sábado, 4 de março de 2023

MÁRCIO CATUNDA | Charles Baudelaire e as notas febris da existência

 

Charles Baudelaire nasceu em Paris em 9 de abril de 1821. A inscrição que informa sobre o seu nascimento, na rue Hautefeuille, nº 15, está afixada na parede de um impávido edifício de grandes varandas, na esquina do boulevard Saint-Germain com Hautefeuille. A entrada e a placa não ficam exatamente na esquina, mas do lado da rue Hauefeuille. Placa bastante desbotada, mas ainda guarda legível a data em que nasceu o poeta. O edifício atual, no entanto, não é o mesmo onde nasceu Baudelaire. Sua casa original foi destruída durante as demolições e construções empreendidas pelo barão Haussmann, Préfet de Seine, no período de 1853 a 1870, sob o regime de Napoleão III.

Fui pela cidade, em busca do itinerário residencial de Baudelaire. Sabendo que não teria tempo de encontrar todas as moradas do meu ídolo (cerca de quarenta) e que algumas já não existem como antes eram, consegui, porém, vislumbrar algumas delas, o que deixou marcas em minha consciência.

Eis que, com suas pontes como criptas, o Sena se afigura semelhante a um templo de outras eras. Exibe um ritual em que os barcos são hierofantes que celebram uma espécie de sacrifício à cidade. Quando descemos as escadas que nos possibilitam sentar em sua ribeira de pedras e acompanhar seu ritmo inebriante, o Sena exibe o rastro cadencioso que os barcos desenham no seu leito. Ora estreitando, ora expandindo seus meandros, ele vem esguio da lateral de Notre-Dame para alargar-se sobre a Pont au Change, de onde se desvendam a beleza da catedral e, no ângulo lateral, o arcanjo Saint-Michel em seu nicho estatuário.

Do quai des Grands Augustins, percorro a estreita rue Séguier para derivar pela não menos estreita rue Saint-André-des-Arts, onde um menino de nome Charles Baudelaire teve residência no número 50, aos seis anos, em 1827, após a morte de seu pai.

Vê-se, pela fachada, que o prédio teve sua face refeita, mas a disposição das janelas estreitas e retangulares não esconde a antiguidade típica dos edifícios desta área milenar de Paris, que tem por característica a estreiteza das ruas. A porta azul do edifício tem grades em xadrez e, no térreo, localiza-se uma cafeteria com o estranho nome de Malongo.

Quando sua família regressou de Lyon a Paris, Charles-Pierre Baudelaire estudou, a partir de 1836, no collège Louis-le-Grand, na rue Saint-Jacques,123, fundado por jesuítas em 1563. Outrora teve a denominação collège de Clermont, educandário que esteve em conflito com a Sorbonne, até ser absorvido em sua orientação didática pela Universidade de Paris. No collège Louis-le-Grand, ingressara também Victor Hugo em 1813.

Aconteceu ali um incidente que revela o caráter insubmisso do jovem Charles: intimado por um professor a entregar um bilhete que um de seus colegas lhe passara, não só se recusou a fazê-lo, como rasgou e engoliu o papel. O assunto foi alvo das reprimendas que recebeu de seus pais e motivo de sua mudança para o collège Saint-Louis.

Depois de cruzar os grandes pavilhões do Louvre, coroados de cúpulas e torres, palmilhei as margens do Sena, que descortinam os pináculos gloriosos de Paris, e fui desvendando as maravilhas do caminho: à altura da pont des Arts, a cúpula dourada do Institut de France, a vista do Sena, repartido em duas vertentes, forjando a lendária Île de la Cité, com perspectivas cativantes da Pont-Neuf, da Conciergerie, pegada ao Palais de Justice, do Châtelet, da torre Saint-Jacques, do Hôtel de Ville e de Notre-Dame. E, além da interseção da pont d’Arcole, ilha adentro, o olhar se prolonga até onde o quai de Montebello muda de nome e se transforma em quai de la Tournelle.

Chego à Librairie Bibliothèque Ideal, na rue de la Bucherie, esquina com rue de l’hôtel Colbert, a qual, na viagem anterior, encontrei fechada. Vi, de novo, na vitrine, os mesmos livraços que narram biografias de grandes poetas: Nerval, Artaud, Saint-John Perse, Pierre-Jean Jouve e outros, publicados pelas Éditions Aden, obras que não se encontram em nenhuma outra livraria da cidade. Por mais que eu insistisse com o livreiro, ele foi inflexível, ao se recusar a me vender os livros, alegando que aquelas edições estavam esgotadas e que somente pela internet eu conseguiria comprá-las.

Saí desconsolado e me reconfortei com um café duplo, na esquina da rue des Bernardins. Fui, no itinerário das residências de Baudelaire, na Île de Saint-Louis, sondando os livros e os livreiros (os tradicionais bouquinistes), de alguns dos quais me fiz amigo.

Juntamente com o sentimento de repúdio a seu padrasto, Jacques Aupick, oficial francês, Charles Baudelaire nutria, desde criança, uma nostalgia enraizada de seu pai, François Baudelaire, que falecera em 1827. Ele sabia que seu pai, que era pintor e o levava ao Jardim do Luxemburgo para ver as estátuas, seguramente compreenderia os tormentos de sua sensibilidade. Já na fase posterior à adolescência, Baudelaire abandona a Escola de Direito e demonstra absoluta falta de vocação pragmática. A tendência irrefreável à extravagância era um agravante para sua inadaptação à maioria das convenções da sociedade burguesa. Contraiu tantas dívidas, que o seu padrasto, para ver-se livre do enteado indesejado, o despachou num navio para Calcutá. Os custos foram descontados de parte da herança que o seu pai lhe legara e que ele só receberia na totalidade quando chegasse à maioridade. A aventura terminou na Ilha Mauricio, onde ele viveu a experiência de um quase naufrágio e desfrutou de encantados entretenimentos com uma dama crioula.

