sábado, 25 de março de 2023

AIMEE G. BOLAÑOS | Escrever desde a diáspora: notas para uma autopoética das vidas imaginárias

 

Escuto a voz ímpar de Cecília Meireles: “Sê sempre o mesmo./ Sempre outro.” [1] Escrevendo-me, imagino as outras; ao escrever às outras, vislumbro-me. Em torno desses reflexos especulares de identidade e alteridade, compartilho uma experiência criativa de vidas imaginárias no contexto maior das escrituras de si mesmo de sujeitos em diáspora, assunto tão antigo como atual. Com esta intenção vou me referir a dois livros intimamente ligados entre si, Las Otras (Antología mínima del Silencio) [2] e Escribas, [3] na tentativa de encontrar fios de uma possível autopoética.

 

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.

CECÍLIA MEIRELES

 

Las Otras (Antología mínima del Silencio) resultou de uma crise passional, um dos motivos mais trilhados da história da literatura. Só que minha paixão tinha outro referente: o país natal. Desejava escrever sobre minha condição de cubana que deve recriar suas identidades nos trânsitos culturais e existenciais. Como em toda diáspora, a consciência da origem estava muito presente. No entanto, o livro não se deixava escrever. Perguntava-me que ficção poderia ser mais expressiva dessa problemática identitária e, sobretudo, que sujeito poético criar?

Como minhas perguntas não tinham respostas, resolvi remontar o tempo pessoal. Deparei-me com um imperioso desejo de jogar. Entre minha profissão, a memória cultural, o que nunca aconteceu empiricamente e os sonhos, perfilou-se uma genealogia espiritual. Na verdade, meu ofício estava mais na filiação imaginária que na história “real”, e assim tomou forma uma antologia de mulheres poetas. Quanto mais distantes, mais nitidamente conformavam-se e, ainda assim, formavam parte de mim. Junto com a escritura dos poemas, resolvi compor uma vida mínima para cada uma, especificando seu tempo histórico-cultural, com pretensões de veracidade, mas principalmente feita de projeções, devaneios, reminiscências.

Empreendi um divertido jogo de ficção misturando personagens de referente histórico com outras mais livremente inventadas. Nesse espírito, a antologia reuniu autoras que participaram em movimentos poéticos de notável repercussão, certamente Safo, a maior figura tutelar, recriada no olhar fascinado de sua discípula (filha, amante?), figura gemelar:

 

CLEIS (LESBOS, VI A.N.E.)

 

Ah, tú florecida de lotos,

bañada de miel.

Ah, tú que te desvaneces

en el hálito del vino.

Tú que traslúcida levitas

sin besar el suelo de rosas.

Ah, tú que te elevas

y desciendes al justo centro

de mi pecho estremecido.

Ah, tú que me seduces

con tu paso desatado.

Señora de la tierna armonía

y del sueño.

Alada viajera.

Bajo tu vuelo leve

solo mar y cielo.

 

Sucessivamente, mas sem ordem temporal, foram se apresentando Angélica Stanza, cortesã ilustrada que, na tradição renascentista, exibe sua metapoesia. Outras poetas que gravitam na órbita de poetas áulicos, por exemplo, Johann Wolfgang Goethe, ou malditos, mas finalmente canonizados, como Charles Baudelaire e Konstatinos Kavafis. Tal é o caso de Ulrica von Levetzow, Kiria Hafis e Jeanne Duval, vinculadas de modo conflituoso a grandes artistas. Acrescentaria a nebulosa Ana Tereza Ayres, quem sabe se heterônimo de Fernando Pessoa.

Em outras ocasiões, essas mulheres serão interlocutoras com brilho próprio de uma prática artística masculina secular, como Salmà Yazib, que dialoga com a obra de seu primo e esposo Al-Walid Ibn Yazib no seio da poesia árabe clássica da época Omeya; também Artemisia Gentileschi, ave rara feminina na história da pintura barroca italiana. Dentro da prática milenar do haikai, Aika Kiu desenvolve sua sensibilidade transgressora. Nesse orbe, Luo Sa, escriba de grande cultura e, portanto, vivendo na beira do abismo, encontra o fio no labirinto de sua opulenta cultura.

Escuras e delirantes, Sor Clara de la Gracia e Sóror Filomena da Eucaristia são autoras de uma poesia monástica, subversiva só pelo fato de ser escrita em um mundo repressivo. Esta última evoca as cartas portuguesas de amor desesperado de Mariana Alcoforado, mas sua paixão é tão desaforada que, ante ela, empalidecem os riscos de seu tempo e condição.

