quarta-feira, 30 de agosto de 2017

S51 | VOZES POÉTICAS | MARCO LUCCHESI


MARCO LUCCHESI (Brasil, 1963). Poeta, escritor, tradutor.  Autor de romance e memória.  Colunista do Jornal O Globo. Desenvolve projetos de palestras e visitas às prisões. Publicou diversos livros, dentre os quais, Clio, Ficções de um gabinete ocidental, Os olhos do deserto, Meridiano celeste, Carteiro imaterial e Fundamentos da língua laputar (língua inventada). Prêmios: Jabuti, Alceu Amoroso Lima, UBE, Brasília, Simoes Lopes Neto. No exterior: Ministério da Cultura da Itália, Prêmio Marin Sorescu, Prêmio Cidade de Iasi, Pantera d'Oro, de Lucca, Cidade de Turim, dentre outros. Doutor Honoris Causa pela Universidade de Timisoara. Membro da Academia Brasileira de Letras. Professor titular de literatura comparada da UFRJ.

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ALFREDO BOSI | Clio e Insônia na poesia de Marco Lucchesi

ANA MARIA HADDAD | Encontro com Marco Lucchesi

FAUSTINO TEIXEIRA | Itinerários de Marco Lucchesi

FLORIANO MARTINS | Dois livros de Marco Lucchesi

FLORIANO MARTINS | Uma conversa com Marco Lucchesi

MARCO LUCCHESI | A Bíblia dos Ventos: Molnár, Márai, Kertész

MARCO LUCCHESI | Ao Leste do Tibre

MARCO LUCCHESI | Aquiles e a tartaruga

MARCO LUCCHESI | O livro do amor, de Marsilio Ficino

ZÓIA PRESTES | Marco Lucchesi e a tradução







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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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ALFREDO BOSI | Clio e Insônia na poesia de Marco Lucchesi


Clio e Insônia, a História que tudo penetra e a imaginação que se mantém vigilante mesmo nas horas noturnas – eis o enlace de opostos que em discordia concors se enlaçam para criar a poesia de Marco Lucchesi.
A História vem primeiro. O poeta, que já percorreu tantas paisagens e as disse em tantas e diversas línguas, agora aponta a sua bússola para o passado entre real e mítico de Portugal. Tudo começa à beira do Mar Oceano, promissor mas tenebroso, rota das Índias e de naufrágios.
Essa descida ao âmago da experiência de temerários navegadores é contada no plano dos acontecimentos remotos e na esfera do imaginário em que se inscreve a palavra do poeta.
No coração da memória está a viagem às Índias, aquele mundo remoto e fabuloso que incendiou a imaginação dos lusíadas:

Perdidas/no caminho/para as Índias/passam /as naus/desertas/pela noite escura:/afogam-se/oficiais/corsários/capelães

À grandeza sem par das conquistas d’el Rei sucede o desastre do jovem príncipe desaparecido nos areais de Alcácer Quibir. A glória se desfaz em luto. A luz esconde-se por trás da névoa espessa. A História cede ao mito. E do mito de Dom Sebastião, o sempre Esperado, o sempre Encoberto, profetizado nas trovas do sapateiro Bandarra, emerge a poesia. De Camões a Fernando Pessoa, tudo é bruma que o gênio de Antonio Vieira procurou em vão dissipar.
Marco interioriza essa teia de enigmas na sua lírica silabada em que ressoam cadências ungarettianas, luquesas;

 Não tenho novas/ de bandarras/que se tornem/profecias/nem de quem possa/desatar/o quinto império/da névoa espessa/por onde/se dissolve/a língua em que me afogo

Nesses versos de sonho e sangue prenuncia-se a passagem da poesia de Clio para a poesia de Insônia. À medida que se lê a meditação pungente expressa na abertura do livro, vai crescendo no leitor a certeza de que a História acontece fora e dentro da voz lírica. Objeto e sujeito encontram-se e fundem-se como sempre se dá na verdadeira poesia.
As praias e as ilhas, o escolho e os sargaços, o mar e as areias, em suma, a paisagem marítima que está no cerne do imaginário luso, é acolhida na alma insone do poeta, que a transfigura em imagens e modulações de sentimento.
A carta de achamento quinhentista torna-se o lugar “onde me perco”. O que é a perfeita metáfora do ser em perpétua oscilação entre o polo do encontro e o polo do desencontro, norte e desnorte, ora simultâneos, ora sucessivos: E/ quando começo/ a buscar/ mais longe/ me vejo.





 E mais adiante:

Trago nos olhos/o clarão/de um mundo inacabado

Insônia: um trabalho árduo de busca e achado do que T.S. Eliot chamou, com precisão, “correlato objetivo”. A figura traduz no seu corpo concreto de imagens a vivência, que de outro modo não alcançaria comunicar-se com força e nitidez. Exemplar, nesse sentido, o poema “Contraste” no qual “o fundo claro de teus olhos” está acoplado com “as cordas tensas do destino”. A imagem humanizada dos olhos remete ao mais enigmático dos termos que designam a vida humana: destino.
O mesmo se pode dizer do poema “Onde”. Aqui a imagem é a da maresia, e a vivência é a da insônia. Com isso, a experiência de cada um de nós é como que prismatizada na riqueza de perfis que só a imagem poética consegue oferecer.
Clio e Insônia – só o tempo dirá se nesta obra tão original e densa Marco Lucchesi atingiu o ponto mais alto de sua carreira poética. Mas certamente a sua juventude espiritual nos dá seguras esperanças de que o poeta se encontra apenas “nel mezzo del cammin”.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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ANA MARIA HADDAD | Encontro com Marco Lucchesi


AMH | A Filosofia é muito presente em sua poesia, nos seus ensaios, em suas traduções e até em seus romances. Em que medida literatura e filosofia podem dialogar?

ML | Estudei filosofia desde muito cedo. Sempre o fascínio das ideias. Folheio meus antigos cadernos de lógica formal e metafísica. Comecei com a escolástica, com a técnica árdua e precisa, desde o edifício de Tomás de Aquino, sólido e imponente, que se eleva para uma zona inefável, como a ideia da palha, como disse Tomás antes de morrer. Recomendo a meus alunos o estudo da escolástica. Não para permanecer atado a um endereço, mas para criar uma disciplina, um ateliê do pensamento. Estudei Platão e Aristóteles, diretamente nos livros. Num certo nível, os manuais tornam-se mais complexos, num certo sentido, evidentemente, do que a leitura direta dos textos. Depois Descartes, aquele que não foi cartesiano, como gosto de lembrar. E muitos anos com Hegel e Kant. Estudei na Alemanha, em meu pós-doutorado, as filosofias do Renascimento, que me encantam, com aquela sobreposição de famílias neoplatônicas, e aproximações pouco ortodoxas com a alquimia e a cabala. Não vejo separação. Nem acredito que as obras se resfriem. Porque se trata de um pensamento emocionado, de fundo agostiniano, por assim dizer, como a escrita poética dos filósofos romenos como Constantin Noica e Lucian Blaga. Um olhar sobre os pré-socráticos, pode clarear muitos aspectos sobre a presença da filosofia para além de si mesma, ou dos sistemas omnívoros que se organizaram em vastos repertórios, específicos, fechados. O diálogo se deu no princípio e não se deve perder num século em que a fronteira dos gêneros tem-se tornado cada vez mais ambígua, criando novas linguagens e inusitadas vizinhanças.

