O menino Gérard Labrunie teve que
esperar seis anos para rever o pai, oficial-médico, que o deixou aos cuidados do
tio-avô Antoine Boucher, em Mortefontaine e partiu em campanha, recrutado pelos
exércitos de Napoleão, numa aventura trágica, em que faleceu sua esposa, Marie Antoinette,
em 1810, na remota e fria Silésia, entre a Alemanha e a Polônia. O Dr. Labrunie
volta a Paris, depois de sofrer um ferimento de guerra, em 1814 e torna a se instalar,
com seu filho, na rue Saint-Martin, mas desta feita no número 72. Quando seu pai
o vê, depois de longa ausência, abraça-o, e o filho grita –mon pére!… tu me fais mal. A orfandade de mãe, da qual não lhe restou
imagem, certamente afetou emocionalmente, por toda a vida, o menino sensível que
se tornou um adulto psiquicamente abalado.
Gérard foi aprendiz de tipógrafo,
de 1823 a 1830, e aluno de Medicina, em 1834. Não viria a ser o médico que seu pai
desejou. Seria o andarilho de muitas ruas e muitas cidades e o escritor inquieto
e prolífico, autor de algumas das mais belas páginas da literatura francesa.
Na trilha
de Nerval, desço a rue Montmarte, na direção do Châtelet. Depois de passar
em frente à antiga sede do Journal du Soir,
onde também funcionou L’Aurore (no qual
Zola escreveu os famosos artigos “J’accuse”), avisto o torreão de Saint-Jacques
sobre as estruturas metálicas de Les Halles e, mais próximo, o pináculo de Saint-Eustache.
A tonalidade escura do grande bloco de pedras ocres de Saint-Eustache atribui-lhe
um aspecto sinistro. Contemplo as altas farpas, assimétricas e heterogêneas, do
espantoso templo que Nerval tantas vezes contemplou.
Faço o trajeto pelas ruas Rambuteau
e Berger, contornando as vitrines do Forum Les Halles. Cruzo o boulevard Sebastopol,
rutilante de comércios e multidões, e vejo as vidraças do Centro Georges Pompidou.
Como reagiria Nerval, se visse agora o quartier onde nasceu, assim transformado?
Embora
o prédio de número 168, da rue Saint-Martin, onde nasceu o poeta de Les Chimères, tenha aspecto antigo, os seus
seis andares mostram que é demasiado alto para os padrões da época de Nerval. A
casa original do poeta era outra. O edifício foi todo reconstruído. A placa na parede,
no entanto, faz referência ao nascimento do poeta, em 1808, no dia 22 de maio, (o
mesmo em que nasci, 149 anos depois).
O ambiente
do quartier des Halles evoca o tempo de outrora, com a antiguidade dos bulevares
de Saint-Martin e Saint-Denis, e da velha torre de Saint-Jacques. Passo em
frente à vetusta igreja de Saint-Merri, onde Nerval foi batizado no dia seguinte
ao de seu nascimento. A igreja, construída entre 1500 e 1550, é o monumento mais
antigo da rue Saint-Martin. Vizinho a esse templo impregnado de história, existia,
na esquina com a rue des Lombards, o lugar onde Nerval morou, após o regresso de
seu pai da missão militar.
Existem hoje, no térreo da mencionada
esquina, um supermarché e uma boulangerie. Mudaram todos os semblantes
das vivendas da rua do poeta, exceto o relevo de filigranas gótico-flamígeras da
igreja que remonta ao século XV.
Nerval foi um andarilho de muitos
países. Foi o poeta do idílico Jardin des
Tuileries, cantado no soneto em que ele narra um passeio com sua prima, num
domingo de inverno:
L’hiver a ses plaisirs, et souvent
le dimanche,
quand un peu de soleil jaunit
la terre blanche,
avec une cousine on sort se promener.
— Et ne vous faites pas atteindre
pour diner,
dit la mère. Et quand on a bien,
aux Tuileries,
vu sous les arbres les toilettes
fleuries,
la jaune fille a froid et vous
fait observer
que le brouillard du soir commence
à se lever.
Constato que, efetivamente, os espaços
mais aconchegantes de Paris são os jardins, entre os quais Tuileries oferece o panorama
atraente da vegetação, das estátuas, das aves, das crianças que brincam ao redor
dos círculos de água e do colosso do Louvre, com seus fantásticos pavilhões, decorados
com torres e arcanos baluartes. O caminhante descansa numa cadeira metálica, na
certeza de que vale a pena enfrentar a jornada extenuante, pela aventura de desvendar
tantos enigmas e respirar, deliciosamente, entre a multidão ambulante, o ar limpo,
entre as florações dos canteiros. Sinto que Nerval se identificava com aquela área
de Paris e sua grande avenida, quando sentia, na beleza do pôr do sol, ensimesmado
em seus sonhos, a noite expandir o véu no quadro que emoldura o Arco da Estrela.
O melhor amigo de Nerval era Gautier,
que, por sua vez, era amicíssimo de Baudelaire. Nerval e Gautier foram colegas na
infância no collège Charlemagne, instituído pelos jesuítas, na rue Saint-Antoine.
Os dois assistiram, em 1830, à estréia de Hernani,
drama de Victor Hugo, na Comédie-Française.
Sempre inquieto, na ânsia de novas
peregrinações, prolífero na criatividade, Nerval dilapidava a fortuna herdada de
seu avô materno. Andava com os bolsos cheios de poemas. Quando viajou à Itália,
em 1934, disse ao pai, para não preocupá-lo, que só iria até Provence. Em Nápoles
e Pompeia, andarilho e apaixonado viu em todas as beldades que avistou a imagem
de Jenny Colon, a santa do abismo, a rainha do Théâtre des Varietés, por quem se
apaixonara, sem ser correspondido. Diante do precipício, quis pedir contas a Deus
de sua existência, mas adiou o momento do sacrifício.
