A mais velha delas é Rosalía, figura
estelar responsável pelo ressurgimento literário da língua galega, nascida em Santiago
de Compostela ainda na primeira metade do século XIX, em 1837. A contemporânea polonesa
de Florbela, Maria Pawlikowska-Jasnorzewska, três anos mais velha que ela, é de
1891, oriunda da Cracóvia.
Delas, Florbela Espanca deixa prematuramente
a vida. Rosalía e Maria foram vitimadas pelo câncer: a galega falece em 1885, com
48 anos, e a polonesa (de todas, a que mais perto chega do nosso tempo) morre aos
54 anos, em 1945.
Tanto a Galega quanto a Portuguesa emergem
dum ambiente provinciano e compartilham os mesmos infortúnios familiares. No registro
de nascimento de ambas consta serem filhas de “pais incógnitos”: Rosalía, porque
nasce da união ilícita entre um seminarista e uma jovem da nobreza decadente; Florbela,
porque o pai biológico a trouxe para dentro de casa a fim de que fosse criada (assim
como o seu irmão) pela esposa legítima, a quem é dada como afilhada.
Nenhuma das duas há de passar incólume
por tal adversidade: a sensação de rejeição, de abandono, de incompreensão, de orfandade,
enfim, experimentada em suas obras, parece ecoar essa carência original, bem como
o fundo traço de uma má-fortuna, de uma angustiante perseguição que não lhes dá
paz.
Florbela se diz atormentada pela “Desgraça”,
enquanto Rosalía se debate para desvencilhar-se da “Negra Sombra”, do “Fantasma
Pavoroso”. Florbela chegará mesmo a deplorar em seus poemas a “má hora” em que foi
nascida.
Nada disso se passa com Maria Pawlikowska-Jasnorzewska,
que vem de uma família burguesa de artistas, descendente da nobreza polonesa, conhecida
e conceituada no mundo cultural eslavo, em cuja casa familiar (a Mansão Kossakowka)
se reuniam os artistas do tempo.
Educada por preceptores particulares,
ela completará uma formação em línguas e em artes liberais, arrematada por sua livre
frequência à Escola de Belas Artes da Cracóvia, o que lhe permite, desde muito cedo,
certa independência de meios e de modos. Entretanto, de uma desdita infantil, ela
guardará a deformidade física causada por incompetência médica, o que a constrangerá
a usar pela vida afora um aparelho de correção de postura.
Maria será laureada em 1937 com alto
prêmio da Academia Polonesa de Literatura e seu nome virá a batizar, em 19 de agosto
de 1982, o Asteróide 4.114 da nossa galáxia.
Como Florbela, Maria Pawlikowska-Jasnorzewska
casou-se três vezes e, como ela, também não teve filhos, ao contrário de Rosalía,
que viveu com o pai de seus sete rebentos até a morte. Todavia, enquanto Florbela
insistia em assinar suas produções literárias com o sobrenome de nascença, Maria
adotava, como seu (originariamente Kossak) o nome dos dois derradeiros maridos.
Um dado muito curioso: é possível que
Florbela e Maria tenham sabido da existência uma da outra. Veja-se que, em 1927,
Maria conhece em Paris o major aviador e poeta português Sarmento de Beires, por
quem se apaixona intensamente. Em 1931, entretanto, vai casar-se com Jasnorzewska.
O fato é que Beires participara, em 1922, da Travessia do Atlântico Sul, episódio
seguido atentamente por Florbela, visto que no Cruzador Carvalho Araújo encontrava-se
o seu irmão, Apeles Espanca, oficial da Aeronáutica da Marinha, como piloto de hidroavião.
Beires também fez parte da Seara Nova, revista em que Florbela publica em
1922. [1]
Na altura em que a Polônia foi invadida
por Hitler, em 1939, Maria foge com o marido para Paris, e depois para Londres,
onde ele ingressa como piloto na RAF, na Real Força Aérea Britânica, integrando
o exército aliado. [2] Maria falecerá ao final da Segunda
Grande Guerra, em 09 de julho de 1945, em Manchester, velada pelo marido. Ela deixava,
então, cerca de treze livros de poemas e de quinze peças de teatro, além de desenhos
da sua lavra. A atividade dramatúrgica já lhe havia angariado, na década de trinta,
certa indignação a seu redor.