AMH | Como vê o conjunto das obras de Sartre? Sob sua perspectiva, ele conseguiu estabelecer limites entre os romances e as obras estritamente filosóficas?

ML | Um monumento, pela extensão e variedade, por uma heterogeneidade homogênea, por um sistema de circulação retroalimentado, vaso-comunicante, sujo de vida e portanto atravessado pela práxis. As fronteiras abertas, porosas, fazem com que O ser e o Nada converse com A Náusea e A idade da
razão. E a formidável presença política, não me refiro apenas ao engajamento, mas a um profundo entendimento existencial do quadro em que a dimensão da polis se posiciona, como por exemplo em As moscas, ao aproximar o teatro moderno com o antigo, as demandas latentes, a derrota e a coragem de naufragar. Tendo ou não um espectador. Sartre permanece como a figura primaz de intelectual que atravessa o século XX e que parece momentaneamente condenado à morte no vazio da modernidade líquida, na geleia espessa do tempo que nos atravessa.

AMH | Deleuze, em diversos momentos, afirma que a Éthica de Spinoza deveria ser lida por todos, independente do grau de escolaridade. Concorda com tal afirmação?

ML | Vivemos, como alguém disse, o século de Deleuze, cuja obra não cessa de surpreender, nas obras mais famosas, em cartas e artigos menos visitados. Ele representa uma nova potência de reconfiguração de algumas tradições do Ocidente profundo. Deleuze escreveu seu famoso Espinoza e os signos, para citar o mais conhecido, onde emerge uma perfeita continuidade entre dois tempos, em aparência, quase irredutíveis. No que me diz respeito, como leitor de Espinoza, Farias Brito e Nise da Silveira, a resposta que dou é “contaminada”, dentro da família que acabo de citar. Há no Brasil uma densa comunidade, embora dispersa, ligada ao filósofo. Soube mesmo que a Ética foi um pequeno best-seller, numa edição bilíngue, publicada em Minas Gerais. Acompanhei com afeto e admiração as sete cartas de Nise da Silveira a Espinoza, a última delas versando sobre a morte. Uma grande síntese feita em língua portuguesa é de longe a de Farias Brito, em A finalidade do mundo. Só me resta concordar com Deleuze.

AMH | Impressiona demais, em suas obras, a diversidade e pluralidade de temas abordados. Percebe-se, com muita clareza, a familiaridade com que conduz os mais diversos conceitos de Matemática, Química, Física, Astronomia, História, Filosofia e outros, desde suas primeiras publicações. Poderia nos explicar como se dá tal diálogo?

ML | Trata-se de uma busca radial. A epistemologia da ciência me atrai vivamente. De um lado uma pulsão renascentista, ou goethiana, que paira no Ocidente: uma totalidade que não se deve perder, não totalizante, nem totalitária, paisagem que não se limita a fragmentos isolados, como as mônadas de Leibniz, mas à espuma de que fala Sloterdijk. Por outro lado, a ideia de Wittgenstein, segundo a qual o fragmento deve trazer impresso a marca do todo. E poderia continuar assim, entre Novalis e os pré-socráticos, Paracelso e os fractais. Esse todo é, na verdade, um espaço de busca, expressão de movimento, realidade que se espraia no conteúdo crescente, como queria Karl Popper, instigante sobre desafios e correlatos da física dos quanta. A astronomia veio com o primeiro telescópio, aos doze anos, e que continua hoje, sob o céu de Itacoatiara, sob o reinado de outro telescópio de ótima abertura, que me acerca de algumas formas celestes. Uma espécie de epifania é olhar o céu noturno, de Kant e Pascal, Safo e Bilac. O céu que cobre nossa vida e como um sonho se dilata, sob a qual se acionam os maquinismos da História, na complexa tessitura temporal. Estudo a sua epistemologia com intensidade, esfinge, pedra e hieróglifo. Por outro lado, a matemática acabou por se tornar um resgate algo intempestivo, que folheio nos meus cadernos de cálculo, entre a logística de Russel e o indecidível de Gödel. Assinalo, em poucas palavras, que o desenho de um saber radial deita raízes no estudo da poética em que cada saber se constitui. Eis o princípio da inteligibilidade, horizontal, que tanto me fascina, a ponte possível, um centro de atração contra uma natural força de ordem centrípeta.     

AMH | A música, também, é uma linguagem muito presente em suas obras. Quer de forma mais explícita, quer de forma subjacente. Ela é muito especial para você? Poderia nos falar um pouco a respeito do assunto?

ML | Todas as noites, antes do intenso combate da insônia, estudo as partituras, o tempo das notas e os silêncios, escrevo depois como acho que poderia tocar, com as mãos ao piano e me distraio com pequenas variações e outros pequenos crimes, praticados em casa, de lesa-obra, variando tempo, ritmo tonalidade. Igual ao menino que adorava abrir os brinquedos para ver como funcionavam, que foi o que fiz e de modo visceral. Ouço diversas mídias, e não desprezo um detalhe sobre a execução. Pensar a música e realizá-la é algo que se tornou primordial para mim. Estudei piano e canto, do ponto de vista canônico, tradicional, em paralelo com a música de vanguarda, a música étnica e a MPB. Posso passar alguns dias sem escrever, mas nem um só dia sem música. Vou ao teatro e às salas de concerto quando não há indício de naufrágio. A poesia que me escreve repousa decerto sobre uma base melódica, embora, atualmente, pressinta outra dinâmica, um desejo interno e mal esboçado, flutuante, fantasmal, de trazer à tona mais dissonâncias, novos ruídos, ao arrepio de certas opções que tomei nos últimos anos. Talvez não descarte reflexões acerca da escrita musical. Sou muitas vezes capturado pela melopeia, como um fio de Ariadne, quando meu labirinto, ou, laborintus, segundo alguém disse, torna-se mais incerto, escuro e tormentoso. A música é o fio de ouro, uma janela aberta, luminosa e alta, que me faz prosseguir às cegas. Tenho um piano dentro de mim e não sei até que ponto esqueceram de afiná-lo. 

AMH | Transita, como poucos neste país, tranquilamente, pela Torre de Babel. Consegue trazer para o Brasil contribuições raras e inestimáveis de outras literaturas. Vê-se pelas suas traduções a seriedade com que trata o assunto. Poderia explicar como isso ocorre?

