sábado, 25 de março de 2023

NUNO GONÇALVES PEREIRA | Cultura e política nas narrativas de Alejo Carpentier: poética da história e debate latino americanista

 
As ideias que, sucintamente, apresentarei aqui são parte dos resultados da tese de doutorado “Las crónicas de la realidad maravillosa: La estética de la história en las novelas de Alejo Carpentier”, defendida junto ao programa de estudos latino-americanos da Unam, sob orientação da Dra. Begoña Pulido Herráez.

A referida tese buscou percorrer os romances históricos de Alejo Carpentier, a fim de identificar as transformações e permanências das ideias de revolução e América latina nessas obras. Ao problematizar as transformações e as contradições entre as diferentes concepções de história que regem as composições dos romances históricos de Carpentier nos guiamos pelas seguintes questões: Seria possível agrupar sob um único conceito de romance histórico essas obras? Como se apresenta em cada uma delas a visão do autor sobre a cultura latino-americana e qual a relação desta com a ação política? Quais as articulações que essas narrativas estabelecem entre os tempos passado/presente/futuro e qual o lugar da revolução como conceito modulador dessas articulações?

 A tese central que viemos desenvolvendo, nestes últimos anos em que nos debruçamos sobre os romances históricos de Alejo Carpentier, poderia ser resumida da seguinte maneira: existe uma solução de continuidade radical entre as representações da história que definem estética e politicamente os romances históricos O reino deste mundo e A consagração da primavera.

Posicionando-nos contra a visão teleológica, tão difundida por uma parcela importante da extensa fortuna crítica do autor, que insiste na leitura que atribui aos anos de formação do jovem Carpentier uma revolta embrionária que teria dado origem ao personagem mundialmente conhecido do intelectual-embaixador da revolução cubana, viemos insistindo na necessidade de historicizar a produção literária deste autor; procurando relacionar em cada um de seus romances históricos: o tempo de escritura, o tempo da narrativa e o tempo utópico. Para isso nos foram de fundamental importância a consulta de seu epistolário, a análise de suas crônicas jornalísticas e a leitura minuciosa dos intelectuais que lhe eram contemporâneos.

A ideia de revolução central nos romances históricos de Alejo Carpentier por estabelecer o salto hermenêutico que articula a estória particular narrada nos romances a uma série de generalizações que permitiram a esse intelectual cubano intervir no debate latinoamericanista do século XX sofreu, ao longo das três décadas que separam a escritura dos romances em questão, uma alteração qualitativa que, na nossa compreensão, de forma alguma pode ser compreendida enquanto alteração quantitativa.

Enquanto no primeiro romance, O reino deste mundo, a revolução é pensada como um processo de desdobramento das potencialidades da cultura que se caracteriza por manter em aberto o horizonte de expectativas; no segundo caso, a revolução é representada como um processo eminentemente político de instauração de uma nova forma social conduzida por uma vanguarda política que anseia controlar o espaço de experiência e as dinâmicas culturais.

Essa passagem da ideia de revolução enquanto processo cultural conduzido por uma eticidade à ideia de um processo político conduzido por uma moralidade não pode, a nosso ver, ser interpretada como um progresso, uma evolução, um aperfeiçoamento ou uma clarificação do sistema conceitual e das motivações poéticas e políticas que levaram Alejo Carpentier a manter sua eleição inicial pelo romance histórico como gênero adequado à expressão de suas proposições latino americanistas.

Em nossa opinião e essa é a tese que tentaremos demonstrar brevemente aqui a diferença substancial entre essas duas compreensões da ideia de revolução alteram radicalmente o tratamento literário que Alejo Carpentier concede ao conteúdo propriamente histórico em suas narrativas. O percurso que faremos para corroborar nossa asseveração é o de reestabelecer as condições políticas dos tempos em que essas obras foram escritas e que, em boa medida, determinaram a configuração dessas distintas poéticas da história latino-americana com suas antagônicas formas de articulação dos tempos passados e futuros.