Nessa invenção, as brasileiras têm marcas peculiares. Carla Teresinha de Souza deixa testemunho literário em uma quase perdida aldeia marítima; enquanto Gertrudes da Veiga atreve-se a rimar quartetos, rendendo culto à poesia nativista do Sul. Nas antípodas, Denise Ieda Alves, baiana, se retrata como eu e Iansã, integrada à mitologia iorubá na criação de si. Pela sua parte, as cubanas não podem escapar à obsessão de sua ilha, também mitificada, como autoras de uma transnação, nação que viaja:

 

CALIXTA REY (CUBA, 1895-1951)

 

 Quasisoneto

 

Sueño velado: destierro,

ceiba que cobijas calma.

Halle reposo el viajero

solo a la sombra del ala.

 

Huérfanos de la tierra amada

sin el signo y la mandala.

De la infinita luz refractada,

apenas la sombra del ala.

 

No nos engañe el camino

que la errancia es partida,

pero también llegada.

 

Ítaca fulgura dividida

en cien cristales de fuego.

Y solo la sombra nos salva.

 

Finalizando o livro, apareceu uma poeta cujo referente é a autora da antologia e o prólogo. Ela escreve-se na viagem sempre inacabada, aqui explícita sua identidade nominal:

 

AIMÉE G. BOLAÑOS (CUBA, 1943)

 

me hago de retazos

de innumerables trajes

vestida

ya fui hija

de una isla

mediterránea

y del continente

reclusa y anarquista

lujuriosamente mística

todas las letras

me habitan

inmóvil de tanto viento

de un puerto cualquiera

siempre ahora

estoy partiendo

y partida

los trozos que soy

me navegan

no me busco

en la historia

telón de fondo

patético

me busco

en el trasiego

de los menudos olvidos

blanca y negra cruzada

me miro

en un cristal irradiante

donde los rostros vuelan

mi discurso es una ráfaga

que me deshace

en infinitos fuegos

mi lengua viajera

estalla

entre la ausencia

y la espera

 

Sem poder, a partir da falta, escrevi um livro sobre a mátria e a errância ou, ainda melhor, imaginei que o havia escrito. As poetas da antologia estão dotadas do escuro esplendor da uma existência subterrânea, soterrada pelos poderes da cada época. Mas a poesia dá voz ao silêncio, é uma secreta memória compartilhada que desde a alteridade celebra as identidades sem limites.

Isso, e muito mais que não alcanço dizer, aprendi também com outras autoras reais que motivam os ensaios de Poesía insular de signo infinito. Una lectura de poetas cubanas de la diáspora, [4] onde visito textos de Carlota Caulfield, Juana Rosa Pita e Alina Galliano, ademais conversamos sobre poética autoral. Com seus matizados movimentos de ausência e presença, a mulher artista dos poemas dessas autoras singulares, feita a sua semelhança, vai ao seu encontro, ávida de si e do mundo no seu movimento autocriativo.

Sem dúvida estava no mundo da autoficção. Então, determinadas leituras alicerçaram e problematizaram o processo criativo. Evidência inicial: a maioria dos teóricos concede escassa atenção à poesia e à escritura de autoria feminina, ainda muito ocupados com classificações e diferenças epistemológicas entre autobiografia e autoficção, entre “realidade” e ficção. Nessa ordem de pensamento, distinguem-se duas variantes. De um lado, Philippe Lejeune, Gérard Genette, Vincent Colonna, que consideram a autoficção um híbrido no compromisso com a veracidade fatual da autobiografia; do outro, Roland Barthes, Serge Doubrosky, Alain Robbe-Grillet, Régine Robin, Madeleine Ouellette-Michalska, Simon Harel (geralmente artistas, não só teóricos), defensores da autoficção como ficção identitária. Quer seja a autoficção gênero autônomo ou categoria textual em formação, aprofunda-se na fragilidade identitária e nas confusões produtivas das figuras de autor/protagonista/narrador do pacto autobiográfico canônico. Assim Régine Robin define a nova figura na metamorfose perpétua dos fragmentos e o instantâneo. Sem lugar a dúvidas, a autoficção é ficção, ser de linguagem que torna o sujeito narrado um sujeito fictício, enquanto dito com as palavras. [5]


Madeleine Ouellette-Michalska estabelece vínculos entre autoficção e movimentos migratórios referidos a suas estratégias de apagamento e reconstituição das identidades. Em sua opinião, as mulheres e os migrantes são imantados pela autoficção. Especial relevo tem seu estudo do gênero epistolar e do erotismo. Em virtude do ato passional da escritura de si, amando e escrevendo, a escriba de cartas de amor torna-se oficiante de sua paixão e sonhos.

