sábado, 25 de março de 2023

Agulha Revista de Cultura # 226 | março de 2023

∞ editorial | tudo o que o homem é capaz de criar

 


01 | Esta edição tem o prazer de iniciar com o lançamento da Coleção Abraxas, do nosso querido Floriano Martins (Brasil, 1957). Com um vasto currículo, participou e colaborou em festivais pelo mundo todo, sempre como articulador da poesia do Brasil com a da América Latina. Inclusive é o criador da presente e longeva Agulha Revista de Cultura. Entre suas obras estão narrativas, poemas individuais e coletivos, peças de teatro e ensaios desse autor que é referência nos estudos sobre o Surrealismo. Sem esquecer que Floriano também é fotógrafo e artista visual, de modo que muitas de suas produções estão enriquecidas com suas criações plásticas. Não é exagero dizer que ele é um incansável criador e amante das palavras, que agora nos brinda com essa sua vasta produção à venda pela Amazon.

A Coleção Abraxas foi planejada para ter um catálogo com 21 títulos. Aqui estão os primeiros deles:

1. Las máscaras del aire – (Poema colectivo)

2. La casa de Lenilde Fablas (romance)

3. Viajes del Surrealismo (ensayo)

4. Six running desires (poems and photos)

5. Dos pianos en la tempestad (antología poética)

6. Letras del fuego (con Susana Wald) (letra y plástica)

7. O iluminismo é uma baleia (com Zuca Sardan) (teatro e plástica)

8. Le musée du visionnaire (avec Berta Lucía Estrada) (teatro e plástica)

9. A volta da baleia Beluxa (com Zuca Sardan) (teatro e plástica)

10. As árvores profundas (poesia)

11. Un nuevo continente - Poesía y Surrealismo en América (ensayo)

12. 120 noites de Eros - Mulheres surrealistas (ensaio)


A quem se interessar, aqui está o enlace para visitação do catálogo: https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/02/coleccion-abraxas-libros-de-floriano.html

 

02 | ELYS REGINA ZILS CONVERSANDO COM FLORIANO MARTINS

 

Floriano Martins

ERZ | Para iniciar, recordo a afirmação de Gilles Deleuze, em O ato de criação, “A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência”. Como você se vê nesse contexto, afinal escrever poesia nos nossos dias é um ato de resistência. Além disso, acredita que o escritor tem uma missão especial? Se sim, qual seria? Quais as motivações, impulsos que movem tua literatura?

 

FM | Deleuze é um tipo curioso, fruto de nosso tempo apressado, coletor de reflexões alheias para alunos displicentes. Estímulo voraz à paramnésia, seus livros são um primor imensurável de déjà-vu. O missionário é um pregador, um ordenhador do inquestionável. Não pode ser confundindo com o criador – aqui me referindo à criação artística e não à lavratura religiosa –. pois nada em seu caudal de imagens é imperativo, dogmático. O artista se expande em dúvidas e não em vômitos de certezas. Mesmo as suas intuições não se resumem a axiomas gastos. Não há maior ato de resistência em nossa época do que simplesmente respirar. Viver – atendendo a um mínimo de ração filosófica – exige uma fonte perene de obstinação, e naturalmente a criação artística é uma dessas fontes. No entanto, tais nascentes é bom ter em conta que brotam naturalmente. Ninguém se decide a ser um criador. Não há um empório com mil prateleiras onde se possa encontrar o destino que mais nos pareça viçoso. As motivações de uma vida são a própria vida, como uma árvore carregada de frutos os mais variados possíveis.

 

ERZ | Gostaria de ouvir mais sobre sua obra literária desde sua primeira publicação, ela se transformou ao longo desses anos? Como você definiria sua literatura? Em que medida você considera que sua obra global contribui para a literatura nacional e internacional, considerando que possui publicações no exterior.

