sábado, 4 de março de 2023

MÁRCIO CATUNDA | Paul Verlaine & Arthur Rimbaud – Os despenhadeiros da criação

 Nascido em Metz, em 30 de março de 1844, Paul Verlaine estudou na rue de Douai, onde fez o catecismo. Depois, em 1857, foi para a rue Truffaut 28. Em seguida, morou na rue Nollet, nº 10, onde permaneceu até 1859. Desse tempo é o seu conhecimento da literatura de Baudelaire e do absinto.

Vim, procedente da rue Lécluse, visitar, o número 10 da estreita rue Nollet, no 17º arrondissement, é encontrei um velho prédio, onde se vê a placa assinalando que Ici a vécu Paul Verlaine, de 1851 a 1865. O prédio tem janelas brancas e cinco andares. Encantador e fantástico, o bairro da infância do poeta de Fêtes Galantes conduziu-me a uma viagem no tempo, em que atravesso cerca de sete décadas em cinco minutos de caminhada, chegando ao número 55 da mesma rua, onde existiu o hôtel Nollet, no qual se hospedaria Max Jacob no século seguinte.

Aprofundei a pesquisa e continuei buscando as casas onde Verlaine e outros grandes poetas moraram. Fui ver que aspectos têm, atualmente, as ruas e os lugares das reuniões frequentadas por Verlaine, entre 1864 e 1866: as casas de Leconte de Lisle, no boulevard des Invalides, nº 8; de Catulle Mendès, na rue de Douai, 65, e de Banville, na rue de Condé, 26.

Quando procurei o número 8, do boulevard des Invalides, constatei que, no ponto em que este boulevard faz esquina com a avenue Tourville, por trás da grande cúpula dourada do hôtel des Invalides, o que existe é o atual número 10. O número 8 ficaria no próprio Invalides. Permanece a incógnita. É provável que a numeração tenha mudado e, portanto, era o número 10 a residência de Leconte de Lisle, onde seus pares acorriam aos saraus literários.

Prossegui, disposto a caminhar veloz e incessantemente como a índia Iracema, que, na ficção de José de Alencar, andava de Messejana ao Mucuripe em poucos minutos.

 A temperatura fresca da tarde deste 5 de setembro de 2019 me reanima. Depois de almoçar uma salada, ganho forças. Adentro a diversidade visual da Cité. De pronto, tenho ante os olhos a efigie do anjo guerreiro Saint-Michel, perpetrando sua façanha dragontina. Sento-me num banco, diante do retangular e escuro edifício, em cujo interior está incrustada a Sainte-Chapelle, e cujo teto ela rompe com a ponta do seu aguilhão afiado. Caminho mais. Vou ao Carrefour de l’Odéon, para me aventurar pela rue de Condé.

Vejo o pequeno, antigo e charmoso prédio de número 26, de quatro pisos e largo portal em arco, onde Thédore de Banville apresentou o jovem Paul Verlaine aos seus pares, nas reuniões semanais de sua casa, às quais acorriam os poetas parnasianos.

A rue de Condé passa ao largo da place de l´Odéon, onde o Théâtre de l’Odéon exibe sua estampa de colunas clássicas. Dali se chega rapidamente às verdejações oníricas do jardin du Luxembourg.

Encontro, na rua de Racine, uma livraria que se chama Poésie e, nela, um editor que se chama Monsieur Breton (que coincidência). O homem, de meia idade, com poucos cabelos brancos, olhou-me por debaixo dos óculos, com ar de desconfiança e um pouco aborrecido, pois ele atendia a uma senhora naquele momento. Mas procurei ser discreto e fui direto ao assunto. Perguntei se ele editaria um poète étranger, traduzido. Ele me dá o cartão e me diz que eu poderia enviar os meus originais como quem jette une bouteille à la mer.

Saio dali, rindo do humor cáustico daquele editor que tem nome de poeta e penso que, efetivamente, a própria vida se assemelha a uma garrafa jogada ao mar…

No dia 3 de setembro de 2019, fui, de manhã cedo, ao aeroporto de Orly. Peguei o metrô, indo ao final da linha de Créteil e depois entrei num táxi. No aeroporto, confirmei que eu poderia levar duas malas de 23 quilos, pagando uma taxa extra, na viagem pela Companhia Iberia. Estava preocupado com a necessidade de transportar os livros adquiridos para a minha pesquisa literária. Resolvido o assunto, fui comer um sanduíche numa lanchonete e disse ao garçom que levaria o lanche para ir comendo pelo caminho, mas resolvi comer ali mesmo na lanchonete. O sujeito veio e me convidou a retirar-me do ambiente, porque eu dissera que levaria o sanduiche, mas decidira comer lá mesmo, e lá, à mesa, o preço era outro. Entendi que o homem era um espírito pouco iluminado, um desses maníacos que implicam com as pessoas. Disse-lhe, ironicamente, que ele era très gentil e que gente com esse excesso de zelo acabaria prejudicando a França. Retirei-me, a contragosto ou melhor, repensei o assunto, considerando que talvez o cara tivesse alguma razão, já que o atendimento do garçom produziria um custo adicional. Entretanto, continuei convicto de que o homem foi grosso ao me expulsar do recinto. Concluí que a lógica do garçom não tinha sentido, pois quando se usa o banheiro de um restaurante, não se precisa pagar nenhum acréscimo, embora o uso do sanitário gere serviços adicionais.