ML | Menino bilíngue, desde o seio materno, eu me pergunto como ressoavam as melodias de minha mãe, lá onde eu me alojava, em suas vísceras, ou como repercutem, ainda hoje, seu canto quando me acalentava de noite, no berço. Duas línguas e duas pátrias me definem, duas melodias, duas fronteiras porosas, que não sei onde começam e tanto menos onde terminam, sem passaporte, sem salvo-condutos. Desse ponto de partida, habitado por uma solução anfíbia e sobreposta, que são as línguas que me habitam, não resisti ao encanto de outras, como Ulisses diante do canto das sereias. Pelo que sei, meu avô salvou-se do campo de
Mautthausen, na Áustria, porque sabia alemão. Também o neto, que não o conheceu, em outras e recentes latitudes, sobreviveu pelo simples fato de pronunciar a língua de um lugar. Eu me comovi nos campos palestinos, Sabra e Chatila, em árabe, assim como numa prisão do Rio, quando encontrei um romeno e em sua língua materna conversamos. Sim, de fato, aprendi muitas línguas, talvez excessivamente, menos para falar do que para chegar ao outro, decifrá-lo quanto possível, adivinhar como organiza o mundo mediante a palavra, na língua original da poesia, das gentes vivas e mortas, imagens de um passado perdido e de um futuro incerto. Para ouvir o grito dos povos, dos refugiados e migrantes da Mãe-Terra, ferida pelo Princípio esperança de Ernst Bloch. Essa urgência de ler o mundo levou-me ao exercício da tradução dos autores que me inspiram e de que me torno amigo, ideal, pela distância no tempo e no espaço. Uma página de Aristóteles vive, com a delicadeza e precisão do grego antigo, assim como a língua de Farias Brito quando fala de Spinoza abrange novas faces, no latim de Tomás de Aquino claro e preciso, no rigoroso alemão da Razão pura de Kant. Vivemos todos à sombra de uma Torre, que se não chega ao céu, cria um horizonte especular capaz de refletir em cheio o rosto da alteridade.

AMH | Nos seus ensaios, em especial, observa-se um entusiasmo raro, nos dias de hoje, por tudo que o cerca. Poderia nos falar um pouco sobre isso?

ML | O ensaio entendido como Unamuno, o ensaio como ensaio, “cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte alguma”, como dizem os místicos, e, portanto, suspenso e incompleto como inscrição. O ensaio é um laboratório que ensaia, justamente, e assume todos os riscos, sem medo de enveredar por um caminho cego ou de andar numa rua de mão única, para citar Benjamin. Considero o ensaio como um sonho de olhos abertos, entre rigor e aventura, como quem sonda e perscruta, no verso e no anverso, um tapete persa, e não se dá por satisfeito com o ponto final, porque saber que não cessam os motores de busca. No ensaio pode-se tudo, ou quase tudo, desde que se constitua uma linha discursiva, ao mesmo tempo reta e sinuosa, que se oriente na direção de um não saber, no coração do entusiasmo e do princípio da incerteza. Penso em Octavio Paz e Eduardo Lourenço, em Claudio Magrisou George Steiner. Trata-se de um gênero socrático, prescrito pela farmácia ambígua de Platão, de quem somos herdeiros e órfãos de um sistema incerto de significação.

AMH | Em suas obras há alguns elementos recorrentes. Um que chama a atenção é o azul. O que significa o azul? Por que o azul é tão presente em suas obras?

ML | É algo que descubro agora, obrigado. Um leitmotiv que se antecipa ao personagem não configurado ainda, ou que do ponto de vista pirandelliano me pressiona para deixá-lo viver? Meu saudoso amigo Israel Pedrosa, que dissertou sobre a cor inexistente, se vivo fosse, quem sabe não me ajudasse agora. Será o azul dramático e perfeito do sertão, sem chuva para dessedentar o homem e a terra? O azul do Atlântico que feriu os olhos de meus pais quando chegaram ao Brasil, impresso para sempre em suas retinas? Talvez o azul do céu do Cairo, em pleno Ramadã, com Nagib Mahfuz, ou talvez o azul de Tóquio, pálido e sutil, quando conheci o poeta Tanikawa e o bule do chá formava uma espiral ardente? O azul que cobre a colina de Santo Stefano, em Lucca, onde ouvi Arturo Paoli falar dos pobres e miseráveis? Talvez o azul de Lima, quando abracei, comovido, o padre Gutierrez, que formulou, com Leonardo Boff, a teologia da libertação? O azul da praia de Copacabana, onde nasci, e sobre cuja areia ensaiei os primeiros passos? Acho que nenhum deles em particular, mas todo o azul, dentro do qual me perco e para o qual me adianto, a cada dia, rumo ao sublime esquecimento. 

AMH | Suas obras têm sido traduzidas para o italiano, árabe, romeno e muitas outras línguas. Tal fato é muito relevante para a literatura brasileira e, claro, para o Brasil. Poderia falar um pouco sobre isso?

ML | A literatura brasileira dispõe de crescente receptividade no mundo com leitores apaixonados por nossos autores, Clarice, Guimarães, Drummond e Machado, para não mencionar outros que há mais tempo circulam ou atingem larga tiragem. O sistema literário brasileiro possui muitos pontos nucleares. Não são poucos, no entanto, os desafios, no campo jornalístico e editorial. Quanto à poesia torna-se um pouco menos árduo seu processo de circulação, ao redor de um conjunto de poemas. Permanece contudo o desafio da traduzir e cooperar quando o poeta e o tradutor navegam nas duas águas, para chegar a uma terceira, que é a
tradução realizada e que se distancia (ou se aproxima) do texto de partida. O tradutor não pode perder de vista que a sua missão consiste, direta ou indiretamente, em promover a cultura da paz, de reportar o princípio dialógico para dentro do próprio diálogo como queria, de forma reiterada, Martin Buber. As relações bilaterais devem ser pautadas pela cultura da paz e, nessa via, a tradução faz as vezes de um autêntico embaixador.  

AMH | Admirável como a solidão, o amor e a amizade são temáticas presentes em suas obras. Nas mais variadas dimensões. Poderia comentar um pouco sobre o assunto?

ML | Não havia pensado nisso, eis uma chave de entrada, uma porta de saída, um algoritmo. Amor. Solidão. Amizade. Talvez um Eu-Tu, disposto a reunir um conjunto de fatos dispersos, uma temperatura média entre os polos, com alguma variável climática. Talvez pudesse enfeixar tudo no mistério do rosto e da hospitalidade. Como traduzir meus assombros, como analisar os textos que já não me pertencem, publicados, em outras mãos, e que se afastam de mim com a velocidade da luz? Poderei reconhecer nos fragmentos textuais o rosto atual que de algum modo me traduz, de mim para mim, e me oferece a ilusão de que a imagem refletida represente aquela original? Estou seguro apenas no tocante à solidão, quando me hospedo ou me agarro às minhas forças, quando me eclipso e me guardo com zelo feroz. Um traço biográfico ou uma inflexão textual? Ambas as coisas? Acho que se trata do tema do rosto, como pensa Lévinas, o mistério do rosto, a inefável beleza de um semblante, e insisto uma vez mais no Eu-Tu. Quem sabe tudo não se resolva numa constelação nebulosa, onde brilhe, solitária, como pensa Rosenzweig, a altiva Estrela da redenção?    

AMH | Desde que o Nobel foi instituído pouquíssimas mulheres conseguiram conquistá-lo. Inclusive, na literatura. Quais seriam, sob sua ótica, as principais razões?

