A referida
tese buscou percorrer os romances históricos de Alejo Carpentier, a fim de identificar
as transformações e permanências das ideias de revolução e América latina nessas
obras. Ao problematizar as transformações e as contradições
entre as diferentes concepções de história que regem as composições dos romances
históricos de Carpentier nos guiamos pelas seguintes questões: Seria possível agrupar
sob um único conceito de romance histórico essas obras? Como se apresenta em cada
uma delas a visão do autor sobre a cultura latino-americana e qual a relação desta
com a ação política? Quais as articulações que essas narrativas estabelecem entre
os tempos passado/presente/futuro e qual o lugar da revolução como conceito modulador
dessas articulações?
A tese
central que viemos desenvolvendo, nestes últimos anos em que nos debruçamos sobre
os romances históricos de Alejo Carpentier, poderia ser resumida da seguinte maneira:
existe uma solução de continuidade radical entre as representações da história que
definem estética e politicamente os romances históricos O reino deste mundo e A consagração
da primavera.
Posicionando-nos contra a visão teleológica, tão
difundida por uma parcela importante da extensa fortuna crítica do autor, que insiste
na leitura que atribui aos anos de formação do jovem Carpentier uma revolta embrionária
que teria dado origem ao personagem mundialmente conhecido do intelectual-embaixador
da revolução cubana, viemos insistindo na necessidade de historicizar a produção
literária deste autor; procurando relacionar em cada um de seus romances históricos:
o tempo de escritura, o tempo da narrativa e o tempo utópico. Para isso nos foram
de fundamental importância a consulta de seu epistolário, a análise de suas crônicas
jornalísticas e a leitura minuciosa dos intelectuais que lhe eram contemporâneos.
A ideia de revolução — central
nos romances históricos de Alejo Carpentier por estabelecer o salto hermenêutico
que articula a estória particular narrada nos romances a uma série de generalizações
que permitiram a esse intelectual cubano intervir no debate latinoamericanista do
século XX — sofreu,
ao longo das três décadas que separam a escritura dos romances em questão, uma alteração
qualitativa que, na nossa compreensão, de forma alguma pode ser compreendida enquanto
alteração quantitativa.
Enquanto no primeiro romance, O reino deste mundo, a revolução é pensada
como um processo de desdobramento das potencialidades da cultura que se caracteriza
por manter em aberto o horizonte de expectativas; no segundo caso, a revolução é
representada como um processo eminentemente político de instauração de uma nova
forma social conduzida por uma vanguarda política que anseia controlar o espaço
de experiência e as dinâmicas culturais.
Essa passagem da ideia de revolução enquanto processo
cultural conduzido por uma eticidade à ideia de um processo político conduzido por
uma moralidade não pode, a nosso ver, ser interpretada como um progresso, uma evolução,
um aperfeiçoamento ou uma clarificação do sistema conceitual e das motivações poéticas
e políticas que levaram Alejo Carpentier a manter sua eleição inicial pelo romance
histórico como gênero adequado à expressão de suas proposições latino americanistas.
Em nossa opinião — e essa é
a tese que tentaremos demonstrar brevemente aqui — a diferença substancial entre essas duas compreensões
da ideia de revolução alteram radicalmente o tratamento literário que Alejo Carpentier
concede ao conteúdo propriamente histórico em suas narrativas. O percurso que faremos
para corroborar nossa asseveração é o de reestabelecer as condições políticas dos
tempos em que essas obras foram escritas e que, em boa medida, determinaram a configuração
dessas distintas poéticas da história latino-americana com suas antagônicas formas
de articulação dos tempos passados e futuros.
Neste sentido é que nos propomos a estabelecer
algumas relações entre as principais diferenças entre estes dois romances e os diferentes
lugares que o autor ocupava ao tempo que os escreveu, entre os contextos políticos
de suas escritas e as distintas posturas políticas expressas pelo autor nesses períodos.
