quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Agulha Revista de Cultura # 246 | dezembro de 2023

 

editorial | A última página do ano

 


01 | Agulha Revista de Cultura chega ao final de 2023 com uma dupla conquista: a realização de duas séries que julgamos ser da maior atualidade: a primeira delas, “Poetas hispano-americanos no Século XX”, reúne 100 ensaios sobre algumas das vozes mais renovadoras da lírica na América Hispânica; a outra, “A arte no século XXI”, reúne 150 ensaios que se dedicam a refletir sobre os caminhos propostos para as artes e a cultura neste início de século. Desejamos a todos os nossos leitores os melhores ventos – sim, os ventos impossíveis – para um presente que se recusa a aprender com os erros do passado, impedindo assim a recriação do tempo e a perspectiva de um futuro no mínimo respirável. Estamos vivendo duros tempos marcados por uma cada vez mais cínica e violenta retórica do poder. Agulha Revista de Cultura passa, este final de ano e em definitivo, o bastão editorial para Elys Regina Zils. Os leitores já tiveram todo o ano para conhecê-la, artista visual, poeta, tradutora, e certamente 2024 será um ano editorialmente próspero. Além disso, 2024 a Agulha terá sua publicação mensal, dando um fôlego para todos.

 

02 | A poeta brasileira Cecília Meirelles terá este final de ano dois livros seus publicados no Chile. Aos cuidados da tradutora e editora Gladys Mendía, a LP5 Editora lança os livros Viagem e Cânticos, ambos em edição bilíngue. Sobre o primeiro deles reproduzimos aqui um fragmento de prólogo assinado pelo poeta panamenho Javier Alvarado:

 


Justamente pelo desígnio de ser poeta me encontro aqui diante das traduções que a poeta venezuelana Gladys Mendía fez depois de uma conversa que tivemos quando lhe mostrei meu entusiasmo por algumas traduções dela que li de Roberto Piva e a incentivando a mergulhar na poesia da brasileira universal que é Cecília Meireles e de outro grande criador que é Murilo Mendes. Agradável e surpreendente é o gesto de receber a boa notícia destes poemas concebidos neste tempo, neste século XXI, de uma mulher sensível para outra mulher sensível, de uma língua românica para outra língua românica, irmãs, cadenciadas, lindas, migrantes, mestiças e lindas. É uma ampla antologia de textos de diversos livros e que representam um marco importante no que diz respeito à poesia ceciliana. É assim que decorre este trabalho, entre o silêncio e o barulho, entre a lentidão e a pressa, entre a calma e o ímpeto, entre a solidão e a companhia, entre a calma e a lava, entre a calma e a paixão, transbordando e acalmando como uma água reflexiva. Cecilia estava criando uma constelação íntima, sonora e cintilante. Isso nos encoraja a olhar para ela.


Sobre Cânticos, é a própria tradutora que observa:

 

O livro que nos convoca nesta ocasião intitula-se Cânticos. Uma pequena coleção de poemas que inclui vinte e seis textos que traduzi para o espanhol e que foram um achado fascinante. Caracterizados pelo seu lirismo reflexivo e profundidade filosófica, apresentam uma meditação sobre a existência, a identidade e a espiritualidade. Os versos sugerem uma busca pela transcendência e uma dissolução das barreiras convencionais do eu e do tempo. Meireles explora a futilidade das divisões impostas pelo homem, como a separação entre terra e céu, ou a ideia de pertencer a uma pátria. Em vez disso, convida-nos a adoptar uma perspectiva expansiva, ilimitada no tempo e no espaço, refletindo uma unidade com tudo o que existe. Seus poemas são breves na forma, mas densos no significado, usando repetição e variação para enfatizar suas meditações filosóficas. A poeta dirige-se diretamente ao leitor, dissolvendo a quarta parede para criar uma conversa íntima e reflexiva. O uso de imperativos (“Não quero ter Pátria”, “Não diga onde termina o dia”) funciona como um guia ou comando espiritual, incentivando a libertação das limitações físicas e materiais. Utiliza símbolos universais como dia, noite, céu e terra para falar sobre conceitos intrínsecos à experiência humana. Por exemplo, o dia e a noite não representam apenas o tempo, mas também os ciclos da vida, do conhecimento e da ignorância, da visibilidade e da escuridão interior. A referência ao mar e ao horizonte convida-nos a considerar a natureza infinita e mutável da percepção.