Foi o bon Théo quem o apresentou a Baudelaire. Na companhia de Gautier, Nerval
frequentou, a partir de 1828, a residência de Victor Hugo, na place des Vosges, de charmosos arcos e fachadas, onde Théophile
Gautier e Victor Hugo foram vizinhos. Ali, Nerval conversava com o autor de Les contemplations sobre seus estudos esotéricos,
e suas ideias encontravam ressonância em Hugo, que acreditava na verdade do espiritismo.
As pequenas odes de Nerval, escritas
à maneira de Ronsard, Anacreonte e Horácio, foram publicadas em 1832, sob o título
de Odelettes. Entre elas constam duas
que evocam paisagens de Paris: Une allé du
Luxembourg e Notre-Dame de Paris,
editadas, posteriormente, em Petits chateaux
de bohême.
Nos versos de precoce nostalgia de
Une allé du Luxembourg, o jovem poeta
lamenta a brevidade do instante de êxtase. A glória dos sentidos é fugaz, assim
reza o ideário romântico, que antecede o existencialismo pessimista, constatando
os paradoxos da vida humana. O Jardim do Luxemburgo contribui para a arte de sonhar.
O formoso palácio, o tanque redondo, espelhando a luz da atmosfera, as copas vegetais
que tornam o ar saudável, as gaivotas que sobrevoam em círculos e a tarde que turva
o céu de tintas crepusculares suscitam profunda melancolia no coração do poeta solitário
e contemplativo:
Elle a passé, la jeune fille
Vive et preste comme un oiseau:
À la main une fleur qui brille,
À la bouche un refrain nouveau.
C’est peut-être la seule au monde
Dont le coeur au mien répondrait,
Qui venant dans ma nuit profonde
D’un seul regard l’éclaircirait!
Mais non, ma jeunesse est fini…
Adieu, doux rayon qui m’as lui,
-
Parfum, jeune fille, harmonie…
Le bonheur passant, - il a fui!
Na ode Notre-Dame de Paris, Nerval medita sobre as transformações que o tempo
impõe a todas as coisas. Como um lobo devora um boi, com férreos nervos, em silêncio
o tempo roerá os velhos ossos pétreos de Notre-Dame. Os pósteros virão contemplar
as ruínas austeras da velha basílica e a verão levantar-se como a sombra de um morto.
Se não realizou uma profecia de acontecimento ainda mais longínquo, parece haver
assim vislumbrado a imagem fantasmagórica da recuperação da catedral, depois do
incêndio que a assolou em 2019:
Notre-Dame est bien vieille:
on la verra peut-être
Enterrer cependant Paris qu’elle
a vu naître;
Mais, dans quelque mille ans,
le temps fera broncher
Comme un loup fait un boeuf,
cette carcasse lourde,
Tordra ses nerfs de fer, et puis
d’une dent sourde
Rongera tristemente ses vieux
os de rocher!
Bien des hommes, de tous les
pays de la terre
Viendront, pour contempler cette
ruine austère,
Rêvenus, et relisant le livre
de Victor:
- Alors ils croiront voir la
vieille basilique
Toute ainsi qu’elle était, puissante
et magnifique,
Se lever devant eux comme l’ombre
d’un mort.
Nerval acompanhou Théophile Gautier,
quando este se mudou da place des Vosges, em 1834, para o impasse du Doyenné, no
local onde existe hoje o pavilhão Mollien, do Louvre, do lado direito de quem entra
na place du Carrousel, pelo jardin des Tuileries. Ali moravam também Arsène Houssaye, poeta e romancista, e o pintor
Camille Rogier. Gautier instalou no Impasse du Doyenné o seu pequeno ateliê para
se dedicar às artes plásticas. Ali Gérard dormia num colchão sobre o solo, porque
jamais considerou o sono como um repouso. Foi esse o lugar onde Nerval permaneceu
mais tempo, cerca de dois anos, de 1834 a 1836. Sua vida foi, como se sabe, um constante
viajar e mudar de residência. (Na lista não-exaustiva de residências do poeta constam
24 domicílios, sendo, alguns destes, casas de amigos onde se hospedou).
A respeito do Doyenné, ele recorda,
em Petits château de bohême, o tempo feliz
em que Gautier lia seus poemas em voz alta, enquanto as musas Cydalise, Lorry ou
Victoire se balançavam nonchalamment dans
le hamac de Sarah la blonde, tendu à travers l’immense salon. E ele lamenta que notre palais est rasé. J’en ai foulé le débris l’automne passé. Les ruines
mêmes de la chapelle du Doyenné, qui faisait partie de Saint-Thomas-du-Louvre, qui
se découpaient si gracieusement sur le vert des arbres… n’ont pas été respectés.
As festas ruidosas no Doyenné lhe valeram, certa ocasião, uma prisão por
tumulto noturno.
Ele viaja à Bélgica com Théo em julho de 1836.
Os artigos escritos na estada em Bruxelas foram publicados em La Chronique de Paris, jornal fundado por
Balzac. Em 1837, começa a escrever para La
Presse e a colaborar com Alexandre Dumas. O primeiro fruto dessa parceria foi
a ópera-cômica Piquillo, que teve 27 repetições
no Opéra-Comique em 1838.
Sua
paixão por Jenny Colon se incrementa nesse período, quando a atriz desempenhou o
papel de Sylvie, na peça Piquillo. Os
amigos se riram do fato de o poeta haver comprado uma grande cama, com intenções
específicas de aprofundar seu intercâmbio sentimental com a sedutora Jenny. Num
soneto a ela dedicado, ele a chamará de Dafne, a ninfa da qual Apolo se enamora
e é transfigurada num loureiro. Apolo a reverencia e traz consigo a coroa de louros,
que na Antiguidade era concedida aos heróis como galardão de triunfo apoteótico.
Como seu jornal Le Monde Dramatique havia falido, causando-lhe
grande prejuízo, Nerval passa a trabalhar em distintos periódicos. Assim, foi redator,
simultaneamente, do Figaro, do La Presse e do La Charte.
Em seus passeios vespertinos, Nerval
percorria a grande aleia de Tuileries, mergulhado em devaneios, e ia contemplar
o poente emoldurado no Arco da Estrela. No café Divan, na rue le Peletier, número
3, próximo ao Opéra Comique, bebia o licor
da saúde.