A Escritora abordara, em suas peças,
tabus como o aborto, o incesto, as relações extraconjugais, ao mesmo tempo em que
produzia sátiras sobre o nazismo, de que a peça Baba Wonder é um expressivo
exemplo. E isso sem mencionar a sua obra poética – que lhe valera o epíteto de “Safo
Polonesa”, e que faz parte da Antologia de Pornografia Gombrowicz, publicada
por Jan Jakub Kolski. Maria era carinhosamente chamada de Lilka pelos amigos, aos
quais costumava explicar que não era senão “uma velha e jovial senhora da Cracóvia
procurando, à noite, no prado, palavras em flor”. Há, aliás, de comum biográfico
entre as três poetisas, o mesmo lastro de escândalo.
A vida dessas mulheres também expõe um
certo nomadismo, uma tendência para o deslocamento espacial, o que pode, quem sabe,
sinalizar uma irrequietude existencial ou mesmo uma inapreensível diáspora interna,
constatável talvez nas suas respectivas temperaturas poéticas.
Maria andou pela Itália, pela Grécia,
pela Turquia, pela România, pelo norte da África, pela França e pela Inglaterra.
Rosalía, casada com um polígrafo e arquivista galego que servia por toda a parte,
levou uma existência errante de viúva de marido vivo. Florbela, marginalizada pelos
colegas de universidade e a tudo respondendo com o seu célebre desdém, peregrinou,
entre os casamentos, por várias casas de amigos (seus ou do seu pai) e, durante
os matrimônios, andarilhou seguindo os maridos, cujas profissões exigiam mudanças
de localidade (a de professor, a de oficial da Guarda Nacional Republicana), ou
atrás de si mesma, buscando um isolamento que a socorresse nas resoluções sempre
iminentes.
A propensão para alvo de perplexidades,
na medida em que, mercê do espírito rebelde e contestador, elas (involuntariamente)
levantavam questões à volta – também as enlaça. Rosalía enfrentou, em 1866, um episódio
deveras desagradável, registrado na “Carta a Eduarda”, sobre uma questão relativa
às “Literatas”, em que foi mira dum azedo ataque do machismo de então. Naquela altura
ela fez saber que “Poetisa, esta palavra, chegou a magoar-me”, e que
Uma poeta ou escritora não pode viver
humanamente em paz sobre a terra, posto que além das agitações de seu espírito,
há as que levantam em torno dela todos que a rodeiam. [3]
Rosalía fora visada por uma acepção depreciativa
do vocábulo “poetisa”. Difícil saber, todavia, se também se tratava de queixas sobre
uma aleivosia à sua honestidade conjugal, referente ao reatamento de uma história
de sedução de quando jovem em Padrón. [4] Em outra ocasião, em 1881, quatro
anos antes da sua morte (e no momento em que a poetisa galega amarga a fase final
da morosa doença que a consumiria), ela passa por nova provação. Interessada em
divulgar a sua terra e seus costumes, Rosalía colaborava para um jornal madrileno
(El Imparcial) escrevendo artigos a tal respeito. Num desses, ela comenta
um remoto hábito da tradição hospitaleira galega: o de oferecer, aos marinheiros
ausentes por longa data, uma das mulheres da família para a primeira noite do regresso.
Mas o texto cai mal e Rosalía é atacada
com virulência, sobretudo pelos intelectuais galegos, que exigem dela uma reparação
pública – a ela que se insurgira, em toda a sua obra, contra o genocídio “legal”
do seu povo, a ela, a perene cantora da pátria desvalida!
Na carta em que discute com o marido
essas ignomínias, Rosalía afiança que tais críticos é que lhe devem “estima e respeito”.
E num rompante de indignação, promete nunca mais voltar a pegar na pena “para nada
o que pertença a esse país, muito menos escrever em galego”, visto que “não quero
escandalizar de novo os meus compatriotas”! [5]
Como reparam seus comentadores, Rosalía
tinha no coração tanto um cordeiro quanto um leão, mulher capaz de ternuras e de
fúrias. Isso lhe valeu, no entanto, que, a uma distância de 70 anos do seu desaparecimento,
sua obra ainda não tivesse sido aceita no contexto da poesia espanhola, muito embora,
por motivos políticos, meia dúzia de anos após o seu enterro em Padrón, o corpo
de Rosalía tivesse sido transferido para um majestoso mausoléu do Convento de São
Domingos, em Santiago.
Deve-se, no entanto, sobretudo a Garcia
Lorca, mas também a Alberti, Cernuda, Dámaso Alonso e Unamuno, a divulgação e o
reconhecimento de Rosalía, hoje incluída, pela UNESCO, entre os cem primeiros escritores
que integram a biblioteca da literatura do Planeta!
De Florbela não direi menos.
