sábado, 4 de março de 2023

MÁRCIO CATUNDA | Paul Valéry e as ressonâncias fundamentais

 
Paul Valéry, cuja infância se nutriu das águas lustrais do Mediterrâneo, nasceu na cidade portuária de Sette, no dia 30 de outubro de 1871. Cursou Direito em Montpellier, onde morou até 1894, ano em que se mudou para a Capital francesa, após haver passado no concurso de redator do Ministério da Guerra. Era previsível que um espírito inquieto e lúcido quisesse trocar a vida provinciana pelos passeios e as cultas companhias que encontraria em Paris. De sua tranquila Montpellier, levará saudades dos jardins das “terrasses” du Peyrou, elevadas sobre a cidade.

Conhecera, ainda estudante da université languedocienne, em 1890, o jovem poeta Pierre Louys, circunstância capital em sua vida, já que este companheiro de intercâmbios o apresentaria a Mallarmé, e seria seu primeiro e constante leitor, no contexto de um intercâmbio de admiração recíproca. Valéry dizia não ter precisado de mais que cinco ou seis minutos para perceber a imensa afinidade que o aproximou do autor de Aphrodite e das Chansons de Bilitiz.

No dia 25 de janeiro de 2019, saio pela boca do métro Cluny-Sorbonne, diante do místico, misterioso e velho mosteiro (hoje Museu de Cluny) que se levanta com garbo entre os dois fabulosos bulevares. Em tijolo cru, como no medievo, paredes carcomidas, o cenóbio faz pensar nos tempos de outrora. O Museu de Cluny exala sua antiguidade verticalmente profunda, em sua avoenga carcaça. Desci o boulevard Saint-Michel, cruzei a fachada da Sorbonne, de aspecto clerical. As colunas, as estátuas, a cúpula cingida pela cruz, o relógio ao centro e a fonte, ornamentada de estátuas, (a de Auguste Comte se destaca na dianteira). Em frente, há os cafés, os restaurantes e as livrarias. Tudo isso me dá um imenso prazer estético.

Avisto as opulentas colunas do Panthéon e vou até o Théâtre Saint-Michel, já depois da entrada do jardin du Luxembourg, comprar o ingresso para ver o recital de Madame Bovary, pelo grande ator Eric Chartier.

Volto, até a quadra anterior, e sigo pela rue Gay-Lussac, onde morou Valéry. Deparo um edifício de fina estampa, de seis andares, cada um com quatro janelas e varandas de grades filigranadas. A placa informa que o poeta viveu no local de 1891 a 1899. O grande bardo teve o merecimento de morar a dois passos do jardin du Luxembourg, numa avenida requintada, o que significa que seu salário de funcionário do Ministério da Guerra, em que trabalhou como redator, era suficientemente alentado, de maneira que lhe permitia pagar o aluguel caro de um grande apartamento nesta zona luxuosa do Quartier Latin.

Quando Valéry chega para residir na rua Gay-Lussac, onde então existia o Hotel Henri IV, recebe carta de Gide, que lhe escreve da Normandie: Je te rêve sur les boulevards, étourdi, fébrile et navré.

Da porta da antiga residência de Valéry ao Jardin du Luxembourg são poucos metros. Fui caminhando e imaginando Valéry a passear como eu, nos dias ensolarados, desfrutando da clara e prazerosa plenitude de um outono ou de uma primavera. As benesses do ar, a quietude, o perfume da vegetação, a dança da água cintilando no espelho circular, diante do palácio iluminado, e os pássaros sugerindo uma sinestesia de flores sonoras, fazem do Jardin du Luxembourg um dos lugares mais auspiciosos do planeta.

Neste remanso da cidade das alegorias apoteóticas, dos boêmios iluminados e do céu úmido, à sombra da chuva, vou-me deleitando e ouvindo o pássaro azul da inspiração, em plena fuga das igrejas e das boutiques. O verde frio, delicioso, se imprime no azul que se escreve azur, no nevoeiro de gazas grises. A fachada do palácio, acesa em pétalas, tem cores que me seduzem. O perfume das flores é feminino e delicado.