Neste sentido é que nos propomos a estabelecer algumas relações entre as principais diferenças entre estes dois romances e os diferentes lugares que o autor ocupava ao tempo que os escreveu, entre os contextos políticos de suas escritas e as distintas posturas políticas expressas pelo autor nesses períodos.

Se O reino deste mundo expressa as experiências dos anos de formação do autor a influência dos estudos afro-americanos de Don Fernando Ortiz, os influxos vanguardistas da revista Avance e o convívio no interior do grupo minorista A consagração da primavera resulta das experiências pós-revolucionárias onde Alejo Carpentier assumiu o eminente lugar de articulador da rede de intelectuais em defesa da revolução cubana.

É à luz dessas experiências que devemos compreender a substituição do tempo cíclico, do pessimismo crítico e da ideia de revolução como processo cultural regido por uma noção de eticidade que definem a poética da história em O reino deste mundo; pelo tempo linear progressivo, o otimismo histórico e uma ideia de revolução enquanto processo político regido por uma moralidade específica apresentadas em A consagração da primavera.

Para compreendermos o alcance da transformação nessas representações literárias da história e as implicações impressas por ela no latino americanismo de Alejo Carpentier, em sua visão da cultura e sua valoração do fenômeno da mestiçagem e das matrizes culturais não-europeias, iniciaremos por examinar comparativamente a presença das práticas culturais afro-americanas nestas duas obras. Se pode realmente afirmar que a visão de Carpentier sobre a cultura latino-americana seja idêntica nestes dois romances? Quais relações existem entre essas visões, a ideia de revolução e a imagem do tempo histórico que emerge dessas obras? Iniciemos por estabelecer rapidamente algumas comparações que nos servirão de apoio no transcurso de nossa argumentação.


Nos dois romances, encontra-se tematizada a questão das culturas afro-americanas, suas relações com os poderes instituídos e com as perspectivas de transformação social. Entretanto, enquanto no primeiro romance esse problema ocupa um lugar central no enredo; no segundo ele ocupa um lugar secundário. Em O reino deste mundo, os protagonistas são alçados à condição de sujeitos da história pela sua imersão na tradição do vodu. Nesse romance, essa tradição é a responsável por manter viva a dimensão utópica da existência, de tornar visível no tempo presente aquilo que só existe como esperança, projeto, expectativa e memória de um tempo futuro.

Nesse sentido, é que afirmamos que o latino americanismo de Carpentier em O reino deste mundo parte de uma particularidade, o vodu é na realidade um círculo cultural estreito e, razoavelmente, fechado no interior da totalidade cultural latino-americana e o processo revolucionário haitiano se diferencia dos demais processos de independências latino-americanas pela radicalidade com que enfrentou os temas da escravidão e do racismo colonialista.

A trajetória do personagem Ti Noel é inversa ao processo que acostumamos a designar como mestiçagem cultural e que serviu de base a mais de um dos tantos projetos de estado-nação das nascentes republicas hispano-americanas. A iniciação de Ti Noel no universo da santería haitiana e o abandono de sua cosmovisão mestiça lhe levam a assumir um compromisso político com a causa revolucionária. Sua reinserção identitária na tradição afro-americana é indissociável de seu engajamento na luta revolucionária e o ápice de sua decepção com o mundo mestiço se dá quando durante o processo revolucionário Ti Noel se depara com a república dos mulatos.

Já em A consagração da primavera, a cultura afro-americana surge quando a bailarina Vera, de origem russa, decide utilizar dançarinos afro-americanos no seu projeto de montagem do ballet de Stravinski sobre as origens míticas da nação eslava. Através desses dançarinos, Alejo Carpentier define uma dupla relação entre a cultura e a revolução: do ponto de vista estético eles revolucionam o ballet com seus movimentos corporais e, do ponto de vista político, por manterem laços orgânicos com os grupos urbanos que mantinham viva a luta clandestina contra a ditadura de Fulgêncio Batista laços esses que terminam por arrasar o sonho apolítico de Vera e lhe arrastar definitivamente pelos caminhos da revolução.