Na visão de Simon Harel, a autoficção forja uma narração transnarcisista. Essa dimensão tem na literatura seus agentes nas figuras da ficção (autor/personagens/leitores). Nela acontecem os processos característicos da autoficção de artistas. O escritor é um demiurgo que doa um nascimento à criação. Nesse sentido, é um lugar de contradição e revelação. Aí reside a originalidade do projeto que se diferencia da sintagmática da autobiografia, ligando de modo dialógico subjetividades. Essa polaridade de eu/outro também atinge o destinatário, outra razão principal de seu caráter transnarcisista, ponto alto da sua interpretação que me descobria a prática autoficcional atrelada á alteridade.

Ostensivamente o pensamento sobre outridade tem sido fundamental nas minhas buscas autorreflexivas. Pierre Ouellet é esclarecedor quando retoma o conceito de ipseidade que Paul Ricoeur formula ligado a alteridade. Desde essa perspectiva, Ouellet estuda o sujeito migrante que ficcionaliza sua identidade cambiante, acedendo à diversidade de modos do outro. A autoficção nomeia outras formas de pertença a nós e à sociedade quando a imagem estética funciona não tanto como espelho mimético de uma identidade unitária, mas a modo de prisma que dispersa e dissemina. Ao visualizar de modo metafórico a alteridade como faíscas divergentes ou convergentes, apreciando os efeitos de difração e refração expressivos das identidades efêmeras e mutantes que se formam, deformam e transformam no movimento, Ouellet contribui a um conceito pós-metafísico de identidade/alteridade. Então, trata-se da identidade do sujeito que não só se descobre, mas se faz nos reflexos tornassóis, ricamente problemáticos da alteridade.

 Lembrando Vincent Colonna, que invoca o espelho como metáfora seminal da autoficção, mas também no apelo à imagem lacaniana do espelho que não duplica o “real”, quero sublinhar que assumo a autoficção no seu caráter ficcional e no jogo com as aparências icônicas. Mas também entendo que leva em si um reclamo de “verdade” essencial, além do fatual ou empírico. Como indica Julián Fuks, nem narcisista ou umbiguista, pode ser “uma tentativa legítima de aproximação ao outro e não uma tentativa de invenção do outro a partir de um falseamento”, fazendo possível “Uma aproximação com a historiografia, com o ensaio, com o discurso político, com a filosofia”.

Nesse espírito, em Las Otras ensaiei uma pós-ficção de história da poesia (lúdica, minimalista), reunindo apócrifos. E vale lembrar que apócrifo significa não apenas falso. Pode-se referir a uma obra de autenticidade não provada, de origem duvidosa, que gera uma discussão em torno à autoria; obra fora do cânone, mantida na clandestinidade, na contramão da instituição literária e social. Não por acaso Las Otras tem por subtítulo Antología mínina del Silencio.

Como é evidente, no centro do livro estava a problemática da função autor. Manuel Alberca, estudando a prática contemporânea, chama a atenção sobre a passagem de uma concepção representativa ou mimética do autor, a outra baseada na simulação de sua apresentação na obra. Essa ficção do sujeito-autor, que se autocaracteriza no seu percurso vital e criativo, não mais onto-teleológico ou transcendentalista, marca um ponto de giro nas escrituras do eu ao favorecer uma renovada paixão pela Letra. Tanto em sentido existencial como artístico, acolhe o reflexo de si para si, de si para o outro em convergência, concedendo papel principal a esse autor imerso na ficção, a seu discurso e palavra, espaço ideal para analisar o próprio fazer.

Nesse viés, o pensamento recente de Laura Scarano, voltado para as derivas da metapoesia na autoficção e aprofundando na autopoética, está presente na minha reflexão atual, quando escrevo este texto em que tento compreender e explicar motivações de poética na minha escritura. Na sua proposta, a autopoética oferece valiosas pautas epistemológicas e metodológicas na definição, precisamente, da função autor. Mais que justificativa, implica uma proclamação de pressupostos estéticos, espécie de projeto autoral, focalizado em si mesmo e nas suas diversas operações autorreferenciais.

Com toda intenção deixo Paul Ricoeur para o final deste raconto, pois esteve no princípio e sempre. Fundamenta meu pensar/fazer sua magistral lição de ler o outro como a si mesmo e a categoria de identidade narrativa. Nessa interface, mostra o sujeito na emergência de si, nem homogêneo ou autotélico, mas relacional, pois comporta uma alteridade externa, em relação aos outros, e interna, sua própria outridade, que também o identifica. Nesse amplo marco teórico, o hermeneuta desvela os nexos constitutivos entre histórias de vida e escrituras de si:

a compreensão do si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros símbolos e signos uma mediação privilegiada; esse último empréstimo à historia tanto quanto à ficção fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se preferirmos, uma ficção histórica, entrecruzando o estilo historiográfico das biografias com o estilo romanesco das autobiografias imaginárias.