O dia, contudo, foi proveitoso. Peguei um táxi até a place de Clichy. O motorista, um cidadão argelino, bem-humorado, gostava de política e foi criticando o presidente francês, dizendo que a popularidade do homem não andava nada bem, porquanto a maioria não se sentia satisfeita com as reformas que ele estava implementando, especialmente no que concerne ao acréscimo da idade para a aposentadoria. E que, em consequência disso, voltariam os violentos protestos dos gilets jaunes. Com minha desconfiança em relação aos políticos de modo geral, não pude senão concordar com as observações do choffeur.

Cheguei à place de Clichy, núcleo ao redor do qual giram muitas atrações. Eis que, na esquina dessa praça com a rue Biot, aparece um restaurante Le Cyrano (com o subtítulo de “Bistrot depuis 1914”). Trata-se, certamente, de um pseudo-Cyrano, um impostor, já que o endereço que os historiadores atribuem ao verdaderio Cyrano é a place Blanche, às portas do Moulin Rouge, e não ali na place de Clichy.

A decoração art-nouveau, com seus dourados, os espelhos antigos e os globos de luzes amarelas dão ao ambiente, no entanto, certo ar de antiguidade. O pseudo-Cyrano fica no andar térreo de um estreito prédio de três andares.

A alguns metros dali, encontro o velho prédio de paredes manchadas e janelas empoeiradas, do número 45 da rua Lemercier, que é a continuação da rue Biot, que parte da place de Clichy. Verlaine morou em 1863, quando tinha 19 anos, neste Batignolles que se avizinha a Montmartre, setor agitado e ruidoso da cidade, hoje em dia circulado por incontáveis carros e pessoas. Imagino que o silêncio e a quietude do tempo de Verlaine lhe produziam uma inspiração que hoje seria diferente.

Paul Verlaine, filho único, viveu com seus pais, Nicolas-Auguste e Élisa-Stéphanie, quando já havia obtido seu baccalauréat no ano anterior, no lycée Condorcet, qualificando-se para trabalhar no setor de contabilidade da Mairie du 9e arrondissement e, meses depois, no Hôtel de Ville de Paris. No ano seguinte, ele fica órfão de pai. É nessa fase de sua vida que ele começa a frequentar os saraus de poetas, onde conhece e faz amizade com Catulle Mendès, José Maria Heredia, Théodore de Banville e Villiers de l’Isle-Adam.

A rua Lemercier desce e se perde no horizonte longínquo, deixando ver o perfil quadriculado das edificações urbanas. Volto à place de Clichy, tendo diante de mim a cara retangular dos edifícios.

Se a avenue de Clichy me pareceu árida, o boulevard de Clichy deu-me impressão oposta, com as folhagens da ala verde em que se dividem os dois sentidos do trânsito, e com bancos disponíveis que me deixaram comodamente observar a movimentação de carros, bicicletas e pedestres.

Quem vem da place Clichy pelo boulevard de Clichy esbarra nos vermelhos do Moulin Rouge, na place Blanche, logradouro sem os caprichos arquitetônicos tradicionais de Paris. Seu chame converge unicamente para o moinho cor de vinho, cor do erotismo, erguido com suas paletas como asas de uma águia, pairando sob o azul do céu. Desta place Blanche, tomo a direção da rue Blanche, porventura uma descida. Cruzo a rue de Douai, para avistar de novo o número 65, onde Baudelaire pernoitou em seu regresso de Bruxelas, na casa de Catulle Mendès.

De 1866, ano da morte de seu pai, até 1870, Verlaine morou com sua mãe, na rue Lécluse, nr. 26, em Batingnolles, próximo à place de Clichy. Nesse ano, ele começou a freqüentar os parnasianos.

A rue Lécluse é a segunda rua à direita de quem vai pela sombra da ala arborizada do boulevard de Clichy. Rua curta, quase um impasse. O prédio de número 26 é alto, tem seis andares, e dá a impressão de que os dois andares mais altos foram construídos em tempo mais recente em relação aos mais baixos.

Foi nesse período que Verlaine frequentou os parnasianos, no apartamento de Catulle Mendès, na rue de Douai. O prédio de seis andares, mal preservado, está na esquina de Lécluse com a rue des Dames, onde termina a curta rue Lécluse.

O ano de 1866 foi importante para Verlaine, do ponto de vista literário, pois consolidou a sua participação na revista Parnasse Contemporain, mediante a publicação, entre outros, dos melodiosos poemas Rêve familier e Marine. Stéphane Mallarmé, recém-nomeado professor de inglês em Besançon, escreveu elogioso artigo sobre o livro Poèmes saturniens, que já havia sido louvado pelo mestre Victor Hugo. Paul Verlaine escreveu ao poeta de Les contemplations, em 1867, e o visitou em Bruxelas. Emocionou-se, quando o famoso poeta, de sessenta e cinco anos, recitou-lhe alguns versos dos Poèmes saturniens.