Sem dúvidas, nesses dois casos, ao contrário do romance O reino deste mundo, se pode perceber um elogio do fenômeno da mestiçagem. Seja pela postura vanguardista de utilizar dançarinos da santería com o intuito de aportar inovações estéticas e revolucionar uma arte tradicional como o ballet, ou pelo vanguardismo da atuação política destes personagens expondo-se a todos os riscos que essa decisão implicava.

Nos dois casos, ao contrário de Ti Noel, a trajetória dos personagens negros segue um movimento que parte da cultura afro-cubana em direção ao universo da arte e dos grupos universitários de contestação política: a sua constituição enquanto sujeitos históricos revolucionários equivale às capacidades que demonstram de incorporar e fusionar os elementos culturais de sua origem às exigências de uma cultura que lhes é estranha.

Essa diferença entre essas representações do universo afro-americano sinalizam uma diferença de fundo na própria definição de como Alejo Carpentier pensava a relação entre cultura e revolução enquanto elemento chave na composição do romance histórico: na medida em que anuncia a substituição da prevalência do cultural sobre o político por uma predominância do político sobre o cultural.

O romance histórico deixa de ser um lugar de afirmação e investigação sobre como a diferença cultural pode produzir a mudança revolucionária e se transforma em lugar de afirmação e investigação sobre como a política revolucionária pode possibilitar o desenvolvimento e a integração dos projetos culturais. Esta nova relação, entre a cultura e a política, termina por afastar o romance histórico das famosas formulações de Carpentier sobre o real maravilhoso americano e aproxima-o de um realismo político com certas semelhanças ao realismo socialista.

 Se, na primeira definição, o romance histórico levantava um problema político em termos culturais; na segunda, até as batalhas e os embates do campo estético (figurativismo x abstracionismo, vanguardismo x modernismo, etc.) são apresentados em termos políticos. O crítico Leonardo Padura, interpretou com muita precisão esse deslocamento do sentido da cultura afro-americana no latino americanismo de Carpentier, ao assinalar a importância de um episódio relativamente marginal no desenvolvimento do argumento do romance e extrair dele implicações ousadas para o esclarecimento dessa questão.

O episódio a que nos referimos é o primeiro contato de Vera com o universo da santería. Levada pelas mãos de Gaspar o músico comunista a uma cerimônia, Vera se deslumbra com as capacidades corporais e gestuais dos participantes do ritual e inicia seu plano de incorporá-los ao seu antigo sonho de realizar uma montagem do ballet de Stravinski. Nessa visita, Gaspar trata de desqualificar por completo a visão mágica de mundo da santería e atribui à pura sugestão e comédia o fenômeno da incorporação. A conclusão de Padura sobre este episódio é bastante ousada e vai de acordo à nossa argumentação:

 

En la boca de Gaspar, entonces, la valoración del mundo mágico de los negros cubanos como barbarie y superstición constituye algo más que una opinión: resulta una sentencia inapelable que Carpentier, de acuerdo con sus preceptos ideológicos del momento, lanza sobre un universo del que había extraído más de una historia, más de un personaje, y muchísimas aristas capaces de develar la singularidad americana que definió como lo real maravilloso en su texto de 1948 (PADURA, 2002).

 

Essa negação da autenticidade da cosmovisão da santería, em função de uma apreciação racionalista e intelectualista, define uma nova abordagem às visões mágicas de mundo completamente oposta ao que caracterizara O reino deste mundo e as formulações de Carpentier a respeito do real maravilhoso. Para Padura, essa nova abordagem corresponderia a uma nova postura filosófica e ideológica de Carpentier: se trataria de uma nítida expressão de sua aproximação à filosofia marxista da história e aos postulados estéticos do realismo socialista.

Para além do fato de que essa nova concepção da história latino-americana seja uma consequência de sua nova posição política, parece-nos mais significativa a afirmação de Padura sobre como a negação de Gaspar à autenticidade da experiência do transe seria, na verdade, expressão literária de uma mudança do próprio Carpentier em relação às matrizes não europeias da cultura latino-americana e, consequentemente, uma nova avaliação do fenômeno da mestiçagem.

