segunda-feira, 15 de julho de 2024

MARIA LÚCIA OUTEIRO FERNANDES | Reflexos das iluminações de Rimbaud na poética de Luís Miguel Nava



O Simbolismo ultrapassou aquela década histórica, entre 1885 e 1895, bem como o espaço geográfico em que surgiu, na França. Sua importância para nós repousa não somente no fato de ter lançado os fundamentos da literatura moderna, consolidando algumas de suas principais convenções estéticas, mas, acima de tudo, por ter criado uma tradição, que ainda alimenta parte considerável da produção contemporânea. Por sua vez, esta tradição é continuamente enriquecida com novas configurações e contextualizações, que conferem complexa dinamicidade ao conceito de arte simbolista, ao mesmo tempo que asseguram sua permanência no cerne das questões que envolvem as criações estéticas. No que se refere à poesia lírica, trata-se de uma tradição, não como um passado, do qual os poetas tenham sentido necessidade de se libertar, mas na acepção de um impulso de criação que continuou fornecendo referenciais significativos, seja do ponto de vista de procedimentos formais, seja no que se refere a motivações temáticas ou expressões da subjetividade.

Depois das reflexões críticas de T. S. Eliot (1989) e Octavio Paz (1984) acerca da permanência do discurso da tradição na modernidade, ao lado do discurso da ruptura, não será necessário justificar o fato de que este trabalho adota uma perspectiva de história não no sentido de uma evolução linear em direção a um futuro, mas numa concepção em que os caminhos do progresso, além de serem plurais não abdicam de uma permanência de aspectos do passado, especialmente de algumas das principais propostas simbolistas. Como salienta António Ramos Rosa, “O poema é a sua própria ficção e desse modo supera as antinomias real-irreal, memória-presente, criação-expressão” (1988).

Esta digressão inicial é importante para enfatizar que a nossa proposta de analisar os reflexos das iluminações poéticas de Arthur Rimbaud, na obra de Luís Miguel Nava, não se apoia em qualquer ideia de influência. Não se parte da ideia de que um autor do passado tenha influenciado um escritor que veio depois dele. Nosso ponto de partida é outro. Pensamos que Rimbaud ainda está vivo e constatamos sua contemporaneidade ao verificar que sua obra constitui um paradigma pelo qual se entende não somente a modernidade, mas seus inúmeros desdobramentos. Nosso principal fundamento é a própria poesia de Luís Miguel Nava e, principalmente, os ensaios críticos, reunidos e organizados pelo escritor em 1994, em livro de publicação póstuma.

A morte precoce e trágica de Nava, em 1995, não o impediu de deixar um testamento, que deu origem a uma Fundação, destinada à publicação de uma revista e à criação de um prêmio para revelações poéticas. A impressão que nos fica da leitura dos Ensaios Reunidos é que estamos diante de outro testamento, no qual o poeta expressa um desejo muito bem delineado de como gostaria que sua obra fosse lida.

O livro parece configurar uma espécie de manual de leitura, uma vez que as reflexões críticas são permeadas por verdadeiras instruções didáticas acerca da linguagem poética e, principalmente, do papel da leitura na construção das obras. É significativo que o livro se inicie com um texto dedicado a Arthur Rimbaud. O próprio prefaciador, Carlos Mendes de Sousa, especialista na obra de Nava, aponta a intencionalidade que preside ao livro, conferindo-lhe uma natureza especular. À medida que vai propondo uma forma de ler as obras dos autores selecionados, Nava esboça uma linhagem para si próprio, como poeta, e traça uma espécie de roteiro para compreensão de sua arte poética.

Fazendo eco a T. S. Eliot e Jorge Luís Borges, dois poetas que também se dedicaram às reflexões críticas acerca da poesia moderna e suas relações com a tradição, Nava começa a configurar seus precursores e contemporâneos desde o primeiro ensaio intitulado “Algumas notas a partir dum poema de Rimbaud”, como se quisesse definir o que entende por modernidade e, ao mesmo tempo, apontar seu lugar na tradição e no contexto da poesia moderna:

 

De Rimbaud pode, a meu ver, dizer-se que, melhor do que qualquer outro escritor contemporâneo seu ou posterior, nos ensinou a ler, por tal se traduzindo o que hoje designamos por modernidade. […] Procedendo, com efeito, à reabilitação da componente sensual e afetiva da noção de sentido, em detrimento da que, meramente intelectiva, as atrofiara até então, a obra de Rimbaud não só nos alterou a percepção das que antes dele existiam já como, voltada para o século XX, tem até hoje obrigado a medir-se por ela quem por idêntico domínio tenha vindo a aventurar-se. (NAVA, 2004)

 

A apresentação do poeta francês é feita inicialmente por meio de uma síntese das análises realizadas por Tzvetan Todorov (1978 e 1980) acerca das estratégias de composição mobilizadas por Rimbaud. Enfatizando o caráter apresentativo [1]da linguagem poética de Rimbaud, Todorov afirma que a principal contribuição do poeta francês à lírica moderna foi a descoberta de uma “linguagem no seu (des)funcionamento autônomo, liberta das suas obrigações expressiva e representativa” (apud NAVA, 2004). Desse modo, Todorov conclui que a obra do simbolista francês exige uma nova forma de leitura, que só poderia ser efetuada por um tipo de leitor que não mais se preocupasse em buscar um sentido específico para o texto: “Querer descobrir o que eles [os poemas] querem dizer é despojá-los da sua mensagem essencial, que é precisamente a afirmação de uma impossibilidade de identificar o referente e de compreender o sentido; que é maneira e não matéria – maneira feita matéria (NAVA, 2004).

Nava não discorda de Todorov em nenhuma das proposições contidas em seus pressupostos, além de acatar plenamente as análises empreendidas pelo crítico acerca da linguagem de Rimbaud, reconhecendo a importância dos procedimentos descritos. referentes às Iluminações, mas se opõe à conclusão formulada pelo teórico russo, reavaliando as contribuições do poeta francês para a poesia do século XX. Embora, como tenha assinalado Todorov, Nava também concorda que a poesia de Rimbaud realmente tenha rompido com qualquer ideia de representação, não sendo possível encontrar nenhum sentido relativo a uma realidade anterior à criação dos poemas, o poeta é crítico português expande o raciocínio enfatizando a relevância do ato de leitura, que possibilita encontrar sentidos sempre novos.

Para Nava, Rimbaud inaugura um tipo de obra literária que se tornou o principal paradigma da poesia moderna. Trata-se de uma arte que visa à criação de uma realidade inteiramente outra, que apresenta um mundo completamente desconhecido, cuja principal característica consiste no fato de falar sempre da iminência de uma revelação que não se realiza. Diz Nava: “Essa noção de que a especificidade do texto radica no fato de abrir sobre inescrutáveis subterrâneos foi […] Rimbaud quem no-la impôs. Tal a Feiticeira referida em ‘Après de déluge’ […], Rimbaud mantém-nos no limiar dum modo misterioso, mágico, secreto” (NAVA, 2004).

Tal como Todorov, portanto, Nava também considera que o rompimento com a função representativa da linguagem foi a principal contribuição do poeta francês para a poesia moderna, lembrando que tal contribuição precedeu uma das principais descobertas dos estudos linguísticos, no século XX, segundo a qual “o objeto não existe senão enquanto efeito do discurso” (NAVA, 2004). Mais do que isso, ao criar um texto que “semantiza a fonologia, a rima, as consonâncias das palavras”, Rimbaud também contribuiu para a compreensão de que “cada obra engendra a postura adequada à sua percepção” (Id., Ibid.).