Passei algumas vezes diante do espaço
onde existiu o tradicional café Divan, frequentado por toda a boemia dos poetas
de então, situado entre o boulevard Haussmann e o boulevard des Italiens. Desse
modo, confirmei que foi substituído pelo atual edifício do BNP Paribas, monstro
financeiro que devorou todo um bloco onde havia residências e restaurantes.
O grande peregrino, tradutor de Goethe,
dizia haver adotado o nome de Nerval por ser descendente do imperador Nerva. Um
de seus hábitos era ir ao mercado dos pássaros, em Les Halles, conversar com os
papagaios e comprar passarinhos para libertá-los das gaiolas.
Dizia-se dotado de certa vocação para
a diplomacia: Sou quase um diplomata. Sei
falar com as autoridades. Seu pai, o Dr. Labrunie, queria fazer dele um médico.
Ajudava-o com algum dinheiro e se preocupava com o filho que, em sua compreensão,
andava em má companhia. O amigo Eugene Stader, generoso e conhecedor do seu talento,
arranjava-lhe subvenções do Ministério da Instrução Pública para custear-lhe as
viagens.
Nerval dissipara a herança no investimento
do jornal Le Monde Dramatique, de curta
existência. Noctâmbulo, transitava de Madeleine à Bastille, naquela Paris iluminada
por lampiões de gás. Sa vraie maison, c’était
le café, atestou Arsène Houssaye.
Nerval viajou, em 1838, a Frankfurt,
na companhia do amigo Alexandre Dumas, com o propósito de escreverem juntos a peça
Léo Burckart, estreada no Théâtre de la
Renaissance, em novembro de 1838, e continuada no Théâtre de la Porte de Saint-Martin,
em janeiro de 1839. A peça foi, todavia, interrompida pela censura, que a julgou
uma incitação à violência.
O Théâtre de la Renaissance daquele
tempo não é o atual teatro que tem esse nome, localizado na vizinhança da Porte
de Saint-Martin. O Théâtre de la Renaissance coetâneo de Nerval ficava na quadra
formada pelas ruas Delayrac, Montigny e Marsollier. É atualmente um velho prédio
pardacento, com aspecto de coisa abandonada, local que pertence ao Banque de France.
A ele cheguei, procedente da rue des Petits Champs, depois de passar pela passage
Choiseil, de teto transparente, onde Jacques Offenbach teve seu Théâtre des Bouffes-Parisiens,
o livreiro Alphonse Lemerre teve sua editora e Ferdinand Celine viveu sua infância.
Ao regressar da Alemanha, em 1839,
Gérard arranjou logo outra viagem. Com ajuda econômica de seu pai e do Ministério
da Instrução Pública, conseguida por intervenção de Victor Hugo, ele passa três
meses em Viena. Manteve encontros com Franz Liszt e com a pianista Marie Pleydel,
da qual se enamorou. O resultado de suas experiências em Viena foi relatado no livro
La Pandora.
Quando volta a Paris, em março de
1840, o poeta de La bohême galante continua
suas perambulações noturnas, escrevendo em transe, noctâmbulo impenitente, pelos
recantos da boemia de então. Ao acompanhar a trajetória existencial de Gautier,
aloja-se no domicílio de seu amigo, na rue de Navarin, 14, nas proximidades da place
Pigalle, no período de 1840 a 1841. Um ano depois, teve a primeira crise de delírio.
Fui à rue de Navarin duas vezes. Na
primeira e na quarta viagem. Na mais recente, pude recordar alguns detalhes daquela
curta e pitoresca rua, entrecortada pela rue Henri Monnier e pela rue des Martyrs,
que marcam o seu começo e o seu fim, em apenas uma quadra. É, ainda hoje, uma rua
relativamente tranquila. Imagino como seria nos tempos de Nerval e Gautier. A rua
tem dois endereços importantes: o número 14, onde Gautier morou inicialmente - um
prédio alto, de janelas brancas, sem varandas – e o de número 22, que tem varandas
grandes. Imagino ambos os poetas perambulando em direção aos locais da boemia galante,
fustigados pelo spleen e dialogando sobre
os temas mais relevantes da vida.
Certa noite, em fevereiro 1841, Gérard
saiu do café Le Divan, na rue Le Peletier e foi em direção à igreja de Notre-Dame-de-Lorette.
Viu uma estrela vermelha, circundada por uma auréola azulada, que acreditou ser
Saturno.
Pelo caminho, foi-se desfazendo das
roupas e andou nu, anunciando que viajaria ao Oriente. De repente, viu-se cercado
de uma patrulha de soldados. Houssaye e Gautier o conduziram
à maison de santé da rue Picpus, nº 7,
clínica de Madame Marcela de Sainte-Colombe.
A crise de 1841 durou nove meses,
ao cabo dos quais, ele teve alta. Suas afecções psíquicas o perseguiram durante os derradeiros
14 anos de vida, entre intermitências de absoluta lucidez e momentos terrivelmente
depressivos.
Acreditei
que, porventura, ao hospedar-me num hotel na avenida Daumesnil, próximo à rua de
Picpus, onde Gautier e Houssaye acharam por bem internar Nerval, encontraria rapidamente
o lugal exato.
Do ponto
do metrô Michel Bizu até o número sete da rua Picpus, inauguro o dia, exercitando-me
na subida do boulevard de Reuilly, no 12º arrondissement. Caminhei, longamente,
ora na sombra ora sob o sol. A distância era maior do que pensei. Por fim, já extenuado,
avisto, na esquina do boulevard Diderot, a velha casa de dois andares, com o aspecto
fantasmagórico que o tempo e a falta de cuidados atribuem a suas paredes externas.
Segui
caminhando e me vi diante da place des Nations, arborizada, espaçosa, decorada de
duas colunas paralelas e a estátua alegórica da República, como deusa da liberdade,
como heraldo, em pé, sobre uma carruagem transportada por leões. A estação do metrô
está a 20 metros. Inclino-me na descida de suas escadas.