ML | O número é injusto e desproporcional e não corresponde a um quantum de realidade. Mas segue assim em tantas coordenadas sociais, no mercado de trabalho, no recesso das casas. Mas a mudança já se tornou incontornável. A mulher também opera no diapasão para consolidar a suspirada cultura da paz em nossos dias. Será outra no futuro a porcentagem.

[Julho de 2017]


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Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
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1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

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FAUSTINO TEIXEIRA | Itinerários de Marco Lucchesi


Marco Lucchesi acaba de ser eleito para a cadeira de número 15 da Academia Brasileira de Letras (03/03/2011), que tem como patrono Gonçalves Dias. A cadeira vinha antes ocupada pelo padre jesuíta, Fernando Bastos de Ávila, falecido em 06 de novembro de 2010. A posse está marcada para o dia 20 de maio de 2011, na ABL. Marco Lucchesi nasceu no Rio de Janeiro, em 09 de dezembro de 1963. Como identificou sua amiga Nise da Silveira, o símbolo do sagitário expressa bem a personalidade desse carioca especial: “O Centauro, os pés encravados na Terra, com mãos firmes busca orientar a flecha em direção às estrelas”. Alguém animado pela “nostalgia do mais”, com o coração fincado na terra e o olhar habitado pelo horizonte maior. Um apaixonado pelas línguas, da terra e do céu. Filho único, nasceu sob o embalo bilíngue toscano-carioca. Herdou de sua mãe, Elena Dati, a paixão pelo piano e pelo canto, e nessa ternura filial foi tecendo os traços fundamentais de seu cotidiano. Relata em entrevista que a música foi fundamental para ele, e com ela “a poesia das coisas”.
Em seguida veio o interesse pela literatura e a filosofia, desdobrando-se no amor à poesia. Assinala que sua primeira tradução séria foi a do “Cântico Espiritual”, de João da Cruz, realizada aos dezesseis anos: “Deixei o piano visível (ou quase) pelo piano invisível da poesia…”. E Marco se revelará um tradutor de primeira grandeza. Vale lembrar a impressionante tradução de Baudolino, de Umberto Eco (Record, 2001), inspirada pelas paisagens de Itacoatiara, da Itália e do Irã. Revela que essa tradução foi pontuada pela leveza, mesmo assim, foram cerca de doze versões do primeiro capítulo. Identifica-se como um “tradutor dostoievskiano”, cujo trabalho não tem nada de solar, mas vem acompanhado por muito sofrimento e tortura. Busca sempre “a equivalência impossível. A palavra perdida”. São ilhas irredutíveis. A tradução é para ele “um processo físico tremendo”, fervido em insônias inesgotáveis. Daí ter decidido mudar de perspectiva, e diz: “Resolvi acabar com o tradutor que me habita, antes que ele acabasse comigo”. Mesmo assim, num trabalho realizado em comum, brindou-nos novamente com o seu dom, no livro “O canto da unidade: em torno da poética de Rûmî” (Fissus, 2007 – Prêmio Mario Barata, UBE 2008), com lindas traduções dos Rubayats de Rûmî. Marco traduziu ainda outros poemas de Rûmî (A sombra do amado: poemas de Rûmî, Rio de Janeiro: Fisus, 2000 – Prêmio Jabuti 2001). E também Giambatista Vico (Record, 2000), Primo Levi (Companhia das Letras,1997), Georg Trakl (Topbooks,1996 – Prêmio Paulo Rónai, 1996), Rilke ( Topbooks,1996) e Khliébnikov (Cromos,1993).
Como tão bem mostrou o saudoso Antônio Carlos Villaça, Marco Lucchesi é um poeta da sensibilidade. No centro da sua vida está a literatura. É mais do que um erudito tradicional, pois vem temperado pela poesia: “A sua intimidade com a poesia, com a melhor poesia, o salva de si mesmo e do eruditismo”. Os poemas de Lucchesi são magníficos, temperados com a seiva e o vigor da vida:

Um laço misterioso en
laça e desenlaça
umas às outras as palavras

atiça e des
atina
o silêncio
das florestas

move e dis
persa os pássaros in
visíveis que regem
o sentido das coisas

As imagens que captam o movimento lírico de sua imaginação são preciosas: as “praias esquecidas”, os “oceanos maravilhas”, a “metafísica das alturas”, os minaretes “ávidos de altura e infinito”, o “mar da divindade”, o “planetário de Deus” e o azul, o profundo e inacabado azul de Isfahan… A emoção nos avizinha quando nos deparamos com a beleza de seus Poemas Reunidos (Record, 2000), bem como de outros poemas recolhidos nos livros Sphera (Record, 2003) e Meridiano celeste & bestiário (Record, 2006). Nessa última obra tomamos contato com sua companheira, de olhar profundo, Constança, inspiradora de poemas, mas sobretudo da vida.
Há também o Marco ensaísta e buscador, que desvenda os desertos e as escarpas da alma. Em belos ensaios revela, com o calor de sua intimidade, encontros memoráveis, como os realizados com Nize da Silveira, Adélia Prado, Naguib Mahfuz, Roger Garaudy e tantos outros. Desce também, com dor, pelos “porões da humanidade” e nos possibilita ver o desolador “deserto da loucura”, dos “rostos desfigurados” e dos “corpos descobertos”; o silêncio doloroso e triste de Canudos: “o mais triste silêncio de minha vida”; e o “mundo esquálido e sombrio” dos refugiados palestinos de Sabra e Chatila, esse “horizonte sem horizonte. Tristeza difusa e sem lágrimas”. Do coração do poeta rasga-se o grito de raiva e compaixão… “A……………lla………………ah! O gemido é um dos nomes de Deus”. Dentre os livros de ensaios: Saudades do paraíso (Lacerda Editores, 1997), O sorriso do caos (Record, 1997), Os olhos do deserto (Record, 2000), Memória de Ulisses (Civilização Brasileira, 2006) e Ficções de um gabinete ocidental. Ensaios de história e literatura (Civilização Brasileira, 2009). Ultimamente, o Marco poeta e ensaísta mostra também o seu dom para o romance, com a obra O dom do crime. Rio de Janeiro/São Paulo, 2010.