Se O reino
deste mundo expressa as experiências dos anos de formação do autor — a influência
dos estudos afro-americanos de Don Fernando Ortiz, os influxos vanguardistas da
revista Avance e o convívio no interior
do grupo minorista — A consagração da primavera
resulta das experiências pós-revolucionárias onde Alejo Carpentier assumiu o eminente
lugar de articulador da rede de intelectuais em defesa da revolução cubana.
É à luz dessas experiências que devemos compreender
a substituição do tempo cíclico, do pessimismo crítico e da ideia de revolução como
processo cultural regido por uma noção de eticidade que definem a poética da história
em O reino deste mundo; pelo tempo linear
progressivo, o otimismo histórico e uma ideia de revolução enquanto processo político
regido por uma moralidade específica apresentadas em A consagração da primavera.
Para compreendermos o alcance da transformação
nessas representações literárias da história e as implicações impressas por ela
no latino americanismo de Alejo Carpentier, em sua visão da cultura e sua valoração
do fenômeno da mestiçagem e das matrizes culturais não-europeias, iniciaremos por
examinar comparativamente a presença das práticas culturais afro-americanas nestas
duas obras. Se pode realmente afirmar que a visão de Carpentier sobre a cultura
latino-americana seja idêntica nestes dois romances? Quais relações existem entre
essas visões, a ideia de revolução e a imagem do tempo histórico que emerge dessas
obras? Iniciemos por estabelecer rapidamente algumas comparações que nos servirão
de apoio no transcurso de nossa argumentação.
Nesse sentido, é que afirmamos que o latino americanismo
de Carpentier em O reino deste mundo parte
de uma particularidade, o vodu é na realidade um círculo cultural estreito e, razoavelmente,
fechado no interior da totalidade cultural latino-americana e o processo revolucionário
haitiano se diferencia dos demais processos de independências latino-americanas
pela radicalidade com que enfrentou os temas da escravidão e do racismo colonialista.
A trajetória do personagem Ti Noel é inversa ao
processo que acostumamos a designar como mestiçagem cultural e que serviu de base
a mais de um dos tantos projetos de estado-nação das nascentes republicas hispano-americanas.
A iniciação de Ti Noel no universo da santería
haitiana e o abandono de sua cosmovisão mestiça lhe levam a assumir um compromisso
político com a causa revolucionária. Sua reinserção identitária na tradição afro-americana
é indissociável de seu engajamento na luta revolucionária e o ápice de sua decepção
com o mundo mestiço se dá quando durante o processo revolucionário Ti Noel se depara
com a república dos mulatos.
Já em A
consagração da primavera, a cultura afro-americana surge quando a bailarina
Vera, de origem russa, decide utilizar dançarinos afro-americanos no seu projeto
de montagem do ballet de Stravinski sobre as origens míticas da nação eslava. Através
desses dançarinos, Alejo Carpentier define uma dupla relação entre a cultura e a
revolução: do ponto de vista estético eles revolucionam o ballet com seus movimentos
corporais e, do ponto de vista político, por manterem laços orgânicos com os grupos
urbanos que mantinham viva a luta clandestina contra a ditadura de Fulgêncio Batista
— laços esses
que terminam por arrasar o sonho apolítico de Vera e lhe arrastar definitivamente
pelos caminhos da revolução.
Sem dúvidas, nesses dois casos, ao contrário do
romance O reino deste mundo, se pode perceber
um elogio do fenômeno da mestiçagem. Seja pela postura vanguardista de utilizar
dançarinos da santería com o intuito de
aportar inovações estéticas e revolucionar uma arte tradicional como o ballet, ou
pelo vanguardismo da atuação política destes personagens expondo-se a todos os riscos
que essa decisão implicava.
Nos dois casos, ao contrário de Ti Noel, a trajetória
dos personagens negros segue um movimento que parte da cultura afro-cubana em direção
ao universo da arte e dos grupos universitários de contestação política: a sua constituição
enquanto sujeitos históricos revolucionários equivale às capacidades que demonstram
de incorporar e fusionar os elementos culturais de sua origem às exigências de uma
cultura que lhes é estranha.
