertar-se do corpo para se ocupar da alma, é ir deixando morrer as solicitações do corpo na realidade do pensamento. Ao nosso redor, apenas miragens e simulacros. Tudo mergulhado em sombras. E o corpo sendo uma extensão dessa realidade. Se buscamos o conhecimento puro, devemos examinar as coisas com a alma. Passar da esfera do sensível para a esfera do inteligível. A nossa pátria é a altíssima região da qual baixamos a este mundo terreno, lá onde mora o nosso Pai. Por isso é preciso morrer. Porque habitamos a Distância. Porque vivemos no Exílio. Transcender: eis a palavra-chave na concepção platônica. Morte e transcendência preparam o fim da Distância e o regresso ao seio da Unidade. A nostalgia de Deus é a ante-câmara da morte. Eis o que pensava justamente Marsilio Ficino. Filosofar é morrer.
Ficino é um ser enamorado e atormentado por Deus. E as suas páginas dão o testemunho dessa procura incessante do Significado. Da imagem e do rosto de Deus. A filosofia para Ficino não é senão amor a Deus e regresso a Deus. Voltar ao Princípio dos princípios e contemplar a Causa das causas. Passar da superfície ao Profundo. Pois o homem – sem Deus – é uma devastadora inquietação. O horizonte puramente físico de Aristóteles e Lucrécio jamais serviu de consolo para Ficino. Só fez aumentar-lhe a busca do Sentido. O maior desejo do homem – lembra o filósofo – consiste em tornar-se onipotente. Ele mede o céu, a terra e os abismos. O céu não lhe parece tão alto. O centro da Terra, tão profundo. E o abismo já não lhe causa mais terror. As distâncias espaciais e temporais não o impedem de chegar aonde bem entende. Contudo, a inquietação e a melancolia não se despegam de sua alma. Não lhe basta a conquista da Terra. Sente-se acabrunhado pela vanidade das coisas. Precisa do Outro. Tem saudades do Infinito. E não quer sucumbir nas ondas do tempo.
O endereço do homem é outro. Assim como o Sol atrai as flores, a Lua move as águas, e Marte comanda os ventos, também sofremos o impacto da beleza, que é o rosto de Deus, e que atrai a alma (a sé tira) por uma lei de intrínseca semelhança. Estas páginas de alta poesia – que sabem unir metáforas e conceitos, símbolos e alegorias – fazem da filosofia de Ficino um pensamento emocionado. Comprometido com Deus e com a imortalidade da alma. Diz Lourenço, o Magnífico:

Della divina infinità l’abisso
quasi per una nebbia contempliamo,
benché l’alma vi tenga l’occhio fisso;
ma d’un perfetto e vero amor l’amiamo.
Quel che conosce Dio, Dio a sé tira;
amando alla sua altezza c’innalziamo.

Nos versos do Magnífico o conhecimento de Deus torna-se o desejo supremo da alma e nele somente. Todas as demais formas da vida e do conhecimento devem ser entendidos como preparação mais ou menos consciente para voltar ao Criador. Esse é o destino irreversível da alma. Tu ergo Deus noster, tu solos sitim hanc extingues ardentem. Aplacar-lhe a sede. Fonte das fontes.
Um encontro sublime entre o amador e a coisa amada. Um projeto de redenção onde coincidem o Bem e o Uno, a Causa eficiente e a Causa final, o Demiurgo de Platão e o Intelecto de Aristóteles. Tal a sobreposição de matizes da tradição platônica que alimenta a filosofia do retorno em Marsilio Ficino.