 Uma das melhores ocasiões da minha vida foi assistir, na noite de 25 de janeiro de 2019, uma vez mais, a um recital do ator Eric Chartier. A primeira vez foi em 2015, quando o vi dizer um grande excerto de Marcel Proust. Desta feita, o grande dramaturgo brindou o público, no teatro La Comédie Saint-Michel, com uma hora e meia de um longo trecho de Madame Bovary, do monumental Flaubert.

É verdadeiramente um deleite estético presenciar a interpretação oral de um mestre universal da literatura por um dramaturgo talentosíssimo. Não menos admirável é a disciplina artística de anos de trabalho de um grande ator para mostrar a respiração secreta do gênio de um grande escritor. Tal zelo permite ao espectador recriar a obra literária em seu imaginário, por meio da dimensão oral da palavra.

Segundo Henri Mondor, Paul Valéry vivia ainda em Montpellier, quando Pierre Louÿs lhe falou de Mallarmé e facilitou o encontro dos dois grandes poetas. Descreveu Mallarmé como (…) un homme qui parle bas, d’une voix lente, mais avec tant d’expression que les superlatifs prennent dans bouche une largeur inconnue.

Em 1890, Valéry bateu à porta dos mardis mallarmaicos. Desde então, adotará uma conduta semelhante à de seu mestre, exemplo admirável de dedicação à arte poética. Com Mallarmé, Valéry aprendeu a colocar na arte a obrigação do esforço intelectual.

Além de Pierre Louÿs, outro amigo que sobremodo ajudou Valéry, a partir de 1891, foi André Gide, que intermediou a publicação de seus poemas junto a difusores de prestígio como o editor Gaston Gallimard e La Nouvelle Revue Française.

Os estudiosos de Valéry se referem a uma crise existencial, por que ele passou, em 1892, em Gênova, numa noite de tempestade, (episódio conhecido como la nuit de Gênes) e que o fez permanecer 20 anos sem publicar. De fato, Valéry hibernou durante um longo período, aprofundando seus estudos e reflexões, com seu interesse intelectual voltado para a matemática e a filosofia. Em todo esse período, leu a obra filosófica de Descartes, Bergson e outros filósofos, a respeito dos quais escreveu. Comentou, com argúcia, os axiomas cartesianos, nos quais se vislumbra o pensamento dentro do pensamento e o sentimento do Eu que se converte no sistema de referência do mundo. Entre as contribuições de Descartes para o conhecimento, Valéry menciona a criação de um sistema de correspondência entre o número e a magnitude, (invenção que permitiu tratar os problemas da geometria reduzindo-os a problemas de álgebra) e a hipótese de que uma glândula do cérebro (a hipófise) constituiria o centro da alma, (lugar no qual as imagens que chegam aos olhos podem unir-se em uma, antes de chegar à alma). Valéry visitou a casa de Descartes em Amsterdã, tendo publicado artigo a esse respeito na Revue de France, em 1926. Suas atentas leituras lhe serviram de esteio, quando ele homenageou, em nome da Académie Française, o clássico filósofo, com um discurso pronunciado na Sorbonne, na abertura do IX Congresso Internacional de Filosofia, em julho de 1937.

Acerca de Bergson, Valéry destacou a propriedade e o acerto com que o filósofo, inspirado na biologia, concebeu a vida como portadora do espírito e renovou a consideração de problemas antigos e difíceis como o do tempo, o da memória e o da evolução da vida. O poeta pronunciou discurso em homenagem a Henri Bergson, na Académie Française em 1941, no dia 9 de janeiro, cinco dias após a morte do grande filósofo, que falecera no dia 4 de janeiro daquele ano.

Swedenborg e Leonardo da Vinci também o impressionam sobremaneira. Ao primeiro, ele se refere como o sábio engenheiro, instruído em todas as coisas, um iluminado teósofo, familiar dos Espíritos e dos Anjos que realizou uma metamorfose substancial de um pensamento científico e metafísico-teológico numa realidade segunda, intuitiva, transformada em doutrina transcendental. Em suma, Swedenborg é visto como um visionário que revela as correspondências entre as partes do organismo e os mais estranhos significados, avaliações ou criações espirituais. Sobre Da Vinci, escreveu Introduction à la méthode de Léonard de Vinci (1895) que contém, igualmente, elementos essenciais dos estudos filosóficos de Valéry.