Padronizada em vida por um discurso inócuo
acerca de suas qualidades “literárias”, ou atacada com sanha como pecadora compelida
a limpar com carvão ardente os lábios luxuriosos, teve de purgar sua ousadia depois
de morta.
Não me deterei sobre o esconde-esconde
do seu busto, que só na calada da noite foi finalmente acimentado no Jardim Público
de Évora em 1949; nem sobre as humilhações que o velhinho de 83 anos (que era o
seu pai) se viu obrigado a suportar para perfilhá-la 20 anos após o seu suicídio;
nem sobre as injúrias de natureza sexual e moral das quais foi alvo; nem sobre a
acusação salazarista da sua “inconstitucionalidade” como mulher; nem mesmo sobre
o deleite canibalesco de que foi vítima… pelos seus defensores!
Foram tomadas ambas, a Portuguesa e a
Galega, como acirrados motivos de alongada polêmica e como emblema e bandeira de
combate: uma, contra o franquismo; outra, contra ou a favor do salazarismo, conforme
soprasse o vento.
O que ocorreu com a Galega também se
passou com a Alentejana. Ambas flutuam de uma para outra imagem: de uma mulher oficializada
para uma mulher marginalizada; de uma poetisa regional para uma universal; de uma
mulher cristã para uma outra pagã; de uma livre-pensadora para uma religiosa; de
uma santinha para uma depravada. O fato é que todos esses modelos incomodam, e as
diferentes manipulações de suas obras e de suas respectivas biografias comprovam
que não se pode aprisioná-las num estereótipo – elas escapolem por todos os lados
e, insurrectas, transbordam e transcendem quaisquer fronteiras.
Quanto à Maria Pawlikowska-Jasnorzewska,
a última imagem que se retivera dela – mesmo diante de sua ação provocadora e dos
seus embates travados contra preconceitos e integralismos – era, com muito espanto,
a de uma escritora que passara (sic!) inócua pela Segunda Grande Guerra! A reclamação
era de que a poesia que produzira durante esse tempo parecia “impassível” diante
do sofrimento da humanidade, ocupada em debruçar-se sobre as mesmas temáticas anteriores,
o que a tornava, naquele contexto, uma escritora “alienada”, fechada num exílio
de marfim. Não esquecer que se trata de um dos ataques também desferidos à Florbela.
Todavia, a partir de 2012, aquando da publicação póstuma do seu Diário, essa
versão sobre a Escritora polonesa foi sacudida e visivelmente alterada. Produzidos
entre 1939 e 1945, e intitulados Satã Pai da Guerra, esses escritos a situam,
de novo, no patamar das perplexidades levantadas em antigas décadas pela sua obra.
Muito embora o timbre de Rosalía, ao
contrário do de Florbela e de Maria, não se exerça pelo erotismo, é através do questionamento
da escrita feminina contemporânea que ela obtém o seu selo particular de gênero.
Observe o leitor esta quadra de Folhas
Novas:
Daquelas que cantam as pombas e
as flores
todos dizem que têm alma de mulher,
e eu que não as canto, Virgem da Paloma,
ai, de que a terei? [6]
Contra toda a evidência, a Poetisa afirma
aqui algo que não é. Sem dúvida, Rosalía é mulher e tem “alma de mulher”; sem dúvida,
sua poesia se compraz sendo um hino de comunhão, convivência e cumplicidade amigueira
com… pássaros e flores. Entretanto, ao assegurar nesses versos que não é nada disso,
Rosalía acaba por se desmentir no instante mesmo em que nos garante o contrário.
E isso porque, para comprová-lo além de tudo, ela se vale do concurso da Virgem
da “Paloma”, ou seja, ela invoca Nossa Senhora das… Pombas – as mesmas aves que
nega cantar.
Ora, como se justificaria, da sua parte,
uma asseveração assim tão dúbia? Reparo como a ambiguidade aberta pela “Virgem da
Paloma” (e pela mulher que Rosalía é) acaba por conferir novo relevo semântico a
este pequeno poema. A Escritora galega estaria de fato visando às “pombas” e às
“flores”, ou à maneira como “pombas” e “flores” são tomadas pela linguagem? A crer
nessa derradeira hipótese, o modo como se trabalham os motivos
é que imprime nesses matizes próprios e diferenciados dentro de escritas do mesmo
sexo.