 Marco Lucchesi guarda um carinho especial pelo diálogo das civilizações, e o encontro das religiões. Talvez seja um dos intelectuais brasileiros mais ativos em favor da salvaguarda do islã verdadeiro e de sua profundidade mística. É portador de um grande Jihâd, o da paz universal. Lança-se com coragem em favor de uma nova perspectiva, de um novo olhar sobre o outro, rompendo com a estreiteza e parcialidade que marca a tradicional mirada ocidental, sobretudo com respeito às culturas do Oriente.
Seus livros nos trazem a profundidade dos grandes místicos como Hallaj, Attar e Rûmî. Nos ajuda, com eles, a desvendar as melodias escondidas do Mistério sempre maior. Nada melhor do que estar à sombra do Amado. Como diz Rûmî, numa de suas cartas: “Se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou me colocar a sua sombra”. Na obra de Lucchesi, como assinala Constança, “as fronteiras são desfeitas: culturas diversas se aproximam, inesperadas, num diapasão musical de novas tessituras”.
O deserto tem um lugar particular em sua vida: “O corpo do deserto me fere de modo irreversível. Sou habitado por uma paisagem de pedra e areia, pela qual sigo enamorado, e beijo seus lábios de vento e desabrigo”. O deserto e o islã o fascinam, e com eles a suave e áspera língua árabe, “de lâminas e espadas”, das línguas a mais bela, a que mais se aproxima do céu empíreo e do sorriso de Beatriz. Para Marco, “o árabe coagula e condensa, com a força do ferro e o brilho do cristal, a idéia que emerge do Sagrado”. O seu deserto “revela oásis inesperados, e deve ter sido a língua escolhida por Deus para falar aos homens. Um Deus infinito e áspero. Físico e Metafísico. Amante da Parte e do Todo…”. Contagia-se também com a beleza da estética do Islã, com seus minaretes que anunciam “impossíveis horizontes”. E também seus buscadores de diálogo, como Massignon e Paolo dall’Oglio.
O currículo de Marco impressiona. Formado em história pela UFF, é também mestre e doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ e pós-doutor em filosofia da Renascença na Universidade de Colônia (Alemanha). Leciona atualmente no departamento de letras da UFRJ e é pesquisador do CNPQ. Tem sob sua responsabilidade a edição de duas importantes revistas: Poesia Sempre (Fundação Biblioteca Nacional) e Tempo Brasileiro. Outra marca de sua formação é o fabuloso conhecimento e domínio de línguas estrangeiras. Um erudito, sem dúvida, mas sem perder jamais a ternura e a humildade, dois de seus mais preciosos valores. Aquela linda casa, na Rua dos Cravos, em Itacoatiara (Niterói) guarda um coração generoso e hospitaleiro. Ali bate forte o dom da música e da poesia, que facultam um “cerco de paz” e possibilitam a cidadania da alegria e da esperança.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
Artista convidado desta edição: Akseli Gallen-Kallela (Finlândia, 1865-1931), genial ilustrador do Kalevala (épico nacional finlandês).
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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FLORIANO MARTINS | Uma conversa com Marco Lucchesi


FM | Em um poema teu intitulado “Meu conflito” (Meridiano celeste & Bestiário, 2006) encontro esta intrigante imagem de um falante que se debate “vida afora à procura de Ulisses”, invertendo o curso mitológico entre busca e extravio. Começamos então nosso diálogo por esta inversão sugestiva. Quem é o interlocutor que procuras?

ML | Ah, Floriano, você aponta para a ferida. O norte. A demanda do santo Graal. A ideia de uma procura que se torna capítulo de outra busca. Ulisses tentando voltar para a sua rochosa Ítaca. E Telêmaco, nos rastros de Ulisses. Uma procura que se procura. Uma demanda que não se consome. Houve de fato uma Telemaquia. Mas pouquíssimos versos nos chegaram desse poema. Eu me aflijo por essa dupla ausência e me enamoro deste ainda-não: a ilha não alcançada e Ulisses não encontrado. Assim, desde cedo fiquei intrigado diante desses textos sugestivos e inatingíveis. A literatura como a demanda de uma contrademanda. Presença e Não-presença. A obra futura e – portanto – inacabada. E uma espécie de verificação do sistema, medindo os limites daquela obra. Ou então: a poesia em estado absoluto, como a de Ulisses, em seus dez anos de errância, e a vigilância do metro, da beleza, da verdade, na inespera crítica de Telêmaco. E esses aspectos cresceram na obra de Dante – quando eu estudava o canto XXVI do Inferno. E me deparo com Ulisses que não volta para Ítaca, indo naufragar nas praias da eternidade, junto ao Purgatório… Mas eu preciso responder, Floriano. Que uma primeira ideia de Telemaquia – para mim – se resolve na busca do Outro. Em Dante, essa visão tremenda do Paraíso XXXIII – de um Deus-livro, no Poeta – e cada um de nós – volta para a sua Ilha. Rochosa e perdida. O meu interlocutor são os que têm na literatura uma pátria de coisas perdidas e inacabadas, cuja beleza se origina precisamente desse estado. O ainda-não como a coroa do rei. Uma telemaquia interna e perigosa. Bela e simultânea.

FM | Em entrevista que fiz ao poeta Sérgio Campos, ele me disse que suas margens de atividade criadora são “a primeira sílaba da primeira palavra de um conjunto e a última do movimento polifônico de vida que ela desencadeia”. É também assim que buscas “o outro lado da noite”?

ML | Bela definição, essa do Sérgio Campos. Metáfora valente. Ora, o outro lado da noite, está em Saudades do paraíso, o livro que me levou para as minhas sílabas, as inserções primeiras de meus dias. Por onde passam Antonio Carlos Villaça, Nise da Silveira, Roger Garaudy, Eco, Rubens Corrêa, Nagib Mahfuz, Adélia, Esquivel, em formas de crônica, ensaio poético. O outro lado da noite, portanto, depois de uma palestra que assisti de Carlo Rubbia, Prêmio Nobel da Física, na Praia Vermelha. Pensava nas potências da palavra. Verso e anverso. Os infinitos infinitos. O grande e o pequeno. Dos universos-bolha. E dos paralelos. Pensei na potência das palavras (Cecília: que potência, a vossa). Palavras capazes de tudo. De guardar e transformar. Pensei em Lucrécio. E de repente – Floriano – precisei respirar vida, o aqui e o agora. Caminhei pelo Bem-Te-Vi, que é o outro lado do Pão de Açúcar. Pensando em amores. Pensando em tanta coisa. Mas tanta, Floriano, tanta, que mal consigo dizer. Influxo. Influência.

FM | E ali em Teatro alquímico (1999), esta configuração preciosa da integração entre aquilo que nos influi e a maneira como também influímos em toda escolha, em todo domínio. “Pertenço a Georg Trakl tanto quanto este me pertence”, dizes. E assim destroças toda uma pasmaceira em torno da influência e suas pequenas angústias. Somos modificados pela história na medida em que a modificamos. Contudo, nosso tempo rompeu desastrosamente com esta identificação profunda entre ser e tempo, e o hiato nos fez perder o lugar de origem, o que nos impede o curso da viagem. Como vês a relação de forças entre ciência, religião e arte, a esfera de poder em que agem e desertificam o mundo?

ML | Vivemos da quebra das possíveis harmonias primordiais. Somos Filhos do Plural e da Névoa. Separados da Origem. Exilados no Futuro. As perspectivas não são maravilhosas. Mas há que aceitá-las, como Nietzsche, tremendamente chocado e apaixonado pela intuição de Sils-Maria. Separações neopositivistas parecem impor uma exclusão absoluta entre os pólos da ciência e da religião. E minha vida tem sido a do diálogo. Trabalho com teólogos. E com cientistas. Sou amigo do físico Ildeu de Castro como do teólogo Faustino Teixeira. Do astrônomo Ronaldo Rogério Mourão, como do matemático Ubiratan D’Ambrósio. Conversei com metropolitas ortodoxos de vários cantos da Europa e do Oriente Médio, como com bispos e aiatolás, no Brasil e no Irã. Com Frei Betto e Leonardo Boff. Cícero – com lágrimas nos olhos – e percorri as mesquitas de Shiraz. A minha paixão tem sido a de conjugar as partes quebradas de um diálogo. E tenho como certo que a cidadania vem dos âmbitos de uma conversa toda marcada de adição. Não quero “ou”. Quero “e”. Dou um exemplo. Estou em Recife. Tenho quinze anos. 1979. Levam-me à casa de Cussy de Almeida, em Piedade. Talvez o maestro não se lembre. Eu era um rapazola tímido. Ele, sem o Stradivarius. Havia terminado de tocar Vivaldi na Sala Cecilia Meirelles. Era uma tarde linda no Recife. E havia um senhor de rosto que me parecia familiar. Sabe quem era, Floriano? Luis Gonzaga. E tratou de tocar “Asa Branca”, como se fosse aquela a primeira vez. Cussy e Gonzaga. Não era “ou”. Era “e”.