Já nesse magnífico livro de estreia, aos 22 anos, Verlaine prova ser o poeta cuja memória se imortalizará na admiração dos pósteros: Em Nocturne parisien, ele inicia seu discurso de aedo que tem a natureza como confidente:

 

Roule, roule ton flot indolent, morne Seine,

Sur tes ponts qu’environne une vapeur malsaine

Bien des corps ont passé, morts, horribles, pourris,

Dont les âmes avaient pour meurtrier Paris.

Mais tu n’en traînes pas, en tes ondes glacées,

Autant que ton aspect m’inspire de pensées!

 

De sensibilidade à flor da pele, com características que hoje os terapeutas poderiam classificar como as de um paciente bipolar, Verlaine exacerbava a suscetibilidade temperamental pelo consumo de absinto. Deprimiu-se durante o enterro de Baudelaire, no dia 31 de agosto de 1867, no cemitério de Montparnasse. Para afogar o desgosto, bebeu descomunais doses da apelidada substância verde, depois do funeral de seu ídolo. Na ocasião, sentiu a ausência de Théophile Gautier, que se encontrava em Genebra. Mas encontrou Banville e Édouard Manet nas exéquias daquele amigo que ele tanto admirava.

A boa acolhida de Banville e Hugo às Fêtes galantes, em 1869, proporcionou-lhe alegrias. Alguns dos poemas do livro foram escritos em passeios vespertinos pelos jardins du Luxembourg e de Tuileries, onde ele, depois de beber absinto nos bares do Quartier Latin, contemplava, extasiado, les grands jets d’eau sveltes parmi les marbres.

O casamento de Verlaine com Mathilde Mauté foi realizado na igreja Notre-Dame-de-Clingnancourt, na place Jules Joffrin, nº 2, no dia 11 de agosto de 1870, quando havia começado a guerra da França com a Prússia. Mathilde Mauté inspirou alguns de seus mais lindos poemas, como Serenade (de seu primeiro recueil Poèmes saturniens), Green e Street (do livro Romance sans paroles) e N’est pas (de La bonne chanson).

No mesmo ano em que Verlaine contraía núpcias, o jovem provinciano Arthur Rimbaud, de 18 anos, em Charleville, sua cidade natal, impressionava os professores da escola com primorosos poemas. O professor Georges Izambard não cessava de incentivá-lo a viajar a Paris, a fim de descobrir um novo mundo e se consagrar nas letras francesas. Movido por essa elevada expectativa, a primeira viagem de Rimbaud a Paris, no outono de 1870, foi só decepção. Dormiu às margens do Sena e não encontrou os poetas que esperava ver. Escreveu então a Théodore de Banville, pedindo sua intermediação junto ao editor Alphonse Lemerre para publicar seus poemas. A resposta do poeta de Les cariatides foi cordial, mas nada conclusiva. Escreveu então a Verlaine, enviando-lhe, junto com a carta, alguns poemas e lhe pedindo apoio para estabelecer-se em Paris, onde poderia ter seus versos bem publicados e distribuídos. Rimbaud considerava Verlaine o único poeta comparável a Baudelaire. O autor de Fêtes galantes ficou encantado com as ressonâncias líricas daquele contemplador da noite, que dizia ter albergue na Grande Ursa e escutar as estrelas, enquanto sentia a brisa de setembro como um vinho de vigor. Na sua acolhedora e afetuosa carta de resposta, expressou-se calorosamente: venha, grande alma querida (Venez, chère grande âme, on vous appelle, on vous attend). E não apenas o esperou na gare de Strasbourg, acompanhado por Charles Cros, como lhe mandou a passagem de trem.

Eles, entretanto, se desencontraram na estação de trens e o encontro só aconteceu na casa de Verlaine, isto é, na casa de seus sogros, na rue Nicolet, nº 14, onde Rimbaud já conversava, folgadamente, com Mathilde, mulher de Verlaine.

Tive a grata alegria de ver duas vezes aquela pequena rua de duas quadras, ascendente em direção à basílica de Sacré-Coeur, igreja que só foi construída alguns anos depois que Verlaine ali residiu. Vi, na primeira ocasião, no muro, do lado esquerdo do portão do pátio externo, a placa indicativa de que o poeta viveu no segundo andar do edifício.

Na segunda vez, fui, num táxi, pelas ruas de simétricos edifícios de Montmartre, até a place du Château-Rouge, lugar de confluência de quatro ruas (três das quais vêm de encontro ao boulevard Barbès). Cruzei aquele bairro operário, habitado por imigrantes africanos; a place du Château-Rouge é povoada de gente que veio da Argélia, do Marrocos, da Costa do Marfim, do Senegal, do Haiti, do Congo, do Togo, do Mali… Perfeitamente integrados ao ambiente parisiense, eles instalaram ali um mercado de frutas, legumes, carnes e pães. Alguns cidadãos espalham cartões de bordéis. Outros manuseiam seus celulares, na esquina da rue des Poissonniers.