Rosalía certamente não quer fazer parte
do rol de poetisas que escrevem “vulgaridades”, como ela própria comenta. [7]
Ela se firma contra um background de produções femininas ridículas e banais, inerentes
a um estatuto de mulher inoperante e alheada, incrustado na sociedade e na literatura
ibérica como um enfeite de falso brilho. Aliás, a essas mulheres ela já havia antes
criticado, como anotei, apodando-as de “Literatas” - grupo ao qual ela se recusa
terminantemente a pertencer. [8]
Constata-se, pois, através dessas quadras,
que a Escritora galega nega tal irmandade poética, se botando como exceção diante
daquilo que tais “mulheres” produzem – mesmo à custa de arriscar o próprio gênero!
No “Prólogo” a Folhas Novas, Rosalía já esclarecera que, por outro lado,
não pretendia comparecer diante do leitor como uma “inspirada” autora de “um livro
transcendental”. Buscava apenas se manter dentro dos territórios de uma poesia que,
por vezes, encontra
numa expressão feliz, numa ideia afortunada,
aquela coisa sem nome que vai direto como uma flecha (…) e que responde ao largo
gemido que sempre levantam em nós as dores da terra. [9]
O poemeto, escrito, como os restantes
desse livro, “no meio de todos os desterros”, “nas solidões da natureza e do meu
coração”, [10] busca precisar, assim, a especificidade da sua escrita diante
do cenário literário que a circunda, com o qual Rosalía não compactua e com o qual
não quer, muito menos, ser confundida.
Por sua vez, Florbela topará, em sua
época, com iguais “poetisas de salão”, das quais ela tentará se diferenciar a todo
custo. Thereza Leitão de Barros, que a conheceu em vida, salienta que a Alentejana
era
profundamente inimiga do convencional,
da retórica balofa, do ‘rodriguinho’ para produzir efeito” e que jamais procurou
o “beneplácito oficial das ‘capelinhas’ solenes e divertidas. [11]
António Ferro (que, logo após a morte
de Florbela toma o seu partido, mas que depois o abandona, aderindo à ala salazarista)
atenta para a excepcionalidade de sua contemporânea. [12] E, com o fito de
retirá-la da mesmice feminina vigente, e de evitar submetê-la à pecha que, na altura,
o termo “poetisa” carregava, Ferro não encontra outro recurso senão o de nomeá-la,
nesse editorial, de “poetisa-poeta”. Era, pois, a forma que encontrara para destacá-la
das “poetisas de salão” - das “literatas”, no dizer de Rosalía de Castro.
Já se vê como, pelo menos no contexto
ibérico das mulheres escritoras, o vocábulo “poetisa” resultara infestado de pejorativos.
Mesmo assim, como reclama Natália Correia
(no prefácio à primeira edição de Diário do último ano de Florbela), é preciso
desinfectá-lo e devolvê-lo à sua inteireza de gênero, visto que designar como poeta
“o gênio poético feminino” é um prêmio que lhe masculiniza o estro, é incorrer num
“escorregão ideológico” que “ultraja uma poesia que quer feminizar o mundo com a
magia da sua claridade lunar”. [13] Aliás, Florbela, ela mesma, insiste
na manutenção desse termo no feminino e o reivindica para si: “Sonho que sou a Poetisa
eleita”, declara ela em “Vaidade”, o segundo poema de sua obra inaugural Livro
de Mágoas. [14]
Para a Poetisa portuguesa, o feminino
emana do insolúvel paradoxo em que ela se vê e em que avalia a mulher. Desse impasse
polar resulta a Dor, sentimento para ela genuinamente feminino, tal como temos seguido.
Embora por diferentes razões, A Morte corporifica, tanto para Florbela quanto para
Rosalía de Castro, a “sombra (…) branca”, a “Iluminada”, a que traz “o descanso”
e a “calma” – a Mãe primeva, ao seio da qual ambas regressam para a paz. De maneira
que Florbela há de pedir à “Senhora dos dedos de veludo” que lhe feche os olhos
“que já viram tudo”, que lhe corte as asas “que voaram tanto”.
Rosalía, num poema repleto de presságios,
pois que escrito em 13 de junho de 1882 no seu leito de morte, para ser lido, como
“recordação” futura, nesse mesmo dia, só que quatro anos depois, em 1886 - surpreende,
altas horas da noite, envolta em “leve gaza”, uma “sombra voluptuosa e branca”.
É a Morte que lhe segreda estas palavras:
“Eu venho
de regiões estranhas
para trazer ao teu inquieto espírito
a cobiçada calma. (…)
Vem comigo… e… descansa”. [15]
Em Maria Pawlikowska-Jasnorzewska, a
Morte se encontra a meias paredes da Paixão. Basta ler este “Epitáfio para uma mulher
apaixonada”.