Essa diferença entre essas representações do universo
afro-americano sinalizam uma diferença de fundo na própria definição de como Alejo
Carpentier pensava a relação entre cultura e revolução enquanto elemento chave na
composição do romance histórico: na medida em que anuncia a substituição da prevalência
do cultural sobre o político por uma predominância do político sobre o cultural.
O romance histórico deixa de ser um lugar de afirmação
e investigação sobre como a diferença cultural pode produzir a mudança revolucionária
e se transforma em lugar de afirmação e investigação sobre como a política revolucionária
pode possibilitar o desenvolvimento e a integração dos projetos culturais. Esta
nova relação, entre a cultura e a política, termina por afastar o romance histórico
das famosas formulações de Carpentier sobre o real maravilhoso americano e aproxima-o
de um realismo político com certas semelhanças ao realismo socialista.
Se, na
primeira definição, o romance histórico levantava um problema político em termos
culturais; na segunda, até as batalhas e os embates do campo estético (figurativismo
x abstracionismo, vanguardismo x modernismo, etc.) são apresentados em termos políticos.
O crítico Leonardo Padura, interpretou com muita precisão esse deslocamento do sentido
da cultura afro-americana no latino americanismo de Carpentier, ao assinalar a importância
de um episódio relativamente marginal no desenvolvimento do argumento do romance
e extrair dele implicações ousadas para o esclarecimento dessa questão.
O episódio a que nos referimos é o primeiro contato
de Vera com o universo da santería. Levada
pelas mãos de Gaspar — o músico comunista — a uma cerimônia, Vera se deslumbra com as capacidades corporais
e gestuais dos participantes do ritual e inicia seu plano de incorporá-los ao seu
antigo sonho de realizar uma montagem do ballet de Stravinski. Nessa visita, Gaspar
trata de desqualificar por completo a visão mágica de mundo da santería e atribui à pura sugestão e comédia
o fenômeno da incorporação. A conclusão de Padura sobre este episódio é bastante
ousada e vai de acordo à nossa argumentação:
En la boca de Gaspar, entonces, la valoración
del mundo mágico de los negros cubanos como barbarie y superstición constituye algo
más que una opinión: resulta una sentencia inapelable que Carpentier, de acuerdo
con sus preceptos ideológicos del momento, lanza sobre un universo del que había
extraído más de una historia, más de un personaje, y muchísimas aristas capaces
de develar la singularidad americana que definió como lo real maravilloso en su
texto de 1948 (PADURA, 2002).
Essa negação da autenticidade da cosmovisão da
santería, em função de uma apreciação
racionalista e intelectualista, define uma nova abordagem às visões mágicas de mundo
completamente oposta ao que caracterizara O
reino deste mundo e as formulações de Carpentier a respeito do real maravilhoso.
Para Padura, essa nova abordagem corresponderia a uma nova postura filosófica e
ideológica de Carpentier: se trataria de uma nítida expressão de sua aproximação
à filosofia marxista da história e aos postulados estéticos do realismo socialista.
Para além do fato de que essa nova concepção da
história latino-americana seja uma consequência de sua nova posição política, parece-nos
mais significativa a afirmação de Padura sobre como a negação de Gaspar à autenticidade
da experiência do transe seria, na verdade, expressão literária de uma mudança do
próprio Carpentier em relação às matrizes não europeias da cultura latino-americana
e, consequentemente, uma nova avaliação do fenômeno da mestiçagem.
Perceba-se que não se trata aqui de uma questão
menor, ou de um simples detalhe, e sim da substituição de um latino americanismo
baseado numa visão culturalista por um latino americanismo político, onde o espaço
de afirmação das tradições não europeias está restrito às possíveis apropriações
e reelaborações, que no campo da política ou da estética, esta tradição possa sofrer
por parte de uma consciência erudita que as reorganiza de acordo com convenções
formais que lhe são completamente estranhas.