FM | Esplêndido ejemplo. Defendia o poeta argentino Aldo Pellegrini que “a imagen poética em todas as suas formas atua como desintegradora desse mundo convencional, mostrando-nos sua fragilidade e seu artifício, substituindo-o por outro palpitante e vivente que responde ao desejo do homem”. Como crês que atua ainda a poesia, considerando sua condição essencialmente subversiva, em nosso tempo?

ML | Quanto admiro o Pellegrini! Sempre criou situações novas e, mais que novas, seminais. Gosto dele. Do Girondo. Da Alejandra. E do Temperley. Pra ficar com os ausentes. Creio ainda – em tempos escuros e sombrios como os nossos – na força imagética. O arquétipo jamais poderá perder sua grande sinergia. E todas as suas implicações. Estamos na era dos homens, bem entendido. Mas a era dos deuses – para falar com Vico, para dividir as ideias de Herder – não creio que ela cesse de todo. Em outras palavras, lembro do impacto tremendo da poesia de Hölderlin, quase que ferido de abstração. E – de repente – nos anos em que se manifestava a loucura, o poema “Patmos”, a espera dos deuses e a vitória absoluta das imagens. Uma tempestade imagética. Um triunfo absoluto da poesia. Das altitudes rarefeitas, esbatidas de um elemento misteriosamente concreto. Pellegrini não erra. E a poesia não conhece limites. Proibições. Sabe apenas de desafios. Desde as Janelas altas, de Philip Larkin, aos livros de Mario Luzi e Milosz, vemos que mesmo depois de Auschwitz, ou por causa de Auschwitz, a poesia não cessa. Mesmo em Celan. Não cessa. O Aleph de Borges. A Dublin de Joyce. Os Cronópios de Cortazar. Tudo em tudo.

FM | Em teu segundo livro de poemas, Alma Vênus (2000), nos deparamos com uma epígrafe de Guimarães Rosa: “Tudo, para mim, é viagem de volta”. Anteriormente se publicou Saudades do Paraíso (1997), um livro de memória. Ali há outra epígrafe, de Mário de Andrade, onde lemos: “só o esquecimento é que condensa”. Tudo nos leva sempre ao passado, ou a esta “nostalgia do mais”, como intitulas uma edição dedicada a Artaud que organizaste em 1989. Se tudo é supostamente memória, em que radica o desejo? Como pensas no futuro?

ML | Com saudades. Saudades do Futuro. Saudades do ainda-não. Mesmo que no passado. A volta de Guimarães Rosa como a volta ao primordial, fora do tempo e do espaço. A demanda de Ítaca e do tempo mítico. Eliot fala do pantempo. Jung, do tempo Áion. Fascina-me a ideia do eterno retorno. E de modo ambíguo. Porque, ao mesmo tempo em que me atrai também me assusta. Outra concepção, a do físico Mario Novello, com suas viagens no tempo. Viagens não convencionais: no papel, nos cálculos. Mas viagem. Nas curvas de tempo fechado. Na herança das cogitações de Gödel. Isso tudo em Alma Vênus, que é um livro temperado por questões cósmicas, em cujas águas eu tentei elaborar um micro-lusíadas quântico, marcado por elementos de retorno (“novos pedros e outros vascos, dos quais marítimos ou anfíbios descendemos”), e observações cosmológicas (“o nada sobrenada entre infinitos infinitos”) e o problema da matéria (“mil pássaros do silêncio dão asas ao coração fugitivo da matéria”). Em Saudades, a ideia da condensação me encanta desde Dante. As almas estão – as do inferno e purgatório – em estado de fulminante compreensão do que foram e do que aconteceu. Dizem medulas e essências. A condensação que a morte inaugura lhes deixou uma espécie de triunfo da clareza. Ou do triunfo da brevidade. Um relâmpago. E as coisas emergem com uma clareza terrível e feroz. Como a clareza de Artaud, quando escreve aos diretores dos hospitais na França… Mas não é no passado e nem tampouco para o futuro. O passado e o futuro são dois fantasmas que podem esgotar – assombrando – o aqui e o agora. O que importa é a conquista do presente. Continente imenso, mas que esbarramos com ele todo o tempo e é como se ele fugisse de nós. Saudades, portanto. Saudades do agora. Como se chega?

FM | Seria a “paixão do infinito”, que intitula um de teus livros. Gosto da tua referência ao “Inferno”, em Dante, como um “imenso hospital”, uma viagem ulterior pela psique humana, igual viagem arriscada por Nise da Silveira, ao buscar o fundamento do ser em suas antípodas. Tens razão: a ousadia maior é tocar o presente. E a chave está ali no verso inicial de teu Meridiano celeste: “Bem sei que as partes / que me cercam /não me atendem”. Vou abstrair todo o caráter metafísico desta afirmação, resumindo-a provocativamente à condição mundana de teus pares. Não sei se somos exatamente da mesma geração, Marco, inclusive porque perdemos, no Brasil, a percepção deste componente cartográfico. Quero saber como sobrevives à ausência de pares tangíveis, contemporâneos teus. Com quem dialogas, afinal? – considerando aqui o plano mais terreno possível.

ML | Olha, Floriano, esse é um diálogo dos mais bonitos de que tenho participado. E como gosto de teus reptos. Porque eles saltam. Mas saltam com tanta seriedade. Sou de dezembro de 1963. Sagitário. Acho que lanço algumas flechas. Aponto o meu telescópio para o céu, na condição de astrônomo amador – um pouco relapso nesses dois últimos anos. De pescar não sei. Nunca me atrevi. Gosto de mandar mensagens em garrafas. E lembro do lindo poema de Whitman. Quando a mensagem chegar até o leitor, talvez eu não exista. E pode ser que ao escrever a mensagem o leitor ainda não existisse. Portanto… sempre esse gap. Essa falta. Essa latência. Os meus pares são os que aderem aos horizontes que buscamos. E não aos que militam na burocracia, no inferno das formalidades desfibradas, sem entusiasmo. Sem aderir à tarefa. Os que têm esse pacto – que é o seu, Floriano – das llamaradas. Vejo, por exemplo, em seus poemas uma presença de fogo tão intensa que a sua poesia carrega a maior concentração de incêndios na poesia brasileira. Assim como nunca choveu tanto na poesia brasileira como na obra de Joaquim Cardozo. Os meus pares, Floriano? A nossa possível cartografia? O excesso!