 

A edição de Cânticos contém ainda um posfácio breve assinado por Floriano Martins, aqui reproduzido na íntegra:

 


A noite a encontramos na poesia de Cecília Meireles como um cântaro de horizontes, as folhas inúmeras de uma árvore-mãe, aquela que estende seus galhos por todo o espírito humano. A noite e sua conexão com a eternidade que a poeta sabe amar e, através dela, nos cativar com sua imagem reveladora de caminhos que sequer havíamos imaginado. É tão bonito quando ela nos diz que o espírito desfaz o efêmero, que a retidão nos impede de extirparmos porções do mar. Tudo em sua poesia faz da violência um paradoxo, quando ela é arbitrária e tirana, e não uma força natural da existência. O verbo em Cecília toca Deus como um silêncio que nos percorre a extensão inumerável de todos os sentidos. Graças a este contato abissal que ela põe em tudo é possível nos sugerir trocar o curto sonho humano pelo sonho imortal, como um presságio de que a vida se multiplica não lá fora, mas sim em nosso íntimo. Assim eu sempre compreendi a ideia de eternidade que esta perene senhora dos ritmos evoca em tua poesia, mesmo quando corre o risco de dissipação ou dilaceração naqueles momentos em que retrata o social ou o folclórico. Talvez tenha sido fruto de seu impulso pela descoberta de uma brasilidade que a tenha levado a avançar pelo território de tais temas sem nada temer. E nisto não esteve sozinha em sua geração modernista. Tampouco perdeu a dimensão de seu voo, a dimensão poética que alcançou em sua voz singularíssima, o que nos dá prova o salto profundo dos salmos deste livro que tão belamente traduz agora para o espanhol a venezuelana Gladys Mendía.

 

Os dois livros serão lançados ao final do mês, e poderão ser encontrados aqui: https://lp5editora.blogspot.com/.

 

03 | Leila Ferraz (São Paulo, 1944). Poeta, artista plástica, tradutora, nossa artista convidada da presente edição da Agulha Revista de Cultura, edição com a qual finalizamos o ano de 2023. Em uma entrevista que lhe fez Alfonso Peña, destacamos aqui alguns fragmentos das respostas de Leila:

 

Alfonso, meu trabalho reflete a mágica da vida e a percepção das coisas do cotidiano. O encantamento em todos os seus aspectos. Acredito que jamais me prenderia a um único tema central. E se o fizesse, estaria restringindo minha criação, que sempre correu livre e solta. O circuito de formas ao qual você refere, são a ferramenta de minhas manifestações que se expressam através de fotografias, pinturas, gravuras, desenhos ou colagens e sempre através de poemas e textos. De certa forma, eu me pergunto: Por que me restringir? Por que haveria de me prender a uma só forma de expressão?

[…]

Duas paixões cresceram comigo desde a infância: a fotografia e a leitura. Eu passava horas quieta e concentrada olhando e imaginando enquanto passava o dedo, como uma carícia, em cada imagem dos álbuns de retrato de minha família. Essa, leitura sensual, por assim dizer, me contava histórias. Um mundo próprio foi sendo construído em minha imaginação. Essas viagens eram infinitas. Imaginava como cada pessoa atuava nesse universo mágico e fascinante do tempo no espaço fotográfico. Imaginava como cada pessoa fotografada enxergava a mesma história sob seu ponto de vista. E como as histórias podiam ser diferentes para cada um. A mesma história!

Creio que foi a partir daí que se deu o start do meu processo criativo e passei a desenhar personagens inicialmente inspirados nos instantâneos, e depois transportei-os para outros contextos, onde tomaram caminhos diversos. Saiam de suas molduras, de seus espaços conformados, e ganhavam novos corpos, novos lugares, novas vidas e outros sentimentos. Não havia limites para minha imaginação. Essas descobertas de criança fizeram com que eu quisesse ser uma artista e poeta desde menina.

O mesmo fascínio que as fotografias exerciam sobre mim surgiu com a leitura. Aprendi a ler precocemente e devorei as obras completas de Julio Verne. Comecei e não parei mais de ler. O meu universo era o imaginário. Uma explosão de intuições e uma conformação racional, consciente e necessária para existir e sobreviver. Creio que assim respondo a sua outra pergunta! E acrescento: Minhas imagens – abstratas ou não – andam em conjunto. Entro e saio delas pelos poemas ou desenhos. Permaneço em outras pela fotografia e saio delas com um poema.


Gostaria de falar um pouco sobre o universo feminino na criação. Acredito que muitas mulheres produziram arte durante um período determinado de suas vidas e ressurgiram em diversos outros momentos acrescidas de novas linguagens. A que se devem tais interrupções? E como retomar o caminho da vida das artes após consolidar toda a sua formação artística e cultural? Muitas vezes, à mulher se faz obrigatório voltar-se às atividades ditas do lar ou de uma profissionalização para sustentar os filhos ou à família. Principalmente na atualidade onde tal fato tornou-se regra. Nessas idas e vindas eu me insiro. Durante toda a minha vida tentei sobreviver ao mundo patriarcal que assola as mulheres de todos os lados e através de todos os meios. Na maioria das vezes, para não dizer sempre, eu me senti obrigada a me fragmentar para em seguida reencontrar minhas partes no processo e dar significado à minha existência. Nesse campo de batalha diário deparei-me, desde cedo, como já disse, com instrumentos “mágicos”.

Poderosos! Capazes de me representarem como indivíduo e de me inserirem em um universo simbólico e transcendental. Sem jamais me apartar de meu centro inicial. Tanto na poesia como nas artes plásticas e na fotografia reflito um olhar feminino. Único e inserido no conceito psicossocial e no maravilhoso! Não é de se estranhar que na tentativa de dar um sentido e visibilidade às minhas criações, surgiram espaços perceptíveis muitas vezes distanciados de uma continuidade ou tema central Como mulher, digo: meu diálogo com a criação se dá em torno do olhar à procura do belo ou do desconhecido. Nesse sentido, sou uma aprendiz contumaz, munida de estratégias femininas já conciliadas na psicologia de minha alma, sem tentar me prender a mais nada que não seja mágico, encantador ou arrebatador. Esses momentos estão presentes em minha obra poética! O retrato do meu espanto, do meu deslumbramento, perdição, amor ou dor. Com o nascimento do meu amor pelas palavras e pelas formas surgiu também uma certeza de liberdade interior que jamais me abandonou. Portanto, criar e expressar minha criação através de todos os meios possíveis foi tão natural como falar, correr, brincar, amar, dançar ou aprender diversas técnicas de expressão artística.

Quanto à sua segunda pergunta, para mim o mundo criativo é tão intenso, que simplesmente brota. Meus poemas tratam de minha relação com emocional com as palavras e seus significados. Todos os seus possíveis significados tomam forma concreta e as visualizo em minha imaginação. Assim, ao escrever um poema ou texto, deixo que fluam pelo som ou signâncias que elas possuem. As palavras estão de tal forma ligadas a mim que fazem parte do meu corpo. Tomam todo o meu ser e assim fluem, vertem, desabrocham e nascem num gesto de doação. As palavras são meus instrumentos afinados e articulados às imagens. Um processo mneumônico e intuitivo que faz parte de minha personalidade, de minha alma. De fato, trabalho em diversas linguagens e procurei sempre me aperfeiçoar em cada uma delas. Curiosamente, não me lembro de eleger uma foto, por exemplo, para leva-la aos poemas e vice-versa. Aliás, paradoxalmente, cada expressão artística minha, seja um desenho, foto ou poema, valida meus desejos perante a arte. Estou sempre perante um enigma! Às vezes utilizo um lápis ou pincel para desvendá-lo. Outras, a máquina fotográfica para revelá-lo. Há vários anos utilizei-me da gravura para vencê-lo pela dificuldade e me encantar com o resultado surpreendente que obtinha. Mas sempre, sempre, respeito o mistério da descoberta, da revelação e da intuição. Um processo alquímico e mágico cuja explicação está contida em sua libertação para o mundo sensível e tangível. O prazer do retorno do meu olhar para a minha própria obra é sempre cheio de mistérios. Há uma oscilação do olhar diferente para cada forma de expressão artística e esse fato antes de seduzir o outro, seduz a mim mesma. Minhas obras não têm uma filiação específica dentro do universo das artes plásticas, da fotografia e da poesia. Elas se fundem umas nas outras no momento da criação. O processo é um moto contínuo. Um gesto em movimento.

 

Em seu livro 120 noites de Eros – Mulheres surrealistas, Floriano Martins assim desenha seu retrato:

 

Leila Ferraz ainda bem jovem, aos 20 anos, descobre o Surrealismo e abraça a ousadia de, ao lado de alguns amigos, montar uma exposição internacional do movimento em São Paulo. Foi também coeditora da revista-catálogo da exposição, A Phala. Em suas páginas um ensaio de Leila – “Introdução ao pensamento mágico surrealista” – imprime a força de sua identificação com os postulados do Surrealismo, ao mesmo tempo em que começa a despertar para a misoginia que contaminava as ações do grupo. Há pouco conversamos sobre a relatividade da liberdade, sobretudo em relação à mulher, quando raspamos o verniz canônico do Surrealismo. Ela então me disse: A mulher é, em si, uma força transgressiva a todo instante. Como um astro na mecânica celeste. Sua transgressão é sua própria condição feminina e tudo o que assim a caracteriza. Veja, hoje divulgaram pela primeira vez, a foto de um buraco negro no universo. Ao vê-lo imediatamente o associei, mais ainda, enxerguei o colo do útero feminino. São ambos transgressores em seus mistérios e transcendências. Uma transgressão infinitamente mutável e paradoxalmente única. A essência de um cenário indiscutível. Algo tão sagrado e violento. Algo que é côncavo e no limite desse entendimento, convexo. Jamais objeto. E sim um mutatis mutandis entre a dor e o prazer. A conversa nos permitiu tocar nos modos de reação da mulher, em especial a interdição ulterior. A mulher não está vedada, mas ela veda a si mesma, como se guardasse, ao menos em parte, a celebração de seus ofícios, para si mesma. Como se mantivesse sempre algo oculto, jamais revelado, que é a parte revitalizante que traz em si. Em face disto é que a mulher não cede aos truques da repetição, porque ela guarda em si um minério que resplende luz perenemente a cada ato, que o faz parecer (e ser mesmo) outro, sempre renovado, nela. E Leila alcançou a profundidade do minério dessa relação justamente com o Surrealismo e seu revelador poço de contradições.

 

Hoje, ao concluirmos 2023, a fotografia reveladora de Leila Ferraz aponta na direção de uma vitalidade permanente em nossa cultura artística, mesmo em seu curso secretíssimo. Que venha 2024 com a certeza de que estaremos sempre aqui.


Elys Regina Zils | Floriano Martins 

 

 

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PAULA WINKLER | La pasión por no saber

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SEBASTIÁN MIRANDA BRENES | La creación artística en tiempos de la crisis climática

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Leila Ferraz




Agulha Revista de Cultura

Número 246 | dezembro de 2023

Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023 

 


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