Se o real maravilhoso de O reino deste mundo expressava a valoração positiva da alteridade cultural
por uma consciência erudita (o narrador) que atribuía às forças mágicas do vodu
haitiano os impulsos primordiais do processo revolucionário; em A consagração da primavera, essa consciência,
passa a perceber essa alteridade como simples fonte de onde pode extrair os elementos
necessários para lograr seus próprios avanços e superações — de maneira
muito similar às propostas folcloristas e vanguardistas que Carpentier rechaçara
em sua denúncia dos artifícios surrealistas na década de 40.
No primeiro caso, encontramos a formulação de
que a originalidade latino-americana residiria na diversidade de experiências que
permitiram a Carpentier, questionar o discurso hegemônico que identificava as independências
históricas como realização revolucionária e utilizar o romance histórico para reinterpretar
o passado e forjar um conceito de revolução. No segundo caso, encontramos a formulação
de que a originalidade latino-americana residiria na realização de uma série de
fusões culturais que terminariam por oferecer novas perspectivas ao desenvolvimento
da arte e da política sem, necessariamente, ter em consideração as lógicas culturais
intrínsecas a essas visões mágicas de mundo.
Paradoxalmente, à dissolução do maravilhoso corresponde
o surgimento de uma leitura unidimensional da história, convertida em narração que
devora a alteridade e descrê de sua potencialidade revolucionária. Seguindo a argumentação
de Padura, defendemos que esse movimento, que críticos tão importantes como o venezuelano
Alexis Marques e tantos outros definiram como sendo la evolución filosófica de
Carpentier, era na verdade expressão literária de uma guinada de orientação
política radical no pensamento de Carpentier que ao integrar-se tardiamente ao grupo
que levara a cabo a revolução de 59 assumia para si uma
[C]oncepción definitivamente optimista
del desarrollo histórico, del papel de las masas en la lucha revolucionaria, de
la preponderancia del factor económico, del transcurso dialéctico del tiempo, de
las condicionantes históricas que permiten el florecimiento de las dictaduras y
las dependencias neocoloniales y otras máximas y leyes generales del desarrollo
patentadas por la filosofía marxista de la historia y su concepción de realidad
(PADURA, 2002).
Essa descrição do novo conceito de história manejado
em A consagração da primavera nos leva
a levantar outra série de problemas: seria então esse romance, que Carpentier designou
como uma épica da revolução, uma mera tentativa de adequar o romance histórico ao
conceito marxista de história? Estaria, nesse romance, reduzida a representação
literária da história a uma função legitimadora do processo revolucionário cubano
e justificadora de sua adesão pessoal a esse processo? Quais as estratégias e os
alcances que esse novo conceito de história permitia ampliar para a história latino-americana
alguns elementos particulares da experiência cubana como o vanguardismo, o foquismo,
o voluntarismo, a valorização heroica do passado, a teoria do homem novo e do pecado
original dos intelectuais?
Nossa leitura de A consagração da primavera nos levou a concluir que nesse romance o
tempo histórico está organizado de maneira linear e progressista. Toda a tessitura
das memórias dos personagens, intrínsecas ao enredo, se revelam como artifícios
literários insuficientes para ocultar o sentido unidirecional e unidimensional que
a história assume nesse romance.
Os personagens protagonistas se deslocam no tempo
e no espaço ao ritmo de um metarrelato que concatena a série de revoluções retratadas
na novela e que tem por desfecho e ápice a própria revolução cubana. Existe uma
ideia de história universal que funciona como metarrelato ao determinar o sentido
particular de cada acontecimento na trama e, progressivamente, eliminar e homogeneizar
a multiplicidade temporal que, em O reino
deste mundo, Carpentier demonstrara, magistralmente, ser uma característica
singular do processo histórico latino-americano.
Para concluir nossa breve comparação da poética
da história nestes dois romances gostaríamos de afirmar que nos dois casos algo
se manteve intacto e resistiu à passagem do tempo: a ideia de que o romance histórico
se utiliza da interpretação do passado enquanto recurso de expressão de uma tomada
de posição política no tempo presente da escritura.
