Fui pela cidade, em busca do itinerário residencial
de Baudelaire. Sabendo que não teria tempo de encontrar todas as moradas do meu
ídolo (cerca de quarenta) e que algumas já não existem como antes eram, consegui,
porém, vislumbrar algumas delas, o que deixou marcas em minha consciência.
Eis que, com suas pontes como criptas, o Sena se afigura semelhante a um
templo de outras eras. Exibe um ritual em que os barcos são hierofantes que celebram
uma espécie de sacrifício à cidade. Quando descemos as escadas que nos possibilitam
sentar em sua ribeira de pedras e acompanhar seu ritmo inebriante, o Sena exibe
o rastro cadencioso que os barcos desenham no seu leito. Ora estreitando, ora expandindo
seus meandros, ele vem esguio da lateral de Notre-Dame para alargar-se sobre a Pont
au Change, de onde se desvendam a beleza da catedral e, no ângulo lateral, o arcanjo
Saint-Michel em seu nicho estatuário.
Do quai des Grands Augustins, percorro a estreita rue Séguier para derivar
pela não menos estreita rue Saint-André-des-Arts, onde um menino de nome Charles
Baudelaire teve residência no número 50, aos seis anos, em 1827, após a morte de
seu pai.
Vê-se, pela fachada, que o prédio teve sua face refeita, mas a disposição
das janelas estreitas e retangulares não esconde a antiguidade típica dos edifícios
desta área milenar de Paris, que tem por característica a estreiteza das ruas. A
porta azul do edifício tem grades em xadrez e, no térreo, localiza-se uma cafeteria
com o estranho nome de Malongo.
Quando sua família regressou de Lyon a Paris, Charles-Pierre Baudelaire estudou,
a partir de 1836, no collège Louis-le-Grand, na rue Saint-Jacques,123, fundado por
jesuítas em 1563. Outrora teve a denominação collège de Clermont, educandário que
esteve em conflito com a Sorbonne, até ser absorvido em sua orientação didática
pela Universidade de Paris. No collège Louis-le-Grand, ingressara também Victor
Hugo em 1813.
Aconteceu ali um incidente que revela o caráter insubmisso do jovem Charles:
intimado por um professor a entregar um bilhete que um de seus colegas lhe passara,
não só se recusou a fazê-lo, como rasgou e engoliu o papel. O assunto foi alvo das
reprimendas que recebeu de seus pais e motivo de sua mudança para o collège Saint-Louis.
Depois
de cruzar os grandes pavilhões do Louvre, coroados de cúpulas e torres, palmilhei
as margens do Sena, que descortinam os pináculos gloriosos de Paris, e fui desvendando
as maravilhas do caminho: à altura da pont des Arts, a cúpula dourada do Institut
de France, a vista do Sena, repartido em duas vertentes, forjando a lendária Île
de la Cité, com perspectivas cativantes da Pont-Neuf, da Conciergerie, pegada ao
Palais de Justice, do Châtelet, da torre Saint-Jacques, do Hôtel de Ville e de Notre-Dame.
E, além da interseção da pont d’Arcole, ilha adentro, o olhar se prolonga até onde
o quai de Montebello muda de nome e se transforma em quai de la Tournelle.
Chego
à Librairie Bibliothèque Ideal, na rue de la Bucherie, esquina com rue de l’hôtel
Colbert, a qual, na viagem anterior, encontrei fechada. Vi, de novo, na vitrine,
os mesmos livraços que narram biografias de grandes poetas: Nerval, Artaud, Saint-John
Perse, Pierre-Jean Jouve e outros, publicados pelas Éditions Aden, obras que não
se encontram em nenhuma outra livraria da cidade. Por mais que eu insistisse com
o livreiro, ele foi inflexível, ao se recusar a me vender os livros, alegando que
aquelas edições estavam esgotadas e que somente pela internet eu conseguiria comprá-las.
Saí
desconsolado e me reconfortei com um café duplo, na esquina da rue des Bernardins.
Fui, no itinerário das residências de Baudelaire, na Île de Saint-Louis, sondando
os livros e os livreiros (os tradicionais bouquinistes), de alguns dos quais me
fiz amigo.
Juntamente
com o sentimento de repúdio a seu padrasto, Jacques Aupick, oficial francês, Charles
Baudelaire nutria, desde criança, uma nostalgia enraizada de seu pai, François Baudelaire,
que falecera em 1827. Ele sabia que seu pai, que era pintor e o levava ao Jardim
do Luxemburgo para ver as estátuas, seguramente compreenderia os tormentos de sua
sensibilidade. Já na fase posterior à adolescência, Baudelaire abandona a Escola
de Direito e demonstra absoluta falta de vocação pragmática. A tendência irrefreável
à extravagância era um agravante para sua inadaptação à maioria das convenções da
sociedade burguesa. Contraiu tantas dívidas, que o seu padrasto, para ver-se livre
do enteado indesejado, o despachou num navio para Calcutá. Os custos foram descontados
de parte da herança que o seu pai lhe legara e que ele só receberia na totalidade
quando chegasse à maioridade. A aventura terminou na Ilha Mauricio, onde ele viveu
a experiência de um quase naufrágio e desfrutou de encantados entretenimentos com
uma dama crioula.