No trajeto de regresso, Baudelaire ele escreveu, entre outros, o famoso poema L’albatros, em que compara o poeta à grande ave que, em seu voo, enfrenta a tempestade, mas mal consegue andar, por causa de suas enormes asas. O poema foi inspirado na proeza estapafúrdia em que constituiu sua briga de murros com um marujo que maltratou perversamente um albatroz capturado pela tripulação.

De regresso a Paris, Baudelaire manteve-se fiel ao ideário de sua vocação. Com elixires inebriantes e a lânguida vertigem dos violinos, aliviava o peso da existência (Il faut être toujours ivre). Sob o teto de bruma noturna, rei do país chuvoso da imaginação (à qual subordinou todas as faculdades da alma), sondava os vestígios do passado luminoso e aliviava o fardo do Tempo com poesia, vinho ou virtude. Pródigo e caprichoso no bizarro gosto estético, patrocinava suntuosas festas. Extasiava-se com a sensação da correspondência entre os perfumes, as cores e os sons.

O Sena alarga os braços numa expansão perdulária. Cruzo a ponte e, do outro lado, chego ao quai de Béthune, onde morou Baudelaire em 1842, no número 10, após chegar à maioridade, receber um percentual da herança do pai e abandonar o curso de Direito para dedicar-se exclusivamente às letras.

Mais de cem anos depois, Francis Carco morou também na Île Saint-Louis, no prédio de número 18, quase em frente à Pont Sully. Na sequência do quai de Béthune, vejo o número 24, onde uma placa informa que ali residiu Georges Pompidou, de 1969 a 1974. Mais adiante ainda, vejo o número 36, onde habitou Marie Curie, de 1912 a 1934.

A numeração do quai de Béthune, atualmente, começa pelo número 12, na esquina do boulevard Henri IV. A mudança ocorrida na sequência da numeração e na estrutura dos imóveis me transmite a melancolia de saber que, de toda a riqueza do sentimento e da perspectiva, só existe o momento que passa. Resta-me, contudo, a alegria de viver sem sentir que o momento está passando.

O poeta perdulário colecionava obras de arte, sofás e mesas de estilo antigo, que comprava por alto valor pecuniário. Foi dissipando a fortuna herdada, e a família constituiu um conselho judicial para lhe tutelar os recursos, o que lhe equivalia a um regresso à menoridade.

O salário que o curador lhe dava era de apenas 200 francos mensais, insuficiente para a vida de poeta boêmio, comprador de roupas, móveis e obras de arte de alto custo. Apaixonara-se pela mulata haitiana Jeanne Duval, que a família rejeitava. Para Jeanne Duval, escreveu o magnífico poema Les bijoux, de belas metáforas: la très chère était nue, et connaissant mon coeur, elle n’avait gardé que ses bijoux sonores. Este, aliás, foi um dos textos que a censura proibiu, quando da publicação de Les fleurs du mal.

Tenho a sensação de que o Sena caminha comigo, deslizando alegremente. Cada minuto é precioso à beira-rio, do quai des Celestins ao quai d’Anjou, nº 17. Encontro ali o velho e famoso hôtel Pimodan, com suas grandes grades douradas na metade da fachada. O apartamento onde o mestre dos poetas malditos se alojou de 1843 a 1845, no terceiro andar, com janela para o Sena, era decorado com quadros de Émile Deroy e uma cópia do retrato que lhe pintara Delacroix. Ali Baudelaire conheceu Théophile Gautier. Com ele, Nerval, Balzac e outros, fundou o marginal Clube dos Hashischins. Nesse legendário Pimodam, recebeu, certa feita, Théodore de Banville, num almoço servido à maneira aristocrática.

 Na primeira vez que passei em frente àquela antiga e vistosa fachada, em 2012, era de noite, e constatei que só havia uma lâmpada acesa numa das janelas do térreo, estando os demais andares em total escuridão. O Pimodam já mudara de nome e se chamava então hotel Lausun. Já no início de 2018, passei por lá de tarde e vi uma pequena indicação registrada na parede, informando que atualmente funciona ali o Institut d’Études Avancées (IEA).

O sonhador imaginava caprichosas fantasias, cultivava uma cabeleira verde e usava gravatas vermelhas. Sentia o spleen de Paris: je suis un cimetière abhoré de la lune. Deplorava o tédio (fruit de la morne incuriosité) nos dias nebulosos, que suscitavam la triste voix d’un fantôme frileux e o drapeau noir da angústia. Nos dias ensolarados, saía pela cité, tropeçando em palavras, ao ritmo dos versos que escrevia: trébuchant sur les mots comme sur les pavés,/heurtant parfois des vers depuis longtempos rêvés (Le Soleil).

Morou em três endereços na Île Saint-Louis, o lugar mais charmoso de Paris. O local irradia uma atmosfera de quietude e sonho e nos convida a imaginar os poetas de outrora, contemplando as águas frementes e serenas e o trânsito marcial dos barcos. Philippe Soupault também morou ali, no quai de Bourbon. A Île Saint-Louis está conectada à Île de la Cité pela Pont Saint-Louis. Esses dois braços de terra que o rio Sena desenha com seu encanto mágico.