Nerval
tardou pouco ali. Recebeu alta, mas teve que se internar de novo, desta feita na
clínica do Dr. Blanche, na rue Norvins, 22. Diagnóstico: mania aguda. A diretora da Revue
des Deux Mondes, Madame de Girardin, pediu ajuda ao Ministério da Instrução
Pública para custear-lhe a estada na clínica psiquiátrica, e o poeta recebeu, para
tanto, recursos no valor de 300 francos.
Passei
ao largo da paisagem predileta de Gérard de Nerval (moinhos, cabarets e ruelas bordadas
de jardins e chaminés de Montmartre), subindo à colina campestre, de panorama encantador.
Do fantástico mirante, em frente ao fabuloso bloco de pedras polidas da basílica
de Sacré-Coeur, avistei a grandeza da cidade. Depois, tornei a descer. Vim pela
rue de l’Abrevoir, onde Verlaine degustava seu absinto. Delícia de respirar em plena
butte, apesar dos ruídos ambulantes da
Babel de turistas. Para chegar à rua Norvins, faço uma curva na rue Girardon, na
esquina do Château des Brouillards, lugar que Nerval apreciava, segundo a placa
indicativa: ce qui me séduit dans ce petit
espace abrité de grands arbres, c’était d’abord ce reste de vignoble lié au souvenir
de Saint-Denis. A mesma placa esclarece que Saint-Denis (São Dionísio), missionário
do papa Clemente e mártir de fé cristã, foi decapitado em 273.
Logo encontro,
nas alturas de Montmartre, o número 22 da inclinadíssima rue Norvins, onde Nerval
esteve hospitalizado em duas ocasiões. A clínica do Dr. Blanche está no alto da
rua, que subi, respirando fundo. A velha mansão branca guarda todo o fulgor das
características que teve nos tempos de Nerval.
A placa
histórica explica tudo: o doutor Prost inaugurou no local sua clínica de tratamento
de doenças mentais em 1806. O Dr. Esprit Blanche assumiu em 1820 a direção do asilo
e deu seguimento às terapias sugeridas pelo Dr. Pinel, que defendia a necessidade
de relaxar-se um pouco o rigor do tratamento dos alienados, porquanto a tradição
anterior os mantinha acorrentados em muitos casos. Diversos escritores e outros
artistas, fatigados ou depressivos, acorreram à guarida do doutor Blanche, sendo
o mais ilustre deles Gérard de Nerval, que ingressou ali em 1841: Ici a commencé pour moi ce que j’appellerai l’épanchement
du songe dans la vie réele…
Tratado pelo alienista Blanche, sem
aparelhos de terror nem rigor corporal, tão logo Nerval recuperou a saúde, confessou
que perdera o pouco de poesia que se havia despertado em sua cabeça: eu falava em versos todos os dias e eram versos
excelentes, lamentava, embora sentisse alívio, depois da crise que ele definia
como uma febre quente, complicada dos médicos.
Segundo revelou em carta a Ida Dumas, esposa de Alexandre Dumas, havia um carnaval
de filosofias e deuses em sua cabeça e ele se sentia Deus, porém aprisionado em
sua triste encarnação.
Nerval magoou-se com a publicação
de um artigo, de autoria do jornalista Jules Janin, no Journal des Débats, que expôs publicamente sua condição de saúde, ao
comentar a sua crise como um fato consumado de alienação mental.
No estado que Nerval definiu como
de rêverie supernaturaliste, ele escreveu
os primeiros sonetos de Les Chimères,
publicados mais de dez anos depois. A literatura de Nerval, nascida dessa espécie
de esquizofrenia sublime, qualifica-o como um precursor dos estudos teosóficos,
desenvolvidos, posteriormente, por Helena Blavatsky.
Eu não
imaginava que a clínica do Dr. Blanche fosse tão próxima à igreja de Sacré-Coeur
e à place du Tertre, na encruzilhada das ruas Saint-Rustique e des Saules. Sinto
uma espécie de saudade da figura de Nerval. Tenho a impressão estranha de que o
conheci em outros tempos. Que, dans une autre existence
peut-être, j’ai déjà vue… et dont je me souviens!, dizia ele. Quem sabe? Quem decifra tanto mistério? De resto, era caminhar
descendo até a place de Clichy. Já ganhei o dia, disse a mim, quando passou um micro-ônibus
e o peguei. Fui descendo até avistar, numa esquina, o fantástico Lapin Agile, que
tanto significado tem para Toulouse Lautrec, Francis Carco, Aristide Bruant e outros
grandes artistas. O micro-ônibus me deixa junto a Mairie du 18º arrondissement,
onde entro no portal em declive do metrô Jules Joffrin.
Em 1842, o poeta nômade se transfere
para o número 10 da rue Saint-Hyacinthe-Saint Michel, que começava na interseção
da rue de la Harpe com a rue d’Enfer (hoje rue Denfert-Rochereau) e terminava na
rue Saint-Jacques. A rua para onde Nerval se transferiu foi suprimida e rebatizada
de rue Paillet, na metade do século XIX, sendo, posteriormente, incorporada à rue
Malebranche.
A morte prematura de Jenny Colon,
aos 32 anos, em junho de 1842, o abala. Para aliviar a angústia do falecimento de
sua musa (então casada com um flautista) e redimir-se dos vexames que vivera durante
a internação no manicômio, ele empreende, em dezembro de 1842, a sonhada viagem
de um ano ao Oriente.
A viagem começa poucos dias depois
de ele sair da clínica de Montmartre. Embora fatigado, sentia-se em perfeito estado
de saúde. Ele embarca em Marseille, no dia 1º de janeiro de 1843. Victor Hugo obteve
um reforço de 300 francos da parte do Ministro Villemain para as despesas da viagem.
Mais uma vez, o Ministério da Instrução Pública foi generoso com Nerval. Gérard
percorreu Malta, Egito, Síria, Líbano, Grécia e Turquia, tendo escrito a respeito
de tudo quanto viu.
