∞ editorial | As luzes de uma cidade refletida em nosso
tempo
ERZ
| Você é escritor, poeta, letrista e compositor, de modo que transita por
diversas artes. Há alguma linguagem que você tenha predileção? Como é a sua
rotina de criação?
MC | Penso que,
quem gosta de literatura verdadeiramente, não deve ter preferência em relação
aos gêneros literários. Ler um livro de poemas ou um romance, ou ensaios,
depende da motivação e da circunstância. A prosa escrita por Guimarães Rosa ou
José Saramago não é menos apreciável do que a poesia de Augusto dos Anjos ou de
Fernando Pessoa, embora a poesia esteja uma oitava acima da prosa.
Minha rotina de trabalho: acordar, beber água, escovar
os dentes, começar a ler e anotar ou escrever diretamente ou passar a limpo
algum texto (conforme o grau da inspiração). Depois, comer frutas, tomar um
café e voltar ao batente, até a hora do almoço. Se possível, antes de almoçar,
fazer uma ginástica rápida, para melhorar a afinação do físico com o
espiritual, que vivem pegados um ao outro. De tarde, algum passeio numa
livraria ou perto da água. No regresso à casa, ler mais, anotar, retocar,
burilar os escritos até à noite, repetindo todos os dias essa disciplina, até
tornar os textos finos como uma escultura de Bernini, flexíveis como um fio de
cobre, e luminosos como a lanterna de Aladim.
ERZ
| Há quem faça a distinção dos gêneros poesia e letra de música,
considerando como duas formas distintas de exploração da poética da palavra,
outros concebem a letra de música como uma modalidade de poesia. Você como
compositor musicou alguns de seus poemas, com uma longa lista de gravações em
discos, o que você pensa sobre isso? Estabelece alguma hierarquia entre os
aspectos semânticos, sonoros e estilísticos da letra?
Amigos meus musicaram vários poemas de minha autoria.
Sou talvez um dos poetas brasileiros que tiveram mais poemas musicados (no
sentido de textos previamente publicados em livros e depois musicados). Achei
que faria um enorme sucesso com a edição desses doze discos de poesia cantada,
mas deram um Golpe de Estado no CD e o meu acervo ficou encalhado nas estantes
do poeta itinerante. Quanto à minha paixão pela música, desde criança venho
apreciando a música popular (e, desde adolescente, a música erudita). Quando
menino, ouvia o rádio o dia todo, curtindo o cancioneiro da MPB. Não me
considero, contudo, um compositor, porque as músicas que constam como sendo de
minha autoria foram recebidas em sonho, aliás um fenômeno estranho que só
aconteceu em um certo período da minha vida. De resto, os hinos védicos, os salmos
de Davi, os hinos dos corifeus do teatro grego e as trovas dos menestréis da
Idade Média provam a antiquíssima irmandade inseparável entre a música e a
poesia.
FM | Logo no prólogo de teu precioso livro Paris e seus poetas visionários (2012),
teces a melhor definição de tua memorável aventura, ao dizer que ali traçaste um perfil lírico-geográfico de Paris. E
no epílogo ainda confirmas o ganho dessa tua busca de restaurar literariamente o mundo encantado dos grandes poetas franceses.
O livro é uma viagem da memória por entre fantasmas, uma jornada que requeria a
mais amorosa possível relação entre a informação e o imaginário. No entanto,
essa constante fantasmal, que é o ouro fascinante do livro, se vê destroçada ao
final, com a presença de Philippe Delaveau (1950), o único personagem vivo
nesse teu teatro invulgar. E Delaveau fere os acordes de tua sinfonia por
outras razões, não sendo ele nem um grande poeta e menos ainda um visionário,
além do lapso temporal, quando saltas meio século que separam seu nascimento do
1900 de nascimento de Jacques Prévert. Temos então que começar nosso diálogo
revendo o teu critério de seleção.
MC |
Paris é uma cidade fascinante em
todos os aspectos, seja como a capital onde ocorreram grandes acontecimentos da
história da humanidade, seja como centro de geração de cultura (de arte, de
ciência e de civilização). Na condição de escritor, interessa-me efetivamente a
produção cultural e, especificamente, a literatura francesa, tão pródiga e tão
vasta, repleta de grandes autores. Constatei que a cidade está muito bem
sinalizada para quem quer estudá-la do ponto de vista dessa prospecção
arqueológica da literatura urbana. Em sua eficiente sinalética, Paris ostenta
placas que indicam onde viveram os grandes escritores. Assim, foi fácil
elaborar uma espécie de relatório em que cataloguei os poetas em ordem
cronológica, estudando as respectivas biografias e comentando o que eles
escreveram sobre a cidade. No contexto em que construí uma crônica de
viagem (carnet de voyage),
estilo por demais explorado por viajantes estudiosos, de fato, a expressão perfil lírico-geográfico de Paris define
com precisão o escopo e a consecução do livro.