O vento nebuloso vem ao meu encontro, arrastando folhas secas. A rue Le Regrattier (nome do engenheiro que construiu as vivendas da ilha de Saint-Louis) é estreita e tem apenas duas quadras. Cruza, perpendicularmente, o quai de Bourbon. É um corredor sereno que atravessa a ilha, horizontalmente, de ponta a ponta. No número 6, prédio esguio e longilíneo, de 3 janelas por andar, imprensado entre os outros edifícios. Ali Baudelaire, o insular, instalou-se com sua musa Jeanne Duval, a haitiana. Por toda essa área idílica, ele passeava o seu spleen. Nesse domicílio, no dia 30 de janeiro de 1845, angustiado pela pressão dos credores, enfermo de sífiles e deplorando o relacionamento com o padrasto, ele tentou se matar com uma facada no peito. Desmaiou e foi socorrido por Jeanne Duval. Aquele momento difícil inspirou o poema em que ele pede piedade a Satã pelos infortúnios que o assediavam.

Por sobre a Pont de la Tournelle, que tem, como ícone, a estátua de Sainte-Geneviève numa coluna, olho à direita e vejo Notre-Dame, maciço bloco de arestas feéricas. Na sequência da ponte, começa a rue Cardinal Lemoine, onde morou Verlaine. Do outro lado da Île Saint-Louis está o quai d’Orléans.

Cruzo a Pont Saint-Louis e vejo o arcabouço esplêndido da catedral. Paris é um labirinto circular que me conduz aos mesmos lugares, diferentes cada dia e cada instante. Rue du Cloître Notre-Dame: giro num carrossel mágico, estonteado de júbilo.

Depois da convalescença no apartamento dos pais, na place Vendôme, ele promete cingir-se à disciplina que o padrasto solicita e se inscreve na Escola de Diplomacia, mas logo a vida dissoluta o fará repelir toda sorte de profissão formal da sociedade burguesa.

Em sua flânerie, Baudelaire contemplava as nuvens do céu lívido, cruzando as pontes, em direção aos cafés da place du Châtelet. Imergia nas noites, para encontrar os amigos pintores e poetas, com os quais consumia elixires e saboreava êxtases vagabundos nas tabernas. O seu talento para conceber metáforas e sinestesias surpreendentes despertaria admiração e inveja.

Em 1845, ele mora na rue Laffitte, 32, no hôtel Dunkerque, no quartier de Notre-Dame-de Lorette, onde se encontrava com os amigos Gautier e Nerval, na braserie des Martyres, rue Notre Dame-de-Lorette. Frequentava também o café Divan, na rue Le Peletier, nº 5, espaço que foi engolido pela construção do banco BNP Paribas.

Em fevereiro de 1848, durante a insurreição que derrubou o regime de Luís Felipe de Orleans, Baudelaire foi visto entre as trincheiras favoráveis à República, pedindo, a gritos, o fuzilamento do seu padrasto: Il faut aller fusiller le general Aupick. A República de fevereiro foi elogiada por ele, em artigo no jornal Salud public, que ele fundara com seu amigo Champfleury, romancista e crítico de arte. O poeta não sabia que aquela vitória contra a aristocracia corrupta, que elevou ao poder o grande Lamartine, degeneraria, em 1851, na ditadura de Louis-Napoléon Bonaparte, cujo exército massacrou milhares de trabalhadores.

Quando o sobrinho de Napoleão deu o golpe de Estado que estabeleceu o Segundo Império e que forçou Victor Hugo a exilar-se, Baudelaire desafiou a ditadura, andando pelas ruas entre as descargas dos fuzis. Quando um plebiscito legitimou o regime autoritário, ele decepcionou-se tanto, que decidiu viver permanentemente despolitizado.

Quando tomou conhecimento da morte de Nerval, em 1855, Baudelaire lamentou a ausência daquele espírito inteligente e lúcido. Mostrou-se perplexo ao referir-se à profunda melancolia do amigo, curável somente com o suicídio. E defendeu o direito humano de renunciar à vida. No poema Voyage à Cythère, dedicado a Gérard de Nerval, diz num verso: ridículo enforcado, tuas dores são as minhas. Cythère é a ilha de Vênus, deusa predileta de Nerval. O tema foi inspirado num trecho de Voyage en Orient, de Nerval, que diz haver avistado, na ilha das pedras de pórfiro, um enforcado, cujo corpo era devorado por abutres.

Tem importância capital para a história dos endereços dos poetas franceses esta quadra do quai Voltaire, em frente ao Louvre e ao Sena, entre as pontes Royal e du Carrousel, onde Charles Baudelaire residiu, de 1856 a 1858, no hôtel quai Voltaire, número 9 do quai Voltaire. Ali ele terminou de escrever Les fleurs du mal, tendo confiado a edição ao impressor Poulet-Malassis, que tinha sua oficina próxima àquela e que Baudelaire, de bom humor, apelidara de Coco-Malperché. Durante sua permanência no confortável hôtel quai Voltaire ele tragou o desgosto de saber que um censor, de nome Pinard, que já havia condenado Flaubert, por Madame Bovary, proibiu seis poemas de As Flores do Mal, sua obra-prima, dedicada a Théophile Gautier, Poeta impecável, perfeito mago das letras francesas, muito querido e venerado. Como se não bastasse ter seis poemas proscritos por atentatórios à moral e aos bons costumes, o poeta ainda foi obrigado a pagar 300 francos de multa.