 

Essas leituras foram complemento e contraponto da práxis criativa, portanto, referências provisórias, instigantes. Ao me surpreender fazendo autoficção quando inventava poetas e seus poemas, comecei a entrever outras formas possíveis, desejáveis. Os vasos comunicantes das vidas – das outras, do eu – motivariam outras experiências criativas.

 

Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
CECÍLIA MEIRELES

 

Quando preparava os ensaios Ficções da história: reescrituras latino-americanas, [6] na tentativa de ir além da discussão sobre as doses de “verdade” na história e a ficção, fui imantada pelas vidas imaginárias. Nasceu Escribas, que me permitia examinar por dentro esse tipo de ficção, revisitando obras anteriores, especialmente Las Otras. Na nova experiência estava muito patente Marcel Schwob com Vidas imaginarias (1896), livro que transforma a escritura biográfica tradicional. No seu prefacio de autopoética deliciosamente provocativa, Schwob disse que o biógrafo não tem que se preocupar por ser veraz, deve criar imerso em um caos de traços humanos, escolhendo entre os possíveis aquele único para compor uma forma que não se pareça com nenhuma. [7] Na contramão da biografia tradicional, aquela que, segundo Pierre Bourdieu, apresenta uma vida como relato coerente com significado e direção, as ficções de Schwob sinalizam a transição do reino da ilusão biográfica ao reino da ilusão poética.

Nessa galeria pessoal de grandes mestres, tem lugar destacado Fernando Pessoa, com seus heterônimos dotados de biografia, e Jorge Luis Borges, leitor de Schwob, que com Historia universal de la infamia (1935) prepara o caminho de Averroes, Menard, Funes, Borges autoficcional, todos memoráveis.

A partir das vanguardas intensifica-se a fabulação de vidas na literatura latino-americana: Roberto Bolaños, Manuel Mujica Lainez, Félix Pita Rodríguez, Alejo Carpentier, Reinaldo Arenas, Juana Rosa Pita, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Mario Bellantín, Leonardo Padura, Maria Luisa Lojo, Julia Álvarez, Silviano Santiago, Ana Miranda, Aldyr Garcia Schlee, entre os mais relevantes, integram um discurso de originais nexos genealógicos em torno às biografias fictícias.

Leitora desse corpus fascinante, tinha uma interrogante capital: como se compõe uma vida imaginária? Marguerite Yourcenar, compondo Memórias de Adriano, traça um valioso caminho de poética quando fala do tempo recobrado na tomada de posse do mundo interior. O biógrafo recobra a leveza do ser imerso no movimento criativo, vê as diferentes facetas, os estados de ânimo; a realidade convincente porque complexa, humana porque múltipla.


Para suas figurações os autores de vidas imaginárias partem de histórias “mal contadas”, desconhecidas ou escassamente documentadas, avançando em zonas de silêncio. Se na modernidade a história é um todo que progride e, portanto, de discurso teleológico; na virada da alta modernidade a grande história se dissemina em micro-histórias ambíguas, plurissignificativas, tão duvidosas e instáveis como o sujeito biográfico – o outro – na diversidade de seus eus que se projetam em “tempos perdidos” recobrados na liberdade interpretativa da ilusão poética. Assim as vidas imaginárias subvertem a biografia documentada na história fática, referencial – em sincronia com a crítica de autobiografia tradicional da autoficção –, para indagar nos significados ocultos dessas vidas e, com frequência, nas suas fulgurações simbólicas.

Pedra angular das biografias imaginárias, o biografema de Roland Barthes é expressivo das mudanças que estavam acontecendo na arte de narrar vidas. Diferente da biografia-destino, tudo ligado fazendo sentido, os biografemas compõem uma biografia aberta à interpretação na flutuação dos significados. Barthes imagina-se escritor morto que gostaria ver sua vida reduzida “a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’ [...] em suma, uma vida com espaços vazios”.

Provocante, a questão da identidade está no cerne das vidas imaginárias. Nessa ordem de pensamento, o conceito de identidade narrativa de Ricoeur oferece um entendimento não essencialista, mas referencial, que me resulta da maior importância ao integrar visão e composição na narração do tempo humano. Para ele, a ficção é um laboratório de formas onde o sujeito se constitui no ato de se narrar. E essa narração da vida implica o exercício hermenêutico: a história torna-se mais legível; a existência interpretável ao ser contada.