III – PROJETOS DE UNIDADE | Para compreendermos aquela teoria, é preciso recorrer às hipóstases de Plotino. Admirável desinterpretação do Parmênides. Negativa Transcendência do Uno. Radical dimensão meta-ôntica. O drama do retorno parte justamente destas questões.
Solidão do Primeiro Princípio. Eis o que constatamos – a respiração presa, a mente extasiada, o coração palpitante – desde as primeiras páginas de Plotino: o Uno real, o Uno total, aparece radicalmente separado do Universo, acima da essência e da vida, da parte e do todo. Não é qualidade ou quantidade. Não se move, nem descansa. Não possui forma ou figura. É absolutamente o Separado. Além do ser (epékeina óntos). Transcendência dele em tudo. Imanência de tudo nele. A multiplicidade do cosmos provém do não-múltiplo, e não pode existir a multiplicidade, sem a existência daquele. Assim é a árvore da vida. Onipotência absolutamente dona de si mesma. Tudo parte do Singular.
A superclaridade do Primeiro Princípio expande-se como plenitude que se comunica, autárquica e sem desejo, ao Filho. O pensamento – ato essencial do Intelecto – é plural e o seu índice metafísico é infinitamente menor se comparado ao Uno, mergulhado como se encontra na in-diferença. Eis a razão pela qual o Uno seria incapaz de pensar a si mesmo, pois, se assim o fizesse, deixaria de ser unidade originária, tornando-se sujeito e objeto. Conquanto deficiente e posterior, o Intelecto é o primeiro dos seres e, por um movimento de regresso (epistrophé) ao Pai, contempla o Uno, que não pode ser pensado senão como perene explicitação de si mesmo. A distância que os separa corresponde ao abismo do Infinito. Mesmo assim, o Filho é o ser mais próximo do Pai.
Ao deixar ser a diferença do Intelecto através da processão, o Uno nada perde de sua autarquia. Permanecendo, gera o Intelecto de si mesmo, tal como o fulgor dos raios solares. A inteligência primeira é um kósmos noetós que possui um aspecto ativo e subjetivo, o ato de pensar, e um aspecto passivo e objetivo, o conjunto das ideias. A vida do Intelecto é a luz primeira, que se acende e resplandece sobre si, iluminante e iluminada, puramente inteligível, que se vê por si mesma e não tem necessidade de outra iluminação. Para Plotino, as ideias não representam o conteúdo do Intelecto, mas significam o próprio Intelecto. Cada ideia é ao mesmo tempo intelecção e inteligência. Salvaguardar-se destarte a especial unidade-múltipla do Filho.
Ao contemplar os inteligíveis, o Intelecto reverbera a imagem destes na Alma, comunicando-lhe o próprio ser. Daí porque a Alma é o verbo do Intelecto. Uma parte dela permanece no inteligível, fora do cosmos, contemplando o Intelecto. A outra parte avança em direção dos seres sensíveis, aos quais dá vida. Se a primeira é comparada ao agricultor, a segunda é comparada à árvore. Aquela é transcendente. Esta, imanente. Sendo dupla a sua natureza, seria melhor para a Alma viver no inteligível. Apesar disso, domina-a uma necessidade de participar do mundo sensível. Eis a característica que lhe permite criar o mundo com a memória dos inteligíveis. A Alma – diria Ficino num contexto maior – é o rosto da totalidade, o centro da natureza e a cópula do mundo.
A Alma do Todo envolve harmonicamente o corpo do Universo. Este participa tanto quanto possível da beleza das ideias, pois a Alma produz contemplando os inteligíveis: as almas individuais,o Sol e as estrelas, os rios e os mares. E a beleza é o sinal de algo ainda mais profundo, o índice de uma imponderável nostalgia, a marca do regresso. A alma sonha com um plano de permanência e contemplação. O Belo é o prefácio do Bem. Eis o nosso destino. Plotino compreende o retorno a Deus como fuga do solitário ao Solitário (figué mónou prós mónon). Chega mesmo a lançar mão da metáfora de Ulisses:

Fujamos pois à cara pátria. Mas como partir, como preparar esta fuga? Não certamente com os nossos pés, porque eles sempre nos levam de um lugar para outro da Terra. Nem é preciso aparelhar carruagens ou navios, mas abandonar todas estas coisas, e não lhes dirigir os nossos olhares, fechar os olhos corporais e despertar outros, que todos possuem, mas que poucos usam.

Um caminho interno e por mares metafísicos. Quando finalmente o solitário chegar ao Solitário, haverá a imanência da alma no Uno, união por presença, êxtase e abandono, esquecimento e arrebatamento. Com o retorno ao Uno fecha-se o círculo. O fim da conversão coincide com o princípio da processão.