FM | Quando li teu O Sorriso do Caos (1997), o que mais me chamou a atenção eu posso tomar emprestado de uma observação tua, ali, a respeito de outro livro: “o que realmente encanta neste livro não depende das partes, mas do sistema que as configura”, e recordo que foi a partir deste entendimento que escrevi uma resenha, à época, sobre o livro. O desenho ou estrutura de teus livros dá no alvo do que propões. Não tens a presunção do protagonista onipresente. Assim como Per Johns acertou ao dizer que em Os olhos do deserto (2000), “o deserto é o personagem”, podemos dizer que a biblioteca é o personagem em O Sorriso do Caos, ou que Marco Lucchesi é o personagem em Meridiano celeste. Esta “aventura da unidade” é algo que se contrapõe a uma dispersão corriqueira se observarmos como são pensados os livros entre nossos contemporâneos. Como lidas exatamente com este sentido da unidade?

ML | O sentido da unidade, Floriano, é uma necessidade tão delicada e dramática em mim… Começou quando eu estudava metafísica – nos livros latinos –, quando eu estava enamorado de universais e de transcendentais. A procura da unidade. A procura da causa. Esses fantasmas que me tomaram de assalto na minha juventude. Veja só, Floriano. Eu estava dividido e levei tempo para aglutinar a metafísica e a revolução. A ontologia e a dialética. Tempos em que eu estudava muito lógica e matemática. Tempos árduos em que eu acreditava – quinze, dezesseis anos – que o mistério podia ser matematizado. Pensava nisso. Mas desconfiava. A ideia da unidade, como transcendental puro. Depois, com Dante, sempre Dante, apostando na unidade de cada pedra na Comédia. Pedra. Astro. Nuvem. Tudo muito cerrado. Muito articulado. Não uma enciclopédia booleana, apenas, mas uma rede profunda de remissões, desprovida de acidentes ou gratuidades. E tudo isso, contudo – e essa era a parte mais admirável – tudo isso começando a se dissolver no último canto do Paraíso. A liberdade na linguagem. A unidade como segurança ontológica. Depois, porque sempre tive uma espécie de repugnância por uma coleção de livros, ou de ideias, que não se tornassem mais abrangentes e interdependentes. A ideia não é a de fechar os olhos diante do caos que nos circunda, e de não ler os saltos, os cortes, os devaneios, clivagens e fragmentações. Essas questões são reais, existem assim como são – e o trabalho da razão está em amar a biodiversidade dionisíaca e lançar um diálogo luminoso através de Apolo. Sem oposição. Concordo plenamente que em O sorriso do caos a biblioteca é a personagem. Leio os livros que me lêem. E tento uma espécie de breve cartografia pessoal dos livros que formam a minha república. Em Meridiano o poeta é o tema do livro. Da busca de si mesmo. Cheio de livros. Mas de vida. De viagem. E minhas loucuras. Meus venenos. Minha insensatez. A unidade e a dispersão. Eu gosto de trabalhar na beira, no limite. Dante tem a belíssima ideia de como narrar Deus. Se o decide fazer, a ideia é a do sonho, que se desfaz pela manhã. Ou da neve que se liquefaz sob o impacto do sol. Ou quando finalmente trata de Beatriz e diz ser impossível descrever sua beleza – Borges amava essa passagem: E qui convien saltar ogni costrutto. Não dá para avançar no seio da unidade… então convém saltar. É disso que eu gosto Floriano: a coisa minuciosa e flexível. A unidade quase se quebrando. Mas sobretudo a liberdade. Responsável. De acordo. Mas sempre a liberdade. Porque o que conta é a intangibilidade do rosto de Beatriz.

FM | E naturalmente os muitos rostos de Beatriz, a exemplo da Camila que encontramos em Bizâncio (1997) ou desta ainda mais enigmática Leila que buscas em Os olhos do deserto, estou certo?

ML | Claro! Claro! Embora exista um abismo entre ambas, trata-se de um mesmo rosto perdido. O rosto da poesia. Os seios do futuro. Túmidos de espera. Leila é outro momento de libertação. Foi um livro – sobre o qual você escreveu com tanta beleza – que me veio de uma felicidade. A de estar em nova geografia. Novo céu. Nova cidade. A experiência da guerra. E da paz. Como e quanto se acenderem as minhas esperanças, Floriano, em outra língua, em destinos impensados e insabidos. Nos olhos de Leila – personagem puramente fictícia – o lugar em que cumpro o que me resta de paz e a luz inesperada de minha possível redenção.

FM | Chega a ser desnorteante para o leitor afeito à poesia deparar-se com declarações de um mesmo crítico no tocante à condição excelsa de cada poeta que comenta, ou seja, a cada resenha sempre afirma ser aquele o poeta que produz o que há de melhor na poesia brasileira. Quando não age assim a nossa crítica ela simplesmente se cala, deixa passar despercebidos valores expressivos. Completa o quadro a recusa em aceitar determinados fatos poéticos que se impõem por si mesmos, claro, porém que são prejudicados por um verdadeiro sistema de rejeição. Os motivos, nos três casos, são sempre da ordem da cegueira, da presunção e dos interesses cartoriais. Com tudo isto, o leitor se ressente de confiabilidade, vive em desamparo, ou pior, é induzido a uma falsa convivência, a uma falsa aprendizagem. Acreditas que esta seja uma situação remediável? Dá para avaliar seu custo e apontar alguma perspectiva de mudança?

ML | Esse tema um pouco nos abate a todos. Momentos de desesperação. Não raros. A crítica de poesia – meu Deus, Floriano… Que tema duríssimo, esse. Chega a ser uma afronta, o desentendimento. E no Brasil, quantas capelinhas, ainda. Confrarias. Atitudes maçônicas de críticos e poetas. Que se reconhecem. Desta ou daquela irmandade. Quando não se chega ao cúmulo de se escrever poesia servindo a uma tendência crítica! A crítica deve perseguir a poesia, como alvo da linguagem nova que instaura, e não a poesia perseguir a crítica. A inversão muitas vezes se dá por uma vontade – ligeiramente compreensível, mas realmente entristecedora – de entrar para um circuito. Não necessariamente midiático, mas para um circuito de ligeira compreensão. Sair dos guetos solidários. Encontrar o seu crítico. Mas aí está a morte. Pagar o preço da solidão. Pode ser duro, mas não se mede o preço da liberdade. Uma relação cartorial se estabelece e tudo vai perdido. Depois, contamos nos dedos os críticos de poesia. Livres. Que não precisem de bula para a determinação deste ou daquele caminho. E que, sobretudo, respeitem as diferenças. As dificuldades. Eu penso, Floriano, na delicadeza de um Machado de Assis crítico. No exercício da humildade. Mas atenção da humildade como instrumento da crítica e da metodologia. Para saber que a capacidade de admiração não significa derrota do espírito crítico. Que há sempre um brilho possível. E que é preciso descortiná-lo, antes de estabelecer um juízo de valor superficial, que pode custar talentos. Não vamos lembrar aqui do exemplo de Lobato e Anita Malfatti. Mas olha… Não estamos longe de certas posturas semelhantes…