É certo que Delaveau não é um maldito ou um rebelde,
na acepção do que o mestre Claudio Willer, em seus brilhantes ensaios,
considerou os poetas visionários. Delaveau é um apolíneo: sua utopia é a
harmonia de um quietismo que o aproxima da beatitude dos místicos. Não
duvidemos de que os apolíneos são também visionários. O oráculo de Delfos era a
fonte de iluminação do deus da retidão e da harmonia. Delaveau bebeu nessa
fonte.
Essa dualidade do dionisíaco e do apolíneo, que
Nietzsche, com antenas premonitórias, detectou com clareza, é o melhor retrato
das grandezas complementares e paradoxais da realidade sensível. Pound é
dionisíaco. Eliot é apolíneo. Em vez de Philippe Delaveau, eu poderia ter
escrito sobre Claudel, que é apolíneo, ou sobre Brassens, que é dionisíaco.
Ambos são visionários à sua maneira, quando imergem na dimensão do sonho e do imaginário
contemplativo.
Quanto à defasagem do tempo entre um poeta e outro,
também no início do livro eu dei um salto quântico na cronologia, ao falar de
Villon, que é do século V, e, em seguida, de Ronsard, que existiu um século
depois. Reconheço que ficaram muitas lacunas, porque há muitos poetas franceses
importantes, dignos de figurar em antologias, e não fui capaz de incluir no
livro um número maior desses mestres, heróis que se sacrificaram no altar da
palavra e morreram por nós.
FM | Teu roteiro atravessa os dois mais
vigorosos momentos da lírica francesa, o romantismo e o surrealismo. Há uma
parcela da crítica que defende que essa lírica arrefeceu muito após a presença
dos grandes poetas surrealistas que, a rigor, se pensarmos apenas na França,
não são tantos assim. E os dois movimentos possuem algo de sincrônicos, basta
pensar em Benjamin Péret: A liberação da
arte, posta na ordem do dia pelos românticos, foi a obra de nosso século. De
fato, foi uma imensa explosão cujas consequências seguem sendo em parte
imprevisíveis. E Breton também teria sido que não era a glória menor dos românticos haver tido consciência do fato de que as
verdadeiras possibilidades do gênio artístico jazem somente nas sombras do
coração. O que pensas a este respeito?
MC | Ao concordar
com a ideia de Benjamin Péret, entendo que os surrealistas elevaram a
experiência literária ao exponencial da irracionalidade. Cabe perguntar, então,
se esse paroxismo buscado e encontrado pelos surrealistas não é uma espécie de
ultralirismo. Percebo a criatividade como algo circular; algo que vem do alto e
circula no ar. Assim, no holos da
circunferência, os extremos opostos estão conectados pela linha horizontal
do diâmetro. Acaso o céu e o chão não pertencem ao mesmo todo? A arte só tem
uma regra: a liberdade, que é, no entanto, uma anti-regra.
Ressalto, desde já, o fato de que os vanguardistas do
surrealismo e do dadaísmo sempre prestaram reverências a Rimbaud e Lautréament,
atribuindo-lhes o mérito de precursores da revolução que eles levavam a cabo.
De fato, os poetas temos corações sombrios: a sombra
vem pela luz. A lua, verdade eterna, sempre renovada, é como a seta de Zenon:
está no horizonte em movimento, e na inércia elíptica do eterno retorno.
FM | A viagem que teu livro propicia ao
leitor mais atento também é um roteiro arquitetônico e urbanístico. Aspectos
como explosão demográfica, sujeição a redução de custos de produção, mais do
que a ilusão de um novo padrão de beleza, levaram a arquitetura a dar seguidos
golpes na dignidade humana. Já em 1950, observando Paris, Benjamin Péret
comprova que nosso tempo não soube
encontrar sua própria arquitetura, o que bastaria para condená-lo se não
estivesse condenado já por tantas outras coisas. Como observaste o acento
de memória cobrindo esses dois períodos – inclusive as casas que habitaram os
românticos e os surrealistas – e seus reflexos em nosso século?
MC | Penso que a
arquitetura da atualidade deixa a desejar, se comparada à do classicismo, do
barroco e do renascentismo. Os castelos, as basílicas, os palácios monárquicos
e os mosteiros, dotados de filigranas decorativas, exigiam dos arquitetos
antigos um malabarismo de talento que já não se requer da maioria dos atuais
projetistas urbanos. Não sinto qualquer perplexidade diante de um edifício
plasmado em estrutura de metal e vidro, sem ornamentos. E o que dizer das
pirâmides? Dizem que não se saberia levantar uma Quéops hoje em dia, com todo o
aparato tecnológico disponível. Há muitos mistérios entre o céu e a terra,
atestou pertinentemente o grande bardo inglês.