 


FM | Quando o tema de que tratamos é a definição de uma voz própria, esse espectro que melhor define a presença inconfundível de um criador, há autores que a definem desde o primeiro verso e outros que vagam obsessivamente pela terra à procura de uma poética singular. Há também aqueles que a esgotam muito cedo e passam a se repetir como uma imitação de si mesmo. Os meus primeiros livros (todos eles de poemas) são uma procura insistente dessa voz própria que eu somente a encontraria ao perceber que eu estava fora da escrita, que me substituíra por um mero cronista. Ao me deparar com a minha avó materna no leito prostrada em coma foi que, ao trazê-la para a intimidade de um poema, me dei conta que havia ali, naquele ato impulsivo, passado a me conhecer. Somente quando nos percebemos dentro do que criamos é que podemos, do interior dessa compreensão, perceber o mundo à nossa volta. Quanto à interferência não creio que deva haver um propósito nela, é algo acidental, e que se verifica muito além do próprio tempo da escrita e da língua original em que a obra, se tratamos de literatura, naturalmente em seu sentido mais amplo, é realizada, ou melhor, é tornada pública. As mil e uma noites ainda é uma obra influente, por exemplo. O enxame de romances e livros de poemas que surgem a cada minuto em imenso caso carecem de significado suficiente para despertar um mínimo estímulo que seja em seu leitor. Quanto a definições, o que há de melhor nelas é que sempre são inconclusivas.

 

ERZ | Ao ler a Arquitectura del escritor: Enrique Gómez-Correa (1999), autor que sei que você também admira, me intrigou uma pergunta feita por Hernan Ortega Parada para o poeta chileno e que agora refaço para você: como definiria sua situação no universo?

 

FM | Somos todos párias à sombra do desconhecido. Tão ínfimos que a maior parte sequer compreende a existência de uma situação frente ao outro, quanto mais ao universo. No entanto, olhando o excesso de bestialidade que trazemos em nós, vemos que talvez seja melhor assim. Jamais chegaremos a poluir o sistema solar, e nossa ação destrutiva sobre o planeta mais dá vazão a um caráter vulgar, do que propriamente atinge o clímax da extinção. A natureza aprende com o homem e não o contrário, e certamente se renovará mais rapidamente do que ele. O fim dos tempos ou Apocalipse é um barbarismo religioso. A hóstia consagrada é o mais eficaz de todos os placebos. O homem também é um pária em relação à vastidão de possibilidades de seu cérebro, a máquina mais fabulosa de que temos notícia.

 

ERZ | Você é escritor, poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista visual, tradutor, referência como investigador do surrealismo e da poesia hispano-americana. Já produziu tanta coisa, que pergunto: o que falta fazer?

 

FM | Não creio que deva ser essa preocupação. Vamos criando por impulsos, muitas vezes nem damos pela conta das repetições e maneirismos. O trabalho de editor não tem fim, porque sempre haverá algo por ser descoberto ou recuperado. Mesmo no caso do Surrealismo, sobre o qual escrevi uma alentada trilogia, outro dia mesmo me peguei pensando sobre aspectos que eu deixara escapar e que poderia valer um quarto livro. Há particularidades que eu gostaria de ver, como a encenação de algumas de minhas peças. Outro dia a Berta Lucía Estrada, colombiana com quem escrevi três peças, me disse que as havia apresentado a um diretor de teatro em seu país. Eu também gostaria de montar uma exposição fotográfica, para a qual cheguei a desenvolver uma maquete. Há também outro trabalho infindável que é o de tradutor. Ou seja, eu poderia passar algumas boas eternidades cuidando desse rebanho. No entanto, a vida possui um segredo guardado a sete chaves, que é a duração de seus estímulos.

 

ERZ | O lançamento da coleção Abraxas reúne seu trabalho imenso – com poemas, peças de teatro, ensaios – de diferentes épocas e com diversas colaborações. A que se deve essa união agora em uma coleção? Qual o sentimento que desperta no seu criador ver essa vasta produção?