Subo o terreno inclinado da rue Custine, em ascensão, até a tranquila rue Nicolet. A casa, de dois andares, tem um largo portão de grade, mostrando um pequeno jardim cultivado. Fica no final da rua, quase esquina com a rue Bachelet. Notei a diferença, relativamente à ocasião anterior em que estive no local, havia cerca de sete anos: foi retirada a placa alusiva à passagem do poeta por aquela moradia. Sendo um imóvel de dois andares, a casa é talvez a única morada de poeta em Paris que não é apartamento de algum grande edifício.

Recebido pela mulher de Verlaine, o rapaz belo e talentoso de Charleville passou uns dias hospedado pela família de Mathilde, que, no entanto, não simpatizou com seus hábitos extravagantes, o cabelo espetado, com aspecto negligente, aparência de marginal e maneiras selvagens. Ele evitava o banho diário, como os cachorros, que fogem da água. E espalhava piolhos por onde andava.

Mas o talento e a beleza dos olhos cor de miosótis de Rimbaud interessaram Verlaine, que não tardou a sair pelo mundo em sua companhia. Entusiasmado pela disposição com que seu novo amigo se dispunha a explorar suas paixões ao paroxismo, imergiu na irresponsabilidade total do discípulo belo e libertino; almas inquietas, eles tinham necessidade de perambular em lugares sórdidos e aguçar a desordem afetiva. Ardentes taças de absinto e outras drogas foram impulsos para essa deriva mental. Uma relação de mútua admiração e de amores sodomitas foi vivida intensamente, com desregramento dos sentidos e instinto de autodestruição.

Na antologia Les poètes maudits, Verlaine o descreve alto, quase atlético, de rosto ovalado qual um anjo desterrado, de cabelos castanhos claros e olhos de um azul pálido inquietante. Tinha o dom da assimilação rápida. Espírito impetuoso, absorvia todos os tons e pulsava todas as cordas, sendo grande poeta pela graça de Deus. Verlaine destacou seu poder de ironia e os aspectos ternos, caricaturescos e cordiais de seus dons supremos. Qualidades que surgem no delicado encanto de alguns versos que parecem prolongar-se em sonho e música, numa cadência rítmica de estirpe lamartiniana e virgiliana.

Na esquina da rue Nicolet com a rue Lambert, fotografei uma bela imagem de Rimbaud, de autor desconhecido, estampada na parede com a seguinte frase: Le poète est un voleur de feu. Caminho até a rue Muller e avisto no alto a escada enramada que conduz ao colosso marmóreo de Sacré-Coeur.

Vou meditando na vida e no destino daqueles dois talentosos boêmios. As ruas são labirínticas, e é preciso prestar atenção para não perder o rumo. Parece que todas são traçadas em “X”.

Depois de ser convidado pelos pais da esposa de Verlaine a retirar-se de sua casa (dada a proximidade do parto de Mathilde), o pupilo de Verlaine foi morar num quarto, no apartamento de Théodore de Banville, na rue de Buci, número 10. Ali, Rimbaud logo criou um caso, aparecendo nu na janela do apartamento, deixando a vizinhança perturbada.

Na sequência de minhas peregrinações às moradias do itinerante Arthur Rimbaud, que não teve residência fixa, desde que saiu de Charleville, fui à estreita rue Séguier, que liga o quai des Grands Augustins à rue Saint-André des Arts.

 Evado-me, pela linha 4 do metrô, e já estou no Carrefour de l’Odéon, esquina com o boulevard Saint-Germain, ao lado do cinema cujo nome é o do revolucionário Danton, que tem sua estátua na place Henri Mondor, marcando o cruzamento de várias vias públicas. Ao atravessar o boulevard Saint-Germain, encontro a estreita rue Gregoire de Tours (bispo de Tours e historiador, 538-594) e dali me dirijo à rue de Buci, para passar em frente ao apartamento onde Rimbaud esteve hospedado na rue de Buci, nº10.

 Admirei as fachadas dos prédios daquela estreita rua, situada num espaço urbano assimétrico e repleta de restaurantes, crêperies e lojas de souvenirs para turistas. Um âmbito prestigiado pelos turistas comensais. O prédio de número 10 tem cinco andares e está decorado com jarros de flores nas grades das janelas de vidro. Encontrei fechado o portal com duas aldravas. Contudo, na primeira vez em que o vi estava aberto e pude entrar no pátio onde observei o conjunto de apartamentos. Percebi que as janelas ficam de frente umas para as outras, à pequena distância, o que torna a privacidade dos vizinhos bastante vulnerável.

Com efeito, Rimbaud teve de abandonar o quarto do apartamento de Banville, porque havia aparecido nu na sacada. Os vizinhos atônitos, reclamaram. O peregrino seguiu sua trajetória.

Em seu magistral Le tombeau de Verlaine, Mallarmé recorda o insólito episódio da chegada de Rimbaud ao apartamento de Banville. Depois de atravessar, a pé, os caminhos de Charleville, sua província natal, até a capital da França, o poeta, de 17 anos, instalou-se no cômodo e jogou pela escada as velhas vestes, exclamando que não poderia ocupar um quatro tão limpo, com aquela roupa cheia de pulgas.