A essa mulher, as feições de morta-viva,
de amortalhada, de eterna adormecida, lhe conferem um destaque de “monja”, como
se, curiosamente, de uma versão polonesa de “Sóror Saudade” se tratasse. Leia-se,
pois, neste pequeno poema, o quanto de dor, de rito de morte sacrificial e de simbologias
da cristandade recobrem a descrição dessa visada mulher, cuja paixão roça a Thanatos:
Agora desperta para o mundo, desvelada,
enrolada numa mortalha terreal,
como a cruz
atravessando a grama, ela jaz,
sagrando um beijo em sua mente… [16]
E o explicitado feminino emerge, na obra
de Maria, mercê do seu empenho em reatualizar o exemplo de desafio lançado, ao longo
da cultura, por Sapho. Repare-se que Maria busca retomar, de Sapho, aquele aceno
primevo de ousadia e insurreição que, como salienta num de seus poemas dedicados
à poetisa grega, a “História/ queimou como uma floresta à sua volta no calor do
verão”. Assim, muito embora um homem espane “o pó dos anais do tempo na biblioteca”,
a primavera está de volta e, com ela, na voz do rouxinol, é Sapho quem de novo canta
Ora, essa contínua passagem cíclica do
tempo (que o poema nomeia) é muito mais significativa que as coleções de obras que
jazem nos arquivos da memória. Porque ela traz o canto que retorna, e este parece
nascer, agora, da própria garganta de Maria, que dedica à sua ancestral uma obra
direta: Rosas para Sapho – eis seu título. Aliás, essa flor, a “rosa”,
e a sua tonalidade – cor-de-rosa - cunham não só os poemas de tal linhagem, mas
atravessam toda a obra de Maria, como traço distintivo e ainda como título de mais
uma de suas coletâneas, a de 1924: A Magia da Cor Rosa.
Num dos poemas dedicados a Sapho, a destruição
imposta pelo mundo aos manuscritos da antecessora grega é projetada plasticamente
como um violento incêndio, cuja fumaça cor-de-rosa brota das criações em combustão,
provocando o nascimento de uma nuvem pesada e “selvagem”, capaz de inundar o tempo.
Essa nuvem, tangida pelo vento, é sorvida pelos pulmões de Maria, que haurindo-a
vão se nutrir dela como hausto literário para uma nova escrita. E o poema de Maria
Pawlikowska-Jasnorzewska conclui:
não se desperdiçam rimas…
Reparo, aqui, como “rima” se torna a
palavra de passe, a senha, o símbolo da herança poética de Sapho que, malgrado incinerada
e recusada pelo mundo que tanto a desconsiderou, é reintroduzida pela Poetisa polonesa
que, neste tempo novo, a toma como seu farol.
Também é curioso, na obra de Maria, a
tônica sobre algumas das tópicas femininas veiculadas por Florbela Espanca. Das
figurações (digamos) “aristocráticas” de mulher, recorrentes na obra da Portuguesa,
reencontramos em Maria uma nova versão: a da “Rainha do Gelo”, mulher poderosíssima
apta a paralisar a fluência eterna do rio. Com seu cortejo de neve e gelos, com
sua “selvagem tempestade branca”,
Ela galga na direção do rio. Seus olhos
estão glaciais.
A Rainha do Gelo salta: o rio pára.
No cifrado poema “O silêncio da floresta”,
o amado que salta da margem eterna do mito e do conto de fadas para penetrar no
mundo dela, amado que é “belo através das palavras, silencioso e soberbo”, aparece-lhe
como um unicórnio de tempos imemoriais. Aproveitando-se da carga mitológica e semântica
desse animal fabuloso, Maria a explora eroticamente, em discreto e silente tom.
De maneira que o poema se encerra quando ela roga ao amado:
Se aproxime, chegue ao meu coração com
o clamor
do seu corne dourado.
Também, como em Florbela, os espaços
de clausura de Maria são ao mesmo tempo refúgios de intimidade. A habitante dos
Paços Reais, a Infanta, a Castelã são, aqui, desenhadas na moradora do “Palácio
no Gelo” - título do poema que trago. Construído em espiral e assentado em gelo
(indicialmente “rosa”), esse edifício amoroso é erigido numa perspectiva geométrica
ruinosa que lhe dá aspecto instável e mutável, não só espacial, mas também temporal,
visto que a “escada dourada” interna desse Palácio liga passado ao presente, e vice-versa.
Neste, os “balcões são inclinados”, os
quartos são “deslizáveis” – entretanto, é lá que “os beijos repousam”, assim como
“os sonhos, que há tempos a gente quer tocar e não pode”. Nele, todo o universo
se condensa: a lua, o sol, as estações, as estrelas, os sonhos, as lágrimas, os
beijos.