No
trajeto de regresso, Baudelaire ele escreveu, entre outros, o famoso poema L’albatros, em que compara o poeta à grande
ave que, em seu voo, enfrenta a tempestade, mas mal consegue andar, por causa de
suas enormes asas. O poema foi inspirado na proeza estapafúrdia em que constituiu
sua briga de murros com um marujo que maltratou perversamente um albatroz capturado
pela tripulação.
De
regresso a Paris, Baudelaire manteve-se fiel ao ideário de sua vocação. Com elixires
inebriantes e a lânguida vertigem dos violinos, aliviava o peso da existência (Il faut être toujours ivre). Sob o teto de
bruma noturna, rei do país chuvoso da imaginação (à qual subordinou todas as faculdades
da alma), sondava os vestígios do passado luminoso e aliviava o fardo do Tempo com
poesia, vinho ou virtude. Pródigo e caprichoso no bizarro gosto estético, patrocinava
suntuosas festas. Extasiava-se com a sensação da correspondência entre os perfumes,
as cores e os sons.
O
Sena alarga os braços numa expansão perdulária. Cruzo a ponte e, do outro lado,
chego ao quai de Béthune, onde morou Baudelaire em 1842, no número 10, após chegar
à maioridade, receber um percentual da herança do pai e abandonar o curso de Direito
para dedicar-se exclusivamente às letras.
Mais
de cem anos depois, Francis Carco morou também na Île Saint-Louis, no prédio de
número 18, quase em frente à Pont Sully. Na sequência do quai de Béthune, vejo o
número 24, onde uma placa informa que ali residiu Georges Pompidou, de 1969 a 1974.
Mais adiante ainda, vejo o número 36, onde habitou Marie Curie, de 1912 a 1934.
A
numeração do quai de Béthune, atualmente, começa pelo número 12, na esquina do boulevard
Henri IV. A mudança ocorrida na sequência da numeração e na estrutura dos imóveis
me transmite a melancolia de saber que, de toda a riqueza do sentimento e da perspectiva,
só existe o momento que passa. Resta-me, contudo, a alegria de viver sem sentir
que o momento está passando.
O
poeta perdulário colecionava obras de arte, sofás e mesas de estilo antigo, que
comprava por alto valor pecuniário. Foi dissipando a fortuna herdada, e a família
constituiu um conselho judicial para lhe tutelar os recursos, o que lhe equivalia
a um regresso à menoridade.
O
salário que o curador lhe dava era de apenas 200 francos mensais, insuficiente para
a vida de poeta boêmio, comprador de roupas, móveis e obras de arte de alto custo.
Apaixonara-se pela mulata haitiana Jeanne Duval, que a família rejeitava. Para Jeanne Duval, escreveu o magnífico poema Les bijoux, de belas metáforas: la
très chère était nue, et connaissant mon coeur, elle n’avait gardé que ses bijoux
sonores. Este, aliás, foi um dos textos que a censura proibiu, quando
da publicação de Les fleurs du mal.
Tenho
a sensação de que o Sena caminha comigo, deslizando alegremente. Cada minuto é precioso à beira-rio, do quai des Celestins
ao quai d’Anjou, nº 17. Encontro ali o velho e famoso hôtel Pimodan, com
suas grandes grades douradas na metade da fachada. O
apartamento onde o mestre dos poetas malditos se alojou de 1843 a 1845, no terceiro
andar, com janela para o Sena, era decorado com quadros de Émile Deroy e uma cópia
do retrato que lhe pintara Delacroix. Ali Baudelaire conheceu Théophile Gautier.
Com ele, Nerval, Balzac e outros, fundou o marginal Clube dos Hashischins. Nesse
legendário Pimodam, recebeu, certa feita, Théodore de Banville, num almoço servido
à maneira aristocrática.
Na primeira vez que passei em frente àquela antiga
e vistosa fachada, em 2012, era de noite, e constatei que só havia uma lâmpada acesa
numa das janelas do térreo, estando os demais andares em total escuridão. O Pimodam
já mudara de nome e se chamava então hotel Lausun. Já no início de 2018, passei
por lá de tarde e vi uma pequena indicação registrada na parede, informando que
atualmente funciona ali o Institut d’Études Avancées (IEA).
O
sonhador imaginava caprichosas fantasias, cultivava uma cabeleira verde e usava
gravatas vermelhas. Sentia o spleen de Paris: je suis un cimetière abhoré de la lune. Deplorava
o tédio (fruit de la morne incuriosité)
nos dias nebulosos, que suscitavam la triste
voix d’un fantôme frileux e o drapeau
noir da angústia. Nos dias ensolarados, saía pela cité, tropeçando em palavras, ao ritmo dos versos que escrevia: trébuchant sur les mots comme sur les pavés,/heurtant
parfois des vers depuis longtempos rêvés (Le Soleil).