Depois da estada no apartamento de Banville, na rue de Buci, Rimbaud esteve no apartamento de Charles Cros, em outubro de 1871, na rue Séguier, 13, sempre a expensas do seu mecenas e amigo Paul Verlaine. A beleza se tornava amarga. A repugnância e as provocações dificultariam o encontro da plenitude visionária.

Avistei a fachada do apartamento de Charles Cros, na estreita rue Séguier, que liga o quai des Grands Augustins à rue Saint-André des Arts. O prédio de número 13 tem uma grande porta, que parece antiquíssima. É um edifício de quatro andares, com um apartamento por andar, três grandes janelas para cada piso e grades em pseudobalcões. Reinam ali um silêncio e uma calma que suscitam um certo clima daqueles dias de 1870.

As janelas brancas, com vidraças expostas pela abertura das venezianas, conferem um certo encanto ao edifício. No portal, um barbarismo: a palavra Coifirst, evocando o idioma inglês.

O jovem marginal peregrinou, sem paradeiro fixo, com bagagem mínima, pelo Quartier Latin. Hospedou-se nas dependências do Cercle Zutique, a confraria de poetas criada por Charles Cros, no bar de Ernest Cabaner, que animava o grupo, tocando piano.

Chego e vejo, naquele recanto antigo do sexto arrondissement de Paris, o prédio estreito que se alarga triangularmente a partir do seu vértice, entre a rue de l’École de Médicine e a rue Racine; em frente, o boulevard Saint-Michel. No térreo, há uma loja de roupas e, nos três andares superiores, o hôtel Belloy Saint-Germain. Nas duas esquinas, que ladeiam a geometria triangular do prédio, estão as duas livrarias Gilbert Joseph, cujo letreiro amarelo se destaca na perspectiva. O bico do prédio, em frente ao boulevard de Saint-Michel, configura uma aguda esquina, sui generis. No terceiro andar desse prédio estreito, de quatro andares, havia o bar onde os poetas se reuniam. Arthur Rimbaud dormia ali mesmo, no sofá, a troco de lavar os pratos e servir aos clientes. Foi ali que Rimbaud leu para eles o manuscrito de Le Bateau Ivre. O atual hôtel Belloy Saint-Germain chamava-se hôtel des Étrangers, no ano de 1871.

As reuniões dos zutiques eram frequentadas por Verlaine, que introduziu Rimbaud entre seus pares. Consistiam na continuação dos denominados jantares des Vilains Bonshommes, que duraram até o final de 1869, no antigo hotel Camoens, na esquina da rue Bonaparte com a rue du Vieux-Colombier, em diagonal com a velha Igreja de Saint-Sulpice. Esses encontros, interrompidos pela guerra franco-prussiana, pela Commune e pelo advento da República, continuaram sob a égide dos zutiques.

Certa feita, no dia 2 de março de 1872, Rimbaud aprontou uma tremenda confusão. Entre aqueles convivas do grupo, (que o pintor Fantin-Latour configurou numa tela) havia um certo Auguste Creissels, do qual Rimbaud debochou, quando recitava, interrompendo, com a palavra merde, cada estrofe do poema. A invectiva provocou tumulto e, quando o fotógrafo Étienne Carjat tentou expulsar Rimbaud do recinto, o jovem rebelde investiu contra Étienne com um bastão e o feriu na mão e na virilha. A duras penas, Verlaine conseguiu desarmar seu doido amigo, que correu, desaparecendo na noite. A reputação de Verlaine ficou abalada nos meios intelectuais, porque ele acolhera aquele rapaz maluco, irreverente e mal-educado, que provocava confusão em toda parte.

Em dezembro de 1871, depois do nascimento de seu filho, Georges Auguste, e cessados os sangrentos combates entre os communards e as forças defensoras da Assembleia Nacional, Verlaine alugou para Rimbaud um apartamento na rue Campagne-Première, na esquina com o boulevard d’Enfer, hoje denominado boulevard Raspail, próximo ao cemitério de Montparnasse.

Do boulevard Montparnasse, derivei em direção ao boulevard Raspail, essa grande avenida que une os extremos topográficos de Paris. Passo diante da exótica estátua de Balzac, obra de Rodin. Nas imediações do famoso cemitério de Montparnasse, aparece, na esquina ao lado da estação de metrô Raspail, a rue Campagne-Première. Paro no pequeno jardim que há, num dos lados da esquina. Os bancos estão molhados e a relva está branca, coberta pela neve que a tempestade trouxe na noite de 29 de janeiro de 2019. Uma vila de pequenos prédios, num corredor chamado passage de l’Enfer, com portão fechado, conecta a rue Campagne-Première ao boulevard Raspail.

O prédio da esquina da Campagne-Première com o boulevard Raspail, onde estiveram Verlaine e Rimbaud, tem um certo charme. É o número 35 da rua, já no final dela, com janelas para a grande avenida. Rimbaud permaneceu ali até março de 1872.

Verlaine foi, aos poucos, abandonando a família para peregrinar, com Rimbaud, em aventura boêmia, percorrendo as noites dissolutas de Paris. Vagabundos e quase mendigos, deambulavam pelos recantos pitorescos e libertinos da cidade. Gostavam especialmente dos bares de Montmartre, sobretudo da rue de l’Abreuvoir, assim chamada por haver existido ali um antigo bebedouro de animais.