Perceba-se que não se trata aqui de uma questão menor, ou de um simples detalhe, e sim da substituição de um latino americanismo baseado numa visão culturalista por um latino americanismo político, onde o espaço de afirmação das tradições não europeias está restrito às possíveis apropriações e reelaborações, que no campo da política ou da estética, esta tradição possa sofrer por parte de uma consciência erudita que as reorganiza de acordo com convenções formais que lhe são completamente estranhas.


A inserção desses códigos em linguagens pré-estabelecidas pelas tradições estéticas e políticas de origem europeias, fragmenta a totalidade cultural de onde elas provêm e se desfaz de suas especificidades em função de sua capacidade de assimilação a uma nova gramática que termina por lhes conferir novos significados. Assim, os personagens negros em A consagração da primavera são valorizados positivamente pela exótica potencialidade de seus movimentos corporais e por suas posturas progressistas de ingressarem nos movimentos estudantis e operários que lutavam contra a ditadura de Batista; entretanto seu ethos e a cosmovisão, de onde se originaram essas mesmas qualidades, são descartadas e negadas pelas próprias consciências eruditas que se apropriam delas: seja a de Gaspar, a de Vera ou, em última instância, a do próprio Alejo Carpentier.

Se o real maravilhoso de O reino deste mundo expressava a valoração positiva da alteridade cultural por uma consciência erudita (o narrador) que atribuía às forças mágicas do vodu haitiano os impulsos primordiais do processo revolucionário; em A consagração da primavera, essa consciência, passa a perceber essa alteridade como simples fonte de onde pode extrair os elementos necessários para lograr seus próprios avanços e superações de maneira muito similar às propostas folcloristas e vanguardistas que Carpentier rechaçara em sua denúncia dos artifícios surrealistas na década de 40.

No primeiro caso, encontramos a formulação de que a originalidade latino-americana residiria na diversidade de experiências que permitiram a Carpentier, questionar o discurso hegemônico que identificava as independências históricas como realização revolucionária e utilizar o romance histórico para reinterpretar o passado e forjar um conceito de revolução. No segundo caso, encontramos a formulação de que a originalidade latino-americana residiria na realização de uma série de fusões culturais que terminariam por oferecer novas perspectivas ao desenvolvimento da arte e da política sem, necessariamente, ter em consideração as lógicas culturais intrínsecas a essas visões mágicas de mundo.

Paradoxalmente, à dissolução do maravilhoso corresponde o surgimento de uma leitura unidimensional da história, convertida em narração que devora a alteridade e descrê de sua potencialidade revolucionária. Seguindo a argumentação de Padura, defendemos que esse movimento, que críticos tão importantes como o venezuelano Alexis Marques e tantos outros definiram como sendo la evolución filosófica de Carpentier, era na verdade expressão literária de uma guinada de orientação política radical no pensamento de Carpentier que ao integrar-se tardiamente ao grupo que levara a cabo a revolução de 59 assumia para si uma

 

[C]oncepción definitivamente optimista del desarrollo histórico, del papel de las masas en la lucha revolucionaria, de la preponderancia del factor económico, del transcurso dialéctico del tiempo, de las condicionantes históricas que permiten el florecimiento de las dictaduras y las dependencias neocoloniales y otras máximas y leyes generales del desarrollo patentadas por la filosofía marxista de la historia y su concepción de realidad (PADURA, 2002).

 

Essa descrição do novo conceito de história manejado em A consagração da primavera nos leva a levantar outra série de problemas: seria então esse romance, que Carpentier designou como uma épica da revolução, uma mera tentativa de adequar o romance histórico ao conceito marxista de história? Estaria, nesse romance, reduzida a representação literária da história a uma função legitimadora do processo revolucionário cubano e justificadora de sua adesão pessoal a esse processo? Quais as estratégias e os alcances que esse novo conceito de história permitia ampliar para a história latino-americana alguns elementos particulares da experiência cubana como o vanguardismo, o foquismo, o voluntarismo, a valorização heroica do passado, a teoria do homem novo e do pecado original dos intelectuais?