         Emergiria Valéry da longa fase sem publicar, para dar a conhecer La jeune parque, em 1917, dedicado a André Gide. O livro recebe elogios de Léon Paul-Fargue e de Valéry Larbeau. Ambos destacam a linguagem melodiosa, a inovação no ritmo da frase e a redução da lacuna entre a impressão e a expressão, em que o autor questiona os temas da vida e da morte. Com efeito, perplexo, em embriaguez lúcida, ao mergulhar em sua espiritualidade panteísta, o poeta escreveu versos como estes, que prenunciam o enunciado da filosofia existencialista:

 

Tenho piedade de todos nós,

Ó turbilhões de poeira!

 

Augusto de Campos, em Via Línguaviagem, destaca as semelhanças entre a Hérodiade de Mallarmé e a Jeune Parque de Valéry. Mostra que, em ambas, há o contrário da eloquência, sedno admiráveis as sonoridades e as surpresas. Em Herodias, a esterilidade e a virgindade são condição de beleza. Na Jovem Parca, existe a intenção de definir um conhecimento do ser vivo, que é preciso aprender.

 Mallarmé alude ao pensamento que se pensou. Nele, a linguagem fugidia, atravessada de metonímias e metáforas, pinta não a coisa, mas o efeito que ela produz.

A Herodias mallarmeana corresponde, em princípio, à Salomé da conhecida passagem Bíblica:

 

(...) A filha de Herodias, esposa incestuosa do Rei Herodes Antipas; a mesma jovem sedutora, que dança perante o tetrarca, a pedido de sua mãe, para obter como prêmio a cabeça de João Batista, profeta e santo.

A Jovem Parca nasce após 20 anos de silêncio poético, com 512 alexandrinos. Trata-se da crise de uma jovem que luta contra seus instintos, recusa a maternidade, expressa a alegria amarga de se conhecer e a angústia de viver na dualidade da natureza. Herodias e a Parca têm personalidades complexas e fugidias, na tecedura da abstração temática, da elaboração vocabular e da torção sintática.

Herodias, poema concebido de início como drama em versos, assim como A Jovem Parca, utiliza um alexandrino com rimas emparelhadas. A Jovem Parca não tem um tema específico. É um devaneio cuja personagem é a consciência consciente, conforme revela o próprio Valéry.

Em ambos os poemas, “a elocução se faz por meio de uma persona – uma jovem, uma virgem, simbolizando a solidão e a incomunicabilidade em confronto com as solicitações do mundo sensório.

 

A respeito de sua amizade com Mallarmé, escreveu Valéry o seguinte em seu texto Lettre sur Mallarmé:

A l’âge encore assez tendre de vingt ans, et au point critique d’une étrange et profonde transformation intellectuelle, je subis le choc de l’ oeuvre de Mallarmé; je connus la surprise, le scadale intime instantané, et l’éblouissement et la rupture de mes attaches avec mes idoles de cet âge.

Quando ele escreve a Mallarmé, fala do seu conceito de poesia como uma expressão delicada e bela do mundo, repleta de música singular e contínua, pela qual busca um gesto luminoso em direção ao futuro.

Valéry reconhece que muito deve a Mallarmé, no que se refere à concepção da arte, à técnica e ao vocabulário.

No seu extraordinário ensaio de Variété II, Valéry narra o seu derradeiro encontro com Mallarmé, em 14 de julho de 1898, em Valvins e reitera sua admiração por aquele que jamais pedira ao mundo senão o que ele contém de mais raro e mais precioso. E ele encontrava isso em si mesmo.

Em sua vida social, Valéry frequentou, também, os samedis de José-Maria Hérédia e se divertiu com as proezas de Alfred Jarry e o bom humor de Joris-Karl Huysmans.


Cioso da claridade solar do céu e da extrema diversidade das populações dos litorais do Mediterrâneo, Valéry louva o mistério transparente da luz marinha, onipresente desde sua infância em Sètte e em Gênova, berço de sua família materna. Tais grandezas são prelúdios do glorioso poema Le cimetière marin, que se reporta ao cemitério de Saint-Charles, em Sètte, sua cidade natal. O poeta embebeu-se dos clássicos da Grécia e meditou sobre o Mediterrâneo fundador da Europa. A nostalgia do universo marinho de sua infância, com seu vasto orbe metafórico, determinou os acordes do seu sistema musical.

