sábado, 4 de março de 2023

CATUNDA | Max Jacob e o segredo das máximas fragmentárias

Max Jacob, o admirável filho da Bretagne, nasceu de pais judeus, em Quimper, no dia 12 de julho de 1876. Fez o serviço militar em 1896, e foi dispensado do 118º Regimento de Infantaria, com o estranho diagnóstico de histeria constatada. A família quis fazer dele um advogado brilhante, em Paris, aonde ele chegou, em 1895, depois de haver concluído os estudos secundários na sua legendária terra. Ele exerceu diversas profissões, menos a advocacia. Fez-se crítico de arte do jornal Le Moniteur, em 1898, quando já havia sido professor de piano, varredor de lojas, astrólogo, cuidador de crianças, pintor (desde sempre) e, tempos depois, monge beneditino. Em Paris, buscava sempre galerias onde expor seus quadros e logo conheceu e frequentou Apollinaire, Modigliani, Matisse e Picasso. Personalidade carismática e generosa, capaz de qualquer esforço para ajudar os amigos, Max Jacob não cessou de desenhar e escrever, durante sua vida mística e boêmia.

Conheceu Picasso em 1901, na exposição do pintor na galeria Ambroise Vollard, escreveu-lhe um artigo e a amizade se consolidou, com as visitas frequentes ao ateliê do artista espanhol no boulevard de Clichy. Picasso o apresenta a Apollinaire em fevereiro de 1905, no bar Augustin’s Fox, na rue d’Amsterdam, 26. No mesmo ano, Jacob publica poemas na revista Lettres Modernes, editada por Apollinaire, e o livro Carnet à deux mains, com ilustrações de Picasso.

Após uma estada em Quimper, de janeiro a abril de 1906, ele volta a animar os bares e cabarets da Butte, especialmente o Lapin Agile. Com talentos de comediante e cantor, cantava óperas italianas e recitava trechos das tragédias de Racine e Corneille.

Desde quando Max foi funcionário de um estabelecimento comercial no boulevard Voltaire, 137, namorou uma jeune dame, com quem habitou no boulevard Barbès, 33. Elle est si lasse que les paupières des renoncules se ferment sur son chapeau. A respeito dessa relação amorosa de Max, André Billy declara, em seu ensaio de Les poètes d’aujourd’hui, que conheceu Max Jacob em 1903, época em que o poeta habitava o boulevard Barbès. Foi esse, também, o tempo dos amores de Max com Mme. Pfeipfer, que lhe foi apresentada por Picasso. Ela foi a única mulher que atravessou sua vida, sua única aventura heterosexual.

Billy reitera que Jacob usava gravatas de diversas cores. Variava o uso delas, cabalisticamente, segundo os dias da semana ou os signos do Zodíaco. Quanto ao carisma de Max Jacob, il resterait à définir l’univers que ces yeux projetaient sur nous avec un mélange de cynisme et de timidité, de pudeur et d’ardeur, qui, lui aussi, était d’une irrésistible séduction.

Em fase de intensa boemia, Jacob consumia ópio e haxixe com Picasso e demais adeptos do Bateau-Lavoir, residência e ateliê do famoso pintor. Deixou o boulevard Barbès pelo rez-de-chausseé da rue Ravignan, nº 7, em Montmartre (onde viveu de 1907 a 1911). Ocorreu-lhe a radiante visão do Cristo, na parede do seu quarto, no dia 7 de outubro de 1909, fato que o fez converter-se ao catolicismo.

Em março de 1908, Max expõe seus quadros no salão dos independentes. Em abril do mesmo ano, Apollinaire se refere a ele, na conferência “Phalange nouvelle”, como o poeta mais simples que parece frequentemente o mais estranho, pois o seu lirismo é armado de um estilo delicioso, rápido, brilhante e ternamente humorístico. Um estilo que se torna inacessível a quem considera a retórica e não a poesia.

Max Jacob retribuirá a gentileza com que Apollinaire o elogiara em sua conferência, saudando o livro Alcools: j’ai ne connais rien de pareil, rien de si grand si beau, de si orgueilleusement jeune. Quando Georges Duhamel acusou Apollinaire de imitar Verlaine, Moréas, Heine, André Salmon e o próprio Jacob, este publicou um desmentido, declarando que a criação literária de Apollinaire é anterior à sua. Diversos poemas de seus futuros livros Le Cornet à dés, La défense de Tartufe, Laboratoire central e Le roi de Béotie foram publicados na revista vanguardista Les Soirées de Paris, fundada por André Billy e dirigida por Apollinaire.