Nossa leitura de A consagração da primavera nos levou a concluir que nesse romance o tempo histórico está organizado de maneira linear e progressista. Toda a tessitura das memórias dos personagens, intrínsecas ao enredo, se revelam como artifícios literários insuficientes para ocultar o sentido unidirecional e unidimensional que a história assume nesse romance.

Os personagens protagonistas se deslocam no tempo e no espaço ao ritmo de um metarrelato que concatena a série de revoluções retratadas na novela e que tem por desfecho e ápice a própria revolução cubana. Existe uma ideia de história universal que funciona como metarrelato ao determinar o sentido particular de cada acontecimento na trama e, progressivamente, eliminar e homogeneizar a multiplicidade temporal que, em O reino deste mundo, Carpentier demonstrara, magistralmente, ser uma característica singular do processo histórico latino-americano.

Para concluir nossa breve comparação da poética da história nestes dois romances gostaríamos de afirmar que nos dois casos algo se manteve intacto e resistiu à passagem do tempo: a ideia de que o romance histórico se utiliza da interpretação do passado enquanto recurso de expressão de uma tomada de posição política no tempo presente da escritura.

As diferenças que apontamos no caso dos romances aqui abordados, não devem ocultar o fato de que, nos dois casos, a descrição dos acontecimentos históricos obedecia a um sistema hermenêutico mais amplo que determinava o lugar e o sentido de cada acontecimento dentro da narrativa literária. Esse procedimento foi o que permitiu a Alejo Carpentier extrair dos sucessos particulares que narrava suas proposições gerais sobre Latinoamérica.

Retomando os termos de Koselleck, podemos afirmar que enquanto em O reino deste mundo o efeito pretendido pela representação literária da história era forjar um novo horizonte de expectativas desde a reconstituição de um determinado espaço de experiência; no caso de A consagração da primavera, Carpentier buscou tornar familiar uma nova e inusitada experiência e utilizou a reconstrução literária da história como uma ferramenta que tornava visível as possíveis sementes, origens e antecedentes dessa experiência.

Possivelmente, uma das dificuldades de Carpentier em encontrar soluções narrativas adequadas ao tema que se propôs em A consagração da primavera, consistia na proximidade temporal dos acontecimentos que elegera e na proximidade entre esses acontecimentos e sua própria biografia; ainda mais problemático parece ter sido o fato de ter que reavaliar o passado recente desde a perspectiva de um desenlace até pouco tempo inesperado para muitos, inclusive para ele mesmo: a vitória revolucionária de 59 e a adesão ao socialismo em 61.

Ainda que os movimentos sociais cubanos, suas organizações estudantis e operárias, sempre estivessem atuantes contra o governo de Batista e o intervencionismo estadunidense que o caracterizou; a vitória de um processo revolucionário radical parecia bastante remota e contrária às experiências de Alejo Carpentier, que nesse período vivia em Caracas e ainda pensava na história do subcontinente como uma sucessão de tentativas frustradas de alcançar uma autêntica revolução.

Utilizando-se das expressões cunhadas pelo historiador Rafael Rojas, podemos dizer que, para Alejo Carpentier, não era tarefa de fácil execução abandonar o fértil mito da revolução inconclusa, que lhe rendera o precioso romance O reino deste mundo, e abraçar o incerto mito da revolução vitoriosa que regeria a poética da história em A consagração da primavera.

De acordo com o historiador cubano, o mito da revolução inconclusa tem uma longa história na tradição intelectual cubana, tendo perpassado as representações do passado da ilha e, muitas vezes, de toda a América latina em representativos pensadores de diversos matizes ideológicos. Remontando à ideia de nação independente como um projeto inacabado, esses pensadores elaboraram uma poderosa interpretação do passado que permitia derivar uma série estratégias no campo da mobilização política.