O imortal Cimetière marin, publicado em 1922, no livro Charmes, autêntico hino à perplexidade e ao encantamento, contém alguns dos versos mais maravilhosos da língua francesa. No êxtase da contemplação do mar, a consciência se dilui no não ser. O meio-dia compõe de fogo o mar, no eterno recomeço do seu movimento:

 

Ce toit tranquille, où marchent les colombes,

Entre les pins palpite, entre les tombes,

Midi le just y compose de feu

La mer, la mer toujours recommencée!

 

O meio-dia (hora em que não há sombra) corresponde, na ciência oculta, ao solstício do ciclo anual em que se projeta no mundo a culminação da luz espiritual. É o instante sagrado da plenitude luminosa, que marca, entre o yang em repouso e o ying semovente, um interlúdio no movimento cíclico da natureza. Tem seu antípoda complementar na meia-noite, que sugere também uma imagem da eternidade ou uma imobilização no curso do frágil equilíbrio da grandeza transitória.

Em face do Ser e do Nada, o mar suscita a deleção e a sublimação da angústia. E o tempo cintila, quando o sol repousa sobre o abismo:

 

         Quand sur l’abîme un soleil se repose,

ouvrages purs d’une éternelle cause,

le Temps scintille et le Songe est savoir.

 

O tempo, com T maiúsculo, Tempo sem tempo, mistério do movimento eterno da natureza, suscita quieta contemplação, na hora extática em que a cintilação serena irradia sua soberana grandeza como um desdém pela atitude terrenal:

 

Temple du Temps, qu’un seul soupir résume,

à ce point pur je monte et m’accoutume,

tout entouré de mon regard marin;

Et comme aux dieux mon offrande suprême,

La scintillation sereine sème

Sur l’ altitude un dédain souverain.

 

Toda uma atmosfera mediterrânea com referências helênicas aparece no extraordinário texto do poema, de um lirismo encantatório, com o tom de uma grave reflexão sobre a morte.

Na estrutura de seu sistema de representar, que não explica, apenas enuncia, Valéry constitui seus axiomas esotéricos: no começo, o Espírito criou o mundo à sua imagem, para preencher o Nada que ele se sentia e conhecer a si mesmo. Cansado de um puro espetáculo, Deus rompeu o objetivo de sua perfeita eternidade e se fez Aquele que, em consequência, dissipa seu Princípio e sua unidade em infinitas estrelas. O Espírito plasma o objeto incógnito do conhecimento. Midi sans movement é o tempo em que a flecha voa e não voa.

Valéry fez viagens iniciáticas, entre 1925 e 1929, em dois cruzeiros pela costa italiana (Sardenha, Córsega e Nápoles), estudando os esplendores do romanismo nos cantos de Virgílio e na filosofia de Lucrécio.

Ele menciona, no livro La Renaissance de la liberté (Souvenirs et réflexions), momentos especiais, tais como os encontros que manteve com Rainer Maria Rilke. A amizade começou em 1922, quando Valéry planejou visitar Rilke na Suíça. Mas o primeiro encontro só aconteceu, oportunamente, em fevereiro de 1924, quando ele teve a honra de receber do poeta theco a tradução de 16 de seus poemas, constantes do livro Charmes. Em abril do mesmo ano, Valéry esteve no castelo de Muzot, na condição de hóspede de Rilke. Novos encontros se registraram em Paris, em 1925, e às margens do lago Léman, em setembro de 1926. Em dezembro do mesmo ano, o genial Rilke faleceria inesperadamente.

Constam, no segundo volume das obras completas de Paul Valéry (Oeuvres II), dois artigos sobre Paris, a saber: Fonction de Paris, de 1927 e Présence de Paris, de 1937.

Em Fonction de Paris, ele enaltece a cidade, cujo caráter resulta de uma infelicidade de vicissitudes históricas, em que foi teatro de meia dúzia de revoluções que, no espaço de 300 anos, fora duas ou três vezes a cabeça da Europa, três vezes conquistada pelo inimigo:

Paris, valor de um núcleo que resulta de 20 séculos de construção. Obra e fenômeno; teatro de acontecimentos de uma importância universal. Pensar Paris é pensar o espírito mesmo. É conceber o lugar misterioso da aventura instantânea do pensamento. Le NOMBRE de PARIS occupe, obsède, assiège mon esprit.