As diferenças que apontamos no caso dos romances
aqui abordados, não devem ocultar o fato de que, nos dois casos, a descrição dos
acontecimentos históricos obedecia a um sistema hermenêutico mais amplo que determinava
o lugar e o sentido de cada acontecimento dentro da narrativa literária. Esse procedimento
foi o que permitiu a Alejo Carpentier extrair dos sucessos particulares que narrava
suas proposições gerais sobre Latinoamérica.
Retomando os termos de Koselleck, podemos afirmar
que enquanto em O reino deste mundo o
efeito pretendido pela representação literária da história era forjar um novo horizonte
de expectativas desde a reconstituição de um determinado espaço de experiência;
no caso de A consagração da primavera,
Carpentier buscou tornar familiar uma nova e inusitada experiência e utilizou a
reconstrução literária da história como uma ferramenta que tornava visível as possíveis
sementes, origens e antecedentes dessa experiência.
Possivelmente, uma das dificuldades de Carpentier
em encontrar soluções narrativas adequadas ao tema que se propôs em A consagração da primavera, consistia na
proximidade temporal dos acontecimentos que elegera e na proximidade entre esses
acontecimentos e sua própria biografia; ainda mais problemático parece ter sido
o fato de ter que reavaliar o passado recente desde a perspectiva de um desenlace
até pouco tempo inesperado para muitos, inclusive para ele mesmo: a vitória revolucionária
de 59 e a adesão ao socialismo em 61.
Ainda que os movimentos sociais cubanos, suas
organizações estudantis e operárias, sempre estivessem atuantes contra o governo
de Batista e o intervencionismo estadunidense que o caracterizou; a vitória de um
processo revolucionário radical parecia bastante remota e contrária às experiências
de Alejo Carpentier, que nesse período vivia em Caracas e ainda pensava na história
do subcontinente como uma sucessão de tentativas frustradas de alcançar uma autêntica
revolução.
Utilizando-se das expressões cunhadas pelo historiador
Rafael Rojas, podemos dizer que, para Alejo Carpentier, não era tarefa de fácil
execução abandonar o fértil mito da revolução inconclusa, que lhe rendera o precioso
romance O reino deste mundo, e abraçar
o incerto mito da revolução vitoriosa que regeria a poética da história em A consagração da primavera.
De acordo com o historiador
cubano, o mito da revolução inconclusa tem uma longa história na tradição intelectual
cubana, tendo perpassado as representações do passado da ilha e, muitas vezes, de
toda a América latina em representativos pensadores de diversos matizes ideológicos.
Remontando à ideia de nação independente como um projeto inacabado, esses pensadores
elaboraram uma poderosa interpretação do passado que permitia derivar uma série
estratégias no campo da mobilização política.
Se, por um lado, essa interpretação trazia em seu bojo uma falsificação da história, ao nivelar acontecimentos tão díspares como a guerra separatista de 1868 e a chamada revolução de 1933; é, justamente, ela que vai permitir a gerações de intelectuais ancorarem seus projetos utópicos de transformação da realidade cubana e latino-americana. Se toda a história de Cuba e, por extensão, da América Latina, resume-se a uma série de revoluções frustradas em suas pretensões mais centrais, a tarefa do intelectual engajado permanece sendo a construção de uma crítica do presente e a ação revolucionária uma missão a ser cumprida: um dever e um destino.
