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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

ZÓIA PRESTES | Marco Lucchesi e a tradução


ZP | A tradução é uma arte?

ML | Não tenho dúvida. E sobretudo aquela mais sinfônica, ou seja, a que demanda muitas partes e instrumentos, tonalidades e camadas de harmonia. Como a tradução de Pasternak do Fausto de Goethe. Ou de Nerval, debruçada sobre o mesmo Fausto.

ZP | Você valoriza mais a tradução direta do original? Por quê?

ML | Sim, desde que não se perca a centelha misteriosa do texto de origem, mesmo que seja um breve fio de luz. Conhecer o original é condição necessária, não suficiente. O tradutor precisa conhecer bem a língua de chegada e a variedade de sua tradição literária. Assim, existem traduções feitas do original por estrangeiros – exceção do saudoso Paulo Rónai e de poucos – que tornam ilegível a leitura em português.

ZP | Você acha que toda tradução indireta é ruim? Por quê?

ML | Depende de quem, das condições, das circunstâncias. Deve-se evitar, a princípio. Mas não é um aval absoluto. Bilac traduziu maravilhosamente um poema de Puchkin, do francês. 

ZP | Existem obrasintraduzíveis”? O que seria para você uma obra impossível de traduzir?

ML | Toda a obra é sempre – do ponto de vista kantiano – intraduzível. Há quem abrace velhas e impossíveis noções da equivalência entre as palavras. E aqui saímos de Kant para o Gênesis. Certas obras apresentam maiores dificuldades. Mas, apesar de saber que o ponto de partida aponta sempre ao impossível, apesar ou por causa disso, é preciso estabelecer uma poética da tradução, que permita uma clareira de possibilidades. Assumir atitude semelhante é preparar um terreno de beleza e precisão.

ZP | Quais são as características mais importantes de um bom tradutor?

ML | A paixão visceral da língua e a condição absoluta de leitor. Absoluta. Arrogante e apaixonada. O conhecimento linguístico não se esgota, antes se desdobra em estratégias discursivas, deslocamentos semânticos e decisões de léxico e morfologia. Mas, se o tradutor não se emociona com o último poema de Iessiênin, ou com a harmonia precária de um Rashkolnikov, como poderá operar apenas com categorias linguísticas?

ZP | Para um tradutor basta conhecer somente um outro idioma ou deve ter outras qualidades?

ML | Todas as qualidades possíveis. Insisto na palavra leitor-tradutor. Quase algo assim como leitradutor. Escrito assim, tem-se a impressão que o tradutor legisla – embora também o faça, em sua precária república de nomes. O tradutor deve assumir com variados horizontes culturais. A condição de leitor impõe-lhe essa tarefa. Como se conhecer duas línguas fosse bastante... Mas não é! Lembro de Lucien Febvre, dizendo aos historiadores: não sejam historiadores, mas antes, arqueólogos, estudiosos de direito, amantes da arte, leitores de economia e sociologia, atentos aos estudos teológicos, científicos e literários, só depois a história virá com mais vigor. O mesmo para os tradutores: sejam tudo menos tradutores. Façam esse percurso, e só depois voltem ao estado inicial. Se não conhecemos a literatura brasileira e portuguesa a fundo, não inventamos a terceira margem necessária.

ZP | Uma tradução exige melhor conhecimento da língua de partida ou da língua de chegada? O que é mais importante?

ML | As duas claramente. Mas se tivesse de escolher, diante de um pelotão de fuzilamento – como aquele contra Dostoievski – eu penderia para a língua de chegada. É como se traduzissem Machado em russo, com a língua de Os irmãos Karamazov ou com a de Pais e filhos de Turgueniev. A coisa muda totalmente. Ficaríamos, talvez, mais felizes com a segunda opção. Mas o exemplo se deu diante das armas em riste de sua pergunta. Prefiro as duas opções.

ZP | Quais os problemas mais graves numa tradução?

ML | A má-leitura. A tradução que não busca a sintonia entre duas tradições culturais, que não traça a delicadeza de uma ponte-pênsil e opera com formas surdas. Porque não se deve jamais perder a poesia, mesmo na prosa. A poesia é um perfume que se insinua em todos os quadrantes da palavra.

ZP | Existem alguns indícios de uma tradução ruim? Quais são os mais fáceis de identificar?