No dia 19 de novembro de 1925, Valéry foi eleito para a Académie de la Langue Française como sucessor de Anatole France. Em seu discurso de posse, não disse palavra sobre seu antecessor. Só a partir de sua entrada na Académie, Valéry passou a viver exclusivamente de literatura, fazendo conferências na Inglaterra, na Suíça e na Alemanha.

Já maduro na idade e no pensamento, Valéry cultiva ainda suas musas. Catherine Pozzi foi sua namorada entre 1913 e 1934. Para ela escreveu: Car j’ai vécu de vous attendre,/ et mon coeur n’était que vos pas. A poeta francesa Catherine Pozzi foi sua namorada, entre 1913 e 1934. A partir de 1937, a jornalista e escritora Jeanne Loviton (nome artístico: Jean Voilier) foi a principal fonte de sua inspiração lírica. Escreveu a ela 600 cartas de amor, até 1945, quando o poeta deixou este mundo.

Em 1945, ano de sua morte, aos 67 anos, Valéry deu a conhecer os 150 poemas de amor, dedicados a Jeanne Loviton, sua musa de 35 anos de idade.

Valéry, clássico moderno, recriou, com personalíssimas versões, mitos fundamentais como a Parca, Narciso e a Pítia, conciliando magnificamente o classicismo e o lirismo.

Narciso tenta conhecer-se na fonte, reclina-se sobre sua imagem, em busca do verdadeiro Eu: mon âme ainsi se perd dans sa propre forêt. A fonte é escura, e o que ele encontra é a consciência do nada, a vertigem do vazio, a ausência do objeto preconcebido. Escrito para a revista de Pierre Louÿs, esse fabuloso Narcisse parle, inspirado no jardim botânico de Montpellier de sua juventude, contém versos em que se identificam certas influências benéficas. Por exemplo: je viens au pur silence offrir mes larmes vaines, tem ressonância de Mallarmé. Ou estes: Et la lune perfide élève son miroir, cuja sonoridade evoca a poesia de Victor Hugo. Ele recriou o poema em 1926, 50 anos depois, com o título de Fragments du Narcisse, que desejava fosse uma contrapartida simples do severo e obscuro La Parque jaune.

Seu exercício de contemplação de si mesmo no ato do poema é destacado por Jacques Charpier, em Essai sur Valéry:

 

Il va faire de la poésie la conaissance de ce qu’elle est. Quels que soient les sujets apparents de ses poèmes, le Sujet fondamental de Valéry c’est la contemplation de lui-même en tant que poète. Ainsi sa poésie sera-t-elle, à sa manière, une critique de la poésie.

 

Cioran, em seu ensaio Valéry face à ses idoles, afirma que, pela obsessão da linguagem e a reflexão sobre o funcionamento da consciência, Valéry é um poeta que colocou a poética acima da poesia. Seu narcisismo se configura como uma vontade de ser clarividente.

O discurso hermético, herdado de Mallarmé, qualifica Paul Valéry como inventor de um fazer poético em que se conjugam a estética e a epistemologia.

Paul Valéry instigou-me intensamente desde que o li pela primeira vez, com o poema Le vin perdu:

 

J’ai, quelque jour, dans l’Océan,

(mais je ne sais plus sous quels cieux)

jeté, comme ofrande au néant,

tout un peu de vin précieux.

Qui volut ta perte, ô liqueur?

Peut-être au souci de mon cœur,

songeant au sang, versant le vin?

Sa transparece accoutumée

après une rose fumée

reprit aussi pure la mer.

Perdu ce vin, ivres les ondes !

J’ai vu bondir dans l’air amer

les figures les plus profones.

 

Trata-se de um diálogo de si mesmo com a natureza vertiginosa do mar. O poema é um rutilante afluente, cuja vertente caudal é Le bateau ivre. Na distância do voo do olhar, o poeta precipitou o fluido licor da temerosa insônia no abismo da claridade e da surpresa. Perplexo diante do seu próprio gesto, ele deitou no Oceano o vertiginoso eflúvio, envolto em um evasivo sopro aéreo, e sente o surgimento de modalidades inusitadas. O vinho desaparece no instantâneo da visão. A fusão dos líquidos numa alquimia misteriosa suscitará percepções insólitas.