FM | Sim, um exercício crítico que nos permita inclusive aquele “radical elogio da diferença” que evocas em uma entrevista que fizeste a Roger Garaudy. Ou o deleite ante “os pequenos modos da substância infinita”, como Nise da Silveira recorda Spinoza em outra entrevista tua. A crítica que identifique o diverso e se proponha a iluminar suas eventuais zonas obscuras. Não o carteado de mágoas, invejas, preconceitos e negociatas. O que vivemos no Brasil é que as distorções de crítica assumem uma conotação de transfiguração da história. Não se trata de uma leviandade esporádica que a história naturalmente tritura. É todo um sistema de reorientação do próprio eixo da história. A maneira como se supervaloriza a débil representatividade da Semana de Arte Moderna ou de caprichos excludentes como a Tropicália e o Concretismo, ao lado desta rejeição sistemática à incontestável expressão da obra de Murilo Mendes e Jorge de Lima da parte de um crítico-maior como Wilson Martins etc., tudo isto se ramifica por repetição e ausência de contestação. E se repete de outras maneiras, como a configuração de um cinema brasileiro, uma imposição cartorial que sofremos hoje. Há um outro Brasil, sendo fundado em uma mentira, da forma mais cínica que se possa imaginar.

ML | As coisas nesse campo são ásperas. Parece que ainda estamos numa santa cruzada da indiferença e do alto obscurantismo no campo de uma crítica difusa e perdida. A crítica de poesia, meu Deus! E as exclusões, a pressa em catalogar as borboletas, assassinando-as, impedindo-lhes o voo – penso nas borboletas magníficas do México e da Bolívia. Uma espécie de ontologia de juízos apriorísticos, que impedem qualquer abrangência, qualquer tipo de hipótese. Seria preciso escrever uma história da ausência brasileira. Do cânone rígido. Da exclusão total, absoluta e inexplicada. Onde Joaquim Cardozo? Onde Murilo e Jorge de Lima? Pronunciados com desculpas. Apontados como imprecisos. Ou louvados sem que se saiba ao certo como e por quê. Mas isso não pertence apenas ao campo da literatura. Mas ao da cultura – quero dizer de modo mais abrangente, sem produzir clivagem. Veja o caso da música brasileira. Henrique de Curitiba. Mignone. Radamés. Guerra Peixe… São praticamente matéria inatingível. Por isso eu sugiro o livro A Literatura Brasileira, Ausente de si Mesma.

FM | Em Bizâncio, há um capítulo dedicado a traduções, um encontro com poemas, mais do que com poetas, que presumivelmente expressam uma afinidade estética. De alguma maneira recordo o mexicano José Emilio Pacheco, ao inserir em Tarde o temprano (1980) um capítulo igualmente dedicado a traduções de poemas. Pensemos na ideia de aproximações, defendida por ele, ou de visitações, como sugeres, é fato que a poesia somente se realiza no diálogo, neste convívio inesgotável com a tradição. Mesmo quando se declara uma imitação ou um pastiche, o que se revela é o diálogo, onde importa essencialmente identificar as duas vozes. De outra maneira, instaura-se uma submissão, com consequente diluição, empobrecimento da linguagem poética etc.

ML | Floriano, você sabe que eu precisei escrever – isso é verdade, não é blague – uma carta para mim mesmo e para várias editoras avisando de minha morte como tradutor. Reproduzi uma parte dessa atitude em A memória de Ulisses. Sobretudo porque a tradução para mim foi sempre um imenso sacrifício. Um trabalho desesperador. Um massacre. Um convite para insônias. Clarões. Exílios terríveis. Abandonos. E veja, as traduções de Eco me maltrataram pelo volume e pelas exigências. Mas o meu duro exercício foi com os russos, o Doutor Jivago, e com o poeta Rûmî, com João da Cruz, Hölderlin e Trakl. Passei anos da minha vida aprendendo línguas – por causa daquela telemaquia referida acima. E a tradução era uma forma de compensar esse esforço extra-muros. Ficar dentro da casa de minha língua. Minha relação com a tradução foi sofrida e por isso decidi que não iria traduzir mais. E assim me mantenho até hoje, às vezes escrevendo um e outro poema em outra língua, ditado pela necessidade, como em Meridiano, o poema que escrevi para a escritora búlgara Svoboda Bachvarova, que tem pelo russo um grande amor, língua de sua religião e de sua pátria literária. Mas, enfim… acho que a tradução é um desafio árduo e magnífico. E quando escolho um autor, eu trabalho com afinidades, com admirações, com zonas de fronteira e de leituras coincidentes, de modo que não haja arbitrariedades perpetradas de mim contra mim, esquizofrenias e pluralidades que não me pertençam – ah!, o fogo da unidade, outra vez. A escolha é fatal. Porque então eu me torno invisível. Tenho certeza de que a invisibildade do tradutor é a melhor parte do que faz. A linguagem, esta sim, é que merece visibilidade. Não admiti complacências narcisistas demasiadas, sequestradoras de textos outros, desrespeitando-os, inclusive, para mostrar a capacidade de melhorar Dante, Goethe, Shakespeare. Em Teatro alquímico, eu defendia uma tênue relação que aproximava o alquimista do tradutor. As escolhas que me escolhem. A economia e as relações bilaterais do texto-origem ao texto-fim. Retortas. Pelicanos. Atanores – de um lado –; dicionários, leituras e palimpsestos – de outro. De modo que não sei determinar onde começo e onde termino, como poeta e tradutor. Exercício de tormento e paixão…

FM | Sim, eu recordo como aproximas tradução e alquimia em um ensaio do livro Teatro alquímico, busca idêntica, da palavra perfeita e da pedra filosofal. Igualmente atormentada e apaixonada, como dizes. Convergentes, em nome da criação. Porém exatamente em nome da criação matas o tradutor que há em ti. Há acaso uma contradição nisto? Ou por outro lado, quem agora recomeças?

ML | Concordo absolutamente com a contradição desavergonhada e quase exuberante, atrás de cuja espessura eu me escondo, assassino de uma dialética sutil. Você percebeu com absoluta precisão. E por causa disso, tento explicar o sofisma, em que eu me perdi. Ou seja: concordo que tradução e criação representam uma só atitude. O problema é que a legislação dos deslocamentos semânticos, as compensações, os equivalentes que não existem e a vontade de chegar ao fim de uma geografia, tudo isso mostrava-se com uma veemência terrível. Eu queria outras dificuldades, liberdades que não me calassem a música interior – em A memória de Ulisses eu trato dos meus pianos, o de verdade e o interno. E porque tive alegrias e galardões bem marcados nesse campo. E só me viam. Só me queriam como tradutor. Nada era mais importante. Por isso decidi acabar com ele. E com a parte dele que trago em mim. Eu não queria que ele, o tradutor, me eclipsasse e me vedasse as partes desejadas que eu trazia dentro. O meu piano. Cheio de dissonâncias. E de alguma harmonia.


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Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor da Agulha Revista de Cultura
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1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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