ML | Insisto com a leitura equivocada. Acréscimos, paráfrases inseridas no texto de chegada e ausentes no original. O aplainamento como resultado contra o que é áspero no original. Escolhas redutoras, de ordem paternalista na hora de traduzir. Mas é preciso saber que o não-erro absoluto não existe. Erramos sempre, apesar dos cuidados e exorcismos.

ZP | Como podemos identificar uma tradução ruim quando não conhecemos a língua original da obra?

ML | Chamo de verossimilhança da tradução quando se harmonizam (se for este o caso, ou quando se desarmonizam, propositadamente) os elementos da língua dois. Assim, o cenário, o tratamento, as mudanças morfossintáticas, tudo pode ser checado na língua de chegada. Isto é: ver se as coisas funcionam bem na língua do leitor para a qual se destina aquela tradução. Através de verossimilhança, um parâmetro se insinua. Não funcionar, de acordo com o contexto, pode ser um gesto de saúde da tradução.

ZP | Como você analisa a atividade de tradutor? Descreva um pouco como você trabalha numa tradução.

ML | Traduzi algumas coisas. Trabalho de insônia. Dicionários a não mais poder. E sempre se pode mais. Uma relação de conflito. Orações a São Jerônimo. E um sentimento de imperfeição. De coisa inacabada. Idas e vindas. Satisfação razoável. A tradução é como o velho Portugal que espera inutilmente a volta de dom Sebastião. Como a Rússia de Khliebnikov e o ciclo do Gul Mullá.

ZP | Vigotski (meu objeto de estudo, que é um estudioso que elaborou a teoria histórico-cultural) dizia que toda tradução é uma deformação? Você concorda? Por quê?

ML | Certamente. E nos termos como ele o define. Começa deformando. E depois transforma. Perdas e ganhos. Apuros. Desacertos. Deforma, porque não entra na metafísica da língua. Cada língua sendo um tônus solitário, rude, feroz, impenetrável. Um gesto de violência. Ou de insubordinação. Mas sem isso...

ZP | Como poeta você acha que a forma e o conteúdo podem ser traduzidos ou deve-se, numa tradução, optar por um dos dois?

ML | Sou radical. Mesmo sabendo dos aspectos aditados acima – impossibilidade, deformação, deslocamento – escolho as duas coisas. Como traduzir “Insônia” de Marina Tzvetaieva, sem aquela música estranha, os ventos da noite, os gansos e a melancolia? Como explicar a “Dama” de Blok, o “Homem Negro” de Iessiênin ou a noite profunda de Tiuchev, sem o matrimônio do céu e da terra, ou seja, o casamento da forma e do conteúdo, inseparáveis? A não ser dentro de uma perspectiva meramente instrumental.

ZP | As primeiras traduções dos escritores como Dostoievski e Tolstoi foram feitas para o português, no Brasil, a partir do francês. Você lembra se leu essas traduções ou as leu em francês? Gostou do que leu?

ML | Li no início em português, através da França. Mas também em italiano, que iam ao original, além do alemão e do inglês. Lia aos doze anos, com o samovar em pleno verão carioca. Essas traduções me pareciam boas. Quatro anos depois decidi estudar o russo com a professora Zoe Stepanov.

ZP | Vigotski via na obra literária um meio não de satisfação, mas de “refundição” do ser humano por meio da emoção e da imagem que a palavra representa. Você concorda com essa afirmação? (p. 117 do Iarochevski);

ML | Estou completamente de acordo. Seria impossível a vida sem essa busca de refundição. E a literatura é uma pátria ambígua e solidária.

ZP | Para Vigotski a percepção de uma obra de arte não é uma contemplação passiva, mas uma forma de co-criatividade que exige da pessoa um trabalho espiritual intenso. O que você acha dessa afirmação?

ML | É o caso do leitor-tradutor. Para Eco, a literatura é uma espécie de máquina preguiçosa. Precisamos trabalhar sempre. O autor precisa do corpo e da alma do leitor, a um tempo protagonista e coautor do livre que percorre.

ZP | Você escreve seus poemas em português. tentou fazer versões de dos seus próprios poemas para esses idiomas? (Caso a resposta seja positiva, por favor, fale um pouco da recepção e da crítica. Caso a resposta seja negativa, por favor, diga por quê?)

ML | Sim. A minha condição é bilíngue. Italiano e português. Escrevi em italiano e em outras expressões, mas o português é meu centro de gravidade. Escrevi em russo um poema à saudosa escritora búlgara Svoboda, no livro Meridiano celeste & bestiário, de 2006.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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