Em outras palavras, a obra de arte só se concretiza efetivamente quando um leitor se debruça sobre os efeitos do discurso, em busca de sentidos. Focando sua atenção no papel da recepção e não no intrincado do texto, Nava formula sua recusa à conclusão de Todorov de que o leitor não deveria buscar nenhum sentido nos textos de Rimbaud. Parece-lhe que uma conclusão tão radical acaba por bloquear qualquer abordagem acerca das Iluminações. Partindo de um pressuposto alternativo, de que literatura é um efeito da leitura, Nava parece incentivar o leitor a rejeitar as teorias e os métodos críticos e buscar a sua compreensão, pessoal e afetiva, da obra de Rimbaud, a partir de um contato direto com os textos e da sua própria sensibilidade.

Como se quisesse exemplificar o procedimento sugerido, ele próprio desenvolve, neste primeiro ensaio, sua leitura pessoal das Iluminações. Partindo-se do princípio de que o poeta se faz “vidente”, de acordo com as lições de Rimbaud, a partir de um “desregramento” de “todos os sentidos” (VICENTE, 2010), nada mais natural que este leitor especial do poeta francês, que é Luís Miguel Nava, principie sua leitura por meio de uma reflexão acerca da palavra “sentido”:

 

na origem do sentido se entrelaçam noções de natureza afetiva e sensorial do que ainda hoje a língua nos dá conta através de certas homonímias. Sentido será, nesta perspectiva, tudo o que nós percepcionamos, quer por via intelectual, quer através da pele ou através do coração. É a meu ver, pelo que estes dois últimos metonímica e metaforicamente recobrem que se afere a qualidade literária. (NAVA, 2004)

 

Desse modo, Nava se contrapõe a Todorov por meio de uma expansão dos significados do termo “sentido”, o que aumenta as potencialidades de compreensão dos múltiplos níveis de sentido que podem se abrir para o leitor no contato direto com o objeto artístico. Para exemplificar sua proposta de leitura, Nava analisa o poema “Depois do Dilúvio”. Seu método configura uma leitura que vai seguindo as múltiplas associações desencadeadas por todos os elementos que compõem o texto e que afetam as suas percepções sensoriais, para além de qualquer lógica ou ordem racional, embora estas também não sejam excluídas. Começa destacando a importância da posição inicial do poema, na abertura do livro, e mostra que esta posição, associada com a referência às Sagradas Escrituras, ressalta o papel matricial da água. Segundo ele, esta referência temporal cria a atmosfera de um mundo misterioso e mágico, que deverá surgir após o dilúvio. Aponta as inúmeras referências literárias que criam intertextualidades significativas, a intenção satírica que transparece no fato de a oração ser feita por uma lebre e ressalta a grande quantidade de notações espaciais, bem como a presença de personagens e subjetividades humanas convivendo com animais. Durante toda a análise enfatiza-se a relevância das imagens e das relações entre elas na elaboração do texto, para a criação de um mundo que se caracteriza inteiramente pela indeterminação, no qual são abolidas todas as fronteiras, inclusive entre a ficção e a realidade. Por fim, Nava ressalta que a ideia de violência, que subjaz a uma desordem de tal tamanho e que se manifesta nas alusões aos matadouros e açougues.


Curiosamente, as explicações sobre suas propostas de leitura serão expostas paulatinamente no decorrer dos demais ensaios, que serão sobre André Gide, Antonin Artaud, Cesário Verde e Camilo Pessanha. Em seguida há um ensaio geral sobre a poesia portuguesa depois do modernismo e outro sobre a intertextualidade na poesia contemporânea, seguido dos textos sobre Vitorino Nemésio, Eugênio de Andrade, Sophia de Melo Breyner Andresen, António Ramos Rosa e vários outros poetas portugueses contemporâneos. O livro se fecha com dois ensaios bastante significativos: “Algumas Coincidências” e “Francis Bacon, uma retrospectiva”.

Ao longo dos ensaios, Nava volta repetidas vezes a Rimbaud, expandindo para todo o livro as reflexões iniciadas no texto de abertura, que sugerem um modo de leitura fundamentado numa forma de olhar o texto e de buscar os sentidos diante de uma obra constituída a partir dos reflexos da poética de Rimbaud. Didaticamente, o crítico e professor Miguel Nava vai expondo seu “método” de leitura e análise ao mesmo tempo que reflete acerca de suas concepções em torno do processo de criação e da recepção da obra literária.

Um dos principais objetivos do segundo ensaio, “Gide e a Perpétua Novidade”, no qual Nava analisa o livro Les nourritures terrestres (GIDE, 1980), é rejeitar a ideia de objeto artístico como veículo de ideias, emoções ou qualquer outra coisa, para conceituá-lo como uma realidade da qual o leitor também participa, tanto com seu corpo quanto com “sua alma e seus nervos”. “É como se o importante em arte fosse precisamente aquilo que não pode prescindir de quem o apreende”, conclui Nava (2004). Esta frase é uma espécie de mote que atravessa todos os ensaios. Nela se assenta tanto a conceituação que Nava faz da obra de arte, quanto sua proposta de leitura.

Para enfatizar ainda mais a relevância da leitura no processo de criação da obra, Nava recorre a uma citação de Clarice Lispector (1980, p. 111), que reforça não somente o papel do leitor, mas também da percepção sensorial, que, no caso, é o paladar: “O sabor de uma fruta está no contato da fruta com o paladar e não na fruta mesmo” (NAVA, 2004).

Outro aspecto extremamente relevante para Nava, no livro de Gide, é a valorização que apresenta da sensação e da emoção, em detrimento do logos, e o consequente encarecimento da natureza sobre a cultura. Inicialmente a análise recai sobre o narrador que o tempo todo faz alusão a uma forma de conhecimento especial, por meio do contato direto com os objetos. Podemos inferir destas colocações que também o contato direto com as obras, é o mais relevante para a compreensão das mesmas.

Aqui, o ensaísta retoma a reflexão feita no primeiro ensaio acerca da palavra “sentido”, levando-nos a entender que tais considerações constituem ferramenta essencial em seu processo de leitura. Novamente atribui ao termo três acepções – mental, sensorial e afetiva –, aos quais acrescenta um quarto sentido, que é o de ordem espacial, já que a palavra também é usada para indicar uma direção. Mencionando Roland Barthes (1981), que diz algo parecido no livro O Grão da Voz, Nava aponta certa semelhança entre a orientação no espaço, de quem caminha numa determinada direção à procura de algo, e a primeira acepção, que se manifesta quando alguém procura o sentido de um texto. E conclui que o livro de André Gide valoriza mais as acepções sensorial e afetiva do que a mental, menosprezando a quarta, já que expressa uma verdadeira apologia à errância, à deambulação, ao nomadismo e rejeita qualquer tentativa de se dar à sua narrativa um sentido único.

A dimensão metalinguística, uma característica da arte moderna que se irradia também nas produções contemporâneas, é outro aspecto valorizado por Nava na obra analisada. Trata-se de uma obra que já traz em si sua própria teoria, o que reforça a ideia de que basta um contato direto com a mesma, para sua compreensão.

A consequência imediata de se valorizar mais a natureza do que a cultura, na obra de Gide, é a sua aparente desordem. Em sua abordagem sobre os procedimentos adotados por Rimbaud no processo de criação poética, Todorov (1978) demonstra que o poeta francês faz da ausência de organização um princípio organizador de seus textos, em todos os níveis da composição. Nava também analisa a desordem que se irradia pela narrativa de Gide, interpretando que ela se deve principalmente pelo fato de que se autor buscou lhe dar “um efeito lírico de diário íntimo” (NAVA, 2004). Apóstrofes, exclamações, rupturas de toda espécie denotam a busca de registrar a expressão espontânea, direta, que caracteriza esse tipo de escrita. O livro é composto por inúmeros episódios sem qualquer outra articulação a não ser o fato de serem presenciados ou vividos em uma viagem.

Nava interpreta a viagem como sendo uma das figurações possíveis do modo como o sujeito se relaciona com o mundo circundante, enfatizando também seu papel essencial na estruturação da obra. A viagem faz ressaltar a fugacidade do contato com as coisas, uma vez que permite configurar o permanente movimento do sujeito, dos seres e dos objetos.