Morou em três
endereços na Île Saint-Louis, o lugar mais charmoso de Paris. O local irradia uma
atmosfera de quietude e sonho e nos convida a imaginar os
poetas de outrora, contemplando as águas frementes e serenas e o trânsito marcial
dos barcos. Philippe Soupault também morou ali, no quai de Bourbon. A Île Saint-Louis
está conectada à Île de la Cité pela Pont Saint-Louis. Esses dois braços de terra
que o rio Sena desenha com seu encanto mágico.
O
vento nebuloso vem ao meu encontro, arrastando folhas secas. A rue Le Regrattier
(nome do engenheiro que construiu as vivendas da ilha
de Saint-Louis) é estreita e tem apenas duas quadras. Cruza, perpendicularmente,
o quai de Bourbon. É um corredor sereno que atravessa
a ilha, horizontalmente, de ponta a ponta. No número 6, prédio esguio e longilíneo,
de 3 janelas por andar, imprensado entre os outros edifícios. Ali Baudelaire, o
insular, instalou-se com sua musa Jeanne Duval, a haitiana. Por toda essa área idílica,
ele passeava o seu spleen. Nesse domicílio, no dia 30 de janeiro de 1845, angustiado
pela pressão dos credores, enfermo de sífiles e deplorando o relacionamento com
o padrasto, ele tentou se matar com uma facada no peito. Desmaiou e foi socorrido
por Jeanne Duval. Aquele momento difícil inspirou o poema em que ele pede piedade
a Satã pelos infortúnios que o assediavam.
Por
sobre a Pont de la Tournelle, que tem, como ícone, a estátua de Sainte-Geneviève
numa coluna, olho à direita e vejo Notre-Dame, maciço bloco de arestas feéricas.
Na sequência da ponte, começa a rue Cardinal Lemoine, onde morou Verlaine. Do outro
lado da Île Saint-Louis está o quai d’Orléans.
Cruzo
a Pont Saint-Louis e vejo o arcabouço esplêndido da catedral. Paris é um labirinto
circular que me conduz aos mesmos lugares, diferentes cada dia e cada instante.
Rue du Cloître Notre-Dame: giro num carrossel mágico, estonteado de júbilo.
Depois
da convalescença no apartamento dos pais, na place Vendôme, ele promete cingir-se
à disciplina que o padrasto solicita e se inscreve na Escola de Diplomacia, mas
logo a vida dissoluta o fará repelir toda sorte de profissão formal da sociedade
burguesa.
Em
sua flânerie, Baudelaire contemplava as
nuvens do céu lívido, cruzando as pontes, em direção aos cafés da place du Châtelet.
Imergia nas noites, para encontrar os amigos pintores e poetas, com os quais consumia
elixires e saboreava êxtases vagabundos nas tabernas. O seu talento para conceber
metáforas e sinestesias surpreendentes despertaria admiração e inveja.
Em
1845, ele mora na rue Laffitte, 32, no hôtel Dunkerque, no quartier de Notre-Dame-de
Lorette, onde se encontrava com os amigos Gautier e Nerval, na braserie des Martyres,
rue Notre Dame-de-Lorette. Frequentava também o café Divan, na rue Le Peletier,
nº 5, espaço que foi engolido pela construção do banco BNP Paribas.
Em
fevereiro de 1848, durante a insurreição que derrubou o regime de Luís Felipe de
Orleans, Baudelaire foi visto entre as trincheiras favoráveis à República, pedindo,
a gritos, o fuzilamento do seu padrasto: Il
faut aller fusiller le general Aupick. A República de fevereiro foi elogiada
por ele, em artigo no jornal Salud public,
que ele fundara com seu amigo Champfleury, romancista e crítico de arte. O poeta
não sabia que aquela vitória contra a aristocracia corrupta, que elevou ao poder
o grande Lamartine, degeneraria, em 1851, na ditadura de Louis-Napoléon Bonaparte,
cujo exército massacrou milhares de trabalhadores.
Quando
o sobrinho de Napoleão deu o golpe de Estado que estabeleceu o Segundo Império e
que forçou Victor Hugo a exilar-se, Baudelaire desafiou a ditadura, andando pelas
ruas entre as descargas dos fuzis. Quando um plebiscito legitimou o regime autoritário,
ele decepcionou-se tanto, que decidiu viver permanentemente despolitizado.
Quando
tomou conhecimento da morte de Nerval, em 1855, Baudelaire lamentou a ausência daquele
espírito inteligente e lúcido. Mostrou-se
perplexo ao referir-se à profunda melancolia do amigo, curável somente com o suicídio.
E defendeu o direito humano de renunciar à vida. No poema Voyage à Cythère, dedicado a Gérard de Nerval, diz num verso: ridículo enforcado, tuas dores são as minhas.
Cythère é a ilha de Vênus, deusa predileta de Nerval. O tema foi inspirado num trecho
de Voyage en Orient, de Nerval, que diz
haver avistado, na ilha das pedras de pórfiro,
um enforcado, cujo corpo era devorado por abutres.
A quadra onde morou Baudelaire está diante de um trecho largo do Sena, que
flui sua água verde, tremulando na correnteza. Há, na mesma quadra, na esquina do
quai Voltaire com a estreita rue de Beaune, a referência ao lugar de nascimento
de Voltaire, no número 27.