Nessa dinâmica interpretativa, Leonor Arfuch, [8] como leitora atual de Ricoeur, se pergunta por que contamos vidas, seja biográfica ou autobiograficamente. Restabelecer a aura da vida que merece ser contada devolvendo-lhe sua transcendência, ante o silêncio ou o esquecimento, de certa maneira ato compensatório ante tanto desatino histórico e desencanto político, poderia ser uma primeira resposta provisória, um caminho em perspectiva.

O escritor de bioficcão aspira a criar um ser verossímil no sentido aristotélico, mas não necessariamente verídico ou realista, como acontece no universo da autoficcão em torno à identidade nominal, não mais a proclamada e estável do pacto autobiográfico. Ao refletir sobre o problema de como contar uma vida, tem consciência da diversidade de versões e variantes, das forças subjetivas em tensão, das contradições entre registros e vozes, seguindo rastros e vestígios, atento aos mínimos detalhes. Com liberdade compositiva, o escritor trabalha a pluralidade de funções da figura configurada não necessariamente na sequência temporal dos eventos vitais. As estratégias liberam-se do paradigma narrativo totalizante, teleológico – transformação também evidente no gênero biográfico atual –, na procura de uma afinada percepção do heteróclito e contraditório do “real” que até desvela a referência como construção do imaginário.

Nessa dimensão estética metaficcional, e consequentemente de poética, meu interesse principal voltou-se às vidas imaginárias, mas de mulheres heterodoxas no esforço do conhecimento na escritura. [9] Jorge Luis Borges inspirava-me ao propor a história da literatura como processo fluido, no qual autores, obras, leituras podem redeterminar seus significados.

Em Escribas, a vida imaginária redetermina sentidos e referências, tanto de quem escreve como de quem está sendo escrito, espelhadas vida e Letra. O próprio livro parece estar nos dizendo: escrevo que escrevo (BARTHES, 1978), o que determina a ficção encapsulada, em abismo. Confunde-se a voz da protagonista da vida imaginária, com a voz da autora dessa vida que, de forma confessa ou inconfessa, se projeta na “biografada”. Seus discursos implicam um movimento de interpretação essencialmente inclusivo. Cada autora é figura-chave, tanto a biografada como a biógrafa. Ademais a autora, que escreve as histórias de escribas, está fazendo autoficção. Todas as escribas abrem perguntas sobre si, sobre sua obra e obrar, em abrangente autorreflexividade, sem que saibamos – na verdade, não mais interessa –, quem é criadora ou criatura; umas das outras golem, fantasma, sombra. Ressoava em mim Lacan: “é sempre ao redor da sombra errante do seu próprio eu que se vão estruturando todos os objetos de seu mundo”. De mim à outra, da outra a mim, a vida evanescente.

Necessariamente o livro tem uma estruturação dupla: “Histórias de Escribas” e “Escrituras de A”, na mistura de bioficção e autoficção, narrativa e poesia, reflexão e autorreflexão. Tece-se uma trama metaficcional na tentativa de reescrever aspectos da história da cultura letrada protagonizada por mulheres que nos umbrais da escritura copistas, calígrafas, poetas, místicas, visionárias ou na eternidade sempre atual do mito conformam uma linhagem, na qual a autora do livro quer se reconhecer.


Todas as escribas biografadas, tocadas pela graça da imaginação, são relevantes embora não poucas desconhecidas, outras apagadas na história oficial. Nesse conjunto, Sechat, deusa egípcia da escritura (que está na capa do livro) sinaliza o ponto de partida e chegada. Ao final, Nesi Tanebet-Isheru, também nessa prática milenária, incorpora e revive Sechat, como nós, que estamos lendo o livro, para dar forma ao círculo das escribas.

Em primeira pessoa, simulando a voz autobiográfica, as escribas contam suas vidas de modo fragmentário e voluntarioso, com vazios e alusões, quase sempre desde o supratempo da morte. Sechat e Nisaba são mitológicas; Nesi Tanebet-Isheru (2211-2175 a.C.), um híbrido de mitologia e história. Enheduanna (2280-2200? a.C.), Hildergard von Bingen (1098-1179) e Marguerite Porete (1250?-1310), documentadas na historiografia, sua obra, ou parte significativa, hoje pode ser lida. Construídas a partir de vestígios referência mínima, citação marginal – são Wu Chuan (1043-2031), Nizam (971-1016), Amina da Anunciação (1959) e Aika Kiu (1259-1297), que já estava em Las Otras e atualmente escreve um livro inspirado no Tao, possivelmente a mais autoficcional.

Elencadas as escribas historiadas, detenho-me na emblemática Enheduanna. Se bem o termo autoficção é recente, a prática autoficcional constitui uma pulsão arcaica, tanto que Vincent Colonna remete sua origem a Luciano de Samosata (II d.C.). Mas aqui vale uma pequena revisão histórica: o primeiro autor, significativamente “autora”, com nome reconhecido na história da literatura é Enheduanna, a qual escreve no século XIX a.C. Em Escribas, aparece desta maneira:

 

Yo, Enheduanna, ahora resplandezco en la historia de la cultura. Mi vida se enmarca en el imperio acadio de los sargónidas, fundado por mi padre Sargón, que habrá de durar más de un siglo. Es la época en que la primera lengua culta conocida, el acadio, a su vez basado en el sumerio, se expande a toda Mesopotamia como punto de partida de numerosas lenguas. Comienzo a escribir apenas 350 años después de la escritura estar constituida. Mi tempo es el alba.

 

Depois de contar os percalços de uma vida muito conturbada e resenhar sua obra, Enheduanna ainda nos desafia:

 

Con tan rica fabulación, soy autora no sólo de himnos y poemas, sino de la propia Inanna, diosa del amor y la fecundidad, dadora de vida, entidad que tiene, además, el don de sufrir. A la par, le doy vida como entidad destructiva, de la guerra, arrasadora en la venganza. Diosa de las alturas celestes y del inframundo. Garras y alas tan recurrentes en el imaginario mesopotámico. Fascinante dualidad divina, humana.

Sabiéndome parte de Inanna, me voy separando de ella en una crisis que es personal y represento con la tormenta. Al hablar de arquetipos, epopeyas y mitologías, alcanzo plena conciencia de mí, tan vapuleada por la historia, aunque hasta de mi propia ruina, renazca.

Me autorretrato y firmo, transgrediendo la práctica acadia de la exclusión. Junto a los dioses, figuro mi persona con sus ambigüedades y plurales. Enriquezco los ritos, invento una liturgia, la de la autosacralización. Dejo atrás la teogonía doctrinaria abstracta para realizar una mitificación mucho más fantasiosa que incluye mi ser y existencia. Significo el inicio explícito del yo en la escritura, que no ha tenido fin y hoy tiene nombres innumerables.

Sin embargo, aunque me muestro y duplico en espejos de todo tipo, o quizás por eso mismo, mis poemas son un juego de ocultamiento y exhibición en los que yo, autora y personaje, pudiera ser la representación más enigmática. Así, cuando digo a Inanna, “¿Quién puede entenderte?”, también me estoy preguntando.

 

Junto as escribas, a autora chamada A escreve sobre si e desenvolve algumas ideias em torno à escritura e as “Histórias de Escribas” que está escrevendo. No final do fragmento XXI, A pensa a palavra poética. Se a escritura parece não ter espaço nos tempos sombrios, talvez seja aí onde paradoxalmente revela seu sentido:

Escribo para llegar al fin de mi deseo. Por ejemplo: crear una isla con palabras. Nada original, en realidad lo hacemos casi todos los que perdemos islas. Después, y ya estoy en terreno más hipotético, se puede llegar a la polis para decir lo que nunca dijimos, dije, en voz alta. Nadie escucha. Al final, y en modo alguno conclusivo, será posible entrever una forma, hasta entender que las palabras escritas solo han sido signos de algo que debería excederlas, transcenderlas y no acontece. Un punto de fuga del deseo sin fin.

La escritura comienza cuando son abandonados los propósitos y se vislumbra el silencio abismal, que no es un no ser, sino una plenitud vacía, donde ahora caben todas las palabras.

 

Todas escrevem de modo transnarcista, pelo menos no desejo da autora. Habitadas pela obra por vir, saem de si na pulsão criativa. A questão das identidades é recorrente: quem sou, por que escrevo, como habito a realidade. Nas “Escrituras de A” a viagem é onipresente, possivelmente porque, sendo marca de qualquer tempo e especialmente do nosso, tem bastante a ver com a experiência vital de quem assina o livro. Curiosamente por essa época fazia o verbete “Diáspora” para o Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos, [10] de maneira que o fragmento a seguir, mostra as porosas fronteiras entre reflexão e ficção.

 

XV

Los que nacemos en una isla amamos los viajes. Somos de isla, isleños, no solitarios ni aislados. Porque isla es habladora, abierta al mundo, en continuo movimiento, sin dejar de ser ella. Los isleños siempre vuelven a sus islas, también las llevan consigo en cada uno de sus viajes. Y cuando están lejos, y aun más tristes, las buscan dentro de sí para escribirlas reverdecidas y risueñas.

Viajar es una ocupación fatal isleña. Con fatal quiero decir inexorable, no necesariamente trágica, aunque para muchos de mi isla lo haya sido. A veces viajar puede ser una odisea feliz, de metamorfosis, su lado más atrayente.