O Palácio no Gelo é o lugar ideal, “onde
as lágrimas são felizes e doces”; talvez por isso ele não possa ser construído segundo
as leis arquitetônicas da realidade. Nele, é a anamorfose que impera, ou
seja, o mundo às avessas enquanto única chance de vida. De maneira que essa edificação
mantém-se inabalável nas tempestades
mas treme quando o tempo é bom.
Também em Maria, como em Florbela, o
refúgio, o lugar da maior intimidade, acaba por ser o corpo do Amado. Não esqueço
o quanto a Poetisa portuguesa passa a vida à procura do seu lugar, do seu amparo,
da sua casa – é uma das principais tópicas florbelianas. Proteção e aconchego que
Florbela há de encontrar, por fim, na “Nossa Casa”, poema onde devaneia morar “tão
bom! – dentro de ti/ E tu, ó meu Amor… dentro de mim…” – lugar que ela ainda há
de procurar na sua terra de origem.
Essa expressiva tópica camoniana do “transforma-se
o amador na coisa amada” também comparece em Maria. Num de seus poemas, ela se afunda
no amado “como a rosa no vaso – / até os meus olhos, / a minha fronte, / a coroa
do meu cabelo claro”. Toda ela roda dentro dele: ela gira nele, redemoinha-se nele,
em turbilhão, “como os mares beijoqueiros/ do Pacífico”. E assim mais se afunda
nele, como “a música dum violino”. Por fim,
Quando ele toca meu coração,
viro o mais doce som –
dele.
Os lados do paradoxo surpreendidos por
Florbela enquanto estatuto feminino, também são tratados por Maria. No poema intitulado
“Sobre ela”, a mulher, de quem se fala, quer se alçar para acompanhar, em vão, o
olhar que lança aos céus. Entretanto, o seu “quadril delgado” e os seus “pezinhos
de galinha” a prendem à terra, cortando-lhe o desejo de transcendência, impedindo-a
de voar.
E já aqui anoto o meu espanto ao constatar
que um dado enraizado numa cultura específica, que é a ibérica, reaparece em outra
cultura aparentemente distante dela, como é o caso da cultura eslava. Refiro-me
a uma pecha feminina, que o defeito do pé esclarece. Na “Lenda da Dama Pé-de-Cabra”,
recolhida no século XIV pelo Conde D. Pedro de Barcelos, nos Livros de Linhagens
- essa Dama corporifica, com seu pé forcado, a mulher insubmissa, belíssima mas
pecadora, e, por isso mesmo, aliada do demônio. Mas não posso deixar de levar em
conta outra hipótese no caso de Maria - o problema físico da Poetisa polonesa.
Ora, no poema intitulado “Sobre ela”,
de Maria Pawlikowska-Jasnorzewska, a mesma deformidade (talvez metáfora da sua própria)
é constatada nos “pés de galinha” da mulher que, justamente, não pode levantar voo
em direção aos céus: como a galinha e a cabra, ela tem os pés forcados… Ora, tal
aliada do demo há de reaparecer, na obra da Poetisa polonesa, numa versão mais cabal.
No poema intitulado “Incubus”, ela enceta uma relação íntima e gozosa com essa força
malvista. Eis o poema:
Numa ampla cama parisiense
ao lado do travesseiro
– não o meu –
a lua cheia me mantém acordada.
A lua penetra
com seu brilho.
Sob o acolchoado, em listras prateadas
anseia preencher o espaço vazio.
Ninguém a expulsa
ou a intimida aqui –
e assim ela me cobre
e espera.
Logo a luz vai alcançar minha boca.
Nos deitamos como num esquife…
e, oh, meu coração está pleno
mas só do plenilúnio…
Já no próprio título do poema, fica exposta
a aliança espúria. Em numerosas tradições mitológicas e lendárias, o íncubo, como
se sabe, nomeia o demônio que penetra as mulheres durante o sono, para manter com
elas uma relação sexual. Essa proximidade entre mulher e forças maléficas está,
aliás, no cerne do pecado original, no episódio bíblico da árvore da vida que também
abre a brecha para o conhecimento, mercê justo de uma atividade marcadamente feminina:
a desobediência.
No poema de Maria, essa relação ilegítima
fica, como se vê, metaforicamente agenciada pela Lua - a mesma que, num poema da
Poetisa portuguesa, vem para provocar e tentar, com o pecado, a Sóror encerrada
na cela solitária, consagrada ao silêncio e à imobilidade.