Desde a invasão de Paris pelos soldados prussianos em 1871, Verlaine abandonara o emprego no Hôtel de Ville e passara a viver às custas de sua mãe, a Sra. Stéphanie Verlaine. Quando se embriagava, tornava-se violento. Pedia dinheiro à Sra. Stéphanie, e se não fosse imediatamente atendido, adotava conduta agressiva e perigosa. Certa ocasião, depois de uma farra, chegou à casa de sua mãe e rompeu os vidros onde ela guardava os fetos natimortos de seus irmãozinhos falhados. Foi ficando cada vez mais neurótico, ao ponto de, numa discussão, espancar a esposa Mathilde e lançar contra a parede o pequeno Georges, de três meses, que teve a sorte de não se machucar muito, porque foram seus pés e não a cabeça que sofreram o impacto.

Quando Rimbaud regressa a Charleville, sua cidade natal, Verlaine tenta se reconciliar com Mathilde. Fascinado, entretanto, pelo amigo très beau d’une beauté paysanne et rusée, escreve-lhe, perguntando quando empreenderiam o caminho da cruz. Rimbaud, contrariando a mãe, que desejava que ele trabalhasse, volta a Paris em junho de 1872 e se hospeda no hôtel de Cluny, na rue Victor-Cousin, nº 8, na esquina da place de la Sorbonne.

Na parede do hotel Cluny Sorbonne, na rue Victor Cousin, nº 8, onde estive hospedado em duas ocasiões, revi a placa onde estão inscritas as seguintes palavras do poeta: En ce moment, j’ai une chambre jolie. A localização é estratégica para quem quer desfrutar dos melhores passeios em Paris.

Segundo o atendente do hotel, a quem indaguei, foi a chambre 62 a que o poeta ocupou. A dois passos dali estão os portais da Sorbonne. A praça frontal ao edifício universitário é um lugar aconchegante, com fontes, livrarias, cafés, a estátua de Auguste Comte – o homem do Positivismo – e a juventude estudantil que tudo alegra com risos e falas ruidosos. Com a fachada pontilhada de estátuas e a cruz sobre a cúpula, a Sorbonne não esconde sua origem monástica, fundada que foi sob a égide da igreja. No centro do retângulo frontal, o charmoso relógio, ladeado por esculturas, atrai a atenção de quem o vê.

Desço pelo boulevard Saint-Michel e revejo o vetusto mosteiro de Cluny, com os tijolos da carcaça de alvenaria expostos. De inopino, surge o colosso de Notre-Dame: o precioso desenho de linhas e formas simetricamente belo. Uma grande estátua se destaca na praça ajardinada, em frente aos prodígios da Catedral: é o imperador Carlos Magno, mentor da cristandade.

Na rue du Cloître Notre-Dame a poesia francesa evolui com a peripécia marginal de François Villon. Caminho por Paris em círculos concêntricos, no espaço e no tempo.

Na área agradável do Quartier Latin, onde se localiza o hotel Cluny Sorbonne, quase em frente à formidável entrada da mais antiga universidade francesa, segui rastreando as errâncias de Rimbaud. Passei em frente ao café Pélorier, rue Saint-Jacques nr 176, do qual Rimbaud foi assíduo frequentador. Está quase na esquina da rue Saint-Jacques com a rue Soufflot, que se vai inclinando até as grades do jardin de Luxembourg. A Soufflot é a rua que nos conduz ao magnífico Panthéon, erguido em vigorosas e altas colunas, com a inscrição Aux grands hommes la Patrie Reconnaissante no frontispício triangular da parte superior da fachada. As estátuas de Jean-Jacques Rousseau e de Pierre Corneille nas laterais os promovem à condição de patronos do monumento. Somente erguendo os olhos para o alto é que se vislumbra o cimo cônico da cúpula arrematado por uma cruz. Por trás do Panthéon, avista-se o formoso frontispício da Église Saint-Étienne-du-Mont, na qual jazem os restos mortais de Jean Racine, numa pilastra ao pé da sacristia, inumados ali em 1771. Ao lado da igreja, a torre do Lycée Henri IV está belamente erguida na rue Clovis.

Verlaine, cada vez mais inveterado no alcoolismo e mais agressivo, quando embriagado, sai da casa dos sogros, deixando mulher e filho, sem prévio aviso, em julho de 1872. Viaja para a Bélgica, na companhia de Rimbaud. Em Arras, os dois poetas foram presos, porque falavam, na cantina da estação, em tom de zombaria, de supostos crimes que haviam cometido. O cantineiro, inopinadamente, chamou a polícia e eles tiveram árduo trabalho para convencer o magistrado de que tudo se tratava de uma brincadeira.

Quando o pai de Mathilde entra com ação de separação em tribunal parisiense, Verlaine escreve à esposa, implorando a reconciliação. Ela vai à capital belga, acompanhada pela mãe, e o casal se reconcilia. Porém, depois de uma discussão, o poeta foge de sua mulher, quando já havia embarcado de volta a Paris. De súbito, ele desceu do vagão, antes que o trem partisse. Sua sogra, Mauté de Fleurville, chama-o para que ele suba outra vez ao vagão, mas ele gira a cabeça negativamente enquanto o trem parte. Foi a última vez que Verlaine viu a esposa.