A quadra onde morou Baudelaire está diante de um trecho largo do Sena, que flui sua água verde, tremulando na correnteza. Há, na mesma quadra, na esquina do quai Voltaire com a estreita rue de Beaune, a referência ao lugar de nascimento de Voltaire, no número 27.

O hôtel quai Voltaire, de três estrelas, tem, na entrada elegante, o nome do estabelecimento gravado em letras douradas sobre a porta larga e envidraçada. Tem dois candelabros de cada lado da porta. Do lado direito, uma placa que lista os hóspedes ilustres ali recebidos: além de Charles Baudelaire, Jean Sibelius, Richard Wagner e Oscar Wilde. Abaixo dessa placa existe outra, onde estão gravados os versos alexandrinos de um quarteto do poema “Le crépuscule du matin”:

 

L’aurore grelottante en robe rose et verte,

s’avançait lentement sur la Seine déserte

et sombre Paris, en se frottant les yeux

empoignait ses outils, vieillard laborieux.

 

Quando Baudelaire ali morava, aconteceu, em fevereiro de 1858, o incidente com o notário Ancelle, seu tutor financeiro. Ao tomar conhecimento de que Ancelle visitara o hotel, para bisbilhotar sua vida, o poeta o ameaçou, prometendo dar-lhe uns safanões, e exigiu um pedido de desculpas. O notário se desculpou, evitando assim enfrentar-se em duelo com aquele rapaz emocionalmente instável, que já em 1845, declarara ao mesmo interlocutor sua intenção de se suicidar e que permaneceria constantemente au bord du suicide, como confirmaria em carta à sua mãe, em 1861.

Hoje, diante do Sena que flutua docemente, borbulhando em pequenas ondas, deleito-me com a visão límpida das duas pontes, do deslizar ribeirinho e da numismática gravada nas paredes do Louvre. Tenho a companhia tranquila de alguns passantes ociosos, que comigo dividem a perspectiva dos arcos das pontes que ligam, de margem a margem, o quai Voltaire ao quai François Mitterand, o qual ladeia a lateral do Louvre, que por sua vez empina seus simétricos ápices.

De quando em quando, um barco agita as ondas do rio que quebra nas pedras, murmurando a sua percussão. É preciso deixar que passem os barcos e as pessoas para aliviar a bexiga no tronco de um grande plátano.

Cruzo a ponte do Carrousel e adentro um dos portais do Pavillion Lesdiguières. O palácio-museu exibe as filigranas: frisos nas colunas, o traçado impecável dos arcos, as estátuas como guardiãs e os grandes escudos esculpidos nas cúpulas, ao redor das janelas. No solo, o brônzeo pedestal de Luis XIV em seu cavalo, as pirâmides transparentes da entrada ao subterrâneo, as fontes e os espelhos de água. Vejo que toda essa área monumental está sempre repleta de muitos transeuntes que se enfileiram para ver os prodígios civilizacionais ali guardados.

No dia 17 de fevereiro de 2019, fui, na trilha de Baudelaire, até a famosa place Pigalle. A escada do metrô sai dentro do emblemático logradouro onde estão o tradicional Moulin Rouge e os demais concert clubs ou cabarets. Pelo lado esquerdo da saída da estação do metrô, chego à rue Pigalle, 60 (Jean-Baptiste Pigalle foi um escultor, que viveu de 1714 a 1785).

O prédio onde Charles Baudelaire morou, de 1852 a 1854, de três pisos e cobertura, com quatro janelas em cada andar, está localizado a uma quadra do metrô. A construção está um pouco desmejorada, como se diz em espanhol. Ao tempo do grande bardo de Les Fleurs du Mal, devia ter uma melhor aparência. Ele se mudou dali porque não tinha condições de pagar o aluguel.

Entre 1854 e 1855, Baudelaire instalou-se no hôtel du Maroc, no número 57 da rue du Seine. Em abril de 1857, o general Aupick morre aos 66 anos. Baudelaire consola a mãe e acompanha as exéquias do padrasto, ex-embaixador da França e ex-Senador do Império.

Baudelaire foi residir, de 1858 a 1859, com Jeanne Duval na rue Beautrellis, nº 22. Foi nesse período que ele publicou o livro Theophile Gautier, para o qual pediu prefácio a Victor Hugo, que lhe enviou generosa resposta, confirmando que o seu Les fleurs du mal havia dotado o céu da arte de um raio macabro. Chamou-o de nobre espírito e elogiou também Gautier, terminando a carta com um afetuoso dê-me sua mão.

Na place de la Bastille reluz o arcanjo dourado sobre a verde e esguia colonne de Juillet. A praça está situada onde existiu a prisão da Bastilha que os cidadãos tomaram de assalto e destruíram em nome da Revolução, em 1789.

Pela rue Saint-Antoine, discorrendo os encantamentos do velho Marais, vejo o Temple Sainte-Marie-des-Anges, edificado de 1632 a 1634, que já foi convento das visitandines e hoje está consagrado ao culto protestante. Antes de chegar ao hôtel de Sully e à vetusta, barroca e vertical Saint-Paul, igreja construída entre 1627 e 1641 (cuja cúpula serviu de modelo para a do hôtel des Invalides), visito o que restou da antiga morada de Baudelaire, na rue Beautrellis, 22, de largo portal vermelho e três andares de grandes janelas. Vizinho, há o Théatre Espace Marais.