Em “Renúncia”, os índices sagrados e
profanos que rondam o feminino ficam definitivamente explicitados: de um lado, a
prisão cultural, de outro, a liberdade natural. De um lado, temos a cruz, a tranquilidade,
a cegueira e o sacrifício – o fiat Maria cristão. De outro, a Lua, Satanás, a Beleza
– o erotismo: dois dos protótipos centrais da mulher.
Encerro, portanto, estas cogitações,
transcrevendo as duas primeiras estrofes do soneto de Florbela que, além de estabelecerem
um forte vínculo com o feminino em Maria, funcionam como os dois polos do paradoxo
a que tenho me referido - aquele que define a condição da mulher:
A
minha mocidade outrora eu pus
No
tranquilo convento da Tristeza:
Lá
passa dias, noites, sempre presa,
Olhos
fechados, magras mãos em cruz…
Lá
fora, a Lua, Satanás, seduz!
Desdobra-se
em requintes de Beleza…
É
como um beijo ardente a Natureza…
A
minha cela é como um rio de luz…
NOTAS
1. Sarmento de Beires (04/09/1893-08/06/1974)
também foi pioneiro da travessia Lisboa-Macau, e adversário ferrenho da ditadura
salazarista, contra a qual se insurge no malfadado golpe de 1928. Fez parte do chamado
“Grupo da Biblioteca”, ao lado de Jaime Cortesão e Raul Brandão (este, próximo de
Florbela, como sabemos, e também da revista Seara Nova). Entre 1929 e 1930,
Beires tornou-se conselheiro aeronáutico do governo francês. Em 1933 foi preso pela
PIDE e condenado a sete anos de desterro. Depois de cumprida a pena, ele segue para
a Espanha, França, Macau, Moçambique e fixa-se no Brasil, onde se torna jornalista,
escritor, tradutor e cronista de guerra. Retorna a Portugal após a Revolução dos Cravos e é promovido a Coronel,
falecendo, entretanto, no mesmo ano.
2. Esta informação nem deveria estar aqui.
Mas como este livro [o leitor fica a saber que este é um dos capítulos do meu livro
Caleidoscópio Florbela. Évora, Editora da Universidade de Évora, dezembro
de 2023] também representa, para o meu foro íntimo, uma espécie de testamento, constato
como a vida é deveras prodigiosa. Quando obtive tal dado me lembrei de que o meu
ilustre professor de piano, o belga Robert Adolphe Léon Sylvain Dierckx, se alistou
nessa mesma época no exército inglês como paraquedista da RAF, e que trilhou o mesmo
percurso do marido de Maria para combater junto aos aliados na Segunda Grande Guerra.
Quem sabe tivessem estado no mesmo avião, no mesmo campo de batalha? Abrigados sob
o mesmo acampamento em que também Maria se encontrava? O fato é que Dierckx sempre
referiu, com muita simpatia e admiração, os seus colegas aliados poloneses. E, então,
sem poder consultar um ou outro para dilucidar a possibilidade de terem-se conhecido
e mesmo de terem convivido durante essa época porque há tempos já partiram – só
me resta devanear a respeito…
3. Tais informações foram
colhidas em Ernesto Guerra Da Cal em Antologia
Poética. Cancioneiro Rosaliano (sel. org. adapt. vers. apr. not. por Ernesto
Guerra da Cal). Lisboa: Guimarães Editores, 1988, à p. XXVIII, e em Rosalía de Castro.
A rosa dos claustros (edição bilíngüe,
trad. e notas de Andityas Soares de Moura). Belo Horizonte: Crisálida, 2004, à p.
13.
4. Cf. Da Cal, p. XIX.
5. Citado por Andityas
à p. 20.
6. Poema traduzido por
Ecléa Bosi em Rosalía de Castro. Poesia
(sel. versão do galego e do espanhol por E. Bosi). São Paulo: Brasiliense, 1987,
p. 93 (os grifos são meus).
7. Cf. Da Cal, p. XXVIII,
à nota de rodapé 26.
8. Afirma Mayoral, cit.
por Andityas Soares de Moura às pp. 12-13: “Rosalía, segundo vemos no primeiro poema
de Follas novas, sente-se alheia a
esse mundo de falsa feminilidade no qual se move a maioria da literatura feminina.
Ela quer cantar sentimentos e problemas mais fundos, comuns a homens e mulheres:
a saudade, a morte, a injustiça, o sentido da vida…” (Os grifos são meus)
9. Cit. por Da Cal à p.
XXIX.
10. Cit. por Da Cal,
à p. XXVIII
11.
BARROS, Thereza Leitão de. “Florbela Espanca”. Portugal Feminino. Ano 1. No.