O hôtel quai Voltaire, de três estrelas, tem, na entrada elegante, o nome
do estabelecimento gravado em letras douradas sobre a porta larga e envidraçada.
Tem dois candelabros de cada lado da porta. Do lado direito, uma placa que lista
os hóspedes ilustres ali recebidos: além de Charles Baudelaire, Jean Sibelius, Richard
Wagner e Oscar Wilde. Abaixo dessa placa existe outra, onde estão gravados os versos
alexandrinos de um quarteto do poema “Le crépuscule du matin”:
L’aurore
grelottante en robe rose et verte,
s’avançait
lentement sur la Seine déserte
et
sombre Paris, en se frottant les yeux
empoignait
ses outils, vieillard laborieux.
Quando Baudelaire ali morava, aconteceu, em fevereiro de 1858, o incidente
com o notário Ancelle, seu tutor financeiro. Ao tomar conhecimento de que Ancelle
visitara o hotel, para bisbilhotar sua vida, o poeta o ameaçou, prometendo dar-lhe
uns safanões, e exigiu um pedido de desculpas. O notário se desculpou, evitando
assim enfrentar-se em duelo com aquele rapaz emocionalmente instável, que já em
1845, declarara ao mesmo interlocutor sua intenção de se suicidar e que permaneceria
constantemente au bord du suicide, como
confirmaria em carta à sua mãe, em 1861.
Hoje, diante do Sena que flutua docemente, borbulhando em pequenas ondas,
deleito-me com a visão límpida das duas pontes, do deslizar ribeirinho e da numismática
gravada nas paredes do Louvre. Tenho a companhia tranquila de alguns passantes ociosos,
que comigo dividem a perspectiva dos arcos das pontes que ligam, de margem a margem,
o quai Voltaire ao quai François Mitterand, o qual ladeia a lateral do Louvre, que
por sua vez empina seus simétricos ápices.
De
quando em quando, um barco agita as ondas do rio que quebra nas pedras, murmurando
a sua percussão. É preciso deixar que passem os barcos e as pessoas para aliviar
a bexiga no tronco de um grande plátano.
Cruzo a ponte do Carrousel
e adentro um dos portais do Pavillion Lesdiguières. O palácio-museu exibe as filigranas:
frisos nas colunas, o traçado impecável dos arcos, as estátuas como guardiãs e os
grandes escudos esculpidos nas cúpulas, ao redor das janelas. No solo, o brônzeo
pedestal de Luis XIV em seu cavalo, as pirâmides transparentes da entrada ao subterrâneo,
as fontes e os espelhos de água. Vejo que toda essa área monumental está sempre
repleta de muitos transeuntes que se enfileiram para ver os prodígios civilizacionais
ali guardados.
No
dia 17 de fevereiro de 2019, fui, na trilha de Baudelaire, até a famosa place Pigalle.
A escada do metrô sai dentro do emblemático logradouro onde estão o tradicional
Moulin Rouge e os demais concert clubs
ou cabarets. Pelo lado esquerdo da saída
da estação do metrô, chego à rue Pigalle, 60 (Jean-Baptiste Pigalle foi um escultor,
que viveu de 1714 a 1785).
O
prédio onde Charles Baudelaire morou, de 1852 a 1854, de três pisos e cobertura,
com quatro janelas em cada andar, está localizado a uma quadra do metrô. A construção
está um pouco desmejorada, como se diz
em espanhol. Ao tempo do grande bardo de Les Fleurs du Mal, devia ter uma melhor
aparência. Ele se mudou dali porque não tinha condições de pagar o aluguel.
Entre
1854 e 1855, Baudelaire instalou-se no hôtel du Maroc, no número 57 da rue du Seine.
Em abril de 1857, o general Aupick morre aos 66 anos. Baudelaire consola a mãe e
acompanha as exéquias do padrasto, ex-embaixador da França e ex-Senador do Império.
Baudelaire
foi residir, de 1858 a 1859, com Jeanne Duval na rue Beautrellis, nº 22. Foi nesse
período que ele publicou o livro Theophile
Gautier, para o qual pediu prefácio a Victor Hugo, que lhe enviou generosa resposta,
confirmando que o seu Les fleurs du mal
havia dotado o céu da arte de um raio macabro.
Chamou-o de nobre espírito e elogiou também Gautier, terminando a carta com um afetuoso
dê-me sua mão.
Na place de la Bastille reluz o arcanjo dourado
sobre a verde e esguia colonne de Juillet.
A praça está situada onde existiu a prisão
da Bastilha que os cidadãos tomaram de assalto e destruíram em nome da Revolução,
em 1789.
Pela rue Saint-Antoine, discorrendo os encantamentos
do velho Marais, vejo o Temple Sainte-Marie-des-Anges, edificado de 1632 a 1634,
que já foi convento das visitandines e
hoje está consagrado ao culto protestante. Antes de chegar ao hôtel de Sully e à
vetusta, barroca e vertical Saint-Paul, igreja construída entre 1627 e 1641 (cuja
cúpula serviu de modelo para a do hôtel des Invalides), visito o que restou da antiga
morada de Baudelaire, na rue Beautrellis, 22, de largo portal vermelho e três andares
de grandes janelas. Vizinho, há o Théatre Espace Marais.