No regresso, meto-me escada abaixo, nas encruzilhadas do metrô. Cada minuto é uma coisa em si, em Paris. Perdi o trem por dois segundos. O próximo não tardará. Viajar sentado é quase o supremo bem. Vai lenta e ruidosa a máquina deslizante.

A vida de Baudelaire em Paris torna-se cada vez mais complicada. Recrudescem as perseguições dos credores. Ele tarda pouco tempo na rue Beautrellis. Passa uma temporada com sua mãe em Honfleur, onde descansa das andanças e dos trabalhos intelectuais. De regresso, hospeda-se no hôtel Dieppe, na rue d’Amsterdam, nº 22.

Descendo a ladeira da rue d’Amsterdam, encontrei o hotel onde Baudelaire esteve hospedado de 1859 a 1864, depois do processo contra Les Fleurs du Mal e do seu regresso de Honfleur. O imóvel ainda existe, nas proximidades da Gare Saint-Lazare. É um prédio de cinco andares, de aspecto antigo, com fachada de relevos e varandas com grades nas janelas. Aquele período, em que ele fugia dos credores e dos censores, foi sobremodo difícil para o sensível poeta, que se aborrecia profundamente com a mínima contrariedade.

Quando em julho de 1857 o procurador-geral determinou a apreensão de todos os exemplares de Les fleurs du mal, Baudelaire pediu ajuda a Sainte-Beuve, que saiu pela tangente, e a Flaubert, que lhe manifestou solidariedade e elogiou a originalidade e o romantismo renovado do livro. Hugo também lhe foi solidário, afirmando que suas flores brilhavam como estrelas e suscitaram um novo frisson na poesia vigente.

Enquanto pôde desfrutar de experiências enteógenas e escrever sua radiante literatura, Baudelaire cantou com afã paisagem urbana de Paris:

 

Les tuyaux, les clochers, ces mâts de la cité,

et les grands ciels qui font rêver d’éternité.

 

No poema Le Cygne, dedicado a Victor Hugo, deplorava as reformas empreendidas pelo dinâmico Haussmann. Assim ele se refere às mudanças por que passou a velha Paris:

 

Le vieux Paris n’est plus la forme d’une ville.

Change plus vite, hélas! Que le coeur d’un mortel.

  (...)

Paris change! mais rien dans ma melancolie

n’a bougé! Palais neufs, échafaudages, blocs,

vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,

et mes chers souvenirs sont plus lourds que les rocs.

 

Baudelaire queixava-se à sua mãe do comportamento de Jeanne Duval, sem cultura e teimosa, com sua mania de criar cães, enquanto ele adorava gatos. Por fim, separou-se da haitiana, que, tempos depois, ficou hemiplégica. Ele não deixou, no entanto, de ajudá-la, levando-lhe sempre uma parte dos seus escassos recursos financeiros.

Dirigiu sua atenção a outras musas, como a Mme. Sabatier, também conhecida por Apollonie e apelidada por Gautier de la Présidente, a quem dedicou poemas eróticos e cartas apaixonadas, em que a chamou de a mais preciosa das superstições.

Na casa da Présidente, rue Frochot, 4, Baudelaire encontrava Flaubert, Barbey d’Aurevilly, Gautier, os irmãos Goncourt e outros, que compareciam aos jantares de domingo da cortejada anfitriã, a qual tornou-se sua amante.


Interessou-se também pela atriz Marie Daubrun, cuja simpatia já estava direcionada a Théodore de Banville, não restando a Baudelaire mais do que o ciúme. Para Marie Daubrun, ardentemente aplicada na cama, escreveu poemas como Chant d’automne, de melancólicas ressonâncias, que começa com o verso J’aime de vos yeux longs la lumière verdâtre, e Le beau navire, magnífico hino à beleza feminina, pleno de luminosas imagens, marítimas e sensuais, e que começa com je veux te raconter, ô molle enchanteresse,/ les diverses beautés qui parent ta jeunesse.

Em favor de Marie Daubrun ele não hesitou em pedir, sem êxito, a George Sand, que ele antipatizava, para que sua predileta trabalhasse numa peça da consagrada escritora. A decepção de não haver logrado seu intento o afastou da atriz que, confirmou o que era voz corrente: que já era presa do parnasiano Banville.

No tempo em que morou na rue d’Amsterdam, Baudelaire frequentou os ateliês dos amigos pintores: Manet, na rue Lavoisier, o qual o retratou em La musique aux Tuileries; Delacroix, na rue Notre-Dame-de-Lorette, que lhe pintou um retrato, e Fantin-Latour, rue Saint-Lazare, que o incluiu em seu Hommage à Delacroix. É famoso o seu elogio ao quadro Lola de Valence, de Manet, hoje no museu d’Orsay, em cuja beleza on voit scintiller le charme inattendu d’un bijou rose et noir.

Foi também quando morava na rue d’Amsterdam que ele se candidatou, em 1862, à Académie Française, na expectativa de compensar tantas provações e amarguras. Em vão, visitou os acadêmicos, que o receberam friamente, com exceção de Lamartine, Vigny, Flaubert e Sainte-Beuve. Este último, que foi o mentor de sua candidatura, aconselhou-o, por fim, a desistir, já que os acadêmicos não admitiriam um poeta maldito entre seus pares.

Indaguei o preço da estada no hôtel Opéra Dieppe e a moça simpática da recepção me disse que custava apenas 57 euros, mas poderia aumentar, em função da temporada. Falei de Baudelaire, e ela me mostrou a foto do poeta num cantinho, ao pé da escada, como um pequeno oratório. Fotografei a imagem do autor de Les Fleurs du Mal e elogiei o hotel, por preservar a memória do grande poeta. Prometi que me hospedaria ali (se o preço continuasse convidativo) quando viesse, na próxima vez, a Paris. Fotografei também o prédio, de cinco andares, de aspecto antigo, com relevos na fachada e grades nas varandas.