A imagem da água potencializa as ideias de movimento e de fugacidade. Gide coloca em oposição à água em movimento, a água estagnada dos reservatórios, morta, que ele compara a uma forma de conhecimento repudiada em sua narrativa. As fontes, recorrentes no livro, configuram os objetos sobre os quais incide com maior violência o desejo. Por trazer uma conotação de perpétua novidade, as fontes favorecem a figuração do instante, que se sobrepõe à figuração de um percurso, de uma cronologia. É como se a cadeia temporal fosse quebrada, o que enfatiza a aproximação da escrita ao gênero lírico.

Nava classifica o método de composição de Gide, que supervaloriza o instante, como sendo simbolista. Trata-se de uma escrita que suprime a história a favor de uma exploração das sensações, buscando imitar a desordem criada pelo fluxo sensorial. A valorização do instante fortalece a ideia de presente e de presença. Por isso, a escrita de Gide é parcimoniosa no uso de verbos, recorrendo predominantemente às enumerações, às frases nominais e aos fragmentos sem verbos. A ausência dos verbos favorece ainda mais a apreensão do mundo pela via sensorial, em detrimento de uma apreensão intelectual. Longe de conotar imobilização das coisas, a ausência de verbos potencializa a captação das coisas de modo intenso e instantâneo.

A classe dos verbos, explica Nava, “implica uma apreensão por via intelectual”, distante dos sentidos, o que redunda numa cisão entre o sujeito e o objeto. Explorando uma escrita que faz uso parcimonioso de verbos, Gide privilegia a percepção sensorial, em detrimento da compreensão racional, o que potencializa a fulguração instantânea das coisas (2004). Os objetos sobre os quais incide o desejo brilham intensamente, como exteriorização tanto do desejo quanto da sua satisfação, ainda que fugaz.

O sujeito é configurado como um vazio que só alcança a plenitude momentaneamente, por meio da posse dos objetos, com os quais se funde. A apreensão instantânea das coisas faz proliferar a imagem da fulguração, bastante recorrente, como se o sujeito estivesse em permanente estado dionisíaco. O tema da embriaguez percorre toda a obra e se manifesta por meio de todos os sentidos – tato, visão, ouvido, olfato e paladar – um podendo intensificar a percepção do outro (NAVA, 2004).

Essa busca de uma plenitude, ainda que momentânea, também se relaciona com a poética de Rimbaud:

 

A poesia da plenitude representa, no contexto da poesia rimbaudiana, a aspiração idealista a uma experiência de felicidade absoluta que o poeta jamais abandonará. Em parte, a revolta que começa a crescer em seu espírito nasce dos limites que a sociedade e a própria vida impõem ao pleno desenvolvimento desse ideal. […] A vidência não deixa de ser uma forma de revolta, uma recusa da percepção convencional da realidade e da linguagem poética que a expressa. […] Diferentemente das gerações passadas que “tinham descoberto apenas a significação falsa do eu”, o poeta vidente descobre sob o “eu” empírico um “outro”, que brota das “profundezes e traz consigo forças criativas antes insuspeitadas pelo próprio poeta. (VICENTE, 2010)

 

A interpretação de Nava acerca das manifestações da subjetividade no livro de André Gide também traz fortes ressonâncias da poética de Rimbaud. Impossível não relacionar o clima de embriaguez, que contamina toda a estruturação da obra, com “a imagem do barco que perde as amarras” e que “remete, no plano simbólico, à busca da liberdade, da aventura, da descoberta, de evasão e de errância” (VICENTE, 2010), do poema mais famoso de Rimbaud, “Le bateau ivre”. Impossível não relacionar o paradigma da viagem que estrutura a narrativa de Gide, cuja conotação de fluidez é potencializada pela presença recorrente das águas, configurando um mundo instável, movente, de percepções fulgurantes, que proporcionam estados intensos de plenitude, com a ideia de uma viagem em ritmo “alucinatório”, empreendida pelo “barco-poeta”, de Rimbaud, que, no seu esforço por atingir “um mundo misterioso, desconhecido”, pode significar o próprio “ato de criação poética” (VICENTE, 2010).

Outro texto essencial para se entender a poética de Nava, bem como seu método crítico, que refletem, ambos, as ressonâncias da poética de Rimbaud, é o terceiro do livro, intitulado “Artaud: tric trac du ciel”. Neste ensaio, Nava analisa mais uma vez os principais aspectos da linguagem simbolista, herdada via Rimbaud, que mobilizam o modo de leitura proposto por ele. Segundo Nava, o livro de poemas de Antonin Artaud, Tric trac du ciel, confirma a sua ideia de que “todo o acto poético é uma cosmificação”, “que se opera a partir do caos”, promovido pela “destruição da língua”:

 

Não por acaso o ato poético se chama de criação e a etimologia aproxima a poesia do fazer. Cada vez que se serve do verbo para criar, nesse mesmo acto recriando o próprio verbo, o homem não só confere um sentido aleatório como o que dessa maneira cria detém um estatuto ontologicamente superior ao do que lhe subjaz: a língua. (NAVA, 2004)

 


A auto-referência, pela qual o ato poético remete permanentemente à sua própria concretização, é o ponto mais ressaltado ao longo do ensaio, enfatizando-se também a inextrincável articulação entre o processo da criação e a dimensão cosmogônica do universo. A fim de reforçar sua reflexão, Nava cita um fragmento de António Ramos Rosa (1986), que nos remete de volta ao simbolista francês:

 

na poesia e na arte moderna, o processus criador liberta-se completamente da regulação lógica, desenrolando-se através de estruturas próprias, que se organizam não-racionalmente em ordem a uma nova realidade que se torna, assim, fruto mais direto e mais fiel da inicial intuição criadora. […] Assim se entra num mundo onde o real foi destruído, onde a única realidade é a própria linguagem. O único conceito positivo que é possível extrair da poética de Rimbaud é o da liberdade plena da imaginação, a demiurgia absoluta. O conteúdo de um poema já não depende do assunto ou argumento que o estruturava, mas confunde-se com todos os acidentes sonoros e semânticos que se integram na sua verdadeira substância. (NAVA, 2004)

 

A dimensão demiúrgica da poética de Rimbaud também se relaciona com a busca de atingir o desconhecido por meio de uma reinvenção do mundo poeticamente. Há um paralelo entre as forças do inconsciente que movem a criação do mundo pela linguagem e as forças cósmicas da natureza que impulsionam a permanente recriação do universo. Daí a importância de mergulhar no caos, que precede todo ato de criação. Daí a importância dada ao corpo e à apreensão do mundo por via sensorial, tanto na criação da obra literária quanto na sua recepção.

Desde que se formou a tradição simbolista, primeiro com Baudelaire, depois com Rimbaud, a poesia se faz a partir de uma estrutura imagética. Nava enfatiza que, no caso do livro de Artaud, a mesma estrutura vai sendo reiterada a cada poema. Didaticamente, o crítico comenta os termos adotados, como faz ao utilizar o verbo “parecer” para indicar que a organização dos textos “parece” se dar em torno de um “fulcro de natureza cosmogônica” (NAVA, 2004). Nava explica que a utilização deste verbo denota, em primeiro lugar, respeito à natureza do “objeto literário” de modo geral, que se concretiza no plano da aparência, da ambiguidade e da multiplicidade e, em segundo lugar, em respeito à escrita de Artaud, que poderia ser classificada na categoria denominada por Roland Barthes como “texto escriptível”, sobre o qual se pode dizer que:

 

é um presente perpétuo, no qual não se vem inscrever nenhuma palavra “consequente” (que fatalmente, o transformaria em passado); o texto escriptível é a mão escrevendo, antes que o jogo infinito do mundo (o mundo como jogo) seja cruzado, cortado, interrompido, plastificado por algum sistema singular (Ideologia, Gênero, Crítica) que venha impedir, na pluralidade dos acessos, a abertura das redes, o infinito das linguagens. (BARTHES, 1992)

 

Desse modo, o ato receptivo também não pode consistir na busca de um sentido único, Ao contrário, mergulhando no âmago do mundo mágico e desconhecido, concebido pela imaginação criadora do artista, que mobiliza e organiza uma multiplicidade de recursos de linguagem, suprimindo as relações lógicas entre os elementos do discurso, entre as referências de tempo e espaço, entre seres de natureza diferente, entre ficção e realidade, e gerando efeitos inusitados de fragmentação, condensação, contiguidade, paralelismo, simultaneidade, pluralidade de sentidos, indeterminações e paradoxos, entre outros efeitos alucinatórios, o leitor precisa comungar do mesmo desejo de se desligar de tudo aquilo que conhece como sendo a realidade, para encontrar novos sentidos, apreensíveis não pelo raciocínio lógico, mas pela percepção sensorial e afetiva do texto.