Um vinho precioso foi perdido no mar das sensações. Eis a metáfora com que ele representa a impressão de fluidez do tempo em nós. As coisas, de súbito, ardem na fervilhante treva onírica. E só restam os átomos frementes do recôndito e fascinante momento. O poeta perscruta o sentido da pulsação do vento, o que lhe desperta os sentidos para as perguntas fundamentais: quem pressente o cristal do tempo, se só existimos entre a presença e o vazio? Que tesouro jaz na expectativa do milagre e faz a hora do ser?

Num fim de noite, a melhor programação é flanar pela avenida des Champs-Élysées, amplo corredor pontilhado de candelabros e letreiros luminosos. Segui a insônia da multidão, diante das vitrines e do Arco do Triunfo, feérico farol, pulsando de vida e luz, irisada esfinge, ungida pelo noturno fantástico do carrilhão flamejante. Árvores gotejam luz violeta no coração do mundo. Os automóveis passam, num festim de meteoros extasiantes. A grande avenida iluminada, cingida pelo esplêndido arco, é uma passarela onde a humanidade desfila com seus trajes e idiomas. Que o digam a ostentação dos cafés ao ar livre, os jornais do mundo num quiosque, o clima de outubro, agradabilíssimo, o movimento incessante dos carros e a pele branca e delicada de algumas mulheres.

Da avenue des Champs-Élysées, num trajeto pela avenue Victor Hugo, chego à atual rue Paul Valéry, após caminhar algumas quadras. A rua do poeta se chamava rue Villejust, quando ele ali passou a residir, em junho de 1906, depois de seu casamento, em 1900, com Jeannie Gobillard, sobrinha da pintora Berthe Morisot. Seu casamento teve André Gide e Pierre Louys como testemunhas. Ele foi pai de uma filha, chamada Agathe, nascida em 1906.

Nesse período, Valéry trabalhou como secretário da agência de notícias Havas, emprego que lhe arranjara André Lebey, sobrinho do diretor da empresa.

No esgalgo prédio de nº 40 da tranquila rue Paul Valery, morou também a pintora impressionista Berthe Morisot, casada com um irmão de Édouard Manet. Esse endereço foi a derradeira estância do autor de La Jeune Parque. Ele recebeu ali a visita de T.S. Eliot (Thomas Stearns Eliot), com quem manteve intercâmbio sobre temas de poesia e de cultura europeia.

Ao tomar conhecimento da morte do poeta, no dia 20 de julho de 1945, Charles de Gaulle, de quem Valéry foi grande amigo, mandou render-lhe homenagem, com funerais nacionais, naquele dia 20 e marcha fúnebre entoada pela guarda de honra do líder francês na Esplanade du Trocadéro.

De Valéry podemos dizer que foi dotado de particular talento na arte de combinar os recursos musicais e plásticos da linguagem com os sentimentos e as meditações. Produziu, desse modo, a expressão do que há de melhor em sua vitalidade espiritual.

 

 

 

MÁRCIO CATUNDA (Brasil, 1957). Escritor e diplomata. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu mais de quarenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais em espanhol. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021), que recebeu em seu ano de publicação o Prêmio Cecília Meyreles, da União Brasileira de Escritores, no Rio de Janeiro.

 

BRIDGET BATE TICHENOR (França, 1917-1990). Artista fascinante, foi também editora de moda. Sua pintura, ligada ao Surrealismo, sua biografia inclui momentos em que foi modelo de Man Ray, uma paixão que despertou em Anaïs Nin, a casa que dividia com Peggy Guggenheim e seu interesse por ocultismo, magia e alquimia. Quando conheceu o México identificou o país como o lugar sagrado de sua morada, assim como foi intensa a amizade com Leonora Carrington, Remedios Varo, Kati Horna e Alice Rahon, que ali já residiam. Metafísica e misticismo se revelaram como temas característicos de sua linguagem pictórica, o que a levou também a Roma, onde realizou uma série de pinturas intitulada Máscaras, Guias Espirituais e Divindades Duplas.




Agulha Revista de Cultura

Número 225 | março de 2023

Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

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