IV – PRINCÍPIO E FIM | No cristianismo as questões da Trindade, da Criação e da Encarnação obrigam a repensar a identidade e a diferença. Passamos da emanação à criação. Do deus impessoal ao deus pessoal. Do não-desejo do Uno ao desejo do Pai. Da in-diferença do Princípio à diferença do Verbo. Do indivíduo à pessoa.
Partindo de Agostinho e do Pseudo-Dionísio, podemos distinguir em Deus, em sua transcendente unidade, o mesmo e o outro. A identidade consiste no Deus imutável, sempre igual a si mesmo, infinito em sua perfeição, reunindo os atributos do Uno, do Intelecto e da Alma. Temos aqui a plenitude do ser. A diferença consiste na criação, transcendendo-se livremente a si mesmo, sem deixar de permanecer idêntico, uno e trino, sendo a diferença um momento interno da unidade divina. Afinal, garantida a transcendência de Deus, a pluralidade já não constitui uma diminuição a ser eliminada do Uno e a ser explicitada necessariamente fora dele.
Ao aceitar semelhantes aspectos, Marsilio Ficino critica a teoria de uma processão circular e infinita, como se houvesse um perene permanecer, um perene proceder e um perene regressar. Parece-lhe absurdo um movimento sem fim: tudo seria igual a tudo, sem que a causa final pudesse atuar de modo transcendente. O Uno seria apenas o suporte do processo circular. Além disso, Ficino também empresta às hipóstases um rosto e uma vontade. A solidão do Uno começa a sofrer uma grande mudança, pois a força que atrai o conhecido ao desconhecido,o significante ao significado, não pode repousar na clássica des-afeição do Uno. Se os homens amam o Primeiro Princípio, que acendeu em suas almas essa nostalgia, essa inquietude e essa paixão, também o Pai ama radicalmente e pessoalmente todos os homens. Ninguém mais se dissolve no seio da matéria universal ou na unidade de uma inteligência que é a forma da matéria humana. Trata-se de uma relação profunda e radicalmente pessoal. Deus agora tem face. Una e plural. Conhece os homens na diferença. E já não pode prescindir da face:
"Se amarmos os corpos, os espíritos, os anjos, na verdade não amaremos estes, mas Deus nestes. Por certo nos corpos amaremos a sombra de Deus; nos espíritos, a semelhança de Deus; nos anjos, a sua própria imagem. Assim, no presente, amaremos Deus em todas as coisas, a fim de que em Deus, em suma, amemos todas as coisas. Assim, pois, enquanto vivermos, a ele nos dirigiremos para ver não só Deus, mas todas as coisas em Deus, e amaremos não só ele próprio, mas ainda todas as coisas que estão nele mesmo. E quem quer que neste tempo com caridade se consagre a Deus, enfim, se salvará. Isto é, voltará à sua ideia, pela qual foi criado. Aí de novo, se algo lhe faltar será corrigido e se unirá perpetuamente à sua ideia. Então, o verdadeiro homem e a ideia do homem são a mesma coisa. Por isso, nenhum de nós na terra, separado de Deus, é um verdadeiro homem, visto que dele está separado pela ideia e pela forma. A ela nos levarão o divino amor e a piedade. Em todo o caso,aqui estamos repartidos e mutilados; então, amando, unidos à nossa ideia, nós nos tornaremos homens íntegros, posto que pareceremos ter primeiramente amado Deus nas coisas, para que depois amemos as coisas em Deus, e por isto pareceremos venerar as coisas em Deus para nele estimarmos sobretudo a nós mesmos, e, amando Deus, amamos a nós mesmos".
Como bem observou Kristeller, a vontade é o verdadeiro princípio que põe a alma em movimento e a conduz até o seu fim. O intelecto, considerado superior até quando a mente humana estava um pouco acima dos objetos, revela-se inferior quando o objeto ultrapassa a capacidade do pensamento humano. Só o amor propicia a união: Propius unimur Deo per amatorium gaudium. O intelecto permanece fechado em si mesmo, enquanto que a vontade busca o objeto. O amor e a beleza coincidem aqui. Fons totius pulchritudinis deus est. Fons totius amoris est deus. E a ideia do homem e a sua plenitude também se identificam. O sujeito continua sendo o rizoma dessa metafísica. Pois a diferença torna-se um espelho, onde o amador se reflete na coisa amada e a coisa amada se reflete no amador. Que mais pode refletir o espelho senão a própria face?


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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