Notei, por exemplo, uma diferença gritante entre a
casa de Breton em Montmartre, que teve uma parte da fachada substituída por uma
parede lisa, e a casa de Apollinaire no Boulevard Saint-Germain, um prédio
neoclássico bem conservado, com as varandas gradeadas que caracterizam as
fachadas parisienses. Aliás, as residências dos poetas, de modo geral, não
ficam nos edifícios mais luxuosos da cidade. Paris, no entanto, tem um charme
indizível, como se sabe, e trilhar os caminhos que seus artistas trilharam é
uma indizível satisfação estética.
ERZ
| Você possui mais de 10 livros publicados além
da participação em diversas antologias. Diante dessa vasta produção,
gostaríamos de ouvir o que representa ser poeta para você.
MC | Meus vários
livros publicados significam que, em termos de quantidade, estou quase
satisfeito. O problema é a qualidade; sendo este o desafio do escritor, na
expectativa de se superar em cada novo livro, é esse, portanto, o meu empenho
devoto na profissão de fé, no santo exercício diletante do verbo imaginário. O
compromisso com a literatura não é um carrinho
passageiro, um diletantismo leigo; é um sacerdócio, uma disciplina que de
toda a vida, que exige dedicação de tempo integral.
Ser poeta é querer andar por onde nunca ninguém andou.
É escrever e depois contemplar. É exercer nos jardins sua profissão de fé. É
uma deliciosa penitência. É levitar no peso da cabeça. É ser um revolucionário
pacifista. É ter um castelo encantado em si. É fitar as estrelas que nos
lançam faíscas como mensagens. É ser um apátrida, um forasteiro, um mártir da
palavra, um estudioso da ciência do espirito. É passear alegremente nos
bosques, sentindo aragem fresca da tarde. Ser poeta é ser oráculo das vozes
ancestrais.
Mas, sendo criatura que dialoga, o tempo todo, com
Deus e os demônios, como pode o poeta estar satisfeito?
O poeta é um cachorro sem dono. Não tem residência
fixa. De tudo faz pouco e recebe o desprezo da corja. Ponha-se a
trabalhar esse vagabundo do imaginário! Se está no campo, quer a
cidade. Na cidade, quer um gabinete. Se tem um gabinete, que mais quer
esse histrião ridículo? Esse tartamudo, que quando não murmura, grita! Vê como
se esgota a paciência desse Priapo furibundo, que nada aprendeu do mestre
Epicteto. Jesus foi torturado por ele, profere
libelo o promotor sarcástico, num espasmo delirante. O poeta deixa
passar a nuvem pesada e espera de Deus a absolvição.
03 | Nossa artista convidada esta vez é a
francesa Bridget Bate Tichenor (1917-1990), sobre quem se pode ler um retrato
traçado por Floriano Martins em seu livro 120 noites de Eros (2020):
∞ índice
ARC225-01-00 MÁRCIO CATUNDA | Alfred de
Musset e a torre secreta dos conflitos
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-alfred-de-musset-e-torre.html
ARC225-02-00 MÁRCIO CATUNDA | Charles Baudelaire e as notas
febris da existência
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-charles-baudelaire-e-as.html
ARC225-03-00 MÁRCIO CATUNDA
| Francis Carco e asa viagens incansáveis da música e da poesia
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-francis-carco-e-asa.html
ARC225-04-00 MÁRCIO CATUNDA | Gérard de Nerval e a imortalidade da alma
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-gerard-de-nerval-e.html
ARC225-05-00 MÁRCIO CATUNDA | Guillaume
Apollinaire e os estilhaços do mundo contemporâneo
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-guillaume-apollinaire-e.html
ARC225-06-00 MÁRCIO CATUNDA | Max Jacob e
o segredo das máximas fragmentárias
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/catunda-max-jacob-e-o-segredo-das.html
ARC225-07-00 MÁRCIO CATUNDA | Paul Valéry
e as ressonâncias fundamentais
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-paul-valery-e-as.html
ARC225-08-00 MÁRCIO CATUNDA
| Paul Verlaine & Arthur Rimbaud – Os despenhadeiros da criação
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-paul-verlaine-arthur.html
ARC225-09-00 MÁRCIO CATUNDA | Stéphane
Mallarmé e a intersecção de abismos
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-stephane-mallarme-e.html
ARC225-10-00 MÁRCIO CATUNDA
| Théophile Gautier e o testemunho das realidades reversas
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcio-catunda-theophile-gautier-e-o.html
Agulha Revista de Cultura
Número 225 | março de 2023
Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2023
∞ contatos
Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL
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http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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