No Egito, visitou as pirâmides, admirou
a dança dos dervixes e frequentou a biblioteca da Sociedade Egípcia. Achou a Ville de Mille et une Nuits um tanto degradada
e poeirenta. Passou três meses no Egito. Circulou no anedotário que os muçulmanos
quiseram casá-lo com uma menina síria de 12 anos, o que ele obviamente recusou,
por considerar a noiva demasiado jovem.
No Líbano, passou também três meses.
Conviveu com os maronitas durante um mês, em cidades assediadas pelos drusos. Por
pouco, não se casou com a filha de um Sheik. Acometido de febre, desistiu de casar-se
e embarcou para Constantinopla, onde, com o pintor Camille Rogier, seu velho amigo
dos tempos do Impasse du Doyenné, viu as luzes grandiosas do Ramadã e fumou narguilé nos cafés. Apreciou as margens do
Bósforo, como uma grande rua bordada de palácios. A cena mais chocante da peregrinação foi
a de um armênio, jazendo no chão, a quem os turcos haviam cortado a cabeça. O livro, objeto das observações que anotou
nesses países, veio a lume com o título de Voyage
en Orient, em 1851.
Em janeiro de 1844 ele está de volta.
Pouco tempo depois de regressar do grande trajeto oriental, viaja, ainda em 1844,
com Arsène Houssaye para a Holanda e para a Bélgica, escrevendo reportagens para
jornais e revistas, sobre os museus e teatros que visitou.
O ano de 1845 foi vivido, em grande
parte, na clínica do Dr. Esprit Blanche. Quando, porém, saiu do hospital psiquiátrico,
substituiu Gautier, na redação do folhetim de La Presse, escrevendo crônicas sobre teatro, nos meses de julho a setembro,
quando seu amigo viajou para a Argélia.
Modesto, benevolente, gentil e afetuoso,
a profunda qualidade humana de Gérard se detecta pelos testemunhos dos que o conheceram.
Enquanto esteve no manicômio, teve consciência de que jamais perdera o bom senso.
Queixava-se, portanto, de haver sido forçado a reconhecer sua demência, como se
fazia antigamente com os feiticeiros e os hereges.
Em 1846 vai a Londres, onde escreve
artigos para a revista L’Artiste. A atividade
dramatúrgica prossegue indelevelmente, com os bons auspícios do Théâtre de l’ Odéon,
onde suas peças Les Monténégrins e Le Chariot d’enfant (esta, em parceria com
Joseph Méry) são representadas, respectivamente, em 1849 e em 1850. Ainda naquele
ano, o inquieto Nerval viajou em agosto outra vez à Alemanha, onde visitou seu amigo
Franz Liszt, com quem falou sobre o projeto de trabalharem, em parceria, numa ópera
em que adaptaria o Fausto, com libreto
de Alexandre Dumas.
Nerval não tardou a mudar de endereço,
indo morar na rue Saint-Thomas-du-Louvre, onde permaneceu até o final de 1850. Teve
de abandonar o local, que foi demolido pelas autoridades públicas, para a construção
do prolongamento da rue Rivoli. Ainda em 1850, em uma de suas incansáveis andanças,
o poeta notívago caiu de uma escada em Montmartre e machucou o joelho e o peito.
Os biógrafos atribuem esse acidente ao fato de que Nerval caminhava ébrio nas noites
peregrinas. Ele perambulava, em rondas noturnas pela cidade, na fantasia de buscar
algum mistério. Como ir a um templo egípcio, que existira no lugar onde existe a
igreja de Saint-Germain-des-Prés. Ou encontrar uma mandrágora da perfeição, nas
raízes das vinhas de Montmartre.
Nerval narra, em Les nuits d’octobre, seu trajeto noturno
do Château-Rouge até Les Halles. Ele ia viajar a Meaux
e a Strasbourg, porém encontrou um amigo, com qual passou a noite bebendo nas tabernas
e nos cabarets de Les Halles. Viu então o Château-Rouge, (que ficava na rue Galande,
nº 57, nas proximidades da place Maubert e foi demolido em 1882), como um templo
druida, com altos pilares sustentados por cúpulas quadrangulares. Naquele antro
bolorento de vagabundos e prostitutas, mergulhado nas profundezas, Nerval tremia
de ver sair Ésus ou Thor ou Cérunnos, les
dieux redoutables de nos pères.
A narrativa continua.
Após o jantar no rôtisseur da rue Saint-Honoré,
foram pela rue de Valois, ao antigo Athénée, de luminosa fachada, com uma dúzia
de janelas. Ele descreve
a fachada de Saint-Eustache, a armadura gótica, os desenhos corretos da Renascença
e deplora que un si rare vaisseau soit deshonoré,
à droite par une porte de sacristie à colonnes d’ordre ionique, et à gauche par
un portail dans le goût de Vignole. Daquele ambiente festivo, de cafés e cabarets
abertos toda a noite, elogia o restaurante Maison d’Or e as caves des charniers, au pied de la fontaine de
Pierre Lescot e de Jean Goujon, les marchandes de fruits et fleurs. Confessa
também sua inclinação por uns goles de prazer: Il est bon de boire un verre de cidre ou de poiré. C’est rafraichissant.
Dentre as iguarias que mais apreciava no velho mercado, c’est la soupe à l’oignion, qui s’exécute admirablement à la Halle, et dans
laquelle les raffinés sèment du parmesan râpé.
Os amigos admiravam a disciplina dissoluta
e a genialidade do grande viajante, o tradutor do Fausto, elogiado por Goethe. Gérard
de Nerval se autodenominava o tenebroso,
no famoso poema “El Desdichado”.
Entre a angústia e a euforia, Nerval
estudava, criteriosamente, os sonhos, como vínculo entre o mundo externo e o mundo
interno. Imergia, visceralmente, nos domínios misteriosos das dimensões oníricas,
buscando uma vida nova, além das condições materiais do tempo e do espaço, semelhante
à que nos espera após a morte. Ao confessar:
Je crois et j’espère sincerement en la mort,
je veux dire en la vie future, deixa transparecer a tentação do suicídio.
Gérard não temia as visões trágicas de suas eufóricas alucinações. Descrevia em seus
textos as imagens subterrâneas e aparições fantásticas, atemporais, em que comparava
a atriz Jenny Colon ora com a deusa Isis, ora com a deusa Dafne.
