DOCUMENTA – A POESIA BRASILEIRA

JOAQUIM MARIA MOREIRA CARDOZO
nasceu em Recife no dia
26 de agosto de 1897 e morreu em Olinda em 4 de novembro de 1978. Engenheiro estrutural,
integrou a equipe de Oscar Niemeyer na construção de Brasília e no conjunto arquitetônico
da Pampulha, em Belo Horizonte. Foi ainda poeta, contista, dramaturgo, professor
universitário, tradutor, desenhista, caricaturista e editor de revistas de arte
e arquitetura. Seus primeiros poemas datam de 1924, mas sua produção poética começa
a aparecer em livro em 1947. Escreveu 11 livros, entre os quais se destacam: Poemas (1947),
Signo
estrelado (1960), O coronel de Macambira: bumba meu boi, em dois quadros
(1963), Trivium (1952-1970), Mundos paralelos (1970), Poesias completas
(1971), Os anjos e os demônios de Deus (1973), O interior
da matéria e o capataz de Salema (1975). Em 2009, a Editora Aguilar
publicou Poesia completa e prosa. Desfrutou de longa convivência com os
modernistas e com os intelectuais de seu tempo. Às vezes de caráter melancólico
e experimentalista, a sua poesia tem a cidade de Recife e o Nordeste como referência
temática.
O RELÓGIO
Quem é que sobe as
escadas
Batendo o liso degrau?
Marcando o surdo
compasso
Com uma perna de
pau?
Quem é que tosse
baixinho
Na penumbra da antessala?
Por que resmunga
sozinho?
Por que não cospe
e não fala?
Por que dois vermes
sombrios
Passando na face
morta?
E o mesmo sopro contínuo
Na frincha daquela
porta?
Da velha parede triste
No musgo roçar macio:
São horas leves e
tenras
Nascendo do solo
frio.
Um punhal feriu o
espaço…
E o alvo sangue a
gotejar,
Deste sangue os meus
cabelos
Pela vida hão de
sangrar.
Todos os grilos calaram
Só o silêncio assobia;
Parece que o tempo
passa
Com sua capa vazia.
O tempo enfim cristaliza
Em dimensão natural;
Mas há demônios que
arpejam
Na aresta do seu
cristal.
No tempo pulverizado
Há cinza também da
morte:
Estão serrando no
escuro
As tábuas da minha
sorte.
A TARDE SOBE
Ao
rés da Terra o tempo é escuro
Mas
a tarde sobe, se ergue no ar tranquilo e doce
A tarde
sobe!
No
alto se ilumina, se esclarece.
E paira
na região iluminada.
Sobe,
desfaz a trama de entrelaços
Superpostos
na maneira dos esquadros
Sobre
o chão aos poucos escurecendo.
Sobe:
No meio da parte densa.
Sobe
alva, serena para as estrelas
Que
irão em breve aparecer,
Luzindo,
no princípio da noite;
No
espaço branco em que se completa
Preenchendo
o centro e a esquerda
Branco
que saiu limpo
De
um fundo escuro de hachuras.
A tarde
sobe!
Sobe
até o zênite dando aos que passam
A paz
e a serenidade do entardecer.
A tarde
sobe pura e macia!
As
linhas de baixo se inclinam
Se
afastam e vão deixá-la subir.
VISÃO DO ÚLTIMO TREM SUBINDO AO CÉU
II
As locomotivas na rotunda
Olhavam para a noite do pátio
da noite, imóveis, silenciosas
— Molossos deitados, dóceis,
esperando: os olhos apagados os faróis.
Qual seria, seria, qual dentre
elas
A que conduziria aquele trem,
aquele que era o trem
E o último seria?
Qual delas ouviria a voz
do Senhor?
Quando houve um trilo no
ar: uma luz brilhou
No ar noturno — carvão do
dia —
E uma dentre todas sentiu,
de repente,
O alento do calor;
Alento que se estendeu do
fogo,
E que lhe veio em sangue
ardente,
Em respiração rumorosa de
brancos vapores.
Uma dentre elas
Que era preta, violentamente,
luzidia;
Que era preta, vagarosamente
preta;
Preta e lentamente e luzidia;
Avançando, transpôs o virador;
E foi!
Foi um touro selvagem a princípio
Depois se fez um boi pesado
e manso
Correndo as linhas de trilhos:
as fitas, os fios, os trilhos de linha.
À sua aproximação as agulhas
se abriram —
Porteiras de um curral —
furos do espaço, aberturas
Para distâncias possíveis...
aberturas, costuras
De rápidas passagens em direções
ocultas.
Pouco e pouco, mais pouco,
pouco a pouco
Ao trem se atrela, ao trem
ligando o engate, os freios
Ajustando... ao trem disposto
ao longo
Da plataforma — platimorfa,
platibanda, alegrete
Canteiro cultivado — florido
de gente.
E logo e depois, justo depois
ficou imóvel
À espera, no ante-ritmo da
espera
No anseio da esperaesperança:
Harmônicos da espera (intervalo!
Vocalises do intervalo).
— Foi assim que se fez a
composição daquele trem.
Daquele que era o trem, e
o último seria.
TERRITÓRIO ENTRE O GESTO E A PALAVRA
Entre o gesto e a palavra:
território escondido dentro de mim
Marcas de mortas visões;
tentativas, indecisões, regozijos,
Entre o gesto e a palavra.
Território:
Um silêncio, um gemido, um
esforço imaturo
Possibilidade de um grito,
modulação de uma dor.
— Ritmos mais doces que os
das águas,
— Ternuras mais íntimas que
as do amor
Entre o gesto e a palavra.
Território
Onde as idéias se ocultam
e os pensamentos se perdem
Os conceitos se escondem,
os problemas se dissolvem
Entre o gesto e a palavra.
Território.
— Os problemas da escolha,
os princípios;
Transcendências: transparências,
mediante
Uma luz que não se acende,
existem
No território contido entre
o gesto e a palavra.
— Um axioma, um lema, um
versículo, um fonema,
Uma ameaça, uma tolice, o
som velar, o eco,
Talvez a estátua de uma atitude.
Estão no campo depois do
gesto
E antes da palavra.
Também estás para mim, amiga,
entre esses dois expressivos
Entre alguma coisa de mímico
ou de sonoro
Alguma coisa que é aceno
ou que é voz:
Entre o de mim e o de ti:
Tu estou
Tu vivo
Tu falo
Tu choro
Estás, mesmo que entre nós
dois não exista
Um aparato gramático — uma
sentença verdadeira
— ou uma síntese poética
Ilusória expressão com que
se conformam os ingênuos —
Mesmo que a palavra se reduza
a simples gesto verbal
Entre o gesto e este gesto
há um infinito real.
O SALTO TRIPARTIDO
Havia um
arco projetado no solo
Para ser
recomposto em três curvas aéreas,
Havia um
voo abandonado no chão
À espera
das asas de um pássaro;
Havia três
pontos incertos na pista
Que seriam
contatos de pés instantâneos.
Três jatos
de fonte, contudo, ainda secos,
Três
impulsos plantados querendo nascer.
Era tudo
assim expectativo e plano
Tudo além
somente perspectivo e inerte;
Quando
Ademar Ferreira, com perfeição olímpica,
Executou,
em relevo, o mais alto
– Em notas
de arpejo
– Em ritmo
iâmbico
O
tripartido salto.

ANA MARIA PACHECO (Brasil, 1943). Escultora, pintora e gravadora.
Sua obra possui um acento impressionante estabelecido no centro das relações
entre sexualidade e magia, sem descuidar da tensão inevitável entre Eros e
Tanatos. A personificação de sua escultura encontra amparo vertiginoso nas
lendas, mitos e em sua própria biografia. Tendo sido inicialmente atraída pela
música, nos anos 1960 foi exímia concertista, porém o piano iria encontrar
melhor abrigo, com sua força rítmica sugestiva na narrativa que acabou
aprendendo a compor, a partir de sua fascinação pela escultura barroca
policromada e o ideário ritualístico das máscaras africanas. Nos anos 1970
viajou para estudar na Slade School of Art em Londres e ali mesmo resolveu
mudar definitivamente de endereço. Com o tempo foi desenvolvendo uma maestria
singular, a criação de conjunto escultórico que se destacava como a
representação tridimensional de uma narrativa. Embora tenha igualmente se
dedicado à pintura, com seus trípticos fascinantes, é na escultura que esta
imensa artista brasileira se destaca, com o uso de recursos teatrais e a mescla
de elementos constitutivos de diversas culturas. É também uma valiosa marca sua
a montagem de cenas emprestadas da literatura ou de evidências do cotidiano. Agradecimentos a
Pratt Contemporary, Dictionnaire
Universel des Créatrices, AWARE – Archives of Women Artists, Research &
Exhibitions. Graças a quem Ana Maria Pacheco se encontra entre nós como artista
convidada da presente edição de Agulha Revista de Cultura.

Agulha Revista de Cultura
Número 260 | abril de 2025
Artista convidado: Ana Maria Pacheco (Brasil, 1943)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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