terça-feira, 15 de abril de 2025

Agulha Revista de Cultura # 260 | abril de 2025

  

∞ editorial | O coração da poesia e suas luzes reveladoras

 


01 | A cada dia amanhecemos e definimos os valores essenciais de nossa existência. Minuciosas e numerosas fronteiras que temos que considerar no entra-e-sai dos caminhos que alimentam nosso imaginário. Não importa se temos diante de nós uma época de atroz decadência. Se todas as formas foram deterioradas e todos os planos de sobrevivência foram perdidos. A luz terá sempre que alcançar o coração da poesia que nos define. Em qualquer parte do mundo, sob a intervenção de qualquer sociedade, secreta ou não, a natureza de nosso entusiasmo deverá falar mais alto. Não devemos esquecer nunca que no passado os egípcios deixavam ordenada a costura de um amuleto, em sua mortalha, que fosse a representação do sol. Toda beleza é filha da luz. Toda a escrita tem por fonte o esplendor de raios luminosos. Não há culpa na luz, pois ela é a revelação inesgotável de todo o amor e toda a razão de ser. Sob a grande árvore da luz, tecemos as formas viscerais de nossa revista. Conosco, neste número e graças a Elys Regina Zils, que a localizou na Net, temos a escultora, pintora e gravadora Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943), cuja obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


02 | Cada día nos despertamos y definimos los valores esenciales de nuestra existencia. Fronteras detalladas y numerosas que hemos de tener en cuenta en el ir y venir de los caminos que alimentan nuestra imaginación. No importa que tengamos ante nosotros un tiempo de atroz decadencia. Si todas las formas se han deteriorado y todos los planes de supervivencia se han perdido. La luz siempre tendrá que llegar al corazón de la poesía que nos define. En cualquier parte del mundo, bajo la intervención de cualquier sociedad, secreta o no, la naturaleza de nuestro entusiasmo debe hablar más fuerte. Nunca debemos olvidar que en el pasado los egipcios tenían un amuleto cosido en su sudario que representaba al sol. Toda belleza es hija de la luz. Toda escritura tiene como fuente el esplendor de los rayos de luz. No hay culpa en la luz, porque es la revelación inagotable de todo amor y de toda razón de ser. Bajo el gran árbol de la luz, tejemos las formas viscerales de nuestra revista. Con nosotros, en este número y gracias a Elys Regina Zils, quien la localizó en la Red, tenemos a la escultora, pintora y grabadora Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943), cuya obra tiene un impresionante énfasis establecido en el centro de las relaciones entre sexualidad y magia, sin descuidar la inevitable tensión entre Eros y Tánatos. La personificación de su escultura encuentra un apoyo vertiginoso en leyendas, mitos y en su propia biografía. Atraída inicialmente por la música, en los años 1960 fue una excelente concertista, pero el piano encontraría un mejor hogar, con su sugerente fuerza rítmica, en la narrativa que acabó aprendiendo a componer, basada en su fascinación por la escultura barroca policromada y las ideas ritualistas de las máscaras africanas. En la década de 1970 viajó a estudiar a la Slade School of Art de Londres y allí decidió cambiar de domicilio definitivamente. Con el tiempo, desarrolló una maestría única, la creación de un conjunto escultórico que destacaba como la representación tridimensional de una narración. Aunque también se dedicó a la pintura, con sus fascinantes trípticos, es en la escultura donde se destaca esta inmensa artista brasileña, con el uso de recursos teatrales y la mezcla de elementos constitutivos de diversas culturas. Otra característica valiosa de ella es la creación de escenas tomadas de la literatura o de la evidencia cotidiana. Gracias a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archivos de mujeres artistas, investigaciones y exposiciones, a quien debemos que Ana Maria Pacheco esté entre nosotros como artista invitada en esta edición de Agulha Revista de Cultura.