Em 1911, Max passou uma temporada no prédio de madeira, no flanco da colina de Montmartre, onde Picasso e Modiglianni fizeram seus ateliês e residências – o Bateau-Lavoir. Quanto à origem do nome dado ao ateliê-residência de Picasso e de Modiglianni, há controvérsias. Alguns autores dizem que o nome Bateau-Lavoir foi dado por Apollinaire e outros afirmam que foi Max Jacob que assim o denominou. Com relação à causa de tal denominação, os biógrafos também divergem. Para alguns escritores, o local foi assim denominado pelo fato de que o antigo imóvel parecia um barco ancorado na beira da montanha. Para outros, o formato da construção lembrava os barcos que as lavadeiras de antigamente usavam para lavar as roupas nas águas do rio Sena. Ainda uma terceira corrente diz que o nome foi motivado pelo ruído das madeiras do velho prédio, que evocavam o som do cordame puxado pelo vento e pela maré.

Max Jacob instalou-se no ateliê antes ocupado por Mac Orlan. Existira ali, antes de ser colônia de artistas, uma fábrica de pianos. Ali, nos saraus, Jacob lia poemas, intercalados com o canto de trechos de árias de óperas cômicas. Os poetas fumavam cachimbos de ópio para obter a extralucidez da realidade, nas noites extravagantes. Max Jacob apreciava também o consumo de éter. As reuniões no Bateau-Lavoir ocorreram até 1911, ano em que Picasso se mudou para o boulevard de Clichy.

O ano de 1911 foi o da produção de dois livros de Max Jacob – o romance Saint-Matorel, ilustrado por Picasso e a ele dedicado, e La Côte, uma coletânea de cantos célticos antigos e inéditos, que lhe valeram a alcunha de fundador do druidismo.

Depois de um diferendo com o proprietário do imóvel da rua Ravignan, ele deixa aquela residência e parte para a Bretanha. Instala-se na rue Gabriele, número 17, com sua mudança constituída de uma lâmpada de vidro, uma tigela amassada, um jarro quebrado, um balde furado, uma cadeira torta e uma tartaruga. Recebeu, na rue Gabrielle, a visita de muitos jovens poetas que buscavam seus conselhos.

No dia 19 de janeiro de 2018, subi à colina de Montmartre e caminhei ao redor da basílica de Sacré-Coeur, na famosa Butte. Fui conhecer o Bateau-Lavoir, na rue Ravignan, número 13, ao largo da pequena e acolhedora praça Émile-Gondeau, a meio caminho da ladeira da Butte. Almocei no restaurante que fica exatamente em frente ao lugar onde existiu aquele recanto memorável da história cultural de Paris.

Lá estavam, cotidianamente, Max Jacob e Guillaume Apollinaire. O prédio antigo já não existe, mas há uma respectiva indicação na charmosa place Émile-Gondeau. O Bateau-Lavoir foi destruído por um incêndio em 1970 e reconstruído em 1978.

Vou até o edifício branco e esguio da rue Gabrielle, número 17, de cinco andares com duas janelas de cada lado. É a residência onde viveu Max Jacob, depois de passar um período no Bateau-Lavoir, em 1911.

 Da rue Gabrielle, de candelabros grandes e charmosos, desci até a rue Ravignan, subi até a rue Lepic, desci, de novo, pela rue des Saules, e subi pela rue Cortot, que tem casas e prédios antigos, com dois ou três andares. Respirando o ar limpo das alturas, encontrei o número 12 da rue Cortot, o bloco residencial onde moraram Pierre-Auguste Renoir, Léon Bloy e Pierre Reverdy, e onde está o museu de Montmartre. É um edifício cujo pátio dá para um belo jardim. Os poetas André Breton, Robert Desnos, Louis Aragon e Paul Éluard frequentavam o local.

Passeei pelo bonito jardim interno e apreciei a exposição permanente, de quadros de vários pintores, mostrando paisagens e cabarets de Montmartre. Gostei, especialmente, dos retratos de Aristide Bruant, ícone da vida noturna do bairro boêmio, pintados por Toulouse Lautrec e Marcelin Desboutin. Apreciei ainda um documentário curtíssimo, cerca de três minutos, em que Blaise Cendrars visita o Bateau-Lavoir, após 40 anos de ausência. Cendrars bate, em vão, à porta de Modigliani e ninguém atende. Nem Modigiani nem Max Jacob nem Picasso habitavam já seus respectivos ateliês. O Bateau-Lavoir n’est qu’un épave!