Verlaine oscilava entre a tentação de aprofundar a aventura irresponsável com Rimbaud e o remorso de haver abandonado a vida conjugal. Os dois poetas viajaram a Londres e ali discutiram e se separaram. Rimbaud volta a Charleville e a Roche, onde sua família tinha uma casa. Extenuado, insone, delirante, na noite do inferno. Rimbaud escreve ao amigo, pedindo perdão: está chorando muito, reconhece os erros e jura fidelidade. Eles tornam a se encontrar em Bruxelas. O efeito da vida nômade e boêmia sobre o espírito de Verlaine era desestabilizador. O sogro reintroduziu a demanda judicial de separação e o poeta enviou cartas a Mathilde e a diversos amigos, ameaçando suicidar-se.

Em Bruxelas, continua a ebriedade delirante. Num dos seus muitos momentos de crise, os poetas discutem e proferem insultos recíprocos. Rimbaud resolve regressar a Paris e romper a relação. Verlaine, que havia comprado um revólver para matar-se, dispara dois tiros sobre o amigo, um dos quais lhe atinge o pulso direito. Depois de socorrido e feito o curativo, Rimbaud continua decidido a partir. Já na rua, Verlaine ameaça matá-lo e depois matar-se, e põe a mão no bolso para sacar a arma. Amedrontado, Rimbaud corre e denuncia o amigo à polícia. Depois de extraída a bala, Rimbaud regressa a Paris, com dinheiro que lhe dera a mãe de Verlaine, presente ao transe todo. Escreve Une saison en enfer e decide tornar-se para sempre um nômade:

 

Je quitte l’Europe. L’air marin brûlera mes poumons; les climats perdus me tanneront. Nager, broyer l’herbe, chasser, fumer surtout; boire des liqueurs fortes comme du metal bouillant – comme faisaient ces chers ancêtres autour des feux.

 

Na busca de sensações inusitadas, Rimbaud retorna a Londres, numa perambulação que resultará em esperanças absurdas e desilusões: J’ai cru acquerir des pouvoirs surnaturels. Eh bien! Je dois enterrer mon imagination et mes souvenirs.

Julgado e condenado a dois anos de prisão, o poeta saturnino escreve na prisão a Victor Hugo, pedindo ajuda e intermediação para que Mathilde o perdoe. Cumpre a pena, resignadamente, de agosto de 1873 a janeiro de 1875. Ao sair da cadeia, traga, a duras penas, a separação de Mathilde, pronunciada pelo Tribunal de la Seine. Apregoa aos amigos a sua conversão ao catolicismo. De fato, escreveu os belos poemas místicos de Sagesse, enquanto esteve recluso. Assim ele expressa sua submissão à vontade de Deus, numa declaração de entrega devocional:

 

O mon Dieu, vous m`avez blessé d`amour

et la blessure est encore vibrante

   (…)

Vous connaissez tout cela, tout cela.

Et que je suis plus pauvre que personne,

mais ce que j’ai, mon Dieu, je vous le donne.

 

Enquanto Verlaine esteve preso, Rimbaud morou em Roche, onde terminou de escrever Une saison en enfer, com referências metafóricas as suas pregressas experiências devassas. Ao sair do cárcere, Verlaine forja um reencontro com Rimbaud e lhe fala de sua conversão ao catolicismo. O amigo debochou de sua fé, chamando-o de “Loyola”. Depois de uma bebedeira, Verlaine perdeu as estribeiras e tentou seduzir outra vez o seu colega de desregramento dos sentidos, o qual, desta feita, lhe aplicou um murro certeiro, que o fez cair ao solo.

Eles tomaram rumos diferentes. Rimbaud escreve Les illuminations, seu magnífico poema místico, com influência de La tentation de Saint-Antoine, de Flaubert. Expressa os extáticos ardores de uma experiência sem limites de espaço e tempo. Uma sensação de absoluta essência, em revelações de luz. O haxixe o intoxica, deixando sequelas.

Verlaine arranjou emprego de professor de francês em Stickney, na Inglaterra, onde permaneceu de março de 1875 a janeiro de 1877. De regresso à França, deu aulas no colégio jesuíta Nôtre-Dame de Rethel, em Ardennes. Em 1878, foi a Paris e reviu o filho, mas frustrou-se com a ausência de Mathilde, pois queria aproveitar a ocasião para reatar o casamento. Por outro lado, apaixonou-se pelo seu ex-aluno Lucien Létinois e, em 1880, comprou, com dinheiro de sua mãe, uma fazenda em Juniville, a 17 quilômetros de Coulommes, para que a família de Lucien a cultivasse. Nesse mesmo ano, publicou o livro Sagesse, que contém os poemas religiosos escritos na prisão. O negócio da fazenda fracassa e Lucien acaba morrendo de febre tifoide.