No regresso, meto-me escada abaixo, nas encruzilhadas do metrô. Cada minuto
é uma coisa em si, em Paris. Perdi o trem por dois segundos. O próximo não tardará.
Viajar sentado é quase o supremo bem. Vai lenta e ruidosa a máquina deslizante.
A
vida de Baudelaire em Paris torna-se cada vez mais complicada. Recrudescem as perseguições
dos credores. Ele tarda pouco tempo na rue Beautrellis. Passa uma temporada com
sua mãe em Honfleur, onde descansa das andanças e dos trabalhos intelectuais. De
regresso, hospeda-se no hôtel Dieppe, na rue d’Amsterdam, nº 22.
Descendo
a ladeira da rue d’Amsterdam, encontrei o hotel onde Baudelaire esteve hospedado
de 1859 a 1864, depois do processo contra Les Fleurs du Mal e do seu regresso de
Honfleur. O imóvel ainda existe, nas proximidades da Gare Saint-Lazare. É um prédio
de cinco andares, de aspecto antigo, com fachada de relevos e varandas com grades
nas janelas. Aquele período, em que ele fugia dos credores
e dos censores, foi sobremodo difícil para o sensível poeta, que se aborrecia
profundamente com a mínima contrariedade.
Quando
em julho de 1857 o procurador-geral determinou a apreensão de todos os exemplares
de Les fleurs du mal, Baudelaire pediu
ajuda a Sainte-Beuve, que saiu pela tangente, e a Flaubert, que lhe manifestou solidariedade
e elogiou a originalidade e o romantismo renovado do livro. Hugo também lhe foi
solidário, afirmando que suas flores brilhavam como estrelas e suscitaram um novo
frisson na poesia vigente.
Enquanto
pôde desfrutar de experiências enteógenas e escrever sua radiante literatura, Baudelaire
cantou com afã paisagem urbana de Paris:
Les tuyaux, les clochers, ces
mâts de la cité,
et les grands ciels qui font
rêver d’éternité.
No
poema Le Cygne, dedicado a Victor Hugo,
deplorava as reformas empreendidas pelo dinâmico Haussmann. Assim ele se refere
às mudanças por que passou a velha Paris:
Le vieux Paris n’est plus la
forme d’une ville.
Change plus vite, hélas! Que
le coeur d’un mortel.
(...)
Paris change! mais rien dans
ma melancolie
n’a bougé! Palais neufs, échafaudages,
blocs,
vieux faubourgs, tout pour moi
devient allégorie,
et mes chers souvenirs sont
plus lourds que les rocs.
Baudelaire
queixava-se à sua mãe do comportamento de Jeanne Duval, sem cultura e teimosa, com
sua mania de criar cães, enquanto ele adorava gatos. Por fim, separou-se da haitiana,
que, tempos depois, ficou hemiplégica. Ele não deixou, no entanto, de ajudá-la,
levando-lhe sempre uma parte dos seus escassos recursos financeiros.
Dirigiu
sua atenção a outras musas, como a Mme. Sabatier, também conhecida por Apollonie
e apelidada por Gautier de la Présidente,
a quem dedicou poemas eróticos e cartas apaixonadas, em que a chamou de a mais preciosa das superstições.
Na
casa da Présidente, rue Frochot, 4, Baudelaire
encontrava Flaubert, Barbey d’Aurevilly, Gautier, os irmãos Goncourt e outros, que
compareciam aos jantares de domingo da cortejada anfitriã, a qual tornou-se sua
amante.
Em favor de Marie Daubrun ele não hesitou em pedir, sem
êxito, a George Sand, que ele antipatizava, para que sua predileta trabalhasse numa
peça da consagrada escritora. A decepção de não haver logrado seu intento o afastou
da atriz que, confirmou o que era voz corrente: que já era presa do parnasiano Banville.
No
tempo em que morou na rue d’Amsterdam, Baudelaire
frequentou os ateliês dos amigos pintores: Manet, na rue Lavoisier, o qual o retratou
em La musique aux Tuileries; Delacroix,
na rue Notre-Dame-de-Lorette, que lhe pintou um retrato, e Fantin-Latour, rue Saint-Lazare,
que o incluiu em seu Hommage à Delacroix.
É famoso o seu elogio ao quadro Lola de Valence,
de Manet, hoje no museu d’Orsay, em cuja beleza on voit scintiller le charme inattendu d’un bijou rose et noir.
Foi
também quando morava na rue d’Amsterdam que ele se candidatou, em 1862, à Académie
Française, na expectativa de compensar tantas provações e amarguras. Em vão, visitou
os acadêmicos, que o receberam friamente, com exceção de Lamartine, Vigny, Flaubert
e Sainte-Beuve. Este último, que foi o mentor de sua candidatura, aconselhou-o,
por fim, a desistir, já que os acadêmicos não admitiriam um poeta maldito entre
seus pares.