A carta que escreveu a Victor Hugo, em 23 de setembro de 1859, transcrita no livro de Gérard Macé, Les auteurs de ma vie, é um documento essencial para se compreender o caráter do poeta maldito. Ele pede licença para publicar o comentário do mestre Hugo sobre suas Flores do Mal: preciso de uma voz mais alta que a minha; uma crítica sua é uma carícia e uma honra. E augura o regresso do grande exilado, que curaria a nostalgia com apenas um dia na triste e tediosa Paris.

A respeito de Paris, Baudelaire escreveu coisas pejorativas sobre aspectos de suas ruas e cidadãos. No comentário que fez sobre Les cariatides, de Théodore de Banville, classificou a cidade como uma Cafarnaum, uma Babel, povoada de imbecis e inúteis, conforme testemunha Antoine Compagnon, em seu livro Baudelaire, l’Irréductible.

No epílogo da edição de 1861, de Les fleurs du mal, escreveu: Je t’aime ô capitale infâme!, e no poema em prosa À une heure du matin, ele chamou Paris de horrible ville. Comparou a cidade a um imenso formigueiro, no poema Les sept veillards: fourmilleante cité, cité pleine de rêves/où le spectre en plein jour raccroche le passant/ Les mystères partout coulent comme des sèves/ dans les canaux étroits du colosse puissant. Em Les aveugles, refere-se a uma cidade impiedosa: …ô cité! Pendant qu’autour de nous tu chantes, ris et beugles, éprise du plaisir jusqu’à l’atrocité.

Sua indisposição em relação a Paris reflete as bizarrias neuróticas de um misantropo, avesso às conglomerações humanas. Os sintomas intermitentes da sífilis e o longo e permanente consumo de haxixe foram minando suas energias e seu sentido de humor.

Dignas de nota são duas das missivas enviadas à sua mãe, Madame Aupick, que morava em Honfleur. Numa delas, datada de 11 de outubro de 1860, ele confessa suas angústias, seu orgulho, sua raiva selvagem contra os homens e sua preocupação com a situação dela e de Jeanne, depois que ele morresse. Pede a ela que não abandone Jeanne, após o pagamento de suas dívidas, caso ele, por acidente, doença ou desespero, encontre-se desembaraçado do tédio de viver. Diz que alugou um pequeno apartamento em Neuilly para não morar mais em hotéis. Declara ter consciência de que sua literatura se venderá bem um dia, se a Justiça não atrapalhar de novo. Ele não tardou muito na casa em Neuilly, na rue Louis-Philippe, onde se instalou com Jeanne Duval. É que apareceu por lá um suposto irmão de Jeanne, que Baudelaire desconfiava fosse um ex-amante dela. Como não queria viver entre um esquisito e uma infeliz mulher de cérebro enfraquecido, mudou-se dali, regressando ao hôtel Dieppe.

Na outra carta, citada no mesmo livro e datada de 6 de maio de 1861, ele confessa o estado de penúria espiritual em que vivia, desde 1844. Lamenta os horrores da vida: está arrasado por afecções nervosas e pelas sequelas da varíola que teve na infância, que lhe marca a pele com manchas e provoca lassitude nas articulações. Queixa-se da educação atroz que seu padrasto lhe impôs e do conselho judiciário que lhe tutela o dinheiro. Fala em suicídio e reitera plena consciência de seu valor como escritor: je gagnerai peu d’argent, mais je laisserai une grande célébrité, je le sais.

Les paradis artificiels, livro de 1860, nasceu de uma proposta que Baudelaire apresentou à La Revue contemporaine de escrever textos inspirados em Thomas De Quincey, sobre experiências com o ópio, o haxixe e o vinho. Tendo como modelo Confissões de um consumidor de ópio, o poeta analisou, criteriosamente, os efeitos dessas substâncias sobre o psiquismo humano, contribuindo para o estudo científico de seus princípios ativos sobretudo no tocante à sua utilização como indutores da imaginação e da criatividade artísticas.

Em seu livro sobre Baudelaire, Gautier compara o amigo a um gato voluptuoso, de maneiras aveludadas e de olhar sem perfídia (ao contrário da cara sisuda, de olhar direto e feroz, que transmite a foto de Étienne Carjat, feita em 1863). Comenta o seu gosto pelo luxo bizarro e pela elegância misteriosa. Elogia os rebuscamentos e as tonalidades selvagens de As Flores do Mal, destacando a capacidade do autor de denunciar os aspectos sórdidos da vida, cantando os cabarés, onde bêbedos brigam a facadas por alguma Helena de esquina. Só Baudelaire, no entanto, tinha a extrema sensibilidade para tantos arroubos de beatitude, êxtases e volúpias de perfumes inebriantes.

Baudelaire fez conferências em Bruxelas, em 1864, sobre Delacroix, Gautier e Thomas de Quincey. A plateia reduzida, de espírito burguês estreito o irritou e o fez detestar os belgas e abominar a Bélgica. A ausência do editor Albert Lacroix, convidado reiteradamente, também o aborreceu. Lacroix fizera preciosas edições para livros de Victor Hugo, e sua recusa a publicar a obra baudelairiana foi motivo para que o insatisfeito poeta se sentisse na Bélgica como peixe fora d’água.