Y cuando escribo viajar, no me refiero a turistas accidentales, sino a los obstinados viajeros del mundo contemporáneo, tan iguales a los antiguos. Todos extraordinarios ejecutantes del tema mayor del éxodo. Ni dudo que Chagall, entre sus mejores intérpretes.

Hay quien escribe exilio y muestra su herida política, en ocasiones, no solo expulsión, sino soberana voluntad de no estar más, cuando la historia se hace insoportable. El famoso portazo de Rimbaud. Pero exilio puede ser también metafísico, de la existencia, una ausencia esencial. Aquel albatros de Baudelaire. Exilio es una palabra tan fuerte que, cuando la usamos, nos arrasa y deja deshabitados. Otros prefieren destierro, que siendo también política, parece ir al encuentro de un telos cultural perdido y es más romántica. Y ni hablo del repertorio posmoderno que encontró una mina en los viajes.

Me gusta la palabra diáspora, que es síntesis de viajes emblemáticos, una palabra que no cesa de transformarse y transformarnos cuando vivimos en ella. Sin diáspora, seríamos apenas sin tierra, sin hogar, sin techo. Me reconozco diaspórica, aunque la palabra, así derivada, no sea tan bonita, más parecida a una enfermedad, lo que no deja de ser cierto.

Diáspora me permite nombrar ciertas habilidades de diseminación y siembra que he aprendido a la fuerza. Soy casi especialista en crear hogares fuera del hogar e imposibles regresos. Y aunque me traduzca y travista, quiero conservar mi centro, que está siempre en movimiento. Como viajera hábil, dejo marcas por donde ando. Por su parte, el viaje interminable me ha tatuado figuras coloridas de azarosa trama. Cuento desatinos.

En fin, me quedo con diáspora. Es excitante, dramática, confusa. Nombra lo que quedó atrás, también caminos abiertos. En ella cabe toda la ficción de la memoria: familia, casa, infancia. La isla entera.

Así, La isla que viaja pudiera ser el título de un próximo libro. Con originales citas en chino que hablen del que regresa, que nunca es igual al que partió, y de cómo el viaje más largo empieza con el primer paso.

 

As figuras relacionam-se entre si executando o tema dominante da escritura que tem numerosos desdobramentos: amor, morte, memória, errância, viagem, com o baixo-contínuo de estar escrevendo: cada escriba, sua obra; A, o livro Escribas. As formas conjeturais convidam às muito pessoais desleituras.

 

 Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim.

 Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos.

CLARICE LISPECTOR, Um sopro de vida

 

Vista de conjunto, esta experiência de escrever sem fim – de forma inacabada, gratuita poderia dizer que tudo gira em torno à desafiante identidade, seja o sujeito bio ou autoficcional, em uma composição inconclusiva e inconclusa, talvez alusiva ao viver.

As figuras de Las Otras e Escribas movem-se no produtivo intervalo entre o pessoal e supra-pessoal de modo autorreflexivo, voltadas para si na vivência da identidade-alteridade que as constitui. Espelhadas nos textos – poemas, prólogos, histórias, narrativas –, instauradas por eles, essas autoras abrem brechas para a reescritura de tópicos de história da literatura, privilegiada a autoria feminina, possibilidade que Carlos Baumgarten, ao ler Las Otras, aponta: “a própria história da literatura, passa a ser pensada não mais como um discurso de pretensão totalizadora e de caráter excludente, mas como um discurso que, a despeito de seu caráter fragmentado, mantém-se aberto ao outro”.

Imaginadas sob o signo do exílio espiritual e a errância, em correspondência com seu oficio, as mulheres de ficção estão em processo não só criativo, mas autocriativo; suas histórias de vida – mínimas, apócrifas, conjeturais – projetadas à série interminável da escritura-leitura. Indagando nos deslocamentos ontológicos e histórico-culturais, na transumância simbólica e experiência radical da alteridade, as poetas de Las Otras, as escritoras de Escribas, exploram as identidades alternativas que as distinguem. Suas vidas e obras, assim como a vida e os escritos da autora que se autoficcionaliza nos dois livros, tentam criar um efeito de verdade que em modo algum se contrapõe à ficção. Inclusive, a autora deste texto atrevidamente está ensaiando uma autopoética.

Nos livros cobram vida mulheres de palavras, escribas, quer dizer, mulheres que escrevem com o corpo, surpreendidas no momento epifánico em que dão forma à Letra. Desde seus espaços, temporalidades e condição, habitando fronteiras imprecisas que cruzam e refazem, descobrem-se artistas por vocação e atos e vão deixando seus rastros de palavras, autoras de seus mundos imaginários e de si mesmas. Porque disso se trata, da ilusão poética que nos doa outras vidas e permite ressurgir com diversas e inesperadas formas. E se assim for, que estas palavras desalinhavadas também sejam lidas como parte, nem importa se irrelevante, da ficção sem fim...