Se, por um lado, essa interpretação trazia em seu bojo uma falsificação da história, ao nivelar acontecimentos tão díspares como a guerra separatista de 1868 e a chamada revolução de 1933; é, justamente, ela que vai permitir a gerações de intelectuais ancorarem seus projetos utópicos de transformação da realidade cubana e latino-americana. Se toda a história de Cuba e, por extensão, da América Latina, resume-se a uma série de revoluções frustradas em suas pretensões mais centrais, a tarefa do intelectual engajado permanece sendo a construção de uma crítica do presente e a ação revolucionária uma missão a ser cumprida: um dever e um destino.

Ao criar uma zona de indiferenciação entre o passado histórico e o passado mítico, Alejo Carpentier reproduzia em seu romance O reino deste mundo a interpretação do passado que conformava a ideia da Revolução inconclusa. Ao utilizar o processo de independência haitiana como metonímia da frustração dos projetos revolucionários que animaram as guerras de independência hispano-americanas, Carpentier estendia sua crítica a todo o processo das independências hispano-americanas apagando suas diferenças e especificidades e dando seguimento ao diálogo que definira seus anos de formação junto aos intelectuais minoristas e da revista Avance, além de expressar seu descontentamento com os rumos da revolução de 33.

Se, por um lado, essa coexistência de uma heurística historiográfica e de uma explicação mítica, reduzia a natureza particular das revoluções históricas a uma ideia abstrata de Revolução que guardava mais utilidade como estratégia de ação política do que como ferramenta conceitual de conhecimento do passado, já que como enfatiza o próprio Rojas no existió tal Revolución eternamente frustrada e inconclusa porque no hubo una, sino várias revoluciones, con sus propias ideas, valores, metas y actores. (Rojas, 2006). Por outro lado, foi essa mesma característica que permitiu a Alejo Carpentier arquitetar seu primeiro romance histórico e se inserir num campo discursivo estabelecido desde o século XIX:

 

Este mito, aunque reforzado en los años 60 y 70 del siglo XX, como parte de una legitimación discursiva de un poder revolucionario que se imaginaba eterno, surgió en las últimas décadas del siglo XIX, dentro de la mentalidad de algunos caudillos separatistas de la primera guerra (1868-1878), como Máximo Gómez y Antonio Maceo, y, con especial fuerza retórica, dentro de la obra intelectual y política del joven José Martí. Estos tres líderes independentistas organizaron una nueva guerra en Cuba, la de 1885, en buena medida con el argumento de que la anterior, la de los Diez Años, había sido frustrada por el Pacto de Zanjón, una transacción entre las tropas rebeldes y el ejército colonial español que, en 1878, ofreció a los cubanos amnistía y olvido del pasado, representación en las Cortes, derecho a constituir partidos y ampliación de las libertades públicas. Martí, con su legendaria elocuencia, dirá que en el Zanjón España asesinó la revolución cubana. (ROJAS, 2006)

 

O contexto de escrita e publicação de A consagração da Primavera era radicalmente distinto e o cenário exigia uma nova forma de representação da história. O curto período de três décadas, que separava esses dois momentos, experimentara a erupção da revolução de 59 e suas consequências eram demasiadas profundas para serem esquivadas. O antigo debate sobre como interpretar e representar o passado cubano e latino-americano foi diretamente afetado pela posição de cada intelectual ante esse acontecimento.

A adesão total de Carpentier ao processo revolucionário e sua posição de destaque nas fileiras burocráticas dos órgãos responsáveis pela implementação e regulamentação da política cultural revolucionária exigiam dele uma nova revisão do passado que daria origem ao romance A consagração da primavera.

Para ele, assim como para tantos outros intelectuais cubanos forjados sob os autoritários governos que antecederam à revolução, a ruptura inesperada equivalia à desejada efetivação da Revolução inúmeras vezes frustrada. O horizonte de expectativas, insuflado por todos os projetos historicamente derrotados parecia, enfim, ter encontrado seu espaço de experiência. A crença na realização da utopia, sua encarnação em história, levou Carpentier a elaborar seu novo romance histórico utilizando uma hermenêutica do passado muito distinta a que utilizara na arquitetura de O reino deste mundo.