Nava começa a análise dos poemas de Artaud pela abordagem dos vários espaços que neles se manifestam, esclarecendo que o conceito de espaço é tomado por ele no sentido que lhe dá A. D. Alexandrov, citado por Iuri Lotman (1978), no livro A estrutura do texto artístico. Nesta acepção, espaço refere-se a um conjunto de objetos homogêneos, tais como fenômenos, estados, funções, figuras ou significações entre as quais existem relações semelhantes às relações espaciais, como a continuidade e a distância, entre outras.

Nava descreve uma série de espaços, mobilizadores de uma multiplicidade de relações entre os signos, que ora remetem à ideia de clausura, ora se expandem para a noção de cosmos. Explora com requinte os detalhes relativos às relações metonímicas e metafóricas que enfatizam um emaranhado jogo de reciprocidades entre os mais variados signos, símbolos, imagens, fonemas, ritmos, rimas, enfim, todos os elementos mobilizados na composição dos textos e na organização do livro em foco, ressaltando, por meio da análise de tais elementos, a destruição da “imotivação do signo”, obtida pelo processo de criação. Nava demonstra que os textos poéticos de Artaud confirmam que a motivação dos significantes constitui uma das principais características da linguagem poética.

O espaço da feira, que aparece num poema, é interpretado como a imagem do cosmos, espaço de reatualização de acontecimentos míticos. Esta perspectiva, por sua vez, gera um excesso que, quando associado à música de um órgão, que ecoa no mesmo poema (NAVA, 2004) possibilita a criação de novos espaços, concorrendo para certa desorganização e o estabelecimento de um caos.

Nava vai demonstrando como o uso do vocabulário possibilita uma série de jogos de sentidos, que concorrem para estabelecer o clima de indefinição e a configuração de contexto difuso. A imagem do fogo – Nava cita A psicanálise do fogo, de Gaston Bachelard (1972) – remete a conteúdos simbólicos e acrescenta uma conotação de violência a esta atmosfera espacial (NAVA, 2004). Mas a imagem da água, “símbolo do caos original” – cita Le Sacré e Le Profane, de Mircea Eliade (1965) – é ainda mais poderosa no papel de realçar a função estruturante que a música tem na poesia de Artaud.

Desse modo, com base na obra de Eliade, Nava interpreta a água como símbolo da “soma universal das virtualidades”. A água constitui a origem e o reservatório de todas as possibilidades da existência, precedendo e fundamentando qualquer criação. Tal como ocorre no batismo ou em outros ritos de passagem, o contato com a água implica uma regeneração ou alguma espécie de elevação a um estado superior (NAVA, 2004). Nava explora todas as manifestações explícitas ou implícitas nos poemas de Artaud que sugerem conotações relacionadas ao elemento água. Todos os espaços e todos os elementos que compõem os poemas são contaminados pela fluidez da água. A música, por sua vez, que perpassa tudo, condensando as imagens do fogo e da água, transforma-se numa espécie de água-ardente, cujos efeitos dominam todos os espaços (NAVA, 2004).

A valorização do espaço, enfatizada por Nava desde o primeiro ensaio, é uma das principais heranças da poética de Rimbaud:

 

[…] a força da imagem não nasce mais do símile, da comparação, da semelhança; ela provém agora da aproximação de duas realidades longínquas. Sua força está justamente nesse poder de estabelecer relações novas entre elementos aparentemente incompatíveis e de romper as conformações de espaço e tempo. A emoção que a poesia quer despertar é fruto das aproximações inusitadas, da copresença insólita, de uma estranheza profunda, pois agora a imaginação poética força as portas da analogia. (VICENTE, 2010)

 

As inúmeras relações de reciprocidade entre os espaços que se contêm entre si, formando círculos, remetem aos espaços privilegiados da cosmogonia, relacionados aos mitos da criação da vida.

O livro prossegue com uma série de ensaios sobre poetas portugueses. A ordem dos textos parece refletir o desejo de rastrear os autores que foram importantes para a configuração de uma lírica moderna em Portugal, desde os seus principais fundadores, Cesário Verde e Camilo Pessanha, passando pelos modernistas, especialmente Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Além do desejo de elencar poetas que colaboraram para o desenvolvimento de uma poética moderna, percebe-se que Nava mantém uma relação afetiva singular com os poetas selecionados, ficando clara sua intenção de configurar um contexto no qual possa situar sua própria obra, apontando sua contribuição para a tradição da ruptura (PAZ, 1984) em Portugal.

Não se pode concluir, porém, que esta reunião de ensaios tenha por única motivação apontar caminhos para a leitura da obra poética do seu autor. Depois de perceber as inúmeras ressonâncias rimbaudianas ao longo das leituras realizadas por Nava, é necessário voltar à sua afirmação, no texto de abertura, de que Rimbaud foi o escritor que melhor ensinou a ler o que hoje se entende por “modernidade” (NAVA, 2004). A leitura dos textos de Nava pode ampliar a percepção acerca dos aspectos da poesia moderna que continuam relevantes na contemporaneidade.

Os ensaios críticos de Nava podem ser lidos como ampla reflexão acerca da natureza da obra poética, cujo processo de criação e cujos significados não podem ser compreendidos fora das relações de intertextualidade que estabelece com a tradição e com a contemporaneidade e, principalmente, fora do processo de sua recepção. É o leitor que vai permitir a permanente atualização possibilitando que a obra de arte se apresente sempre como inovadora. Quanto mais o poeta incorpora o leitor em sua produção, mais inovadora irá se apresentar sua obra, aos seus pósteros.

O rompimento com a representação de uma realidade exterior e a proposta de criar um mundo mágico e desconhecido, fundamentado na imaginação e no trabalho com a linguagem, fazem proliferar, na poesia moderna, as referências metalinguísticas e o diálogo com outros textos. Este aspecto é analisado por Nava no ensaio intitulado “Intertextualidade na Poesia Portuguesa Contemporânea”, estrategicamente apresentado no início dos textos que abordam poetas que se destacaram após os anos 1960, em Portugal. Nava destaca três pólos em que se concentram as referências intertextuais encontradas nestas obras: a poesia quinhentista, com especial relevo para Camões e Sá-de-Miranda; a poesia dos fundadores da modernidade, Cesário Verde e Camilo Pessanha; e a obra dos próprios contemporâneos. Nava retorna a este tema no curioso ensaio “Algumas Coincidências”, no qual vai analisar a presença da intertextualidade na sua própria poesia.


O ensaio intitulado “Sobre Cesário Verde” começa por responder a uma pergunta feita acerca do papel deste poeta na evolução da poesia portuguesa. Invocando as reflexões de Rimbaud, na célebre carta do vidente, sobre Baudelaire, com quem Cesário Verde tem sido comparado frequentemente, Nava afirma que ambos têm em comum o fato de serem considerados, atualmente, como fundadores. Em outras palavras, ambos foram portadores de um discurso inaugural “em que nós nos continuamos a reconhecer” e que faz deles, como também de Camilo Pessanha, os “privilegiados pólos de referência de toda a poesia que lhes é posterior” (NAVA, 2004). A crescente valorização da obra de Cesário Verde deve-se ao fato de que a contemporaneidade supervaloriza o que Nava chama de “mito da modernidade”. E de fato, conclui ele, a obra de Verde concorreu até para o aparecimento de Fernando Pessoa e seus heterônimos, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Outro fundador da modernidade lírica em Portugal é contemplado no ensaio seguinte, “A Propósito Duma Imagem de Pessanha”, que ressalta a importância das imagens e dos leitores para o processo de criação poética.