Saio do Museu de Montmartre e chego à place du Tertre. Artistas expõem seus quadros no centro do quadrilátero em que há cafés, restaurantes e lojas. No encontro da rue Lepic com a rue Tholoze, avisto, no alto, o velho Moulin de la Galette, que ostenta aos quatro ventos a antiguidade de suas hélices de madeira, causando forte impressão nos transeuntes que o contemplam.

 No mirante, em frente à igreja, vejo a cidade espraiada, envolta na névoa de janeiro. A basílica parece contemplar as torres da cidade que se divisam ao longe. Ao admirar o panorama, do alto do sagrado monte de Montmartre, veio-me, de pronto, à memória este verso de Pierre-Jean Jouve: La celeste illusion de la fleur de tout.

Ao meio-dia, em que se acendem paraísos musicais, os primaveris pássaros humanizam o asfalto e as árvores risonhas murmuram. O vento e o espírito se reconciliam. Pacíficas cores mergulhadas na luz. Folhas acariciadas pelo sopro azul. Subo, pela escada marginal, os degraus da colina, até à plataforma de onde vejo a cidade que se expande em um vale de pedrarias. Prodigiosa proliferação de tetos e torres. Prazer de canônicas melodias! Imagem que a memória não deixa que se esfume! Suave repouso da visão!

Na viagem do final de 2019, fui de novo à Butte, de vetustos e charmosos chalés e edifícios que circundam a famosa Sacré-Coeur. Cheguei, pelo boulevard Rochechouart, entrando no estreito corredor da rue de Steinkerque, da qual se desvenda a figura branca e altaneira da basílica, erguida no rochedo como um altar flutuante. Encanto-me com as escadarias, circundadas de grandes plátanos do Oriente, de troncos vigorosos e galhos secos, e pinheiros, que verdejam, à prova de toda intempérie.

A pouco e pouco, galgo os degraus da escada. Do alto da plataforma, os olhos se deleitam com a perspectiva aberta. Na expansão de quadriláteros que se dispersam, além, no horizonte do mar celestial, a megalópole parece um colossal navio, ancorado sob as brumas acesas pelo ardente farol do Sol.

O poeta se inspirou na rua Ravignan para escrever um poema, com humor e graça, intitulado Rue Ravignan, publicado em Le cornet à dés, no ano de 1917. Ele se diverte, gracejador destro, com a peripécia de apelidar as pessoas com os nomes de sua imaginação literária:

 

On ne se baigne pas deux fois dans le même fleuve, disait le philosophe Héraclite. Pourtant, ce sont toujours les mêmes qui remontent! Aux mêmes heures, ils passent gais ou tristes. Vous tous, passants de la rue Ravignan, je vous ai donné les noms des défunts de l’histoire! Voici Agamemnon! Voici Mme Hanska! Ulysse est un laitier! Patrocle est au bas de la rue qu’un Pharaon est près de moi. Castor et Pollux sont les dames du cinquième.

 

Destaco, de maneira especial, Le cornet à dés como obra emblemática da proverbial prosa poética de Max Jacob. Há uma atmosfera onírica na aparente lógica aleatória de suas associações de ideias. Suas construções inusitadas, conforme atesta Michel Leiris, na edição por ele prefaciada, conjugam elementos que se atraem por afinidade, com uma precisão clássica de relojoeiro. Max esparze delicada ironia em suas fábulas surpreendentes. São confissões em linguagem simples, que enunciam reflexões sobre fatos vivenciados com profunda sensibilidade. Leiris explicita, com efeito, a facilidade com que Jacob, mediante um barroco de invenção que vai do mais grave ao mais burlesco, mostra ser possível retirar poesia de tudo. Desenha-lhe, portanto, uma caricatura de grande poeta fantasiado com o pijama colorido do arlequim.

De resto, é o próprio Max Jacob quem testemunha que uma obra vale mais pelo que ela ambienta do que pelo que contém, e sua dimensão importa menos para a beleza do que sua situação e seu estilo.

Igualmente esplêndidos Les indigents non ambulantes et autres, que narra a pequena história surrealista de um circo malogrado: les municipalités ne s’occupent pas des indigents ambulants, ce sont les fées qui s’en occupent; Une des mes journés, onde ele confessa n’avoir pas dormi à cause d’un remords, à cause des remords et du désespoir, e Ma vie, repleto do seu bom humor arlequinal: la ville à prendre est dans une chambre. Le butin de l’ennemi n’est pas lourd etc.

 Nas páginas iniciais de Cornet à dés, Max Jacob testemunha que mostrou os originais a Picasso e Salmon e Mac Orlan, quando fez as primeiras edições desse livro pela Librairie Stock, e a terceira, artesanal, em sua casa na rue Gabrielle, 17. A obra foi sendo ampliada em novas edições, tendo ele adicionado dados do inconsciente, palavras em liberdade, associações fortuitas de ideias, sonhos da noite e do dia, alucinações etc.

Conquanto desde muito jovem colecionasse seus poemas em prosa, sua filiação à confraria dos poetas ocorreu quando ele foi citado por Apollinaire na famosa conferência “Après-Midi des Poètes”, em 1907.

Coisas graciosas, máximas fragmentárias sem título e textos de generosa pseudoinocência pululam em Le cornet à dés:

 

En descendant la rue de Rennes, je mordais dans mon pain avec tant d’émotion qu’il me sembla que c’était mon coeur que je déchirais. (....) L’artillerie du Sacré-Coeur ou la canonisation de Paris.

 

De impactante impressão é a Nuit infernale, em que uma atmosfera insólita de pesadelo leva o leitor a sentir calafrios. Nada é divertido, senão horripilante. O poeta sabe impressionar também pela perspectiva do sobrenatural e pelas temeridades da consciência subjetiva:

 

Quelque chose d’horriblement froid tombe sur mes épaules. Quelque chose de gluant s’attache à mon cou. Une voix vient du ciel qui crie: ‘Monstre!’ sans que je sache si c’est de moi et de mes vices qu’il s’agit ou si l’on m’indique d’ailleurs l’être visqueux qui s’attache à moi.

 

Em março de 1919, Max Jacob publica na Revista Littérature outro poema emblemático (incluído, depois, no livro Laboratoire central), em que expressa nostalgia da rue Ravignan, que foi seu domicílio:

 

Je te regrette, ô ma rue Ravignan!

de tes hauteurs qu’on appelle antipodes

sur les pipeaux m’ont enseigné l’ amour

douces bergères et leurs riches atours

venues ici pour nous monter les modes.

L’impasse de Guelma a ses corrégidors

et la rue Caulaincourt ses marchands de tableau,

mais la Ravignan est celle que j’adore,

pour les coeurs enlacés de mes porte-drapeaux.

Là, taillant des dessins dans les perles que j’aime,

mes défauts les plus grands furent ceux de mes poèmes.

 

No período em que morou na rue Gabrielle, nº 17, Max continuava perplexo, com sucessivas aparições inefáveis. Seus amigos falaram de alucinações ligadas ao calor, à fome ou ao éter, como acreditava Francis Carco.

Jacob declarava, convictamente, não esperar o Messias, pois o vira. Reiterava a ideia de que os judeus são homens de espírito e ele tinha necessidade de homens de coração. Descobriu, então, no Convento de Notre-Dame-de-Sion, em Montparnasse, um padre que aceitou batizar, no ritual católico, aquele judeu penitente, devoto de São Francisco de Sales. A cerimônia foi realizada no dia 18 de fevereiro de 1915. Pablo Picasso, seu anfitrião e companheiro de peripécias nos cafés da rive droite e da rive gauche, foi o padrinho, que, de pilhéria, sugeriu-lhe o nome de Fiacre, o patrono dos jardineiros. Jacob, no entanto, preferiu o nome de Cyprien.

Quando da publicação do primeiro livro de Pierre Reverdy, Poèmes en prose, Max Jacob se queixa de que o colega se apoiara numa ideia maior e original de seu projeto. Reverdy retruca que Rimbaud fora o precursor do poema em prosa, em suas Illuminations. A amizade não foi prejudicada e Jacob publicará diversos poemas e artigos na revista Nord-Sud sob a direção de Reverdy.

Picasso apresentou Max Jacob a Jean Cocteau em 1916. No ano seguinte, Jacob participará do coro da peça sur-réaliste, em dois atos, Les Mamelles de Tirésias, de Apollinaire.

Quando o estado de saúde de Apollinaire se agravou, Max Jacob velou três noites ao pé de seu leito, até o dia do sepultamento do seu grande amigo.

No citado livro de André Billy, foram publicadas as espirituosas cartas de Max Jacob a Guillaume Apollinaire, datadas de 23 de junho de 1909, 2 de maio de 1913 e 7 de janeiro de 1915.

Na primeira, remetida da rue Ravignan, nº 7, ao destinatário da rue Gros, nº 15, ele começa mostrando seu talento de humorista da palavra:

 

L’oignon, mon cher ami, sera un jour considéré comme un dieu si l’hypothèse des cercles est acceptée. Il y a plusieurs univers, cosmiquement parlant, c’est-à-dire des ensembles inimaginables de forces interchangeables minutieusement et intérieurement.

 

Na segunda carta, remetida de Céret ao boulevard Saint-Germain, 202, ele narra sua viagem à Espanha com Pablo Picasso e pede a Apollinaire que lhe envie seus livros: je ne puis vivre sans te lire.

Na terceira missiva, enviada de sua residência, rue Gabrielle, 17, ao endereço da 38º companhia de artilharia em Nîmes, ele informa Apollinaire sobre sua conversão à religião cristã e fala de suas visitas a um convento situado na rue Notre-Dame-des-Champs.

Max Jacob descia do cimo da Butte, indo a Montparnasse, de ônibus, de metrô ou a pé, trajando, segundo André Salmon, drap gris, soutaché et doublé de flanelle rouge, une vareuse de cuir et une casquete de chauffeur.

Jacob era a pessoa mais alegre e delicada do mundo, mas era um pouco ciumento e demasiado cioso de suas prerrogativas. Costumava queixar-se de que os surrealistas lhe plagiavam os poemas. Ele publica textos na revista Littérature, dirigida por Aragon, Breton e Soupault, em 1920. Quatro anos depois, quando da aparição do Manifesto Surrealista, ele alega haver criado o método do semissono para forjar alucinações visuais e auditivas bem como trocadilhos e aliterações. O benefício dessa descoberta foi, contudo, atribuído a André Breton, o qual batizou a ideia com uma palavra de Apollinaire.

O flâneur de Montparnasse compareceu, a partir de 1909, aos mardis de Paul Fort, no restaurante La Closerie des Lilas, situado no boulevard de Montparnasse, 171. Nesse recanto emblemático da cultura francesa, Max Jacob escreveu, certa ocasião, um poema em parceria com o andarilho Blaise Cendrars, que lhe pediu para completar um texto que escrevera parcialmente. Cendrars não era ainda o herói, que voltara da guerra mutilado, dispondo de apenas um braço para acender o cigarro e escrever.

Num táxi, em que o motorista africano me conduz do Saara de agosto à Sibéria do ar condicionado de seu cabriolet de luxo, vou em direção boulevard Montparnasse e chego ao número 171.

O restaurante La Closerie de Lilas guarda ainda o charme antigo. Tem a entrada decorada de arbustos que trazem certa sombra ao ambiente. Refugiei-me entre suas paredes de espelhos emoldurados com madeira escura e confortáveis cadeiras estofadas. Pedi um suco de laranja e dei uma olhada no Le Monde, que estava sobre a mesa.

Li no jornal uma reportagem sobre duas substâncias químicas que os combatentes da Segunda Guerra Mundial consumiam. Os alemães faziam uso de perventina, enquanto os britânicos e estadunidenses, de benzedrina, (de princípios ativos similares), na forma de comprimidos, injeção ou mediante inalação, para ficar até dois dias e duas noites sem dormir e perder toda espécie de medo. O artigo jornalístico se refere ao livro L’extase total, le Troisième Reich, les alemans et la drogue, de Norman Olher, que comenta o consumo, pelos combatentes, de narcóticos que lhes davam euforia e coragem. Assim, os pilotos da Royal Force e da PanAm defendiam o céu de seus países e os marujos dos minissubmarinos encaravam suas missões suicidas. Efeitos colaterais: angústia e insônia descomunais.

Copiei a notícia e mandei ao Dr. Agamenon Honório, meu terapeuta, em Fortaleza, com o seguinte comentário: suponho que, em doses homeopáticas, fariam bem a quem, como eu, anda meio medroso.

Mediante os prodígios do WhatsApp, o ilustre médico cearense me perguntou: Márcio, você tem crises de ansiedade, como se estivesse com pânico? Respondi que não é sempre. É só raramente, graças a Deus.

Em frente ao Closerie des Lilas, a estátua do Marechal Ney se ergue como um farol no grande mar aberto da avenue de l’Observatoire.

A Avenue du Maine, em Montparnasse, foi objeto do gracioso poema homônimo, típico do humor generoso de Max Jacob, que se diverte com o jogo vocabular da semelhança sonora das palavras. Espírito gracejador, qual criança, ele faz uma travessura e depois ri de si mesmo:

 

Les manèges déménagent.

Manège, ménageries, où...

Et pour quels voyages?

Moi qui suis en ménage

Depuis... ah! il y a bel âge!

De vous goûter, manèges,

Je n’ai plus...que n’ai-je?...

L’âge.

Les manèges d’eménagent.

Ménager manager

De l’avenue du Maine

Qui ton manège mène

Pour mener ton ménage!

Ménage ton ménage

Manège ton manège.

Ménage ton manège

Manège ton ménage.

Mets des ménagements

Au déménagemet.

Les manèges déménagent,

Ah, vers quel mirages?

Dites pour quels voyages

Les manèges déménagent.

 

O período de 1918 a 1921 foi fecundo. Max escreveu Le phanérogame, Cinématoma, Le roi de Béotie e Le laboratoire central, livros em que consagra o seu estilo afável, brincalhão, de surpreendentes, absurdas imagens em linguagem elegante e delicada.


 No dia 31 de janeiro de 1920, Max Jacob sofre um acidente. Foi atropelado, quando descia a place Pigalle. Ia assistir a um concerto do compositor espanhol Manuel de Falla, numa tarde de inverno. Quebrou a clavícula. Em razão da demora em ser atendido, exposto ao frio, no hospital Lariboisière, onde foi internado, contraiu uma pneumonia, da qual se recuperou sem sequelas.

A propósito, ele escreveu, em Nuits d’hôpital et l’aurore, insólito diálogo em que o interno pede à enfermeira que não abandone os doentes durante a noite. Ela responde que todos os remédios estão trancados e a dama que tem a chave só virá quando tiver que cumprir o seu turno.

Em março do mesmo ano, realiza sua primeira exposição individual, cujo fechamento foi coroado com a apresentação de sua peça Ruffian toujours, truand jamais, precedida de concertos de Erik Satie e de Igor Stravinski. Será ainda em 1920 que ele se aborrecerá com Francis Carco, pela publicação em Scènes de la vie de Montmartre, de referências à sua dependência de narcóticos.

Le laboratoire central vem a lume em 1921 e Valéry Larbeau dirá, numa conferência, em dezembro de 1923, que a virtude diretriz da obra de Max Jacob é sua capacidade de acolher as palavras comme les oiseaux et les poissons s’approchent de Saint-François ou d’Adam avant la Chute.

A dramaturgia de Jacob se desenvolverá com a realização de La femme fatale, drama lírico, no Théâtre Michel; de Chantage, peça adaptada por Dullin, no Vieux-Colombier, e de Isabelle & Pantalon, ópera bufa, no Trianon Lyrique. Depois desses êxitos, ele regressa a Saint-Benoît, onde escreverá os livros Le roi de Béotie, Art poétique, Cabinet noire e Visions infernales.

De 1925 a 1930, ele conhecerá, sucessivamente, seus namorados: Pierre-Michel Frenkel, Robert Delle Donne, Pierre Colle, René Dulsou e Maurice Sachs. Este último, tempos depois, o converteria no personagem obsceno e sedutor de seu livro Alias, o que Jacob considerou uma traição, rompendo definitivamente com Sachs.

Max Jacob era emotivo, frágil, místico, diletante da vida, consciente do seu sentido maior, e rigoroso na autocrítica do pecado. Esse temperamento o induzia a passar de súbito da boemia à penitência. Assim, retirou-se, no mosteiro de Saint-Benoît-sur-Loire, de 1921 a 1927. Ele declara, em La défense de Tartufe, estar sempre disposto a multiplicar os atos de devoção qui sont ma sauveguarde contre le démon, car je suis par expérience dans quel état je tombe sous l’influence de mes amis. Ma nature est poreuse et emboîtable. Não foi tão rigoroso o isolamento do anacoreta. Durante os seis anos de recolhimento místico, ele viajou à Itália, onde assistiu, em Roma, à canonização de Jean-Marie Vianney, e à Espanha, onde proferiu palestra, em Madri, a convite de José Bergamín, na Residencia de Estudiantes, sobre os temas “O verdadeiro sentido da religião católica” e “As dez pragas do Egito e a dor”.

Depois do longo período na abadia de Saint-Benoit-sur-Loire, regressou a Paris. Dedicou-se então a editar seus livros Le cabinet noir, Art poétique, Le terrain bouchaballe, L’homme de chair et l’Homme reflet e Pénitents en maillots roses, que escreveu enquanto esteve no mosteiro, e a vender suas telas. Publicou, sob o pseudônimo de Morven le Gaélique, diversos poemas de inspiração bretã, na revista La Ligne de Coeur, dirigida por Julien Lanoe.

Em 1928, Jacob se instala no hotel Nollet (rue Nollet, 55), onde já viviam seus amigos Maurice Sachs e Pierre Colle, este, seu mecenas, que muito o ajudou no âmbito das artes plásticas. Passa a viver da venda de seus guaches e desenhos. Com o apoio de amigos de Jean Cocteau, vendeu, por 1.250 francos, todo o estoque dos guaches à galerie Georges Petit (9º arrondissement). Foi a fase áurea de seu dandismo. Ele recebia os admiradores e participava, todas as noites, das festas fastuosas de Paris.

Fato marcante em sua biografia foi, malgrado sua costumeira reserva pública sobre o tema da homossexualidade, sua defesa, em julho de 1928, de Jean Desbordes, na controvérsia sobre seu livro J’adore, prefaciado por Cocteau, obra que Jacques Maritain, o guru dos três, considerou uma atroz confusão de erotismo e de religião.

Max foi vítima, em 1929, de acidente automobilístico, em estrada da Bretanha, num carro conduzido por Pierre Colle, o amigo a quem ele fez seu legatário universal. Após lenta e dolorosa recuperação em Quimper, junto à família, ficará um pouco manco (como Jacob após o anjo, consola-o Jean Cocteau). Imediatamente ao livrar-se das muletas, sofreu uma queda que afetou a mesma perna, com nova fratura.

Fui ver o local onde Max Jacob se instalou em 1928, depois de regressar do mosteiro de Saint-Benoît-sur-Loire, e constatei que, no prédio da rue Nollet, nº. 55, já não existe o antigo hotel. Tampouco há indicação correspondente à estada de Max Jacob na vivenda residencial atual. Tudo nessa zona, porém evoca o passado. A aura de antiguidade do ambiente ressuscita os séculos. A maioria dos edifícios tem esse aspecto de coisa vista e vivida por muitas gerações pregressas, cujo rastro inefável de melancolia é perceptível.

De 1930 a 1938, ampliou sua obra e recebeu homenagens de amigos e admiradores. Escreveu Tableau de la bourgeoisie, Bourgeois de France et d’ailleurs e Ballades. Em 1932, Francis Poulenc criou a música do Bal masqué, uma cantata inspirada em poemas de Laboratoire central. No ano seguinte, foi organizada uma Soirée, em sua homenagem, no cabaret-bar Boeuf sur le Toit, cujo nome se deve a um ballet composto por Darius Milhaud, inspirado no folclore brasileiro, e que teve coreografia de Jean Cocteau. Também em 1933, foi-lhe outorgada a condecoração da Légion d’honneur, que ele declarou só haver aceitado para agradar sua mãe. Jean Paulhan dá testemunho da importância do autor de La défense de Tartufe, ao declarar-se em dúvida sobre qual seria o maior poeta católico do seu tempo, se Max ou se Claudel.

Orador apreciado, Jacob recebe convite para uma segunda viagem à Espanha, onde pronunciará palestra sobre o tema O verdadeiro sentido da religião.

O livro de André Billy reproduz também seis cartas que Max Jacob escreveu a Jean Cocteau, posteriores às escritas a Apollinaire. Essas mensagens contêm palavras ainda mais afetuosas do que em relação a Guillaume. Não são mencionados os endereços de Cocteau.

Na primeira epístola, de 6 de outubro de 1919, ele dá notícias dos amigos: Reverdy a perdu sa mère. Satie met en musique Les enfants qui vont jouer sur les marches. Picasso est, dit-on, à Paris.

A segunda, de 4 de julho de 1920, (enviada da rue Gabrielle, 17), começa com ton livre m’enchante et je n’ai plus envie que de faire du Cocteau.

A terceira, endereçada também da rue Gabrielle, e datada de 11 de outubro de 1920, começa de forma insólita: “Le principe de la grande peinture est découvert: c’ est le nocturne de Chopin appuyé”.

A quarta, de Loiret, datada de 21 de fevereiro de 1926, menciona sua viagem à Espanha. Refere-se a seu encantamento com a catedral de Toledo: Tout le XIXe siècle vient de Tolède. Declara-se impressionado com o Museu do Prado, sobretudo com a sala onde viu as telas de Jérôme Bosch e Brueghel le Vieux. Vraiment ce n’est pas ennuyeux. Do Escorial diz tratar-se de un couvent dans une montagne.

Na quinta missiva, de 5 de maio de 1926, ele expressa sua admiração devota por Cocteau e o exorta a reconhecer os próprios pecados como sinal de arrependimento: Le démon te touche. Sois obstinément chrétien au travers des péchés, je t’en prie. Ne vois-tu pas le démon te montrer que la perfection est inaccessible? Crois-tu que les saints ne pèchent pas septante fois par jour?