Indaguei o preço da estada no hôtel Opéra Dieppe e a moça simpática da recepção
me disse que custava apenas 57 euros, mas poderia aumentar, em função da temporada.
Falei de Baudelaire, e ela me mostrou a foto do poeta num cantinho, ao pé da escada,
como um pequeno oratório. Fotografei a imagem do autor de Les Fleurs du Mal e elogiei o hotel, por preservar a memória do grande
poeta. Prometi que me hospedaria ali (se o preço continuasse convidativo) quando
viesse, na próxima vez, a Paris. Fotografei também o prédio, de cinco andares, de
aspecto antigo, com relevos na fachada e grades nas varandas.
A
carta que escreveu a Victor Hugo, em 23 de setembro de 1859, transcrita no livro
de Gérard Macé, Les auteurs de ma vie, é
um documento essencial para se compreender o caráter do poeta maldito. Ele pede licença para publicar o comentário do mestre
Hugo sobre suas Flores do Mal: preciso de uma voz mais alta que a minha; uma
crítica sua é uma carícia e uma honra. E augura o regresso do grande exilado,
que curaria a nostalgia com apenas um dia na triste e tediosa Paris.
A
respeito de Paris, Baudelaire escreveu coisas pejorativas sobre aspectos de suas
ruas e cidadãos. No comentário que fez sobre Les cariatides, de Théodore de Banville, classificou a cidade como uma Cafarnaum, uma Babel, povoada de imbecis
e inúteis, conforme testemunha Antoine Compagnon, em seu livro Baudelaire, l’Irréductible.
No
epílogo da edição de 1861, de Les fleurs du
mal, escreveu: Je t’aime ô capitale infâme!,
e no poema em prosa À une heure du matin,
ele chamou Paris de horrible ville. Comparou a cidade a um imenso formigueiro, no poema Les sept veillards: fourmilleante
cité, cité pleine de rêves/où le spectre en plein jour raccroche le passant/ Les
mystères partout coulent comme des sèves/ dans les canaux étroits du colosse puissant.
Em Les aveugles, refere-se a uma
cidade impiedosa: …ô cité! Pendant qu’autour de nous tu
chantes, ris et beugles, éprise du plaisir jusqu’à l’atrocité.
Sua
indisposição em relação a Paris reflete as bizarrias neuróticas de um misantropo,
avesso às conglomerações humanas. Os sintomas intermitentes da sífilis e o longo
e permanente consumo de haxixe foram minando suas energias e seu sentido de humor.
Dignas
de nota são duas das missivas enviadas à sua mãe, Madame Aupick, que morava em Honfleur.
Numa delas, datada de 11 de outubro de 1860, ele confessa suas angústias, seu orgulho,
sua raiva selvagem contra os homens e sua preocupação com a situação dela e de Jeanne,
depois que ele morresse. Pede a ela que não abandone Jeanne, após o pagamento de
suas dívidas, caso ele, por acidente, doença ou desespero, encontre-se desembaraçado
do tédio de viver. Diz que alugou um pequeno apartamento em Neuilly para não morar mais em hotéis. Declara
ter consciência de que sua literatura se venderá bem um dia, se a Justiça não atrapalhar
de novo. Ele não tardou muito na casa em Neuilly, na rue Louis-Philippe, onde se
instalou com Jeanne Duval. É que apareceu por lá um suposto irmão de Jeanne, que
Baudelaire desconfiava fosse um ex-amante dela. Como não queria viver entre um esquisito e uma infeliz mulher de cérebro
enfraquecido, mudou-se dali, regressando ao hôtel Dieppe.
Na
outra carta, citada no mesmo livro e datada de 6 de maio de 1861, ele confessa o
estado de penúria espiritual em que vivia, desde 1844. Lamenta os horrores da vida:
está arrasado por afecções nervosas e pelas sequelas da varíola que teve na infância,
que lhe marca a pele com manchas e provoca lassitude nas articulações. Queixa-se
da educação atroz que seu padrasto lhe impôs e do conselho judiciário que lhe tutela
o dinheiro. Fala em suicídio e reitera plena consciência de seu valor como escritor:
je gagnerai peu d’argent, mais je laisserai
une grande célébrité, je le sais.
Les paradis artificiels,
livro de 1860, nasceu de uma proposta que Baudelaire apresentou à La Revue contemporaine de escrever textos
inspirados em Thomas De Quincey, sobre experiências com o ópio, o haxixe e o vinho.
Tendo como modelo Confissões de um consumidor
de ópio, o poeta analisou, criteriosamente,
os efeitos dessas substâncias sobre o psiquismo humano, contribuindo para o estudo
científico de seus princípios ativos sobretudo no tocante à sua utilização como
indutores da imaginação e da criatividade artísticas.
Em
seu livro sobre Baudelaire, Gautier compara o amigo a um gato voluptuoso, de maneiras aveludadas e de olhar sem perfídia (ao
contrário da cara sisuda, de olhar direto e feroz, que transmite a foto de Étienne
Carjat, feita em 1863). Comenta o seu gosto pelo luxo bizarro e pela elegância misteriosa.
Elogia os rebuscamentos e as tonalidades selvagens de As Flores do Mal, destacando a capacidade do autor de denunciar os aspectos
sórdidos da vida, cantando os cabarés, onde bêbedos brigam a facadas por alguma
Helena de esquina. Só Baudelaire, no entanto, tinha a extrema sensibilidade para
tantos arroubos de beatitude, êxtases e volúpias de perfumes inebriantes.
Baudelaire
fez conferências em Bruxelas, em 1864, sobre Delacroix, Gautier e Thomas de Quincey.
A plateia reduzida, de espírito burguês estreito o irritou e o fez detestar os belgas
e abominar a Bélgica. A ausência do editor Albert Lacroix, convidado reiteradamente,
também o aborreceu. Lacroix fizera preciosas edições para livros de Victor Hugo,
e sua recusa a publicar a obra baudelairiana foi motivo para que o insatisfeito
poeta se sentisse na Bélgica como peixe fora d’água.
Em
julho de 1865, de volta a Paris, ele encontra Catulle Mendès na Gare du Nord e pernoita
na casa do jovem poeta, na rue de Douai, número 65. Mendès testemunha que, quando
pernoitou em seu apartamento, Baudelaire disse-lhe que escreveria um poema hindu,
no qual expressaria toda a melancolia luminosa do sol, e repetiu, diversas vezes,
que Nerval nunca esteve louco, embora se tivesse enforcado. Pediu-lhe que dissesse
a todo mundo que assim havia acontecido e soluçou.
Numa
segunda viagem à Bélgica, agravaram-se os sintomas da enfermidade que lhe abreviará
a existência. Ele sofreu um desmaio na catedral Saint-Loup de Namur, que o deixou
sem voz. Desde então, fatigava-se ao falar. E sentia vertigens, apatia e sufocações.
A
doença o dominou completamente, com a paralisia do lado direito do corpo e o enfraquecimento
mental. A senhora Aupick, auxiliada pelos amigos Asselineau e Poulet-Malassis, levou
seu filho a Paris e o internou na clínica do Dr. Émile Duval, na pequena rue du
Dôme, número 1, próximo ao Arco do Triunfo. Baudelaire levou a seu quarto de enfermo
duas telas de Édouard Manet e alguns livros, que não chegou a ler. Padeceu ali acessos
de febres, convulsões, transtornos mentais e dificuldade de articular as palavras.
Essas afecções o acompanharam até à morte por afasia, no dia 31 de agosto de 1867.
Théodore de Banville, na companhia de poucos amigos, discursou diante do seu túmulo,
no cemitério de Montparnase.
O portentoso Arco do Triunfo decora magnificamente
o amplo vão da Champs-Élysées onde os carros, os plátanos e as pessoas parecem ocultar
a beleza simétrica e clara dos edifícios. É o arco pomposo em que Napoleão mostrou
a sua ambição cesárea.
Ao circundar o amplo rond-point, desemboco
na avenida Victor Hugo. Caminho até a rue du Dome, que me surpreende com sua escada.
Subo ao plano mais alto onde se vê o número 1 da citada rua, na qual uma placa informa:
Le poète Charles Baudelaire (9 avril 1821-31
août 1867) a vécu ici ses derniers jours. No entanto, o prédio elegante, de
varandas enramadas de vasos verdes que se vê ali, não é o mesmo onde o poeta adentrou
os portais do inferno, após inocular na alma o veneno da existência.
A
clínica onde ele respirou os derradeiros haustos foi substituída por outra construção.
Essa mudança decorreu das reformas que, na segunda metade do século XIX, o barão
Haussmann, préfet de la Seine, imprimiu em Paris, demolindo, reconstruindo, abrindo
grandes avenidas e modificando a fachada de muitos prédios.
Dos
tempos dos poetas do romantismo até hoje, mudaram-se os hábitos, o ritmo da vida,
a fisionomia de muitos edifícios e a numeração das ruas. Apesar de tantas mudanças,
há ainda, nas ruas de Paris, algum resquício dos brilhantes cultores da arte da
palavra que ali andaram e viveram.
Baudelaire, o dândi misantropo, que sucumbia
aos prazeres excessivos e ao charme infernal de Paris, era um ser sensível, que
se comovia, nostálgico da infância, e se elevava na ascese de sua refinada estética.
Viveu assediado pelos demônios da angústia existencial. Alma generosa, que se identificava
com o sofrimento dos humildes e oprimidos, como bem demonstram os admiráveis versos
de La Servante au grand coeur, ou de Les petites vieilles. Seu pessimismo era
uma modalidade de protesto contra a maldade dos homens. Seu orgulho não excluía
certa autocrítica em que ele reconhecia o dano que o haxixe e o ópio lhe causaram
à saúde.
Marcel
Proust, em crônica publicada, em primeira edição, em 1927, (Chroniques, L’Imaginaire), faz um belo estudo
da poesia de Baudelaire, exemplificando, por meio de comentários a alguns de seus
vigorosos versos, os motivos de sua admiração pelo grande criador de As Flores do Mal. Proust menciona, inicialmente,
os primeiros versos de Recueillement (sois sage, ô ma douleur, et tiens-toi plus tranquille),
como uma exortação dirigida à dor, numa linguagem contida, fremente, de quem estremece
de haver chorado muito.
Ao comparar Hugo a Baudelaire, Proust diz que
os diálogos do primeiro com Deus não valem tanto quanto o que o pobre Baudelaire
encontrou na intimidade sofredora do seu coração e do seu corpo.
Observa
que o amor baudelairiano difere profundamente do amor concebido por Hugo. Esse amor
aprecia na mulher antes de tudo os cabelos, os pés e os joelhos:
Ô toison moutonnant
jusque sur l’encolure.
Cheveux bleus,
pavillons de ténèbres tendus.
(“La Chevelure”)
Et tes pieds
s’endormaint dans mes mains fraternelles.
(“Le Balcon”)
Recorda, com pertinência, o grande autor de
À la Recherche du tempos perdu, que entre
os pés e os cabelos há todo o corpo. Os joelhos têm preponderância em seu gosto:
Ah, laissez-moi
le front posé sur vos genoux.
(“Chant d’Automne”)
Dit celle dont
jadis nois baisons les genoux.
(“Le Voyage”)
E com que presença de espírito filosófico distinguia
a forma da matéria!
Les soirs illuminés
par l’ardeur du charbon.
(“Le Balcon”)
Et la lampe
s’étantant résignée à mourir
Comme le foyer
seul illuminait la chambre
Chaque fois
qu’il poussait un flamboyant soupir
Il inondait
de sang cette peau couleur d’ambre.
O professor Jean-Claude Mathieu, da Universidade de Paris VIII, em seu estudo
crítico de Les fleurs du mal, contextualiza
o romantismo de Baudelaire na esfera social e existencial.
Primeiro, ressalta sua reação contra uma sociedade utilitária que substima
a consciência afetiva, subordinando-a às relações funcionais do sistema geral de
produção, que faz da obra artística uma mercadoria. De fato, ao declarar suas paixões
estéticas, o contumaz rebelde, que prezava, com absoluto fervor, Poe, Wagner e Delacroix,
não hesitava em confessar sua abominação pelo progresso que atrofia a parte espiritual
do homem.
Em
seguida, o ensaísta em perspectiva revela que o frisson nouveau que Victor Hugo detectou nas Flores do Mal provém do lirismo trágico que expressa a contradição entre
a crença no ideal estético e o tédio de viver num mundo de incertezas, que obriga
o artista a perseguir, no negativo, os derradeiros traços da transcendência: Baudelaire poursuit dans le négatif (le chaotique,
le misérable, le monstrueux, le nocturne, l’irréparable) les ultimes traces de la
transcendance, sans perdre l’espoir de reconstruire l’unité du monde par la rigueur
salvatrice de la forme, l’exactitude mathématique de la méthaphore. Radicalisé, le romantisme est
amené jusqu’au point de rupture d’où sortira la poésie moderne. Com efeito, a rêverie
baudelairiana está pungida por um surnaturalisme
que bebe no desespero, no gosto do nada e na angústia do tempo, um gosto do
infinito que se desgarra e um itinerário depravado em direção ao absoluto.
Walter
Benjamin citou, entre as virtudes poéticas de Baudelaire, o culto das imagens do
longínquo e as evocações das ilhas que emergem do mar da vida anterior ou da névoa
parisiense. Em seu ensaio Baudelaire
ou les rues de Paris, afirma que Le génie
de Baudelaire, qui trouve sa nourriture dans la mélancolie, est un génie allégorique.
Benjamin o considera o protótipo do flâneur
qui cherche un refuge dans la foule.
Henri Troyat,
o principal biógrafo de Baudelaire, estuda a personalidade contraditória do poeta,
que oscila entre o angelismo e o satanismo, entre a melancolia e a raiva. Com seu
temperamento perturbador, aspira ao belo e se compraz com o feio; quer o bem e cede
ao mal. Sua arte incisiva, mordaz, explode
em quadros macabros e evocações exóticas, nostálgicas ou místicas. Por trás das
diferentes paisagens de seu cérebro, há sempre uma imensa compaixão pela miséria
humana e uma revolta permanente contra a sociedade que invoca o Cristo. Nessas
condições, para Baudelaire – aduz Troyat, na biografia por ele escrita: a única maneira de escapar da mediocridade do
mundo era refugiar-se no sonho, com a ajuda, se preciso, das drogas e do álcool.
Henry Troyat cita como exemplo ilustrativo
do paroxismo contraditório do poeta duas cartas de Baudelaire, escritas em fevereiro
de 1858, à Madame Caroline Aupick. Na primeira, ele rogava a Deus uma vida de plenitude;
na outra, ele confessava: não quero uma reputação
honesta e vulgar, quero esmagar os espíritos, assustá-los, como Byron, Balzac ou
Chateaubriand. De resto, o traço mais determinante da genialidade de Baudelaire
era, efetivamente, essa condição paradoxal de sua personalidade. Sua escrita é,
a um tempo, um açoite e um bálsamo.
Agulha Revista de Cultura
Número 225 | março de 2023
Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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