Os psiquiatras
não entenderam o psiquismo inquieto de Gérard, homem dócil, afável e sempre bem-humorado,
cuja fervorosa dedicação à literatura o fazia delirar com os temas místicos e esotéricos.
Seu talento imbatível se revelou numa maravilhosa obra literária, no profundo conhecimento
dos grandes poetas alemães (que ele traduziu melhor do que ninguém), nas encantadoras
narrativas de suas viagens, bem como nos arrebatadores sonetos de Les Chimères, que abrem portas místicas para
a compreensão de mitos e lendas de antigas civilizações.
Circundei
o impressionante monumento de Saint-Denis, em busca do número 111 da rue du faubourg
Saint-Denis, onde, de janeiro a fevereiro de 1852, Nerval esteve internado, numa
crise de fatiga intensa, na denominada Maison Dubois (do Dr. Antoine Dubois),
para curar-se não das faculdades mentais, mas de uma erisipela, decorrente, talvez,
do estresse causado por suas divagações noturnas e pela ingestão excessiva de substâncias
alcoólicas.
Encontrei
uma infinidade de restaurantes de kebab
e em um deles almocei. Descobri a passage de l’Industrie, com lojas e residências
no pátio interior, e a passage Brandy, de teto transparente, cheia de restaurantes
indianos, que ocupam todo o longo corredor até a outra quadra. Ao cruzar a rue du
Château d’eau, a rue Jarry e a rue de la Fidelité, constatei que o lado ímpar da
rue du faubourg Saint-Denis acaba no número 105. No lugar onde existiu a Maison
Dubois, há o hospital Fernand-Widal, ao lado do Square Alban Satragne.
Ao sair da maison Dubois, onde se
curou da erisipela, decorrente de sua instabilidade emocional, dos prejuízos e do
estresse de tanto trabalho, Nerval se instala na rue du Mail, nº 9, em fevereiro
de 1852.
Fui, pela
rue Notre-Dame des Victoires, na direção das pontes. Passei pelo bloco pardacento
da velha igreja, cujo nome é o mesmo da rua. Vi, à esquerda, o início da rue du
Mail. A 50 metros dali, encontro o prédio que fica no número 9, que tem uma fachada
de dois andares e o resto da construção um pouco recuada, por trás dessa frente
que liga os números 9 e 11 num só edifício. Percebi que o prédio já não tinha o aspecto dos tempos de Gérard de Nerval,
tendo-se, em sua reforma, acrescentado outros andares à estrutura do primeiro. O poeta ali viveu apenas uns meses.
Em novembro de 1850, a peça L’Imagier d’ Harlem foi encenada no teatro
de la Porte de Saint-Martin. Em fevereiro de 1853, está ele, outra vez, na maison
Dubois, com febre. Nesse ano, são publicados Les illuminés, livro esotérico,
La Bohême galante, Lorely e Sylvie, este
na Revue des Deux Mondes.
Gérard seguia o seu ritual de rondas
noturnas, quando, mais uma vez, foi internado. Desta feita, de 27 de agosto de 1853
a 27 de maio de 1854, no asilo de Passy, na rue de Seine, hoje rue de Ancara (onde
se encontra atualmente a residência da Embaixada da Turquia). Achava-se em estado
de delírio furioso, no dizer do Dr. Émile
Blanche, filho do Dr. Esprit Blanche, que fora seu terapeuta. Alguns de seus móveis
foram transportados da rue du Mail a Passy. Nerval se diagnostica, afirmando que
tivera uma bizarra exaltação nervosa.
No prefácio de Les filles du feu, dedicado
a Alexandre Dumas, diz ele já não mais estar montado no hipogrifo, referindo-se a seus assédios de delírio.
Em maio de 1854, quando ele sai da
clínica do Dr. Émile Blanche, viaja à Alemanha. Bebeu cerveja, copiosamente, com
estudantes e fez estardalhaço, cantando em voz alta, de noite, no hotel de Strasbourg.
De regresso, dedicou-se a retocar o seu magnífico Aurélia, repleto de vertigens oníricas, e alucinações de seu amor místico por Jenny Colon. A ansiedade e a
penúria em que vivia, naqueles meses terminais, o levariam ao desespero.
Narrativa de insólitas revelações,
Aurélia, qui paraissait n’être que la lutte d’un seul, le drame unique d’un cas
original, s’élève à la grandeur d’une épopée métaphisique, observa, pertinentemente,
Albert Béguin, um dos estudiosos da vida e da obra do nosso poeta.
Aurélia é um documento autobiográfico que revela a trajetória
vertiginosa de Nerval pelas atmosferas mágicas de seu encantamento. É o seu testamento
espiritual e a sua despedida do mundo. Ele revive o mito de Orfeu, viajando pelo
subterrâneo dos sonhos em busca do espírito de Aurélia.
Nessa trajetória insólita,
as visões místicas dos sonhos vão-se tornando experiência cotidiana, mas sua conduta
terrenal não se compatibiliza com seu transporte aos incandescentes orbes multidimensionais.
Ele se achava em dois lugares ao mesmo tempo e acreditou que foi o seu duplo que
seguiu escoltado pelos soldados, na primeira vez em que o internaram na maison de santé.
Nas primeiras frases de Aurélia, ele define o sonho como um acesso
ao mundo dos espíritos:
Le rêve est une seconde vie.
Je n’ai pu percer sans frémir ces portes d’ivoire ou de corne qui nous séparent
du monde invisible. Les premiers instants du sommeil sont l’image de la mort; un
engourdissement nébuleux saisit notre pensée, et nous ne pouvons déterminer l’instant
précis ou le “moi”, sous une autre forme, continue l’oeuvre de l’existence. C’est
un souterrain vague qui s’éclaire peu à peu, et où se dégagent de l’ombre et de
la nuit les pâles figures, gravement immobiles, qui habitent le séjour des limbes.
Puis le tableau se forme, une clarté nouvelle illumine et fait jouer ces apparitions
bizarres: – le monde des Esprits s’ouvre pour nous.