Na sexta carta, de 5 de abril de 1942, ele se queixa de estar sendo molestado pela Gestapo desde junho de 1940, quando agentes da polícia indagaram ao sacerdote da basílica de Saint-Benoît por um cicerone judeu. Lamenta haver sido, em novembro do mesmo ano, visitado por policiais que o interrogaram, revistaram seu quarto e leram sua correspondência. E constata que sua família já sofre a tragédia da opressão e da guerra:

Un beau-frère (Lucien Lévy) au camp de Compiègne: il y est mort!!! Un frère (Gaston Jacob) dépossedé d’une boutique rue Legendre. Et le reste de la famille menacé…

 

Com a guerra, o misticismo de Max Jacob aumentou. A morte do irmão e a deportação da irmã prenunciavam-lhe o martírio. Mirté Léa, sua irmã, morrerá em Auschwitz-Birkenau, em janeiro de 1944.

No dia 24 de fevereiro de 1944, à saída da missa matinal, a Gestapo o prendeu e o conduziu à prisão militar de Orléans, juntamente com 63 judeus, o mais jovem dos quais de seis anos.

A prisão de Max Jacob ocorreu dois dias depois da captura de Robert Desnos. A diferença entre esses destinos malogrados foi a sobrevivência de Desnos quase quatro meses na prisão. Jacob sobreviveu apenas dez dias. Faleceu no dia 5 de março de 1944, de colapso cardíaco, após contrair uma pneumonia, no campo de concentração de Drancy, no Departamento de Seine-Saint-Denis, no norte da França.

A fina ironia, o misticismo e o ritmo popular de sua poesia aproximam-se, sutilmente, do sentido de humor e da religiosidade das baladas de François Villon. Sua expressão é, contudo, juvenil ou pueril, como podemos constatar nesses primeiros versos de Saint-Jean Baptiste. A diferença é que Jacob tem a graça inusitada, mas não tem a mordacidade virulenta do poeta marginal dos velhos tempos:

 

Le plus mauvais fut Hérode

Qui tua la céleste famille.

Pour l’ impôt il prenait l’argent

Et il massacrait les enfants.

 

Max Jacob é a união do lirismo e da bonomia. “La gaité, surtout la triste, est le feu divin”, dizia, com devotamento à vida e à arte.

Disse dele Francis Carco: “Il avait le vice du dévouement et ses amis lui doivent bien souvent la grâce qu’il croient avoir”. No seu livro De Montmartre au Quartier Latin, Carco evoca os tempos de boemia e de pobreza e alude ao misticismo de seu amigo: “Max Jacob n’était point encore le saint homme du monastère de Saint-Benoist-sur-Loire. S’il nous entraînait quelquefois au Sacré-Coeur dans la chapelle de la Vierge où il s’agenouillait, se signait et tombait en extase, c’était les lendemains d’orgie, et le poète qui d’ordinaire l’accompagnait, en était sidéré”.

Jacob foi um sacerdote da palavra. Tinha a boa vontade para praticar o bem: seu lema era “paciência com os outros e luta consigo mesmo”. Místico verdadeiro, queria transformar tudo em meditação. Leitor apaixonado de São Francisco de Sales e de Tomás de Kempis. Apesar do frio e da alimentação austera, a vida no mosteiro, onde trabalhou, na preparação dos sacramentos da missa, foi seu apoio em Deus e seu escudo contra o malicioso mundo das trevas. Dizia-se disposto a todo sacrifício pelo amor de Deus.



MÁRCIO CATUNDA (Brasil, 1957). Escritor e diplomata. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu mais de quarenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais em espanhol. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021), que recebeu em seu ano de publicação o Prêmio Cecília Meyreles, da União Brasileira de Escritores, no Rio de Janeiro.

 

  

BRIDGET BATE TICHENOR (França, 1917-1990). Artista fascinante, foi também editora de moda. Sua pintura, ligada ao Surrealismo, sua biografia inclui momentos em que foi modelo de Man Ray, uma paixão que despertou em Anaïs Nin, a casa que dividia com Peggy Guggenheim e seu interesse por ocultismo, magia e alquimia. Quando conheceu o México identificou o país como o lugar sagrado de sua morada, assim como foi intensa a amizade com Leonora Carrington, Remedios Varo, Kati Horna e Alice Rahon, que ali já residiam. Metafísica e misticismo se revelaram como temas característicos de sua linguagem pictórica, o que a levou também a Roma, onde realizou uma série de pinturas intitulada Máscaras, Guias Espirituais e Divindades Duplas. 

 





Agulha Revista de Cultura

Número 225 | março de 2023

Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


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