A expectativa de uma revolução vitoriosa estava fora do horizonte compartilhado por vários intelectuais cubanos remanescentes das intensas primeiras décadas do século XX, inclusive para os integrantes da velha guarda do comunismo cubano. A frustração que se sucedeu à queda de Gerardo Machado em 33 se agravaria com a ascensão de Fulgencio Batista e o futuro parecia tão sombrio e previsível como nas décadas anteriores. Assim, a vitória de 59 foi vivida por esses homens como uma nova experiência.

A supressão da distância entre horizonte e experiência ou, dizendo em outros termos, entre utopia e história, apresentava aos intelectuais que vivenciavam essa nova situação o desafio de abandonar a visão cíclica do tempo e reconstruir a imagem do tempo histórico. Essa tarefa, no caso específico do romance histórico de Alejo Carpentier implicaria a substituição de uma visão trágica da história por uma visão épica, fundada sobre uma concepção teleológica do processo histórico. Passava-se assim do mito da revolução inconclusa ao mito da revolução acabada.

A consagração da primavera juntamente com Esse sol do mundo moral (de Cintio Vitier) e Chover sobre o molhado (de Lisandro Otero) foram tentativas de construir respostas intelectuais a essa situação. Parte importante dessas respostas consistia em introduzir a ideia de progresso na representação do passado latino-americano. Talvez aí encontremos um último vestígio do que, três décadas antes, havia sido o real maravilhoso de Carpentier: transformar um fato insólito (a ascensão ao poder dos guerrilheiros da Sierra Maestra) na culminação lógica e necessária de um longo processo. Ainda mais complexa era a tarefa se pensarmos que no lapso de tempo de um piscar de olhos a revolução nacionalista se assumira marxista-leninista. Certamente não foi por casualidade que Carpentier decidiu concluir seu romance com a vitória cubana da praia Girón: se realizava, assim, o telos, a promessa e a finalidade de uma história concebida como evolução lógica de suas próprias origens.

A política cultural da revolução prevalecia assim sobre a cultura política revolucionária. Ironicamente, Alejo Carpentier segue sendo mais reconhecido como o autor de O reino deste mundo do que como o autor de A consagração da primavera talvez o pessimismo crítico e a fé romântica expressas na poética da história daquele romance nos ajudem a repensar os caminhos que trilhamos até esses tempos de realismo político, inércia cultural e apatia social. Pessimismo e fé, beleza e desespero, como na iluminação final de Ti Noel:

 

Ti Noel comprendió obscuramente que aquel repudio de los gansos era un castigo a su cobardía. Mackandal se había disfrazado de animal, durante años, para servir a los hombres, no para desertar del terreno de los hombres. En aquel momento; vuelto a la condición humana, el anciano tuvo un supremo instante de lucidez. Vivió, en el espacio de un púlpito, los momentos capitales de su vida; volvió a ver los héroes que le habían revelado la fuerza y la abundancia de sus lejanos antepasados del África, haciéndole creer en las posibles germinaciones del porvenir. Un cansancio cósmico, de planeta cargado de piedras, caía sobre sus hombros descarnados por tantos golpes, sudores y rebeldías. Ti Noel había gastado su herencia y, a pesar de haber llegado a la última miseria, dejaba la misma herencia recibida. Era un cuerpo de carne transcurrida. Y comprendía, ahora, que el hombre nunca sabe para quién padece y espera. Padece y espera y trabaja para gentes que nunca conocerá, y que a su vez padecerán y esperarán y trabajarán para otros que tampoco serán felices, pues el hombre ansía siempre una felicidad situada más allá de la porción que le es otorgada. Pero la grandeza del hombre está precisamente en querer mejorar lo que es. En imponerse Tareas. En el Reino de los Cielos no hay grandeza que conquistar, puesto que allá todo es jerarquía establecida, incógnita despejada, existir sin término, imposibilidad de sacrificio, reposo y deleite. Por ello, agobiado de penas y Tareas, hermoso dentro de su miseria, capaz de amar en medio de las plagas, el hombre sólo puede hallar su grandeza, su máxima medida en El Reino de este Mundo. (CARPENTIER, 2004)

 

Referências

CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. La Habana: Letras cubanas, 2004.