 


03 | Every day we wake up and define the essential values ​​of our existence. Detailed and numerous frontiers that we have to count on going and coming along the paths that feed our imagination. It doesn’t matter that we have before us a time of atrocious decadence. If all forms have deteriorated and all survival plans have been lost. The light will always tend to reach the heart of the poetry that defines us. In any part of the world, under the intervention of any society, it secrets the world, the nature of our enthusiasm must be stronger. We should never forget that in the past the Egyptians had an amulet sewn into their shroud that represented the sun. All beauty is the daughter of light. All writing has as its source the splendor of rays of light. There is no fault in light, because it is the inexhaustible revelation of all love and all reason for being. Under the great tree of light, we weave the visceral forms of our magazine. With us, in this issue and thanks to Elys Regina Zils, who found her on the Internet, we have the sculptor, painter and artist Ana Maria Pacheco (Brazil, 1943), whose work has an impressive emphasis established in the center of the relationship between sexuality and magic, without neglecting the inevitable tension between Eros and Thanatos. The personification of his sculpture finds dizzying support in legends, myths and in her own biography. Initially attracted by music, in the 1960s she was an excellent concert artist, but the piano found a better home, with its suggestive rhythmic strength, in the narrative that she ended up learning to compose, based on her fascination with polychrome baroque sculpture and the ritualistic ideas of African masks. In the 1970s she traveled to study at the Slade School of Art in London and there she decided to change her home permanently. Over time, she developed a unique mastery, creating a sculptural ensemble that stood out as the three-dimensional representation of a narrative. She also dedicated herself to painting, with its fascinating triptychs, and in sculpture where this immense Brazilian artist stands out, with the use of theatrical resources and a mixture of constituent elements from different cultures. Another valuable characteristic of her is the creation of scenes taken from literature or everyday evidence. Thanks to Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of women artists, investigations and exhibitions, we must believe that Ana Maria Pacheco is among us as an invited artist in this edition of Agulha Revista de Cultura.

Los Editores

 



∞ índice

 

EMILCE STRUCCHI | Conversación entre literaturas: Clarice Lispector y Abelardo Castillo. Los personajes y sus desafíos cotidianos

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/emilce-strucchi-conversacion-entre.html

 

FLORIANO MARTINS | A música se chama Naná Vasconcelos

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/floriano-martins-musica-se-chama-nana.html

 

FLORIANO MARTINS | As chaves-mestras da poesia em três poetas brasileiras: Cecília Meireles, Maria Lúcia Dal Farra e Leila Ferraz

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/floriano-martins-as-chaves-mestras-da.html

 

FLORIANO MARTINS | As vozes musicais sob a batuta de Heriberto Porto

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/floriano-martins-as-vozes-musicais-sob.html

 

HAROLD ALVARADO TENORIO | El mundo extraordinario de Guillermo Cabrera Infante

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/harold-alvarado-tenorio-el-mundo.html

 

HAROLD ALVARADO TENORIO | Las armas miraculosas de Aimé Césaire

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/harold-alvarado-tenorio-las-armas.html

 

NICOLAU SAIÃO & CARLOS MARTINS | Os labirintos do real – Sobre a literatura policial

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/nicolau-saiao-carlos-martins-os.html

 

NINA MARIA A Poética de Ithana Gomes e os Transbordamentos do Ser

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/nina-maria-barragem-da-alma-poetica-de.html

 

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | O coração de Manuel Bandeira

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/thomaz-albornoz-neves-o-coracao-de.html

 

VANIA VARGAS | Memorias y transfiguraciones, de Alaíde Foppa: epílogo poético para una historia inconclusa

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/vania-vargas-memorias-y.html




LIBRETO # 11

 

CALÚ CRUZ | Árbol de cuentos, una antología

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/calu-cruz-arbol-de-cuentos-una-antologia.html

 

BERTA LUCÍA ESTRADA | La memoria de los vientos, de Hernán González

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/berta-lucia-estrada-la-memoria-de-los.html

 

VICTORIA LOVELL | Ciudad sitiada, de Gloria Lenardon – El silencio del pasado contamina el presente

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/victoria-lovell-ciudad-sitiada-de.html

 

CÉSAR BISSO | Lenguaraces, las entrevistas de Ricardo Zelarayán

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/cesar-bisso-lenguaraces-las-entrevistas.html

 

PABLO QUERALT | El capital y la lírica, de Jorge Aulicino

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/pablo-queralt-el-capital-y-la-lirica-de.html




DOCUMENTA – Poesia brasileira

 

DEMETRIOS GALVÃO (1979)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/demetrios-galvao-1979.html

 

FRANCISCA JÚLIA (1874-1920)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/francisca-julia-1871-1920.html

 

GILKA MACHADO (1893-1980)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/gilka-machado-1893-1980.html

 

JOAQUIM CARDOZO (1897-1978)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/joaquim-cardozo-1897-1978.html

 

RAQUEL GAIO (1981)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2025/04/raquel-gaio-1981.html 

 

 



Ana Maria Pacheco


Agulha Revista de Cultura

Número 260 | abril de 2025

Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 



 

RAQUEL GAIO (1981)


DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA



O poema passa por nós como uma sombra em busca de seu corpo correspondente nos lugares mais remotos e imprevisíveis. É como uma linha invisível que mascara o horizonte a ponto de nos vermos renascer em todos os lugares. Ao lermos a poeta Raquel Gaio (Brasil, 1981) descobrimos por que certos traços existenciais que desenhamos como rabiscos obsessivos desaparecem como uma certa sensação de abandono, luz ou escuridão, de modo que refazemos os perfis do sol e da lua, do tempo e do espaço. Não só em seus versos, mas também em seus estudos fotográficos, que são como um laboratório que ladeia a costura de abismos que ensaiamos dentro de nós. Ou como ela mesma gosta de dizer sobre a soma de suas figuras criativas, seus fantasmas errantes, que são como um semblante fugidio, que lhe permite desenvolver um trabalho entre a fotografia, a performance e o objeto, investigando a esfera do íntimo, do tempo e sua característica inevitável. Essa mulher transbordante parece estar acima de todas as limitações da criação artística, mas na verdade ela está no seu cerne, no centro que produz todos os efeitos mágicos da vida humana. Graças à magia de sua criação, permite investigar o corpo e suas paisagens, inscrições e pistas. Pelo seu olhar, todas as criaturas do misterioso passam, como as escrituras bordadas em suas mãos, uma caravana de feitiços que acentuam a grandeza de sua alma. Os títulos de seus livros são como uma bênção, uma centelha inesgotável de sugestões que abrigam nossa vontade de viver: das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (2018), mantar a memória do fogo (2019) e com as patas no grande Hematoma (2023), assim como os títulos dados às fotos: uma mulher suficientemente arqueada, estar diante de uma língua que se fraturou e formas de lidar com o trauma, entre inúmeros outros. São técnicas mistas que reúnem imagens, objetos, negativos, desenhos, efeitos de sobreposição e a intimidade do corpo do poeta. Este material pode ser encontrado aqui: https://raquelgaio.tumblr.com. [FM]

 

[ESTAMOS SEMPRE PERFURANDO O TEMPO]

 

estamos sempre perfurando o tempo

temos abismos que rasgam os antebraços

e uma cicatrização forjada na língua dos dias

criamos sempre os mesmos calabouços

e nenhuma procissão nos salva

nossa linguagem é picada pela desmemoria

e nossa vigília é abastecida pelo erro

deus fala uma linguagem indecifrável

mas estamos sempre a traduzir

como poço, cavalo ou nós mesmos.



[TENHO A NOITE]


tenho a noite estilhaçada na jugular

 

e uma fome que não abandona seu canil.

esta carne permanentemente em queda.

há um pônei desidratado no peito

e uma puta carecendo de abrigo

sou a encarnação de quedas passadas

imploro por perdões e ossos melhores

mas não há céu que me ouça.

 

tento fotografar meus batimentos cardíacos

para emoldurá-los nas paredes de casa

mas antes mesmo do click

regurgito-os cheios de ontens intactos.

 

sujo as imagens para vislumbrar a queda.

 

 

[QUISERA EU]

 

quisera eu evitar os desertos e os acidentes

os silêncios e os pântanos

não confundir os nortes nem as marés

o lodo da espera com a dissimulada inteireza do corpo

 

mas há a noite batendo desencarnada no céu de nossas bocas

a medula de nossas palavras roçando obstinadamente nesse poema

 

meu corpo se abre tentando te alcançar

fissura é meu nome

 

porque há esse querer de amanhecer dentro de teu escuro

abri-lo como quem solta um pássaro

a vertigem de um deus o amor prometido

a infância mutilada.

 

 

[SOU UM MAMÍFERO]

 

sou um mamífero ensopado de desejo

um rio que não para de desaguar

um leito inchado de tantos porvires

 

tenho o corpo amolecido pela mutilação dos dias

e um pássaro que se debate no escuro de minhas coxas

 

sei do fracasso da palavra desejo

da imensa guilhotina do século XIX que nos acompanha

 

– não há um tempo justo para cada corpo

 

isso que vês aqui,

nesse corpo que não para de minguar,

é apenas uma futura ruína

 

– cartografia dos dias inevitáveis

 

não tenha medo, porque a tua

tão escura mas evidente

também estará junto a minha

evaporando toda a queda do nosso desejo.

 

 

[É PRECISO]

 

é preciso inaugurar uma nova pobreza

para viver dentro do nevoeiro

em verdade, te digo:

sou estratosférica

tenho nos pés um musgo que delira

para esquecer o Nome

através de seu som, nasce em minha bacia uma mulher feita de arquipélagos devastados

 

como aceitar o irreconstituível?

sigo falhando os começos como posso

 

estruturando mapas na tentativa de acolher o ferimento que vem da voz

 

é preciso pactos com a doença

para viver nos rochedos assombrados pelo fogo. 




ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 260 | abril de 2025

Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 



 

 


JOAQUIM CARDOZO (1897-1978)

 

DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA

 

 


JOAQUIM MARIA MOREIRA CARDOZO nasceu em Recife no dia 26 de agosto de 1897 e morreu em Olinda em 4 de novembro de 1978. Engenheiro estrutural, integrou a equipe de Oscar Niemeyer na construção de Brasília e no conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. Foi ainda poeta, contista, dramaturgo, professor universitário, tradutor, desenhista, caricaturista e editor de revistas de arte e arquitetura. Seus primeiros poemas datam de 1924, mas sua produção poética começa a aparecer em livro em 1947. Escreveu 11 livros, entre os quais se destacam: Poemas (1947), Signo estrelado (1960), O coronel de Macambira: bumba meu boi, em dois quadros (1963), Trivium (1952-1970), Mundos paralelos (1970), Poesias completas (1971), Os anjos e os demônios de Deus (1973), O interior da matéria e o capataz de Salema (1975). Em 2009, a Editora Aguilar publicou Poesia completa e prosa. Desfrutou de longa convivência com os modernistas e com os intelectuais de seu tempo. Às vezes de caráter melancólico e experimentalista, a sua poesia tem a cidade de Recife e o Nordeste como referência temática.

 

 

O RELÓGIO

 

Quem é que sobe as escadas

Batendo o liso degrau?

Marcando o surdo compasso

Com uma perna de pau?

 

Quem é que tosse baixinho

Na penumbra da antessala?

Por que resmunga sozinho?

Por que não cospe e não fala?

 

Por que dois vermes sombrios

Passando na face morta?

E o mesmo sopro contínuo

Na frincha daquela porta?

 

Da velha parede triste

No musgo roçar macio:

São horas leves e tenras

Nascendo do solo frio.

 

Um punhal feriu o espaço…

E o alvo sangue a gotejar,

Deste sangue os meus cabelos

Pela vida hão de sangrar.

 

Todos os grilos calaram

Só o silêncio assobia;

Parece que o tempo passa

Com sua capa vazia.

 

O tempo enfim cristaliza

Em dimensão natural;

Mas há demônios que arpejam

Na aresta do seu cristal.

 

No tempo pulverizado

Há cinza também da morte:

Estão serrando no escuro

As tábuas da minha sorte.

 

 

A TARDE SOBE

 

Ao rés da Terra o tempo é escuro

Mas a tarde sobe, se ergue no ar tranquilo e doce

A tarde sobe!

No alto se ilumina, se esclarece.

E paira na região iluminada.

 

Sobe, desfaz a trama de entrelaços

Superpostos na maneira dos esquadros

Sobre o chão aos poucos escurecendo.

Sobe: No meio da parte densa.

 

Sobe alva, serena para as estrelas

Que irão em breve aparecer,

Luzindo, no princípio da noite;

No espaço branco em que se completa

Preenchendo o centro e a esquerda

Branco que saiu limpo

De um fundo escuro de hachuras.

 

A tarde sobe!

Sobe até o zênite dando aos que passam

A paz e a serenidade do entardecer.

 

A tarde sobe pura e macia!

As linhas de baixo se inclinam

Se afastam e vão deixá-la subir.

 

 

VISÃO DO ÚLTIMO TREM SUBINDO AO CÉU

 

II

 

As locomotivas na rotunda

Olhavam para a noite do pátio da noite, imóveis, silenciosas

— Molossos deitados, dóceis, esperando: os olhos apagados os faróis.

 

Qual seria, seria, qual dentre elas

A que conduziria aquele trem, aquele que era o trem

E o último seria?

Qual delas ouviria a voz do Senhor?

 

Quando houve um trilo no ar: uma luz brilhou

No ar noturno — carvão do dia —

E uma dentre todas sentiu, de repente,

O alento do calor;

Alento que se estendeu do fogo,

E que lhe veio em sangue ardente,

Em respiração rumorosa de brancos vapores.

 

Uma dentre elas

Que era preta, violentamente, luzidia;

Que era preta, vagarosamente preta;

 

Preta e lentamente e luzidia;

Avançando, transpôs o virador;

E foi!

Foi um touro selvagem a princípio

Depois se fez um boi pesado e manso

Correndo as linhas de trilhos: as fitas, os fios, os trilhos de linha.

À sua aproximação as agulhas se abriram —

Porteiras de um curral — furos do espaço, aberturas

Para distâncias possíveis... aberturas, costuras

De rápidas passagens em direções ocultas.

Pouco e pouco, mais pouco, pouco a pouco

Ao trem se atrela, ao trem ligando o engate, os freios

Ajustando... ao trem disposto ao longo

Da plataforma — platimorfa, platibanda, alegrete

Canteiro cultivado — florido de gente.

 

E logo e depois, justo depois ficou imóvel

À espera, no ante-ritmo da espera

No anseio da esperaesperança:

Harmônicos da espera (intervalo! Vocalises do intervalo).

 

— Foi assim que se fez a composição daquele trem.

Daquele que era o trem, e o último seria.

 

 

TERRITÓRIO ENTRE O GESTO E A PALAVRA

 

Entre o gesto e a palavra: território escondido dentro de mim

Marcas de mortas visões; tentativas, indecisões, regozijos,

Entre o gesto e a palavra. Território:

Um silêncio, um gemido, um esforço imaturo

Possibilidade de um grito, modulação de uma dor.

— Ritmos mais doces que os das águas,

— Ternuras mais íntimas que as do amor

Entre o gesto e a palavra. Território

Onde as idéias se ocultam e os pensamentos se perdem

Os conceitos se escondem, os problemas se dissolvem

Entre o gesto e a palavra. Território.

— Os problemas da escolha, os princípios;

Transcendências: transparências, mediante

Uma luz que não se acende, existem

No território contido entre o gesto e a palavra.

 

— Um axioma, um lema, um versículo, um fonema,

Uma ameaça, uma tolice, o som velar, o eco,

Talvez a estátua de uma atitude.

Estão no campo depois do gesto

E antes da palavra.

Também estás para mim, amiga, entre esses dois expressivos

Entre alguma coisa de mímico ou de sonoro

Alguma coisa que é aceno ou que é voz:

Entre o de mim e o de ti: Tu estou

Tu vivo

Tu falo

Tu choro

Estás, mesmo que entre nós dois não exista

Um aparato gramático — uma sentença verdadeira

— ou uma síntese poética

Ilusória expressão com que se conformam os ingênuos —

Mesmo que a palavra se reduza a simples gesto verbal

Entre o gesto e este gesto há um infinito real.

 

 

O SALTO TRIPARTIDO

 

Havia um arco projetado no solo

Para ser recomposto em três curvas aéreas,

Havia um voo abandonado no chão

À espera das asas de um pássaro;

 

Havia três pontos incertos na pista

Que seriam contatos de pés instantâneos.

Três jatos de fonte, contudo, ainda secos,

Três impulsos plantados querendo nascer.

 

Era tudo assim expectativo e plano

Tudo além somente perspectivo e inerte;

Quando Ademar Ferreira, com perfeição olímpica,

Executou, em relevo, o mais alto

– Em notas de arpejo

– Em ritmo iâmbico

O tripartido salto.

 



ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora. Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970 viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a Pratt Contemporary, Dictionnaire Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research & Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 260 | abril de 2025

Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

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