Se, por um lado, essa
coexistência de uma heurística historiográfica e de uma explicação mítica, reduzia
a natureza particular das revoluções históricas a uma ideia abstrata de Revolução
que guardava mais utilidade como estratégia de ação política do que como ferramenta
conceitual de conhecimento do passado, já que como enfatiza o próprio Rojas no
existió tal Revolución eternamente frustrada e inconclusa porque no hubo una, sino
várias revoluciones, con sus propias ideas, valores, metas y actores. (Rojas,
2006). Por outro lado, foi essa mesma característica que permitiu a Alejo Carpentier
arquitetar seu primeiro romance histórico e se inserir num campo discursivo estabelecido
desde o século XIX:
Este mito, aunque reforzado en los años 60 y 70 del siglo XX, como parte de
una legitimación discursiva de un poder revolucionario que se imaginaba eterno,
surgió en las últimas décadas del siglo XIX, dentro de la mentalidad de algunos
caudillos separatistas de la primera guerra (1868-1878), como Máximo Gómez y Antonio
Maceo, y, con especial fuerza retórica, dentro de la obra intelectual y política
del joven José Martí. Estos tres líderes independentistas organizaron una nueva
guerra en Cuba, la de 1885, en buena medida con el argumento de que la anterior,
la de los Diez Años, había sido frustrada por el Pacto de Zanjón, una transacción
entre las tropas rebeldes y el ejército colonial español que, en 1878, ofreció a
los cubanos amnistía y olvido del pasado, representación en las Cortes, derecho a constituir
partidos y ampliación de las libertades públicas. Martí, con su legendaria elocuencia,
dirá que en el Zanjón España asesinó la revolución cubana. (ROJAS, 2006)
O contexto de escrita e publicação de A consagração da Primavera era radicalmente
distinto e o cenário exigia uma nova forma de representação da história. O curto
período de três décadas, que separava esses dois momentos, experimentara a erupção
da revolução de 59 e suas consequências eram demasiadas profundas para serem esquivadas.
O antigo debate sobre como interpretar e representar o passado cubano e latino-americano
foi diretamente afetado pela posição de cada intelectual ante esse acontecimento.
A adesão total de Carpentier ao processo revolucionário
e sua posição de destaque nas fileiras burocráticas dos órgãos responsáveis pela
implementação e regulamentação da política cultural revolucionária exigiam dele
uma nova revisão do passado que daria origem ao romance A consagração da primavera.
Para ele, assim como para tantos outros intelectuais cubanos
forjados sob os autoritários governos que antecederam à revolução, a ruptura inesperada
equivalia à desejada efetivação da Revolução inúmeras vezes frustrada. O horizonte
de expectativas, insuflado por todos os projetos historicamente derrotados parecia,
enfim, ter encontrado seu espaço de experiência. A crença na realização da utopia,
sua encarnação em história, levou Carpentier a elaborar seu novo romance histórico
utilizando uma hermenêutica do passado muito distinta a que utilizara na arquitetura
de O reino deste mundo.
A expectativa de uma revolução vitoriosa estava
fora do horizonte compartilhado por vários intelectuais cubanos remanescentes das
intensas primeiras décadas do século XX, inclusive para os integrantes da velha
guarda do comunismo cubano. A frustração que se sucedeu à queda de Gerardo Machado
em 33 se agravaria com a ascensão de Fulgencio Batista e o futuro parecia tão sombrio
e previsível como nas décadas anteriores. Assim, a vitória de 59 foi vivida por
esses homens como uma nova experiência.
A supressão da distância entre horizonte e experiência
ou, dizendo em outros termos, entre utopia e história, apresentava aos intelectuais
que vivenciavam essa nova situação o desafio de abandonar a visão cíclica do tempo
e reconstruir a imagem do tempo histórico. Essa tarefa, no caso específico do romance
histórico de Alejo Carpentier implicaria a substituição de uma visão trágica da
história por uma visão épica, fundada sobre uma concepção teleológica do processo
histórico. Passava-se assim do mito da revolução inconclusa ao mito da revolução
acabada.
A consagração
da primavera juntamente com Esse
sol do mundo moral (de Cintio Vitier) e Chover
sobre o molhado (de Lisandro Otero) foram tentativas de construir respostas
intelectuais a essa situação. Parte importante dessas respostas consistia em introduzir
a ideia de progresso na representação do passado latino-americano. Talvez aí encontremos
um último vestígio do que, três décadas antes, havia sido o real maravilhoso de
Carpentier: transformar um fato insólito (a ascensão ao poder dos guerrilheiros
da Sierra Maestra) na culminação lógica
e necessária de um longo processo. Ainda mais complexa era a tarefa se pensarmos
que no lapso de tempo de um piscar de olhos a revolução nacionalista se assumira
marxista-leninista. Certamente não foi por casualidade que Carpentier decidiu concluir
seu romance com a vitória cubana da praia Girón: se realizava, assim, o telos, a
promessa e a finalidade de uma história concebida como evolução lógica de suas próprias
origens.