CARPENTIER, Alejo. La consagración de la primavera. Madrid: siglo XXI, 1981.


CARPENTIER, Alejo. Tientos y diferencias. Ciudad de México: UNAM, 1964.


ECHEVARRÍA, Roberto González. org. (2008); Cartas de Carpentier. Madrid: Editorial Verbum.


ECHEVARRÍA, Roberto González. Alejo Carpentier: el peregrino en su patria. Madrid: Editorial Gredos, 2004.


ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo: una teoría de la narrativa latinoamericana. Fondo de Cultura Económica: México, 2000.


HERRÁEZ, Begoña Pulido. Poéticas de la novela histórica contemporánea: El general en su labirinto, La campaña y El mundo alucinante. México: UNAM, 2006.


MÁRQUEZ, Alexis. Lo barroco y lo real-maravilloso en la obra de Carpentier. Ciudad de México: Siglo XXI, 1982.


MÁRQUEZ, Alexis. Ocho veces Carpentier. Caracas, Grijalbo, 1992.


OTERO, Lisandro. Llover sobre mojado. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 1997.


PADURA, Leonardo. Un camino de medio siglo: Alejo Carpentier y la narrativa de lo real maravilloso. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.


POGOLOTTI, G.; RODRÍGUEZ BELTRÁN, R., orgs. (2010); Cartas a Toutouche. La Habana: Editorial Letras Cubanas.


ROJAS, Rafael. Tumbas sin sosiego: Revolución, disidencia y exilio del intelectual cubano. Barcelona: Editorial Anagrama, 2006.


VITIER, Cintio. Ese sol del mundo moral: para una historia de la eticidad cubana. México: Siglo XXI Editores, 1975.

 

 

NUNO GONÇALVES PEREIRA. Doutor em Estudos Latino-americanos pela UNAM e professor da UFRB. A presente pesquisa contou com o apoio financeiro do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología da República dos Estados Unidos Mexicanos e com a colaboração dos colegas do colegiado de história da UFRB que possibilitaram minha licença integral para a realização da mesma: a ambos, minha gratidão.

 

 


 

CHRISTINE BOUMEESTER (Indonésia, 1904-1971). Nossa artista convidada se expressou através de colagens, óleos, litografias, desenhos, aquarelas. O ritmo de sua plástica define a presença de modulações sugestivas, delicadas passagens de cores e formas, em atmosfera quase onírica. Casada com o gravador Henri Goetz – que ela conheceu em Paris, para onde se mudou, em meados dos anos 1930, após residência em Amsterdã, cidade onde realizou sua primeira individual–, o casal descobre no Surrealismo uma significativa afinidade que definiria sua linguagem. As relações resplandeciam: Picasso, Breton, Éluard, Wilfredo Lam, Hans Arp. Com a chegada da 2ª Guerra Mundial, Christine e Henri se recolhem na pequena Carcassonne, ao sul da França, e ali se encontram com alguns integrantes do grupo surrealista belga (Raoul Ubac, René Magritte, Louis Scutenaire) e, juntos, fundam a revista La main à plume, que resistirá de 1941 a 1944. Após este período Christine realiza uma série de exposições e é celebrada pela crítica como uma relevante artista abstrata, embora essa abstração seja fruto não de uma evasão de sentido, mas antes do recorte de uma paisagem onírica onde a artista busca precisar novos valores imaginários.

 

 


Agulha Revista de Cultura

Número 226 | março de 2023

Artista convidada: Christiane Boumeester (Indonésia, 1904-1971)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


∞ contatos

Rua Reinhold Schroeder, 3545 Indaial SC 89086-370 BRASIL

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário