sábado, 25 de março de 2023

ZEBBA DAL FARRA | Mudez

 Quando explodiu a Grande Guerra em 1914

o escritor Karl Kraus se opôs

ao entusiasmo da maioria:

 

Quem insufla as ações

[da guerra]

profana a palavra e a ação

e é duplamente desprezível.

 

Os que agora nada têm a dizer

porque a ação captura a palavra

seguem falando.

 

Quem tiver algo a dizer

que dê um passo adiante e se cale!

 

Seu contemporâneo Walter Benjamin

preferiu calar. [1]

 

Grande Guerra de 1914

o discurso da propaganda

atuou efetivamente

como arma.

 

***

 

MUDEZ

 

Há um intento em marcha para livrar a linguagem de sua incômoda espessura, um intento de apagar das palavras todo sabor e toda ressonância, o intento de impor pela violência uma linguagem lisa, sem manchas, sem sombras, sem rugas, sem corpo, a língua dos deslinguados, uma língua sem outro, na qual ninguém se escute a si mesmo quando fala, uma língua despovoada. [2]

 

O alerta do filósofo espanhol José Luis Pardo expõe a mudez da palavra contemporânea, esvaziada e desincorporada pela disseminação crescente de uma linguagem meramente informativa. Desta língua dos deslinguados extirpou-se o seu sabor de boca, pois

 

Para acessar a linguagem, temos que falar uma língua (a – ou as –materna/s, ao menos em princípio) e falá-la desde dentro, com nossa própria voz (manifestando nossas dores e prazeres com ela) e com nossa própria língua. E isso faz com que as palavras nos deixem um resíduo na ponta da língua, um sabor de boca (doce ou amargo, bom ou mau), o que elas nos fazem saber (nos dão a saborear) de nós mesmos e que ninguém mais do que nós pode saber, porque ninguém mais pode saboreá-las com nossa língua e nossa boca, porque a ninguém mais podem soar como a nós nos soam. [3]

 

Calibrada pelas exigências de padronização e modulação da produção em série, a palavra contemporânea deve objetivar os significados, explicitar, explicar. Em nosso mundo dominado pela verdade estatística, a objetivação da linguagem pode ser atestada, por exemplo, nos corretores de texto digitais, cuja sugestão de probabilidades para a continuação das frases demonstra o estreito limite de nosso vocabulário cotidiano. Se as vozes artificiais são tão semelhantes às nossas, é porque já falamos uma língua plana, mecânica, binária: curtir-não-curtir, seguir-não-seguir, concordar-discordar, cancelar-celebrizar. Perdemos a capacidade de saborear e deixar as palavras escorregarem pela língua, de captar sua ressonância ao dizê-las e desfrutar de seu sabor, com a luz das imagens que suscitam, ao encontro do saber que propiciariam.

 

***

Não se trata de devorar

mas de saborear as palavras.

 

Para saborear a comida

é preciso destruir antes de deglutir

o sentido do movimento é de fora para dentro

para garantir prazeres e nutrição. [4]

 

Ao contrário

o sentido vetorial da vocalidade poética aponta para fora

eu saboreio para dizer

a alguém.

 

Saborear é um ato de lapidação e de descoberta

impulso da viagem da palavra

provocadora de sentidos

ao encontro de corpos.

 

O sabor coincidente com o dizer ratifica a não-linearidade da voz. [5]

 

Na deglutição

há sucessão de ações

respirar, saborear, engolir.

 

no dizer

as ações são simultâneas

expirar, saborear, ressoar, ritmar, lançar.

 

***

MUDEZ

 

Na virada do milênio, o dramaturgo e pintor suíço Valère Novarina atesta a condição contemporânea de circulação das palavras como se fossem moedas de troca.

Eis que agora os homens trocam entre si palavras como se fossem ídolos invisíveis, forjando nelas apenas uma moeda:

 

acabaremos mudos de tanto comunicar;

 

nos tornaremos enfim iguais aos animais,

porque os animais nunca falaram

mas sempre comunicaram, muito-muito bem.

Só o mistério de falar nos separava deles.

No final, nos tornaremos animais:

domados pelas imagens,

emburrecidos pela troca de tudo,

regredidos a comedores do mundo e a matéria para a morte.

 

O fim da história é sem fala. [6]

 

A experiência da palavra pela voz em relação significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata. [7] Ocorre que as tecnologias e os espaços virtuais abstraem a presença, digitalizam o circuito entre os corpos: a voz, descarregada dos odores, suores, ruídos e silêncios do livre trânsito, emana agora de um corpo abstrato.

 

***

Habito um texto como habito uma cidade

para orelhas atentas e olhos distraídos

há sempre alguma surpresa

em esquinas antigas.

 

***

MUDEZ

 

Em carta de 22 de agosto de 1603, dirigida a seu amigo Francis Bacon, Lord Chandos preambula um relato de mudez, em gesto confessional.

 

Eu terei de mostrar-lhe o que há dentro de mim - uma estranheza, uma doença, uma fraqueza – se você puder compreender que um abismo sem ponte, intransponível, me separa tanto dos trabalhos literários que eu presumo escreverei, quanto dos que escrevi, estes que hesito chamá-los meus, tão estranhos me parecem.

 

Lord Chandos reclama um vínculo da linguagem com a natureza e uma unidade da existência, cuja separação o afeta porque possui um sabor de boca, no rastro da palavra, ao passo que a língua se tornará crescentemente despovoada e falada por deslinguados.

 

Em poucas palavras: naquele tempo, embebido numa espécie de embriaguez permanente, toda a existência se apresentava como uma grande unidade: entre mundo mental e físico não havia contradição alguma, como tampouco entre o gentil e o animal, entre a arte e a barbárie, a solidão e a companhia; em tudo percebia a natureza […] e em toda a natureza me percebia a mim mesmo. [8]

 

Este processo se inicia historicamente no umbral do século XVII, diz Foucault:

 

No seu ser bruto e histórico do século XVI, […] a linguagem faz parte da grande distribuição das similitudes e das assinalações. Por conseguinte, deve, ela própria, ser estudada como uma coisa da natureza. Seus elementos têm, como os animais, as plantas ou as estrelas, suas leis de afinidade e de conveniência, suas analogias obrigatórias. […] A linguagem não é o que é porque tem um sentido; seu conteúdo representativo […] não tem aqui papel a desempenhar. As palavras agrupam sílabas e as sílabas, letras, porque há, depositadas nestas, virtudes que as aproximam e as desassociam, exatamente como no mundo as marcas se opõem ou se atraem umas às outras. [9]

 

Lord Chandos habita o limiar do divórcio entre as palavras e as coisas, nas bordas do Renascimento, e se insere no movimento de separação que ocorre na fronteira da modernidade, do qual o corte anatômico [10] é seu gesto objetivo e preciso.

 

As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais que o que ele diz. Imensa reorganização da cultura de que a idade clássica foi a primeira etapa, a mais importante talvez, posto ser ela a responsável pela nova disposição na qual estamos ainda presos — posto ser ela que nos separa de uma cultura onde a significação dos signos não existia, por ser absorvida na soberania do Semelhante; mas onde seu ser enigmático, monótono, obstinado, primitivo, cintilava numa dispersão infinita. [11]

 

Lord Chandos vê palavras flutuando ao seu redor, mas que se desintegram em uma língua que já não diz. A cintilação vira um redemoinho que o captura, leva ao vazio e o impele a fugir.

 

***

 

Em 18 de outubro de 1902, Hugo von Hofmannsthal publica Uma Carta, sobre a qual diz Jorge Larrosa:

 

A carta está datada de 22 de agosto de 1603, e nela Lord Chandos descreve a seu amigo Francis Bacon os sintomas de uma estranha doença: as palavras abstratas, que naturalmente a língua precisa dizer para expressar qualquer ideia, se esfarinhavam na minha boca como cogumelos podres. Porém, o rastro desta enfermidade atravessa o século XX e alcança dimensões de pandemia nessa sociedade que se chama a si mesma do conhecimento, da informação e da comunicação. [12]

 

 

1603, 1902, 2023. Nos saltos temporais que o texto do escritor austríaco propõe e provoca, as palavras falham no seu propósito de dizer o mundo: a virada do século XVII, época do emudecimento da personagem Lord Chandos, quando “as coisas e as palavras vão separar-se”; o umbral do século XX, momento da criação do texto por Hofmannsthal, prenúncio da captura das palavras pela propaganda da guerra; e o momento atual, estágio avançado da saturação das palavras.

Os gestos de Lord Chandos são um relato de mudez e um ato de fuga no sentido pré-moderno, em que “o mundo é coberto de signos que é preciso decifrar, e estes signos, que revelam semelhanças e afinidades, não passam, eles próprios, de formas da similitude. Conhecer será, pois, interpretar: ir da marca visível ao que se diz através dela e, sem ela, permaneceria palavra muda, adormecida nas coisas.” [13]


Evidencia-se aqui a diferença fundamental entre os emudecimentos pré-moderno e contemporâneo da palavra. Aquela palavra muda é promessa e desejo de expressão. Na atualidade, a palavra é muda por saturação de informação comunicativa, por sua redução a dimensões modulares, próprias das produções em série. A objetividade científica, apoiada na linguagem verbal, atinge o contato entre as pessoas, mediado pela palavra. O mundo global é dominado pela hegemonia científica, avalizada pela erudição. No saber até o século XVI, magia e erudição acolhiam-se, ao mesmo tempo e no mesmo plano.

 

***

 

A superação das dicotomias entre corpo e voz, som e sentido, impõe um enfrentamento com a própria linguagem. Não por acaso, nota-se atualmente o surgimento de vários neologismos para dar conta da integridade destas instâncias fragmentadas: corpo-voz, corpovoz, corpo-vocal, corpooral, palavra-corpo. Contestando o estudo da literatura oral sem atentar para os corpos e vozes dos sujeitos que a criaram e propagaram, Paul Zumthor propôs substituir oralidade por vocalidade. [14] Portanto, vocalidade pressupõe a solidariedade entre corpo e voz. Em situação teatral, nos processos de relações em movimento, para vocalidade diz-se vocalidade poética. Entre vocalidade e vocalidade poética, é a dimensão do adjetivo poética que posiciona ator, atriz, performer e aprendiz, no espaço entre ficção e não-ficção, terreno transitório próprio do contemporâneo.

 

***

 

Na vocalidade poética, o grão da voz não nega o logos pelo protagonismo da phoné, mas aposta na vocalização do logos desvocalizado, [15] em um dizer que se constrói em trânsito, na dobra entre o íntimo e o público. Não se trata de isolar o som do sentido, mas de liberar conexões na ressonância. O dizer em trânsito se constitui entre nós, não se apoia na apropriação do texto pelo ator, mas antes que ele se deixe levar pelo fluxo das frases, exponha-se aos impulsos dos versos, contagie-se pelos rastros das palavras na ponta da língua.

Vocalizar o logos. Entre o fonético e o fonológico, entre dizer e cantar, entre som e sentido.

 

***

Há um silêncio na escuta

silêncio fecundo

como o da pausa presente na respiração

sopro de Artaud [16]

 

pausa de retomada do ciclo

fronteira entre os afetos presentes no já dito

em tensão com o dizer que virá.

 

Gesto e ação da palavra

exigem seu facho de sombra

seus espectros de silêncios

seus ruídos singulares.

 

a vocalidade contemporânea

se arrisca em habitar essa fratura

em busca da ressonância perdida

capaz de soldar o dorso do tempo. [17]

 

***

O ator e a atriz em vocalidade poética superam a condição de falantes que também são. Valère Novarina analisa esta superação poética, quando diz que

 

Falar não é comunicar. Falar não é trocar nem fazer escambo – das ideias, dos objetos -, falar não é se exprimir, designar, esticar uma cabeça tagarela na direção das coisas, dublar o mundo com um eco, uma sombra falada; falar é antes abrir a boca e atacar o mundo com ela, saber morder. O mundo é por nós furado, revirado, mudado ao falar. Tudo o que pretende estar aqui como um real aparente pode ser por nós subtraído ao falar. As palavras não vêm mostrar coisas, dar-lhes lugar, agradecer-lhes educadamente por estarem aqui, mas antes parti-las e derrubá-las. [18]

 

A morte é condição de fecundidade. As palavras que minha voz murmura, balbucia, pronuncia, acusticamente mortas quando atiradas ao ar no sentido dos outros, vivem pelo poder de nossas escutas, fecundam nossos afetos, provocam nossos pensamentos, violam nossas peles, ressoam nossas intimidades, impelem nossas ações.

Entretanto, condenadas pelo uso cotidiano e por sua configuração contemporânea de informação, as palavras se esquivam do risco: nem vivem, nem morrem. Permanecem anestesiadas, sem peso, sem espessura, sem volume, sem densidade. O perigo da exposição à singularidade da voz do sujeito poético ameaça a ordem do capitalismo recente, cuja manutenção exige todos os esforços dos especialistas, dos políticos, dos funcionários, dos jornalistas, para esvaziá-la de conotação, de melodia, de ressonância, de música, de cor, e reduzi-la a simples portadora de informação, à sua mínima condição utilitária.

 

***

Em discurso no Fórum Social Mundial de 2005, José Saramago atenta para o esvaziar da ideia de democracia:

 

A democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada […] As grandes decisões são tomadas numa outra esfera. E todos sabemos qual é. As grandes organizações financeiras internacionais, os FMI’s, as Organizações Mundiais do Comércio, os Bancos Mundiais, […] nenhum desses organismos é democrático. Como podemos falar de democracia, se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo? [19]

 

A palavra democracia parece ocultar a palavra capitalismo, proscrita dos noticiários. Não obstante a distância entre democracia e capitalismo, diariamente somos bombardeados por frases do tipo desrespeito à democracia, lutamos por liberdade e democracia, isso não condiz com a democracia. Na manobra, a palavra democracia, que exige a igualdade como seu primeiro lema, encapsula o capitalismo, que exige a desigualdade, a competição e a exploração como condição de existência.

 

A democracia é a máscara do capitalismo.

 

***

Falar contra a música, prescrevia Bertolt Brecht[20], na época da Ópera de Três Vinténs, para criar um

 

espaço de estranhamento

 

um vazio provocador do confronto da palavra em circulação com os sentidos de suas múltiplas camadas,

 

para quebrar a familiaridade das palavras,

sua automação, seu desgaste,

para rasgá-las, perfurá-las desde dentro:

 

vesti-las de assombro.

 

Em nossa época, vozes sitiadas que somos pelas palavras reduzidas à informação e à comunicação, uma missão contemporânea da vocalidade poética será pensar contra a língua, falar contra as palavras e cantar contra a música, pois

 

cada palavra de teu idioma tem uma armadilha:

mais adiante aprenderás a pensar

contra tua própria língua. [21]

 

Estranhar significa historicizar.

 

***

Vocalidade poética contemporânea

prazer dialético

que corta

estranha

historiciza

e assombra.

 

***

 

À imagem mecânica e instrumental da linguagem que nos propõe o grande sistema de mercado que vem estender sua rede sobre nosso Ocidente desorientado, à religião das coisas, à hipnose do objeto, à idolatria, a esse tempo que parece se ter condenado a ser apenas o tempo circular de uma venda perpétua, a esse tempo no qual o materialismo dialético, desmoronado, dá passagem ao materialismo absoluto

 

oponho

 

nossa descida em linguagem muda na noite da matéria de nosso corpo pelas palavras e a experiência singular que cada falante faz, cada falador daqui, de uma viagem na fala;

 

oponho

 

o saber que nós temos, que existe, bem no fundo de nós, não algo do qual seríamos proprietários (nossa parcela individual, nossa identidade, a prisão do eu), mas uma abertura interior,

 

uma passagem falada. [22]

 

***

MUDA

 

A linguagem impronunciável do mundo confirma uma língua esvaziada de ressonância. Se a constatação do
esvaziamento da experiência com as palavras nos atormenta, talvez da própria palavra muda possa nascer uma vocalidade viva e vibrante, pois, no dizer do poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843),

 

onde há o perigo, cresce também o que salva.

 

Talvez a palavra muda

emudecida

possa engendrar

a palavra-broto

galho

muda de árvore

a palavra-mudança

transformação.

 

 

NOTAS

Este artigo é corolário direto do estágio pós-doutoral Linguagem, experiência e memória: poéticas da voz do narrador e do cantor como sujeitos do ator, realizado na Universitat de Barcelona, em 2011, com financiamento da Fapesp e supervisão de Jorge Larrosa. Desenvolvi seus temas principais no livro Palavra Muda. Sobre poéticas para vozes em Estado de Sítio (DAL FARRA MARTINS, 2020).

1. KOVACSICS, 2007. Traduzido por Dal Farra.

2. PARDO, 2000. Traduzido por Dal Farra.

3. PARDO, 2004. Traduzido por Dal Farra.

4. Diz Hannah ARENDT (1987), na seção Labor e fertilidade, de sua grande obra A condição humana: Ambos [o trabalho e o labor] são processos devoradores que se apossam da matéria e a destroem: o trabalho realizado pelo labor em seu material é apenas o preparo para a destruição final deste último. Podemos dizer que a vocalidade poética – projeto de atuação da atriz, do narrador, do cantor, da performer – encontra-se entre o ser e o fazer, entre o labor e o trabalho. O labor instaura um saber orgânico, necessário à manutenção constante da vida; o trabalho, um saber poético, de fabricação. A observação de Hannah Arendt nos instiga a indagar: o que a voz destrói quando se lança? De fato, há uma queima energética própria dos processos corporais, mas há também uma espécie de poda no teor de memórias, pensamentos e emoções: quando eu digo, coloco para fora, desabafo, confesso, declaro. Parece haver aí também uma destruição, no sentido da transformação já inerente ao labor, quando garante a manutenção do ciclo vital.

5. BARTHES (1987) sugere uma anisotropia do texto: Se você mete um prego na madeira, a madeira resiste diferentemente conforme o lugar em que é atacada: diz-se que a madeira não é isotrópica. O texto tampouco é isotrópico: as margens, a fenda, são imprevisíveis. Assim também a voz e a vocalidade poética, pluralidade corporal de ritmos, ressonâncias, respirações.

6. NOVARINA, 2003. Grifei.

7. ZUMTHOR, 2001.

8. HOFMANNSTHAL, 2010. Traduzido por Dal Farra.

9. FOUCAULT, 1992. Grifei.

10. David LE BRETON (2013) marca o surgimento do homem anatomizado no limiar da modernidade: Anteriormente o corpo não está singularizado do sujeito ao qual empresta um rosto. O homem é indissociável de seu corpo, ele ainda não está submetido a esse singular paradoxo de ter um corpo. Durante toda a duração da Idade Média, as dissecções são proibidas, impensáveis mesmo. A introdução violenta do utensílio nos corpos seria uma violação do ser humano, fruto da criação divina. Além disso, seria atentar sobre a pele e a carne do mundo. No universo dos valores medievais, o homem está tomado pelo universo, ele condensa o cosmo. Com os anatomistas, […] nasce o dualismo contemporâneo que, de um modo igualmente implícito, considera o corpo isoladamente, em uma espécie de indiferença em relação ao homem ao qual empresta seu rosto. […] O corpo é posto em suspensão, dissociado do homem, ele é estudado por si mesmo, como realidade autônoma.

11. FOUCAULT, 1992. Grifei.

12. LARROSA, 2010. Traduzi. Grifei.

13. FOUCAULT, 1992. Grifei.

14. ZUMTHOR, 2000.

15. CAVARERO, 2011.

16. ARTAUD, 1983.

17. AGAMBEN, 2009.

18. NOVARINA, 2003.

19. SARAMAGO, 2005.

20. BRECHT, 1978.

21. Juan Goytisolo, escritor catalão. In: LARROSA, 2010. Traduzi.

22. NOVARINA, 2003.

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

ARTAUD, Antonin. Um atletismo afetivo. In: O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1983.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978.

CAVARERO, Adriana. Vozes Plurais. Belo Horizonte, UFMG, 2011.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

HOFMANNSTHAL, Hugo von. Una Carta. Bogotá: Asolectura, 2010.

KOVACSICS, Adan. Guerra y lenguaje. Barcelona: Acantilado, 2007.

LARROSA, Jorge. Herido de realidad y en busca de realidad. Notas sobre los lenguajes de la experiencia. In: DOMINGO, José Contreras y FERRÉ, Núria Pérez de Lara (org.). Investigar la experiencia educativa. Madrid: Morata, 2010.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. São Paulo: Editora Vozes, 2013.

NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

PARDO, José Luis. La Intimidad. Valencia: Pre-Textos, 2004.

___. Carne de palabras. In: VALENTE, José Ángel. Anatomía de la palabra. Valencia: Pre-Textos, 2000.

___. Los pájaros de la lengua. In: Estética de lo peor. Madrid: Pasos Perdidos, 2010.

SARAMAGO, José. Discurso durante o Fórum Social Mundial. Porto Alegre: janeiro de 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m1nePkQAM4w. Acesso em 30/05/2018.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Editora da PUC, 2000.

 

 

 

ZEBBA DAL FARRA. Músico, encenador, ator e cantor, é professor e pesquisador livre-docente sênior do Departamento de Artes Cênicas (ECA-USP). Atua nos campos do teatro e da música, dedicando-se especialmente ao estudo da voz e das vocalidades poéticas contemporâneas, em conexão com a canção brasileira. Em 2020, publicou os livros Palavra Muda. Sobre poéticas para vozes em Estado de Sítio e O ser aprendiz. Um itinerário com Myrian Muniz, pela Editora Giostri.

 

 



CHRISTINE BOUMEESTER (Indonésia, 1904-1971). Nossa artista convidada se expressou através de colagens, óleos, litografias, desenhos, aquarelas. O ritmo de sua plástica define a presença de modulações sugestivas, delicadas passagens de cores e formas, em atmosfera quase onírica. Casada com o gravador Henri Goetz – que ela conheceu em Paris, para onde se mudou, em meados dos anos 1930, após residência em Amsterdã, cidade onde realizou sua primeira individual–, o casal descobre no Surrealismo uma significativa afinidade que definiria sua linguagem. As relações resplandeciam: Picasso, Breton, Éluard, Wilfredo Lam, Hans Arp. Com a chegada da 2ª Guerra Mundial, Christine e Henri se recolhem na pequena Carcassonne, ao sul da França, e ali se encontram com alguns integrantes do grupo surrealista belga (Raoul Ubac, René Magritte, Louis Scutenaire) e, juntos, fundam a revista La main à plume, que resistirá de 1941 a 1944. Após este período Christine realiza uma série de exposições e é celebrada pela crítica como uma relevante artista abstrata, embora essa abstração seja fruto não de uma evasão de sentido, mas antes do recorte de uma paisagem onírica onde a artista busca precisar novos valores imaginários.

 

 



Agulha Revista de Cultura

Número 226 | março de 2023

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