A política cultural da revolução prevalecia assim
sobre a cultura política revolucionária. Ironicamente, Alejo Carpentier segue sendo
mais reconhecido como o autor de O reino deste
mundo do que como o autor de A consagração
da primavera — talvez o
pessimismo crítico e a fé romântica expressas na poética da história daquele romance
nos ajudem a repensar os caminhos que trilhamos até esses tempos de realismo político,
inércia cultural e apatia social. Pessimismo e fé, beleza e desespero, como na iluminação
final de Ti Noel:
Ti Noel comprendió obscuramente que
aquel repudio de los gansos era un castigo a su cobardía. Mackandal se había disfrazado
de animal, durante años, para servir a los hombres, no para desertar del terreno
de los hombres. En aquel momento; vuelto a la condición humana, el anciano tuvo
un supremo instante de lucidez. Vivió, en el espacio de un púlpito, los momentos
capitales de su vida; volvió a ver los héroes que le habían revelado la fuerza y
la abundancia de sus lejanos antepasados del África, haciéndole creer en las posibles
germinaciones del porvenir. Un cansancio cósmico, de planeta cargado de piedras,
caía sobre sus hombros descarnados por tantos golpes, sudores y rebeldías. Ti Noel
había gastado su herencia y, a pesar de haber llegado a la última miseria, dejaba
la misma herencia recibida. Era un cuerpo de carne transcurrida. Y comprendía, ahora,
que el hombre nunca sabe para quién padece y espera. Padece y espera y trabaja para
gentes que nunca conocerá, y que a su vez padecerán y esperarán y trabajarán para
otros que tampoco serán felices, pues el hombre ansía siempre una felicidad situada
más allá de la porción que le es otorgada. Pero la grandeza del hombre está precisamente
en querer mejorar lo que es. En imponerse Tareas. En el Reino de los Cielos no hay
grandeza que conquistar, puesto que allá todo es jerarquía establecida, incógnita
despejada, existir sin término, imposibilidad de sacrificio, reposo y deleite. Por
ello, agobiado de penas y Tareas, hermoso dentro de su miseria, capaz de amar en
medio de las plagas, el hombre sólo puede hallar su grandeza, su máxima medida en
El Reino de este Mundo. (CARPENTIER, 2004)
Referências
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ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo: una teoría de la narrativa latinoamericana. Fondo de Cultura Económica: México, 2000.
HERRÁEZ, Begoña Pulido. Poéticas de la novela histórica contemporánea: El general en su labirinto, La campaña y El mundo alucinante. México: UNAM, 2006.
MÁRQUEZ, Alexis. Lo barroco y lo real-maravilloso en la obra de Carpentier. Ciudad de México: Siglo XXI, 1982.
MÁRQUEZ, Alexis. Ocho veces Carpentier. Caracas, Grijalbo, 1992.
OTERO, Lisandro. Llover sobre mojado. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 1997.
PADURA, Leonardo. Un camino de medio siglo: Alejo Carpentier y la narrativa de lo real maravilloso. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.
POGOLOTTI, G.; RODRÍGUEZ BELTRÁN, R., orgs. (2010); Cartas a Toutouche. La Habana: Editorial Letras Cubanas.
ROJAS, Rafael. Tumbas sin sosiego: Revolución, disidencia y exilio del intelectual cubano. Barcelona: Editorial Anagrama, 2006.
VITIER, Cintio. Ese sol del mundo moral: para una historia de la eticidad cubana. México: Siglo XXI Editores, 1975.
Agulha Revista de Cultura
Número 226 | março de 2023
Artista convidada: Christiane Boumeester (Indonésia, 1904-1971)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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