12. Lisboa, 31/01/1931, p. 07.
12.
FERRO, António. “Uma grande poetisa portuguesa”. Diário de Notícias. Lisboa, 24/02/1931, p. 01.
13.
CORREIA, Natália. “Prefácio”. Diário do último ano, seguido de um poema sem título.
Lisboa: Bertrand, 1981, p. 7.
14.
As citações da obra de Florbela são retiradas sempre dos meus Poemas. Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1994. Indicarei,
a partir daqui, no próprio corpo do texto, apenas as páginas referidas.
15. Citado à p. 122
por Guerra da Cal, na referida edição, que o traduz.
16. Os poemas transcritos de Maria Pawlikowska-Jasnorzewska foram retirados de uma edição vertida do polonês para o inglês: Butterflies. Selected Poems (selected and translated by Barbara Plebanek and Tony Howard; afterword by Anna Nasilowska). Cracóvia: Wydawnictwo Literacke, 2000. Anoto, na transcrição dos poemas a partir daqui, as páginas respectivas e a tradutora do poema do inglês para o português. DF indica o meu nome, e ICC indica o nome de Iná Camargo Costa.
MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil, 1944) tem Mestrado e Doutorado em Literatura (USP, onde lecionou), Livre-Docência em Literatura Comparada (UNICAMP, onde lecionou), é Professora-Titular e foi Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa (UFS, onde lecionou); possui Pós-Doutorado pela École Pratique des Hautes Études de Paris e pela Universidade de Lisboa. Participou da equipe pioneira de Antonio Candido para a fundação do Departamento de Teoria Literária e do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP (1973-1988) e foi professora em Berkeley (Universidade da Califórnia, 2002). Tem publicados inúmeros estudos de Literatura Portuguesa, Brasileira e Comparada (sobre poesia e narrativa), e livros sobre Fernando Pessoa, Vergílio Ferreira, Herberto Helder, bem como um elenco de 12 obras sobre Florbela Espanca, dentre as quais o Trocando Olhares foi leitura obrigatória para o Programme du Concours Externes de l'Agrégation às universidades francesas em 2002, sendo o derradeiro o Caleidoscópio Florbela, publicado em dezembro de 2023 pela Universidade de Évora, para além da direção científica do Dicionário Florbela Espanca, em suas edições brasileira e portuguesa, 2024. É prêmio Jabuti de Poesia (2012), e tem publicados poemas: Livro de Auras (1994), Livro de Possuídos (2002), Alumbramentos (2012), Terceto para o Fim dos Tempos (2017), Alguns Poemas (2019, ed. portuguesa), Poemas (2013, ed. peruana) e, possui, no prelo, o Livro de Erros. Escreveu ficções - Inquilina do Intervalo (2005). A Cadeira número 25 da Academia Botucatuense de Letras guarda o seu nome.
DAMARIS CALDERÓN (Cuba, 1967). Poeta, narradora, pintora, docente y ensayista. Ha publicado más de dieciséis libros en varios países, entre ellos Cuba, Chile, Alemania, España y México. Participó en festivales internacionales de poesía en Holanda, Francia, Uruguay, Argentina, Perú, México, entre otros países. Parte de su obra ha sido traducida al inglés, holandés, francés, alemán, noruego y serbocroata e incluida en numerosas antologías de poesía cubana y latinoamericana contemporánea. En esta edición de Agulha Revista de Cultura presentamos otro aspecto fundamental de su inquietud creativa, su obra plástica. En entrevista, Damaris revela: Para mí la cultura está ligada a la tierra, a sus orígenes, al hecho de escribir, de cribar, de labrar; la escritura en bustrófedon, que era la manera de los bueyes y el paisaje. Y eso es. Si uno mira la literatura latinoamericana se va haciendo conciencia de paisajes diferenciados; ustedes tienen esto, nosotros esto otro. Recuperar la conciencia de que somos un todo, de que el cuidado del ecosistema, de la planta, de cada árbol, es parte también del cuidado del ser humano, del planeta. Los árboles y el paisaje escriben su propia poética, su propia música. Una pintura con la que ningún pintor podría competir. En ese sentido, sentir que coexistimos, que nos nutrimos y debemos cuidarnos. Son palabras que encajan muy bien en su pintura, cuyas líneas, ángulos, colores, se mezclan en la búsqueda de un punto erótico en el que el hombre se revela parte de ese todo que ella también evoca en su poesía.
Agulha Revista de Cultura
Número 253 | julho de 2024
Artista convidada: Damaris Calderón (Cuba, 1967)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
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