 

FM | Houve muitas mudanças nas relações entre autores e editores no Brasil, quase todas em face de desprestígio de uma categoria que a rigor sempre teve um sentido mínimo de entendimento da realidade editorial. Além disto o surgimento da Internet e a infinita progressão de suas perspectivas de atuação, deram um cheque em muitas atividades profissionais. Desde a adolescência eu tenho atuado como editor de revistas e ao longo dos anos tive alguma experiência como editor de livros. Vejo então com naturalidade que a Agulha Revista de Cultura abranja agora mais esta sessão, no caso a coleção Abraxas. Tem ainda a vantagem de que os livros podem ser apresentados em outros idiomas, de acordo com o que permite a organicidade da Amazon, que aparentemente os faz circular no mundo inteiro. Escritores são raramente bons comerciantes, de modo que a minha tática maior é a de concentração de boa parte da produção mais recente, dos últimos 15 anos, em um selo que possa alcançar uma boa difusão. O resto é com D. Diablo e sua trupe. A minha vida sempre teve um forte acento na abrangência e alteridade, graças à minha volúpia existencial que me fez um grande curioso querendo provar de tudo. Dá-me imenso prazer criar, tenho a alma – até onde ela existe – profundamente irrequieta, e a solidão do ato criador sempre foi pouco atrativa para, lembro que na adolescência convivi com atores e músicos, de modo que acabei buscando essas outras conexões ou prismas da criação, o que resultou em poemas coletivos e, sobretudo, na escritura de várias peças de teatro a quatro mãos com outros tramaturgos, como diz um deles, Zuca Sardan. É bom encher a casa de gentes, amigos da criação, personagens, temas de estudo, a casa cheia nos traz vida por todos os ângulos

 

ERZ | Em conversas informais, você já me demonstrou que é um apreciador de música no seu dia a dia. Como poesia e música caminham próximas, nem vou perguntar se existe essa relação na sua produção, mas gostaria de saber até onde vai essa influência da música na sua poesia.  Existe poesia sem música? 

 

FM | Evidente que não. A criação artística em seu todo é profundamente pautada pela atenção ao ritmo. Pausas, silêncios, pontes, tudo isto aprendi com a música, o que foi imensamente sublinhado graças à leitura dos ensaios de Milan Kundera sobre música e romance. Nossa respiração é puro ritmo. O modo como olhamos e tocamos, idem. Os seis sentidos são uma sinfonia perene que nos permite atravessar toda uma existência. Em casa, na infância, a música e o romance estiveram presentes de uma forma múltipla, eu diria até desconexa, cabendo a mim ir identificando os pontos de conexão entre toda aquela avalanche. De igual modo a descoberta do teatro, as lições de alteridade quando temos que sair de nós mesmo e abrir caminho para a entrada em cena de vários personagens. Assim como na música, o poema requer uma boa dose de conhecimento de ritmo para que então se possa circular pelos abismos da improvisação. De igual modo autoconhecimento e visão de mundo são as portas que vão permitir entender outras naturezas, outros seres, esses personagens que parecem paridos por efeito de magia.

 


ERZ | Paralelamente a essa sua talentosa produção artística, outra importante faceta sua é como editor da Agulha Revista de Cultura, projeto que encabeças desde 1999. A revista dedicada à divulgação de estudos críticos sobre arte e cultura é umas das pioneiras no mundo virtual, com circulação em vários países. Dito isso, como você avalia a trajetória da Agulha, inclusive por ter origem em um país que parece apoiar tão pouco veículos culturais como esse. Quais suas maiores alegrias à frente da Agulha? E o panorama futuro?


FM | Haver criado a Agulha Revista de Cultura foi uma espécie de configuração plena de um desejo que vinha já de muito se realizando de modo incompleto. Ser pioneiro em qualquer área é como abraçar uma quimera ou dançar no vazio. A revista não tinha referências no mundo em que surgia, a plataforma virtual. E desde o princípio ela queria muito, era movida por uma dose imensa de ousadia. Aprender a utilizar os mecanismos de design e difusão que a Internet facilitava foi a primeira decisão. Os primeiros números naturalmente ainda buscavam se adequar a esse novo fraseado técnico. O passo seguinte era ampliar, ampliar sempre, os contatos, a variedade de temas tratados, as táticas de difusão, busca de parceiros. E desde o princípio a revista definira que não se institucionalizaria sob quaisquer pretextos, inclusive jamais aceitaria aportes financeiros de ordem alguma. Era preciso fazer vibrar a tecla de uma obstinada independência. Já estamos com 22 anos de ininterrupta atividade editorial, criamos parcerias com revistas em outros países, ampliamos nossas opções de conteúdo com a produção de projetos paralelos, como o “Atlas Lírico da América Hispânica” – pensado especialmente para a revista Acrobata –, e a coleção Abraxas, à qual já nos referimos. Ao longo desses anos todos contei com a participação muito especial de três pessoas: Soares Feitosa – diretor do Jornal de Poesia, em cujo provedor a nossa revista foi ancorada em seus primeiros anos –, Claudio Willer e Márcio Simões – ambos foram coeditores, cada um por em período beirando uma década. A parceria com Márcio Simões foi ainda mais extensiva, pelo que permitiu a publicação de alguns livros pela Sol Negro Edições, que ele fundou e dirige até hoje. E agora conto com a tua presença, em grau mais elevado, pois passarás a dirigir a revista sozinha. As alegrias são transbordantes: viagens, parcerias, projetos paralelos, prestígio internacional, tudo isto propiciado pela revista. Talvez devesse dizer que sinto falta do Brasil, que tivemos pouco reconhecimento no país etc., mas não, conheço a realidade nossa e sei que temos do Brasil a sua essência. Os melhores estão conosco. Sempre estarão.