 

NOTAS

1. MEIRELES, Cecília. Cânticos (1981). [As citações das duas primeiras epígrafes pertencem ao “Cântico XIII”].

2. Las Otras (Antología mínima del Silencio)(2004). [As citações pertencem a esta edição]. O livro pode ser lido online. Ver: http://profaaimeebolanos.webnode.com/

3. Escribas (2013). [As citações pertencem a esta edição].

4. Poesía insular de signo infinito. Una lectura de poetas cubanas de la diáspora (2008). O livro é o resultado do pós-doutorado realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, orientado por Zilá Bernd; também integra a pesquisa realizada na Université du Québec à Montréal, sob a orientação de Simon Harel.

5. Tradução minha em todas as referências parafraseadas.

6. Ver: BOLAÑOS, Aimée G.; GUERRERO, Jorge Carlos (orgs.). Ficções da história: reescrituras latino-americanas, (2013).

7. Ver prefácio de Marcel Schwob. Vidas imaginarias (1980, p. 8-12).

8. Ver: ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea (2010).

9. Sobre o tema, ver: MARTÍNEZ SÁNCHEZ, Yuly Paola. Ficción biográfica de escritor en la narrativa latinoamericana (2018). O leitor pode encontrar valiosas referências teóricas e a leitura crítica de dois romances representativos: La novela de mi vida, de Leonardo Padura, e En nombre de Salomé, de Julia Álvarez.

10. Ver BERND, Zilá (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos (2010); BERND, Z.; DEI-CAS, Norah G. (dir.) Glossaire des mobilités culturelles (2014).

 

Referências

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AIMÉE G. BOLAÑOS (Cuba, 1943). Leitora e escriba de ficção. Professora de literatura na pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Rio Grande, Brasil. Professora adjunta na University of Ottawa, Canadá. Doutora em Filosofia. Pós-doutora em Literatura Comparada. Autora de numerosos livros e artigos em revistas latino-americanas, canadenses, europeias. Conferencista em Universidades de México, Argentina, Colômbia, Canadá, Cuba, Espanha, França, Portugal, Alemanha, Ucrania. Livros de ensaios recentes: Poesía insular de signo Infinito. Una lectura de poetas cubanas de la diáspora e Oficio de lectora. Como coautora Vozes negras da literatura das Américas, Ficções da história, Identidades em diálogo. Tem participado nos livros: Historia de la literatura cubana, Literatura e emigrantes, Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas; Imaginários Coletivos e Mobilidades (Trans)Culturais; Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos, Literatura do íntimo; Diálogos com Paul Ricoeur: ensaios de hermenêutica literária, Huellas francesas en Cienfuegos, Deslocamentos Culturais e suas formas de representação, Revisões do cânone. Obra de ficcão: El Libro de Maat (2002); Las palabras viajeras (2010), Escribas (2013), Visiones de mujer con alas (2016), Alada viajera (2020), Erótica Medusa (2021).

  


CHRISTINE BOUMEESTER (Indonésia, 1904-1971). Nossa artista convidada se expressou através de colagens, óleos, litografias, desenhos, aquarelas. O ritmo de sua plástica define a presença de modulações sugestivas, delicadas passagens de cores e formas, em atmosfera quase onírica. Casada com o gravador Henri Goetz – que ela conheceu em Paris, para onde se mudou, em meados dos anos 1930, após residência em Amsterdã, cidade onde realizou sua primeira individual–, o casal descobre no Surrealismo uma significativa afinidade que definiria sua linguagem. As relações resplandeciam: Picasso, Breton, Éluard, Wilfredo Lam, Hans Arp. Com a chegada da 2ª Guerra Mundial, Christine e Henri se recolhem na pequena Carcassonne, ao sul da França, e ali se encontram com alguns integrantes do grupo surrealista belga (Raoul Ubac, René Magritte, Louis Scutenaire) e, juntos, fundam a revista La main à plume, que resistirá de 1941 a 1944. Após este período Christine realiza uma série de exposições e é celebrada pela crítica como uma relevante artista abstrata, embora essa abstração seja fruto não de uma evasão de sentido, mas antes do recorte de uma paisagem onírica onde a artista busca precisar novos valores imaginários.

  



Agulha Revista de Cultura

Número 226 | março de 2023

Artista convidada: Christiane Boumeester (Indonésia, 1904-1971)

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