Em julho de 1865, de volta a Paris, ele encontra Catulle Mendès na Gare du Nord e pernoita na casa do jovem poeta, na rue de Douai, número 65. Mendès testemunha que, quando pernoitou em seu apartamento, Baudelaire disse-lhe que escreveria um poema hindu, no qual expressaria toda a melancolia luminosa do sol, e repetiu, diversas vezes, que Nerval nunca esteve louco, embora se tivesse enforcado. Pediu-lhe que dissesse a todo mundo que assim havia acontecido e soluçou.

Na primeira viagem a Paris, fui à rue Douai 65, onde Catulle Mendès hospedou Baudelaire, quando de seu regresso de Bruxelas, em 1865, avistei a fachada antiga do prédio de cinco andares, com varandas no segundo piso. Tudo leva a crer que o imóvel onde viveu Catulle foi objeto de pouca reforma externa. Aparentemente, seu aspecto é conservado. O prédio é estreito e elegante, com varandas de grades e frisos decorativos em todos os andares. Sua arquitetura neoclássica se destaca em relação aos outros edifícios da rua, que são despojados de motivos decorativos. Chega-se a ele da place de Clichy que está logo ao lado. Passei pela agência de Correios que existe na rue de Douai e postei um livro de Virgil Ghregoriu ao poeta Luciano Maia, especialista em literatura romena. A rua é curta. Termina no nº 71, fazendo esquina com o boulevard de Clichy.

Numa segunda viagem à Bélgica, agravaram-se os sintomas da enfermidade que lhe abreviará a existência. Ele sofreu um desmaio na catedral Saint-Loup de Namur, que o deixou sem voz. Desde então, fatigava-se ao falar. E sentia vertigens, apatia e sufocações.

A doença o dominou completamente, com a paralisia do lado direito do corpo e o enfraquecimento mental. A senhora Aupick, auxiliada pelos amigos Asselineau e Poulet-Malassis, levou seu filho a Paris e o internou na clínica do Dr. Émile Duval, na pequena rue du Dôme, número 1, próximo ao Arco do Triunfo. Baudelaire levou a seu quarto de enfermo duas telas de Édouard Manet e alguns livros, que não chegou a ler. Padeceu ali acessos de febres, convulsões, transtornos mentais e dificuldade de articular as palavras. Essas afecções o acompanharam até à morte por afasia, no dia 31 de agosto de 1867. Théodore de Banville, na companhia de poucos amigos, discursou diante do seu túmulo, no cemitério de Montparnase.

O portentoso Arco do Triunfo decora magnificamente o amplo vão da Champs-Élysées onde os carros, os plátanos e as pessoas parecem ocultar a beleza simétrica e clara dos edifícios. É o arco pomposo em que Napoleão mostrou a sua ambição cesárea.

Ao circundar o amplo rond-point, desemboco na avenida Victor Hugo. Caminho até a rue du Dome, que me surpreende com sua escada. Subo ao plano mais alto onde se vê o número 1 da citada rua, na qual uma placa informa: Le poète Charles Baudelaire (9 avril 1821-31 août 1867) a vécu ici ses derniers jours. No entanto, o prédio elegante, de varandas enramadas de vasos verdes que se vê ali, não é o mesmo onde o poeta adentrou os portais do inferno, após inocular na alma o veneno da existência.

A clínica onde ele respirou os derradeiros haustos foi substituída por outra construção. Essa mudança decorreu das reformas que, na segunda metade do século XIX, o barão Haussmann, préfet de la Seine, imprimiu em Paris, demolindo, reconstruindo, abrindo grandes avenidas e modificando a fachada de muitos prédios.

Dos tempos dos poetas do romantismo até hoje, mudaram-se os hábitos, o ritmo da vida, a fisionomia de muitos edifícios e a numeração das ruas. Apesar de tantas mudanças, há ainda, nas ruas de Paris, algum resquício dos brilhantes cultores da arte da palavra que ali andaram e viveram.

Baudelaire, o dândi misantropo, que sucumbia aos prazeres excessivos e ao charme infernal de Paris, era um ser sensível, que se comovia, nostálgico da infância, e se elevava na ascese de sua refinada estética. Viveu assediado pelos demônios da angústia existencial. Alma generosa, que se identificava com o sofrimento dos humildes e oprimidos, como bem demonstram os admiráveis versos de La Servante au grand coeur, ou de Les petites vieilles. Seu pessimismo era uma modalidade de protesto contra a maldade dos homens. Seu orgulho não excluía certa autocrítica em que ele reconhecia o dano que o haxixe e o ópio lhe causaram à saúde.

 Marcel Proust, em crônica publicada, em primeira edição, em 1927, (Chroniques, L’Imaginaire), faz um belo estudo da poesia de Baudelaire, exemplificando, por meio de comentários a alguns de seus vigorosos versos, os motivos de sua admiração pelo grande criador de As Flores do Mal. Proust menciona, inicialmente, os primeiros versos de Recueillement (sois sage, ô ma douleur, et tiens-toi plus tranquille), como uma exortação dirigida à dor, numa linguagem contida, fremente, de quem estremece de haver chorado muito.

Ao comparar Hugo a Baudelaire, Proust diz que os diálogos do primeiro com Deus não valem tanto quanto o que o pobre Baudelaire encontrou na intimidade sofredora do seu coração e do seu corpo.

 Observa que o amor baudelairiano difere profundamente do amor concebido por Hugo. Esse amor aprecia na mulher antes de tudo os cabelos, os pés e os joelhos:

 

Ô toison moutonnant jusque sur l’encolure.

Cheveux bleus, pavillons de ténèbres tendus.

(“La Chevelure”)

 

Et tes pieds s’endormaint dans mes mains fraternelles.

(“Le Balcon”)

 

Recorda, com pertinência, o grande autor de À la Recherche du tempos perdu, que entre os pés e os cabelos há todo o corpo. Os joelhos têm preponderância em seu gosto:

 

Ah, laissez-moi le front posé sur vos genoux.

(“Chant d’Automne”)

 

Dit celle dont jadis nois baisons les genoux.

(“Le Voyage”)

 

E com que presença de espírito filosófico distinguia a forma da matéria!

 

Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon.

(“Le Balcon”)

 

Et la lampe s’étantant résignée à mourir

Comme le foyer seul illuminait la chambre

Chaque fois qu’il poussait un flamboyant soupir

Il inondait de sang cette peau couleur d’ambre.

 

O professor Jean-Claude Mathieu, da Universidade de Paris VIII, em seu estudo crítico de Les fleurs du mal, contextualiza o romantismo de Baudelaire na esfera social e existencial.

Primeiro, ressalta sua reação contra uma sociedade utilitária que substima a consciência afetiva, subordinando-a às relações funcionais do sistema geral de produção, que faz da obra artística uma mercadoria. De fato, ao declarar suas paixões estéticas, o contumaz rebelde, que prezava, com absoluto fervor, Poe, Wagner e Delacroix, não hesitava em confessar sua abominação pelo progresso que atrofia a parte espiritual do homem.

Em seguida, o ensaísta em perspectiva revela que o frisson nouveau que Victor Hugo detectou nas Flores do Mal provém do lirismo trágico que expressa a contradição entre a crença no ideal estético e o tédio de viver num mundo de incertezas, que obriga o artista a perseguir, no negativo, os derradeiros traços da transcendência: Baudelaire poursuit dans le négatif (le chaotique, le misérable, le monstrueux, le nocturne, l’irréparable) les ultimes traces de la transcendance, sans perdre l’espoir de reconstruire l’unité du monde par la rigueur salvatrice de la forme, l’exactitude mathématique de la méthaphore. Radicalisé, le romantisme est amené jusqu’au point de rupture d’où sortira la poésie moderne. Com efeito, a rêverie baudelairiana está pungida por um surnaturalisme que bebe no desespero, no gosto do nada e na angústia do tempo, um gosto do infinito que se desgarra e um itinerário depravado em direção ao absoluto.

Walter Benjamin citou, entre as virtudes poéticas de Baudelaire, o culto das imagens do longínquo e as evocações das ilhas que emergem do mar da vida anterior ou da névoa parisiense. Em seu ensaio Baudelaire ou les rues de Paris, afirma que Le génie de Baudelaire, qui trouve sa nourriture dans la mélancolie, est un génie allégorique. Benjamin o considera o protótipo do flâneur qui cherche un refuge dans la foule.

Henri Troyat, o principal biógrafo de Baudelaire, estuda a personalidade contraditória do poeta, que oscila entre o angelismo e o satanismo, entre a melancolia e a raiva. Com seu temperamento perturbador, aspira ao belo e se compraz com o feio; quer o bem e cede ao mal. Sua arte incisiva, mordaz, explode em quadros macabros e evocações exóticas, nostálgicas ou místicas. Por trás das diferentes paisagens de seu cérebro, há sempre uma imensa compaixão pela miséria humana e uma revolta permanente contra a sociedade que invoca o Cristo. Nessas condições, para Baudelaire – aduz Troyat, na biografia por ele escrita: a única maneira de escapar da mediocridade do mundo era refugiar-se no sonho, com a ajuda, se preciso, das drogas e do álcool.

Henry Troyat cita como exemplo ilustrativo do paroxismo contraditório do poeta duas cartas de Baudelaire, escritas em fevereiro de 1858, à Madame Caroline Aupick. Na primeira, ele rogava a Deus uma vida de plenitude; na outra, ele confessava: não quero uma reputação honesta e vulgar, quero esmagar os espíritos, assustá-los, como Byron, Balzac ou Chateaubriand. De resto, o traço mais determinante da genialidade de Baudelaire era, efetivamente, essa condição paradoxal de sua personalidade. Sua escrita é, a um tempo, um açoite e um bálsamo.

  

 

MÁRCIO CATUNDA (Brasil, 1957). Escritor e diplomata. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu mais de quarenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais em espanhol. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021), que recebeu em seu ano de publicação o Prêmio Cecília Meyreles, da União Brasileira de Escritores, no Rio de Janeiro.

 

  

BRIDGET BATE TICHENOR (França, 1917-1990). Artista fascinante, foi também editora de moda. Sua pintura, ligada ao Surrealismo, sua biografia inclui momentos em que foi modelo de Man Ray, uma paixão que despertou em Anaïs Nin, a casa que dividia com Peggy Guggenheim e seu interesse por ocultismo, magia e alquimia. Quando conheceu o México identificou o país como o lugar sagrado de sua morada, assim como foi intensa a amizade com Leonora Carrington, Remedios Varo, Kati Horna e Alice Rahon, que ali já residiam. Metafísica e misticismo se revelaram como temas característicos de sua linguagem pictórica, o que a levou também a Roma, onde realizou uma série de pinturas intitulada Máscaras, Guias Espirituais e Divindades Duplas. 

 



Agulha Revista de Cultura

Número 225 | março de 2023

Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


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