Christine Boumeester

03 | Colagens, óleos, litografias, desenhos, aquarelas, toda a obra de Christine Boumeester (Indonésia, 1904-1971) parece bailar diante de nosso olhar. O ritmo de sua plástica define a presença de modulações sugestivas, delicadas passagens de cores e formas, em atmosfera quase onírica. Casada com o gravador Henri Goetz – que ela conheceu em Paris, para onde se mudou, em meados dos anos 1930, após residência em Amsterdã, cidade onde realizou sua primeira individual–, o casal descobre no Surrealismo uma significativa afinidade que definiria sua linguagem. As relações resplandeciam: Picasso, Breton, Éluard, Wilfredo Lam, Hans Arp. Com a chegada da 2ª Guerra Mundial, Christine e Henri se recolhem na pequena Carcassonne, ao sul da França, e ali se encontram com alguns integrantes do grupo surrealista belga (Raoul Ubac, René Magritte, Louis Scutenaire) e, juntos, fundam a revista La main à plume, que resistirá de 1941 a 1944. Após este período Christine realiza uma série de exposições e é celebrada pela crítica como uma relevante artista abstrata, embora essa abstração seja fruto não de uma evasão de sentido, mas antes do recorte de uma paisagem onírica onde a artista busca precisar novos valores imaginários. [Floriano Martins]

 

Os editores



∞ índice

 

AIMEE G. BOLAÑOS | Escrever desde a diáspora: notas para uma autopoética das vidas imaginárias

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/aimee-g-bolanos-escrever-desde-diaspora.html

 

BERTA LUCÍA ESTRADA Virginia Woolf emergiendo de las aguas

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/berta-lucia-estrada-virginia-woolf.html

 

JOSÉ DE LA FUENTE | El arte y la ciencia tienen una relación compleja pero significativa en colaboración e influencia mutua

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/jose-de-la-fuente-el-arte-y-la-ciencia.html

 

LUCIANA IRENE SASTRE | Hilda Mundy: cronista de vanguardias

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/luciana-irene-sastre-hilda-mundy.html

 

MARCELO NOVOA | El nudo que perturba el hilo de la memoria – Entrevista a Enrique Gómez-Correa

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/marcelo-novoa-el-nudo-que-perturba-el.html


NUNO GONÇALVES PEREIRA | Cultura e política nas narrativas de Alejo Carpentier: poética da história e debate latino-americano

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/nuno-goncalves-pereira-cultura-e.html

 

ROBERTO ACUÑA | La modernidad y sus fracturas, el origen del arte posmoderno

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/roberto-acuna-la-modernidad-y-sus.html

 

RUBÉN BALSEIRO | Reflexiones sobre arte y cultura en su entorno político, económico y social

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/ruben-balseiro-reflexiones-sobre-arte-y.html

 

RUTH FÉLIX | Conversando con Plinio Chahín sobre la crítica de arte en República Dominicana

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/ruth-felix-conversando-con-plinio.html

 

ZEBBA DAL FARRA | Mudez

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/03/zebba-dal-farra-mudez.html

 


Agulha Revista de Cultura

Número 226 | março de 2023

Artista convidada: Christiane Boumeester (Indonésia, 1904-1971)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


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