Na sequência, Nava organiza uma série de textos nos quais aborda uma grande quantidade de poetas contemporâneos. De todos analisa algumas características singulares, fazendo aflorar em muitos momentos várias referências a diversas tópicos valorizados nos três primeiros ensaios do livro. Não há nenhuma tentativa de apontar qualquer influência de Rimbaud nas obras abordadas, mas em todos os textos ressurgem ressonâncias da sua poética, que se vão misturando a outros aspectos relacionados a questões privilegiadas na contemporaneidade. É de se notar, por exemplo, na análise das poéticas de Luiza Neto Jorge e Herberto Helder, a ênfase dada aos diferentes modos como o corpo se insinua na escrita destes autores, principalmente quando a isso se articulam os inúmeros procedimentos relativos ao ritmo:

 

A escrita de Luiza Neto Jorge, dada a força vulcânica que a anima […] é, assim, nestes seus livros de finais dos anos 60, o exemplo de uma escrita sem passado, onde as palavras fulgem num momento de explosão […]. O ritmo é sincopado, entrecortado, reduzindo-se por vezes a sintaxe quase a meras enumerações e exclamações, e o corpo insinua-se, com as suas pulsões, o seu desejo, os seus espasmos, nesses espaços intersticiais onde o sentido é curto-circuitado e onde se assiste, assim, a um “curto-amor-coito-circuito […] Dir-se-ia que as palavras, jorrando em desordem do fundo do poço […] se organizam, não em função de quaisquer sentidos facilmente apreensíveis, mas segundo afinidades existentes entre si, como se o sentido, um sentido sempre à beira da vertigem, fosse comandado pelo ritmo”. (NAVA, 2004)

 

Outro poeta tratado com especial relevo é Herberto Helder. Em vários ensaios Nava retorna à sua poesia, insinuando mais de uma vez que não estão equivocados os críticos que aproximam sua própria poesia da escrita do autor de A colher na boca (1961). Em todos os comentários avultam as ressonâncias rimbaudianas, ao lado de características peculiares da escrita de Herberto Helder, que fazem dele um poeta singular. Pelas análises de Nava, sem que ele mencione isso, pode-se inferir que Helder seja um dos principais herdeiros da poética de Rimbaud. Em sua escrita desenvolve-se, como em nenhuma outra, aquele impulso visionário e onírico, que resulta de uma imaginação imperiosa, completamente livre, e de um trabalho de desestruturação de todos os sistemas ideológicos e estéticos, a partir da libertação da linguagem de suas funções expressiva e representativa. Pode-se dizer que Helder ativa, ao longo de sua obra poética, aquele “(des)funcionamento autônomo” que Nava (2004) havia apontado na poesia de Rimbaud, no primeiro ensaio. Nava nos leva a concluir que a poesia de Helder irradia e potencializa as dissonâncias da lírica rimbaudiana:

 

Assiste-se, com ela, a um esvaziamento psicológico e biográfico do eu, cujos sentimentos são homologados a forças e energias que dele fazem uma espécie de palco onde os fluxos vitais adquirem um sentido cósmico. O corpo passa, assim, a ser predominantemente referido de maneira fragmentária, onde ganham especial importância não só as suas partes mais extremas – as mãos, os dedos e a cabeça –, mas também as vísceras e os pontos através dos quais estas se abrem ao exterior, como a boca, o ânus, a vagina ou os poros. Verbos como gravitarpulsar ou palpitar [grifos do autor] dão exemplarmente conta desse movimento que o irmana ao universo. Em estreita relação com ele, os objetos que o rodeiam adquirem um estatuto mítico […]. (NAVA, 2004)

 

Há outro poeta ao qual Nava faz menção ao longo de vários textos e que é abordado num curto ensaio, de nome sugestivo, “O Universo Soberano de António Ramos Rosa”. O título aponta o relevo dado a esta obra no contexto literário lusitano. Neste texto, Nava ressalta a presença da hipálage, uma figura extremamente valorizada na poesia moderna e que constitui um dos princípios estruturadores da obra de Rosa:

 

cada um dos seus versos é uma imagem do poema, cada poema uma imagem do livro e o livro uma imagem da obra. Cada elemento contém virtualmente o todo e […] se abre a todos os restantes, com eles intercambiando as respectivas qualidades e instaurando assim uma permanente circulação de atributos, uma “corrente sonâmbula” ou uma “corrente silenciosa”. (NAVA, 2004)

 

Os atributos que Nava encontra na obra de António Ramos Rosa, com base na figura da hipálage, figura de natureza sintática ou semântica, que funciona como agente de transposição das relações naturais entre dois elementos, também servem para caracterizar o conjunto da obra poética e crítica de Luís Miguel Nava. Nos ensaios, cada parte relaciona-se com as demais ao mesmo tempo que remete ao todo. Mas é o leitor que precisa encontrar estas relações aparentemente imotivadas, no emaranhado das múltiplas referências que se cruzam entre os diversos textos. Entre as surpresas que o livro provoca no leitor está a descoberta dos motivos que levam Nava a inserir o último o ensaio, “Francis Bacon”, Uma Retrospectiva”.

A primeira reação que se tem ao chegar neste texto é o estranhamento por ser o único que aborda a pintura, enquanto todos os demais focalizam obras literárias. A leitura do ensaio, porém, vai desnudando a intenção de enfatizar não somente os aspectos dos quadros de Bacon que mais fascinam o próprio Nava, como também deixam ver um paralelo implícito entre os aspectos enfatizados nos ensaios anteriores, acerca das principais propostas da poesia de Rimbaud, e algumas das características percebidas na pintura de Francis Bacon. Ao mesmo tempo, o ensaísta leva o leitor a perceber como ambos, ele e o pintor, têm afinidades entre si e como tais afinidades, por sua vez, remetem às ressonâncias rimbaudianas que ecoaram ao longo do livro.

Nesse ponto é possível propor uma dupla leitura para o vocábulo “retrospectiva”, que tanto remete à exposição do pintor Francis Bacon, na Tate Gallery, que motivou as anotações que constituem o último ensaio, quanto pode se referir à retrospectiva como sugestão feita ao leitor para que refaça o percurso percorrido desde o primeiro texto, para entender as motivações do autor, tanto nos ensaios, quanto em sua poética.

Ao fazer uma retrospectiva dos ensaios anteriores, o leitor poderá se lembrar, entre tantas coisas importantes, que, no segundo texto, sobre a narrativa poética de André Gide, Nava havia sugerido um curioso paralelismo entre o escritor francês e o pintor Henri Matisse (1869-1954). Segundo Nava (2004), Matisse desejava pintar diretamente sobre a alma das pessoas, o que lhe permite apontar uma homologia entre a concepção de criação do pintor e a de André Gide, uma vez que ambos valorizavam a “intervenção do receptor no facto estético”. Por uma coincidência interessante, também naquele ensaio, havia a sugestão implícita de um paralelismo entre a concepção de criação dos dois com a de Nava. Por outra coincidência, o processo de criação adotado pelos três, articulava, num plano hipotético, o momento da produção e o momento da recepção, no processo de criação.

No último ensaio, Nava sugere as limitações do texto crítico. Sente-se desconfortável diante do fato de que as anotações apresentadas, por obedecerem mais a uma apreensão intelectual, não conseguem traduzir as percepções apreendidas no momento do contato direto com as obras de Bacon, na exposição da Tate Gallery. Sente-se igualmente desconfortável com a possibilidade de que os quadros de Bacon venham a ser entendidos como “objetos” de uma abordagem crítica. Entre os motivos alegados está justamente o fato de que a reflexão realizada posteriormente não dá conta das percepções que penetraram nele pela “pele”, atingindo o coração. Na verdade, devemos nos lembrar que as percepções entraram nele pelos olhos, com os quais a pele se relaciona metonimicamente, por uma relação de contiguidade.