Ele transita entre os dois planos
da vida e atesta a realidade tangível do mundo da imaginação. Constata que, tanto
na vigília quanto no sono, tudo se transfigurava. Assim, os acontecimentos terrestres podiam coincidir
com os do mundo sobrenatural: La seule différence
pour moi de la veille au sommeil était que, dans la première, tout se transfigurait
à mes yeux; chaque personne qui m’ approchait semblait changée, les objets matériels
avaient comme une pénombre qui en modifiait la forme, et les jeux de lumière, les
combinaisons des couleurs se décomposaient, de manière à m’entretenir dans une série
constante d’impressions qui se liaient entre elles, et dont le rêve, plus dégagé
des éléments extérieurs, continuait la probabilité (Aurélia, primeira parte, capítulo três).
Na persecução do fluxo
de suas percepções alteradas, ele escuta acima de um relógio um pássaro que lhe
fala como uma pessoa. Numa viagem noturna às atmosferas sobrenaturais, caiu num
abismo que atravessava o globo. Assim, foi transportado por uma infinidade de rios
de metal fundido que surcavam a terra como barcos e veias entre os lóbulos do cérebro.
Num sonho de um minuto,
percebeu a sequência ininterrupta de homens e mulheres que foram ele em vidas passadas
e pisou sobre as camadas sucessivas dos edifícios de distintos países, em diferentes
idades. Num jogo de luz em que se confundiam as tintas de um prisma, estabelecera
contato com parentes e amigos. Era uma família primitiva e celeste que lhe dava
a certeza de sua existência eterna. Chorava, no entanto, ao ver suas formas vibrantes
se volatizarem.
Com gestos e fenótipos
simultâneos, três mulheres que viviam a mesma vida se unificavam na dama que ele
seguia, a qual era composta das três. De pronto, as árvores se tornaram as rosáceas
do vestido dela e o corpo da mulher imprimiu seus contornos nas nuvens. Ele viu
então três Elohins com os espíritos de suas raças, fundando vastos reinos no meridiano
da Terra. Em seguida, a constelação do Orion abriu ao céu as cataratas das águas.
O preço dessa extra-lucidez
era uma nostalgia desesperada. De um terraço elevado, no pôr do sol, ao avistar
o cemitério onde se encontrava o túmulo de Aurélia, desejou morrer para unir-se
a ela. Peregrinou ao campo santo à procura da sepultura de sua musa, cuja última
carta levava consigo num pequeno cofre. Viu o cemitério de Montmartre fechado e
chorou, ouvindo a voz de Aurélia desde o mundo invisível em que ele próprio estava
imerso. Sabia que a morte não existia e, no entanto, Aurélia estava morta.
Uma contrição imensa
o atormentava com os pesadelos de um sentimento de culpa e de remorso. Perdera a
chance de entender o segredo da vida. Implorava o perdão de Deus, quando as sombras
irritadas fugiam, lançando gritos e traçando no ar círculos fatais como os pássaros
ante à aproximação de uma tempestade.
Pensou que o espírito
de Aurélia estivesse numa mulher que cantou no restaurante de um vilarejo.
Foi pela barrière
de Clichy, viu um homem carregando sobre os ombros uma criança e os identificou
como sendo São Cristóvão levando o Cristo.
Ao assistir ao ofício na igreja de
Notre-Dame de Lorette, teve a impressão de que as palavras do sacerdote eram pronunciadas
em sua única intenção. Ao deixar a igreja, percebeu que a paisagem parisiense se
metamorfoseara. Caminhou até a place de la Concorde, tomou a direção da rue Saint-Honoré,
e no trajeto até o Louvre, avistou diversas luas velozes que pareciam desgovernar
a Terra, numa visão semelhante à que tivera Van Gogh ao pintar a noite:
Arrivé vers le Louvre, je marchais
jusqu’à la place et, là, un spectacle étrange m’attendait. À travers des nuages
rapidement chassés par le vent, je vis plusieurs lunes qui passaient avec une grande
rapidité. Je pensai que la terre était sortie de son orbite et qu’elle errait dans
le firmament comme un vaisseau démâté, se rapprochant ou s’éloignant des étoiles
qui grandissaient ou diminuaient tour à tour.
Pensou então em matar-se,
quando viu as estrelas se extinguirem como as velas de uma igreja, e o sol negro
do Apocalipse surgir como um globo sanguíneo sobre Tuileries, anunciando o início da noite eterna: je croyait voir un soleil noir dans le ciel désert
et un globe rouge de sang au dessus des Tuileries.
Na manhã seguinte,
estava sob as arcadas do Palais- Royal. Todas as noites velava, até o nascer do
sol, na colina de Montmartre. Ajoelhou-se diante do altar da Virgem na igreja de
Saint-Eustache, pensando em sua mãe. Choveu muito. Ele, acreditando que fosse o
dilúvio universal, jogou seu anel na correnteza e o Sol voltou a brilhar.
Os amigos o hospitalizaram de novo.
Foi recolhido, mais uma vez, à maison de santé
de Passy, no período de 6 de agosto a 19 de outubro de 1854.
Na clínica, ele impunha
as mãos em alguns enfermos. Um dia, bebeu um frasco de éter que encontrou sobre
a mesa. Passava horas inteiras cantando para um pobre rapaz que não podia ver nem
falar e, porque esse rapaz se recusava a se alimentar, davam-lhe nutrição por um
tubo introduzido em seu estômago. Em sua generosa devoção, Nerval conseguira fazer
com que o enfermo dissesse algumas palavras. Contudo, seu colega de hospício mantinha-se
na recusa de comer, porque estava morto e vivia no purgatório.
Ao perceber que as
pessoas tinham influência sobre os astros e que os espíritos celestes haviam tomado
formas humanas, Nerval tinha consciência de que sua missão era restaurar a harmonia
universal pela arte cabalística e pelas forças ocultas de diversas religiões.
As lembranças de suas
viagens se mesclavam com episódios da história universal. Ele reviu em sonho a Áustria
e a Alemanha. Em São Petersburgo, cidade para a qual jamais viajara, viu as imperatrizes
Catarina e Santa Helena, acompanhadas de princesas radiantes e divinas, cujos olhares
dirigidos à França aproximavam o espaço por meio de longos telescópios.
Uma estrela cresceu
e se personalizou para lhe falar de perdão. Era a pauvre Marie, rainha dos céus cuja cabeleira exalava perfumes do Iêmen.
Em seu vestido de jacinto e em seu corpo cintilavam diamantes e rubis. O céu então
se abriu em toda a sua glória e ele viu a palavra perdão assinalada pelo sangre
de Jesus Cristo.
Aurélia é, no sentido amplo, mais que um simples estudo esotérico.
Configura-se como um tratado de teosofia onírica. A linguagem visionária acentua
o tom de exortação à proporção que o texto se aproxima do epílogo. A narrativa dessas
espantosas experiências conclui-se com Nerval tendo a convicção de que as provações
de sua descida aos infernos o purificaram de suas faltas.
Ao julgar-se curado, o poeta escreveu
aos amigos da Société des Gens de Lettres, para que o ajudassem a convencer o Dr.
Blanche a liberá-lo. Sua tia, Jeanne Lamaure, viúva do irmão de seu pai, comprometeu-se
a acolhê-lo em sua casa. Nerval relatou aos amigos que se sentia feliz pelas convicções
adquiridas nas provações que atravessou naquela descente aux enfers. Pôs-se a perambular de novo por seus lugares prediletos.
Anunciava que cumpriria sua missão de restabelecer a harmonia universal, evocando
as forças ocultas de diversas religiões.
A morte da mulher de Arsène Houssaye,
Stephanie Bourgeois, que não cessava de auxiliar Nerval, abalou-lhe mais ainda os
nervos, provocando-lhe nova crise de ansiedade.
Continuo
a caminhada, pela rue do Louvre, até Les Halles, em face da grandiosa igreja de
Saint-Eustache, de um lado gótica e do outro românica. A três quadras dali está
a casa onde nasceu Nerval. Les Halles é hoje uma praça com bancos de cimento e um
grande shopping de sofisticadas lojas. No tempo do poeta, era um grande mercado
popular, cheio de bares e restaurantes, que ele descreve com tanta argúcia e graça.
Num bem-aventurado
transe, atravessei a pé as agitadas ruas de Montmartre e cheguei às beatíficas emanações
aquáticas do Sena. Inebriante luz. Água sedativa. Sereno encantamento. Lua de fevereiro.
Prateada cordilheira.
Estou de novo, como ontem, no quai de l'Horloge,
diante das torres cônicas da Conciergerie, imenso prédio que abriga hoje o Palácio
da Justiça francês. Na esquina do boulevard du Palais, vejo o relógio arcangélico
de áureos frisos, coroado de miríficas figuras. Do outro lado da extensão fluida
do rio de Paris, diviso os pináculos da tour Saint-Jacques, de caprichosos relevos,
a place du Châtelet, com o anjo dourado, de asas e braços abertos e o Théâtre de
la Ville, que fica onde existira a rue de la Vielle-Lanterne, o covil fatídico onde
Gérard de Nerval se matou, enforcando-se num poste, numa escura madrugada fria,
aos 47 anos de idade.
Gautier o encontrou, em janeiro de
1855, uma semana antes de sua morte, na redação da Revue de Paris. Ao vê-lo mal agasalhado, ofereceu-lhe um paletó. Nerval
agradeceu, dizendo: duas camisas me bastam,
e o frio é tônico… Os lapões nunca ficam doentes.
No dia 25 de janeiro de 1855, ele
deixou escrito um bilhete à sua tia, para que não o esperasse, pois a noite seria
noire et blanche: Ma bonne et chère tante, dis à ton fils qu’il
ne sait pas que tu es la meilleure des mères et des tantes. Quand
j’aurai triomphé de tout, tu auras ta place dans mon Olympe, comme j’ai ma place
dans ta maison. Ne m’attends pas ce soir, car la nuit sera noire et blanche.
Em seguida, pediu emprestados sete
sous a seu amigo Asselineau e, no fim
da tarde, tentou, em vão, encontrar Arsène Houssaye, no Théâtre Français (também
conhecido por Comédie-Française). Jantou num cabaret de Halles. Revia as provas
de Aurélia, naquela gelada e fatídica
madrugada de 26 de janeiro de 1855, quando foi encontrado naquele beco escuro e
sórdido da Vielle-Lanterne, onde se refugiavam
os mendigos, pendendo num poste. Trajava casaco preto, calças verdes e polainas
cinzas. Tinha 47 anos de idade e levava no bolso algumas páginas manuscritas do
seu fabuloso livro Aurélia. Seu corpo
foi velado na Notre-Dame e o enterro, no Père Lachaise, foi pago por Gautier e Houssaye.
Quando de minha primeira viagem de
estudos, visitei o Théâtre de la Ville para saber se havia ali algum resquício de
lembrança do triste acontecimento. Um funcionário do teatro me informou, gentilmente:
il n’y a aucun repère.
Quando Gautier publicou o perfil biográfico
de Nerval, doze anos depois do trágico episódio, a triste ruela da Velha Lanterna
já não existia, fato que, para Théophile Gautier, constituía um alívio, pois chorava
sempre, ao passar em frente ao macabro lugar. Hoje ninguém mais se recorda de que,
no exato local da autoinflição de Nerval, encontra-se o Theâtre de la Ville. Ponho-me
a refletir, angustiosamente, sobre a força terrível que destruiu o maravilhoso Gérard
num covil de horrores, na madrugada do seu desespero, ali diante da torre Saint-Jacques,
símbolo dos peregrinos, guia dos poetas.
Nerval nos legou extraordinário tesouro
literário, cuja escrita nunca se interrompeu, nem mesmo nas mais agudas crises.
Sua existência e sua obra questionam o conceito de doença mental. Ele tornou inseparáveis
a noção de poderes psíquicos e desequilíbrio mental. Eliminou a fronteira entre
as visões do sonho e a imortalidade da alma.
Agulha Revista de Cultura
Número 225 | março de 2023
Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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