Ao se deparar com esta reflexão é impossível ao leitor não se lembrar de outro ensaio, sobre Camilo Pessanha, no qual Nava analisa uma imagem com a qual se deparou num poema deste escritor e que suscitou nele uma série de outras imagens semelhantes, encontradas em muitos outros poetas, que enfatizam a noção de que o mundo se prolonga pelo interior de quem olha para ele. Na imagem de Pessanha, o que havia de perturbador é que as estrelas do céu continuavam refletidas no olhar de uma jovem morta o que havia levado Nava a desenvolver, no ensaio sobre Pessanha, uma intrincada reflexão.


Na reflexão acerca da imagem perturbadora encontrada num poema de Pessanha, Nava (2004) enfatiza o fato de que a perplexidade do leitor, diante desta imagem, decorre da falta de ajuste entre as proporções do mundo externo com o interno. Entretanto, no caso da imagem descrita, a perplexidade do leitor é potencializada pois não pode haver qualquer correspondência entre o infinito, sugerido pelas estrelas, e um corpo “do qual a vida foi desalojada”. O que nos perturba é sentir que não há infinito nenhum, quando este se reflete nos olhos de um corpo “devolvido à natureza”, como conclui Nava, com isso querendo dizer que o corpo foi completamente esvaziado, pois, como diz Caeiro, citado por Nava, “a Natureza não tem dentro”.

No ensaio sobre a pintura de Bacon também se desenvolve uma reflexão semelhante. Num primeiro momento Nava parece se referir ao fato de que a linguagem lógica, própria destes seus apontamentos críticos, não dá conta de tudo o que penetrou dentro de si e de toda perplexidade que sentiu no contato, pelo olhar, com aquele excesso de corpos esquartejados, aquela “estranha exposição das vísceras”, sugeridas pela recorrência, na pintura de Bacon imagem de “carne pendurada em ganchos”. Entretanto, quando se acompanha a reflexão acerca da perplexidade que tal imagem desencadeia em seu espírito, percebe-se que há algo a mais na motivação desta perplexidade. Diz Nava, sobre a imagem da carne pendurada, nos quadros de Bacon:

 

Eu aventuraria, para começar, que através dela se pretendeu dar a ver o que no corpo humano confina com a animalidade. O que, ao deformar ou esquartejar os corpos, antes de mais se está a fazer é libertar a carne de qualquer espiritualidade, privando-a do que no homem é a sua evidência soberana: a expressão, de que o rosto é o mais óbvio ponto de incidência. (NAVA, 2004)

 

A cena que se vislumbra na mente do leitor, na qual Nava olha a pintura de Bacon está repetindo, no ato da recepção, a imagem encontrada no poema de Pessanha. As imagens da carne humana despojadas de qualquer transcendência, no nível da materialidade absoluta, remetem a uma poética, inaugurada por Rimbaud, que também busca a completa destruição da linguagem como fonte de significados que transcendem o texto. Os reflexos desta poética, que motivam o modo de leitura proposto por Nava, podem ser encontrados também em qualquer um dos seus poemas. Tal como Rimbaud, Nava adota um processo de criação que não prescinde do ato de leitura. Recusando as funções expressiva e representativa, sua linguagem mobiliza uma profusão de imagens que sugerem uma infinidade de possibilidades de sentido, por meio de associações inusitadas entre recursos sonoros, visuais, sintáticos, morfológicos, que apresentam um mundo inteiramente mágico, desconhecido e estranho, cujos sentidos só o leitor poderá intuir por meio de suas percepções, à medida que olha (e ouve) o texto, sentindo sua energia, observando seus movimentos e o emaranhado de imagens.

Se tomarmos aleatoriamente qualquer poema de Nava, do princípio ao fim de sua obra completa, encontraremos os reflexos das iluminações rimbaudianas, herdadas pela poesia moderna. Vejamos o sugestivo poema, cujo título pode remeter a estas ressonâncias simbolistas:

 

OS ECOS

 

A carne que os guindastes

suspendem, minha,

rente à fosforescência

no abismo dos dias,

 

a mesma onde a rasura

do tempo abre interstícios

estentendo-a no mármore,

 

as máquinas que os astros

perfuram erguem-na às alturas

do espaço ou das colunas

de que se nutre o tempo,

 

noite onde os astros

escondem as raízes

ou ramo de glicínias

em dedos sufocados, carne

 

onde inda vibram

do extinto amor os ecos.

 

O sentido do vocábulo “eco”, que aflora na primeira leitura do poema, consiste na ideia de repetição de um som seco e forte, que martela nos ouvidos do leitor, articulando-se com as imagens estranhas e violentas – conotação sugerida pela carne pendurada lembrando um açougue e trazendo referências a morte e esquartejamento. As imagens se tocam, se juntam momentaneamente, como num caleidoscópio, e se irradiam pelo texto, criando associações inusitadas entre vocábulos de campos semânticos muito distantes e entre todos os elementos que estruturam o poema. A imagem nuclear, que desencadeia as dissonâncias estruturantes (ou, ao contrário, desarticuladoras) da escrita é a da carne pendurada, cujas conotações se disseminam pela superfície do texto, como num “mármore”. A profusão de imagens cria um clima de caos, onde aparentemente tudo está desarticulado.

Entretanto, à medida que se entrega às percepções que emanam destas imagens, o leitor vai percebendo as inúmeras associações, os inusitados paralelismos, a simultaneidade que permite aflorar uma pluralidade de sentidos. As repetidas referências a uma carne pendurada, bem como som dos ecos que perpassam todos os níveis do poema, além de conferir uma unidade à composição, potencializam as conotações da imagem nuclear e aguçam as percepções sensoriais e afetivas do leitor.

Abolindo as relações lógicas entre os elementos do discurso, o poema apresenta uma paisagem desconhecida e estranha, que não mostra qualquer semelhança com uma paisagem real. Os ecos criam o ritmo de uma marcha, que confere movimento à paisagem. Mergulhada na noite, a paisagem insólita aponta para uma realidade criada por uma imaginação inteiramente liberta. Rompendo com o princípio representativo de um referente externo e com a expressão de um “eu” psicológico ou biográfico, o poema joga o leitor no âmago de um universo completamente desconhecido e perturbador, no qual fulgura a imagem da carne pendurada, que se dissemina pelo poema, da mesma forma que os ecos, promovendo uma correspondência entre os sentidos da visão, da audição e do tato (dedos). A ideia de “repetição”, de algo que volta insistentemente, trazendo uma espécie de rastro de memória longínqua prolifera por todo o poema, potencializada pela correlação entre as percepções sensoriais.

A carne remete à voz que fala no poema, que ela mesma informa pertencer a si. Por uma relação de contiguidade a carne remete ao corpo do enunciador. Mas este corpo, além de se apresentar fragmentado, está desfigurado, despojado de qualquer expressão ou configuração humana. Trata-se de um corpo esvaziado de subjetividade, sem identidade e sem vida. O corpo se resume a um pedaço de carne, que também não está onde deveria estar, que seria no próprio corpo, mas está pendurado, num guindaste que o eleva acima do plano comum da existência cotidiana, esta que se realiza “no abismo dos dias”. Abismo que apresenta rente a si uma “fosforescência”, isto é, uma luz intensa.

Depressão natural no relevo de uma paisagem, o vocábulo “abismo” também pode ter muitos outros sentidos. Pode remeter à ideia de altura, de verticalidade, tal como o espaço criado pelo guindaste e pelas colunas – enfim, são as “alturas do espaço” “ou das colunas / de que se nutre o tempo”. Só que se trata de uma verticalidade oposta, que conduz para as regiões inferiores. Este espaço vertical une a altura dos astros às regiões subterrâneas, evocadas por dois vocábulos, “abismo” e “raízes”. Além de conotar o espaço das profundezas geológicas, “abismo” também pode trazer o sentido psicológico de depressão emocional, de inferno como um estado interno, além da referência à ideia religiosa de danação. A paisagem é configurada, portanto, por três espaços externos – o nível terreno, onde a carne está exposta, o nível elevado dos astros e o inferior, com breve alusão a um espaço interno. Uma luminosidade (fosforescência) resplandece à beira do abismo, refletindo a luz dos astros. Mas há também uma clara referência a um espaço sagrado, mítico, que remete à consciência de um espaço amplo, de natureza cósmica. A conotação de abismo como escuridão interior pode se relacionar à ideia de escuridão, de noite. O poema informa, na quarta estrofe, que é noite.

A ideia de algo que está pendurado nas alturas se repete na imagem das glicínias, plantas cujas flores cor de púrpura caem, penduradas em cachos compridos, que enfatizam ainda mais a verticalidade. Dois focos de luz iluminam a carne exposta, reforçando a sua posição central no sistema de signos do poema, a dos astros e a fosforescência à beira do abismo.


A imagem do pedaço de carne elevado é apresentada duas vezes. Nos dois primeiros versos, a carne está suspensa por “guindastes”; na terceira estrofe, ela reaparece, erguida por “máquinas que os astros perfuram”. O hipérbato favorece a indeterminação dos sentidos e permite uma dupla leitura. O verbo “perfurar” pode indicar uma ação feita pelas máquinas na imagem dos astros, confundindo-se com eles, no céu, ou pode remeter à perfuração feita na carne, no ato da suspensão.

Há uma contaminação dos sentidos que se espalha por todos os elementos que compõem o poema. A disposição dos versos e dos vocábulos na quarta estrofe também permite uma dupla leitura. Na ordem direta, como a frase aparece no poema, são os astros que fazem papel de sujeito, escondendo “as raízes” ou o “ramo de glicínias”, “em dedos sufocados”, ou seja, por meio de dedos que se fecham, sufocando. Na ordem inversa, que poderia configurar um hipérbato, são “as raízes ou ramo de glicínias” que escondem os astros, por meio de dedos sufocantes. A ideia de inversão é potencializada pelo sintagma “em dedos sufocados”, no qual o resultado da ação sugerida – “sufocar” – é transformada em atributo dos dedos, “sufocados”.

Glicínias são plantas da família das leguminosas, muito usadas para fins ornamentais, trepadeiras rústicas, que crescem apoiadas em outras plantas. Sua principal característica são os cachos imensos de flores pendentes, roxas ou lilases, que exalam um forte perfume semelhante à uva. De exuberante beleza, os cachos pendentes podem chegar a 28 cm de comprimento. São plantas muito fortes, que sobrevivem bem até no mais rigoroso inverno.

A imagem dos cachos de flor remete, pela semelhança, à carne pendurada. As duas imagens têm vários aspectos em comum. Em primeiro lugar elemento espacial no qual se apresenta um objeto pendurado, conotando altura e verticalidade; em segundo lugar, pela vibrante cor escura, arroxeada, e pelo perfume ou aroma forte que exalam. Ambas são criações singulares da natureza. Ambas remetem à imagem de seres fragmentados (a carne é parte do corpo da mesma forma que o cacho é parte do arbusto), despojados de qualquer transcendência, imersos no cosmos, integrados no universo, na sua materialidade absoluta, bela e estranha. O clima de estranhamento é reforçado pelos contrários que se fundam: flores com carne, mundo espiritual (astros) com material (terreno) e até com as regiões inferiores (raízes, abismo), dia (quarto verso da primeira estrofe) e noite (primeiro verso da quarta estrofe).

Entre o pedaço de carne pendurado e as glicínias há uma relação espacial de semelhança: os cachos de flores, que são partes da planta, estão pendurados em altos pêndulos, da mesma forma que o pedaço de carne está pendurado nas alturas, em guindastes. Entretanto há uma oposição essencial, pois enquanto a planta se posiciona numa haste natural, carregada de energia vital, o pedaço de carne está suspenso por um pêndulo artificial, numa máquina, além de estar despojado de vida. Portanto, ambos configuram uma oposição essencial entre vida e morte. Só que, embora despojado da energia vital, o pedaço de carne está sendo elevado às alturas, tocando os astros, o que remete a um espaço cósmico, que transcende a realidade terrestre.

A articulação entre estas imagens, promovendo a fusão de sentidos contrários e estabelecendo equivalências entre realidades de natureza diferente, remete à ideia de um tempo ou um espaço mítico, que une todas as criaturas da terra e do céu. Como todos os sentidos gerados no corpo deste poema, também a oposição entre vida e morte é só aparente, pois esconde uma realidade maior, a realidade mítica, próxima do caos, da qual emana a energia vital, responsável pela eterna criação e recriação da vida. Por esta perspectiva mítica, morte e vida não se opõem, mas se alternam indefinidamente num movimento circular. Assim, o espaço verticalizado aponta também para um espaço mítico, ligado a um tempo circular, no qual todas as oposições se fundem, como se fossem uma única realidade.

Coroando estas associações, motivadas pela organização visual e sonora do poema, há uma outra referência que confirma a presença de um espaço sagrado. Na terceira estrofe, as máquinas elevam a carne “às alturas do espaço ou das colunas de que se nutre o tempo”. A imagem das colunas pode ser relacionada ao “mármore” e, juntas, remeter à presença do sagrado. As referências múltiplas referências espaciais, mais significativas para a estruturação do poema do que as referências temporais, reforçam a ideia de justaposição dos objetos promovendo uma ordem estranha neste universo.

É importante atentar para o fato de haver duas aparições do vocábulo “tempo”. Uma se relaciona ao tempo do cotidiano e aparece com o sintagma “no abismo dos dias”, na primeira estrofe. A outra emerge relacionada a duas imagens metonímicas de um templo – o “mármore” (matéria pelo edifício) e as “colunas” (parte pelo todo). As duas referências remetem à ideia de um tempo cronológico e de um tempo sagrado, que extrapola o tempo histórico. As duas manifestações do tempo “rasuram” e “abrem interstícios”, deixando suas marcas – “os ecos”, do título – na matéria. As marcas do tempo remetem à ideia de memória e estão relacionadas a uma espécie sacrifício de imolação da carne, “estendendo-a no mármore”. É como se a carne estivesse sendo elevada a um outro nível de realidade. Parece que as marcas do tempo, que podem ser associadas também aos ecos, imprimindo rasuras na carne, têm um papel importante nesta ascensão.

No mundo criado pelo poema de Nava reina uma aparente desordem e indeterminação, decorrentes da falta de ligação lógica e temporal entre os objetos. O intenso desregramento dos sentidos, intensificado pela aparente ruptura sintática, promovida pelo uso frequente do hipérbato, favorece a apreensão do mundo via sensorial. Concorre para a criação da paisagem desconhecida e estranha a estrutura sinestésica, na qual sons e imagens se fundem figurando um modo específico de relacionamento do sujeito lírico com o mundo.

A predominância das enumerações de vocábulos, a sequência ininterrupta de orações coordenadas, que se justapõem, enfatizam a desarticulação lógica, mas também concorre para a criação de relações inusitadas, de livres associações, que promovem a “fusão” e a “simultaneidade” e aceleram, até suprimem, o tempo histórico, o lembra um comentário de Octavio Paz (1984) acerca das manifestações do tempo na poesia moderna: “o que acaba de acontecer já pertence ao mundo do infinitamente distante e, ao mesmo tempo, a antiguidade milenar está infinitamente próxima”.

As imagens proliferam disseminando-se pelo texto, da mesma forma que os ecos ressoam desde o título até o último verso. O movimento se expande em diversas direções, corroborando a pluralidade de sentidos interligados pelo processo de criação, que inclui o ato da escrita e da leitura. As imagens, partindo do núcleo central – a “carne” –, espalham-se pelo texto, de acordo com um movimento de subida até os astros e de descida ao fundo do abismo, perfazendo uma espécie de círculo. A visualização do círculo é potencializada pelos vocábulos “os ecos” que abrem o poema, constituindo o título, e o fecham, como as últimas palavras do verso final.

O encadeamento dos versos potencializa, no nível do discurso, a ambiguidade. Se, por um lado, há uma quebra das frases que desarticula os versos, fragmentando-os visualmente, por outro lado, a continuidade do sentido de um verso a outro favorece uma ideia contrária de sequência lógica e ordenadora. Este recurso assume função relevante no final do poema, pois confere um destaque imenso à palavra carne, que finaliza o último verso da penúltima estrofe. Os dois versos seguintes, que formam o dístico final, referem-se a este vocábulo, potencializando sua importância como a imagem nuclear, à medida que ressalta sua natureza espacial: “onde inda vibram/do extinto amor os ecos”. Esta conotação espacial já havia sido apontada na segunda estrofe por meio dos versos “a mesma [carne] onde a rasura/ do tempo abre interstícios”.

A contaminação mútua entre vários elementos em todos os níveis do poema enfatiza a correspondência entre as sensações, promovendo o livre intercâmbio de sentidos, que, desta forma, também constituem ecos ressoando por todo o texto. A referência aos ecos, no último verso, traz novamente a relação dos mesmos com os termos “rasura” e “interstícios” que também são, tal como os ecos, marcas gravadas na carne, evidenciando uma correspondência de ordem sinestésica entre visão e audição.

Os “ecos” que já tiveram o sentido associado ao ritmo (sons recorrentes), às marcas deixadas na carne pela ação do tempo (rasuras), no final do poema assumem outra conotação, ligada à memória. Memória de um sentimento que já se extinguiu desta carne: o amor. Este amor também pode ter vários sentidos, quando associado aos demais elementos. Pode se referir a uma energia cósmica, responsável pela eterna criação e recriação de todas as coisas, da qual ficaram os ecos (resquícios de memória), na carne. Pode se referir a resquícios da memória de um indivíduo, que tenha habitado o espaço do corpo, ao qual pertenceu a carne exposta. Mas pode, também, ser um resquício mais recente, de um corpo que acabou de ter tido uma experiência amorosa tão intensa e perturbadora que resultou num estado interno de completa desestruturação e fragmentação do sujeito, do qual a paisagem é uma figuração possível.

Esta carne pendurada à beira do abismo, elevada à altura dos astros, imolada no templo, que recebeu rasuras tanto do tempo mítico quanto do tempo cronológico, que se ergue ao lado das glicínias, pendurada como os cachos de cor púrpura, constitui o espaço privilegiado no qual “vibram” “os ecos” do amor. Impossível não nos lembrarmos do modo como Nava conceitua o processo de criação, no texto sobre a poesia de Antonin Artaud: “todo o acto poético é uma cosmificação”, “que se opera a partir do caos”, promovido pela “destruição da língua” (NAVA, 2004). Não é possível realizar uma leitura fechada de qualquer poema de Luís Miguel Nava. Tal como Rimbaud, ele não escreve para nos fazer compreender nada. Ele escreve para nos fazer ver e, desse modo, ampliar nossa consciência do mundo.

 

NOTA

1. Todorov fundamenta sua análise na distinção que Étienne Souriau faz, no livro Correspondence des arts (1947), entre as artes representativas, que remetem ao seu exterior, e as artes apresentativas, nas quais a obra e o objeto se fundem e se confundem. Segundo Todorov, na literatura, não há verdadeiramente arte apresentativa, pois seu material de trabalho, a linguagem, sendo um sistema de signos constituído fora da obra, já traz significantes atrelados a significados preestabelecidos. Mesmo assim é possível distinguir entre as obras que fazem um uso representativo da linguagem, nas quais os significantes remetem a significados que extrapolam o texto, e as obras que fazem um uso apresentativo da linguagem, em que o significante deixa de ser transparente e transitivo, servindo à criação de novos sentidos dentro do texto (TODOROV, 1980).

 

REFERÊNCIAS

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HELDER, Herberto. A colher na boca. Lisboa: Edições Ática, 1961.

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LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978.

NAVA, Luís Miguel. Poesia completa - 1979-1994. Lisboa: Dom Quixote, 2002. (Poesia do Século XX)

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Paz, Octávio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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TODOROV, Tzvetan. Une complication de texte: les Illuminations. Poétique, Revue de théorie littéraire, n. 34, Paris, 1978.

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VICENTE, Adalberto. Uma parada selvagem; para ler as Iluminações de Rimbaud. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.

 

 


MARIA LÚCIA OUTEIRO FERNANDES (Brasil, 1950). Livre Docente em Literatura, Professora Associada da UNESP/Araraquara, onde trabalha desde 1997, tendo atuado também, de 1992 a 1997, na Universidade Federal de Viçosa (UFV), e em outras faculdades particulares em Resende, RJ; Poços de Caldas, MG e Rio de Janeiro. Mestrado em Letras/Literatura Brasileira na USP (1984) - Novíssima: estética e ideologia na década de vinte (EDUSP, 1987) e Doutorado em Letras/Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC/Rio (1994) - Narciso no labirinto de espelhos: perspectivas pós-modernas na ficção de Roberto Drummond (EDUNESP, 2011). Publicou também Contrabandistas do pensamento – crítica e literatura no Brasil (Ed. Opção, 2017); Rupturas e desdobramentos: reverberações críticas da Semana de Arte Moderna (Pontes Editores, 2023); Tradição, modernidade e modernismo na lírica portuguesa (Pontes Editores, 2023); além de muitos artigos em periódicos e capítulos de livros. Livros publicados em parceria com colegas: Intelectuais portugueses e a cultura brasileira (2002), Estrelas extremas; ensaios sobre poesia e poetas (2006); Modernidade lírica: construção e legado (2008); Matéria de poesia: crítica e criação (2010); Poesia na era da internacionalização dos saberes (2016); Entre os diversos trabalhos de extensão realizados, destaca-se a participação especial no documentário À Procura de António Botto (2019), realizado para a RTP2, pela Mares do Sul Produções.
 

 


DAMARIS CALDERÓN (Cuba, 1967). Poeta, narradora, pintora, docente y ensayista. Ha publicado más de dieciséis libros en varios países, entre ellos Cuba, Chile, Alemania, España y México. Participó en festivales internacionales de poesía en Holanda, Francia, Uruguay, Argentina, Perú, México, entre otros países. Parte de su obra ha sido traducida al inglés, holandés, francés, alemán, noruego y serbocroata e incluida en numerosas antologías de poesía cubana y latinoamericana contemporánea. En esta edición de Agulha Revista de Cultura presentamos otro aspecto fundamental de su inquietud creativa, su obra plástica. En entrevista, Damaris revela: Para mí la cultura está ligada a la tierra, a sus orígenes, al hecho de escribir, de cribar, de labrar; la escritura en bustrófedon, que era la manera de los bueyes y el paisaje. Y eso es. Si uno mira la literatura latinoamericana se va haciendo conciencia de paisajes diferenciados; ustedes tienen esto, nosotros esto otro. Recuperar la conciencia de que somos un todo, de que el cuidado del ecosistema, de la planta, de cada árbol, es parte también del cuidado del ser humano, del planeta. Los árboles y el paisaje escriben su propia poética, su propia música. Una pintura con la que ningún pintor podría competir. En ese sentido, sentir que coexistimos, que nos nutrimos y debemos cuidarnos. Son palabras que encajan muy bien en su pintura, cuyas líneas, ángulos, colores, se mezclan en la búsqueda de un punto erótico en el que el hombre se revela parte de ese todo que ella también evoca en su poesía.

 

 

Agulha Revista de Cultura

Número 253 | julho de 2024

Artista convidada: Damaris Calderón (Cuba, 1967)

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Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

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