Rimbaud, por sua vez, meteu-se nas mais estapafúrdias aventuras, tendo viajado a diversos países europeus, caminhando grandes distâncias a pé. De 1874 a 1876, esteve na Alemanha, na Áustria e na Holanda. Alistou-se no exército holandês de mercenários e viajou para a Indonésia. Desertou e embarcou de volta para a França. Despediu-se de Paris, depois de passar uns dias no apartamento do poeta e músico Ernest Cabaner, situado na rue La Rochefoucauld, nº 58, entre a place Pigalle e a rue Fontaine, próximo ao local onde moraria, décadas depois, o poeta André Breton.

Rimbaud tornou a viajar em 1879, desta feita para Alexandria e, em seguida, Chipre, onde foi vigilante de obras da empresa Ernest Jean & Thial. Pegou febre tifoide, veio se tratar em Marseille. Partiu, de novo, em 1880, para Aden, no Iêmen, e, depois, para a Somália. Viajou 20 dias a cavalo, pelo deserto, até Harar, na Etiópia, onde se estabeleceu como comerciante de peles, marfim, almíscar, incenso e armas. Passou 11 anos entre a Somália e o Iêmen, exposto ao clima atroz e à crueldade dos bandoleiros. Caminhava a pé, de 20 a 40 quilômetros diariamente, levando sua mercadoria clandestina sobre camelos, junto às caravanas de abissínios, fustigados pelo calor infernal do deserto. Chega ao Egito em 1887, com os bolsos cheios de ouro. Adoece de sífilis.

 Ao cabo de tais perigosas aventuras, depois de uma queda, Rimbaud sentiu fortes dores no joelho direito. O médico recomendou-lhe regressar ao seu país para tratamento em Marselha. Carregado, durante 16 dias, numa padiola, na Abissínia, esperou mais onze dias, em Aden, pelo barco que o repatriaria.

A doença era um tumor cancerígeno. No hospital de la Conception, em Marseille, padeceu terríveis dores, até que, no dia 27 de maio de 1891, os médicos lhe amputaram a perna direita. Durante um mês de convalescença, foi assistido por sua irmã Isabelle. Partiu de muletas para Roche, na esperança de regressar a Harar, mas a doença só lhe permitiu chegar a Paris e voltar a Marselha para morrer, no dia 10 de novembro de 1891.

Chego ao velho Marais, bairro tumultuado por tantos transeuntes. Vou até a rue de La Roquette, 17, onde Verlaine teve residência em 1882. Tinha 38 anos, quando alugou aquele apartamento, no quinto andar, onde morou com a mãe. No ano seguinte, 1883, ele se muda para uma casa em Malval, que a Sra. Stephanie Verlaine comprara da família Létinois. Nesse período, com seu temperamento neurastênico, entre violentas alterações de humor, depois de exibir um punhal para a própria mãe, foi preso outra vez, tendo permanecido um mês no cárcere.

O prédio da rue de La Roquete situa-se na bifurcação entre essa rua e a rue Saint-Sabin. Alto e branco como um farol no mar de viaturas incessantes da cidade.

O Marais, nas proximidades da place de la Bastille é um pandemônio. Uma criatura buzina estridentemente. Outras, não menos apressadas, quase esbarram em mim. Uma camioneta e um ônibus também passam quase me raspando, na esquina de onde vejo as ruas estreitas, com paredes pardacentas e anúncios comerciais que evocam um passado longínquo. Espraiam-se “fast-foods” de toda sorte ao longo das quadras do antigo quartier.

Volto ao âmbito da Bastilha e vislumbro sua coluna verde no panorama nublado. No topo, o dourado arcanjo bailarino. Um jovem de camisa verde e barba rala se aproxima para me pedir uma cotisation mensuelle para a Biodiversité.

Quando se vai cruzar a rua, uma moto aparece do nada. No meio daquela confusão toda, é preciso andar com redobrada atenção. Há que se desviar, igualmente, dos dejetos que jazem nas calçadas. Cidade grande é assim.

O jeito é buscar refúgio no recanto tranquilo do jardim ao largo do port de l’Arsenal, pontilhado de embarcações que imprimem na imaginação uma sensação de viagens. Algumas pessoas descansam, comendo sanduíches sobre a relva. Há pouca gente na área. Os turistas não conhecem este espaço.
Saio desse mergulho ecológico no canal ajardinado, pela rampa lateral do outro extremo. E desemboco no boulevard de la Bastille e logo na Pont Morland.

Vejo-me, num átimo, no quai Henri IV, ante a morosidade clara do Sena. Descubro um ângulo espetacular, onde aparece, sobre altos prédios, a cabeça azulada e retangular da torre Montparnasse e, em frente, além das pontes, as duas torres de Notre-Dame, circundadas pelos canteiros de guindastes e escadas, pelos quais os operários sobem para refazer as relíquias que o fogo consumiu.

A fama de Verlaine foi-se propagando celeremente, tendo ele contribuído para a divulgação da poesia de Stéphane Mallarmé, Tristan Corbiére e Arthur Rimbaud, na famosa antologia intitulada Poetas Malditos.

Verlaine frequentou, a partir de 1884, o apartamento de Mallarmé, onde se encontrava, às terças-feiras à noite, na rue de Rome, com o anfitrião e outros amigos, entre os quais Paul Valéry e André Gide.

Ao tomar conhecimento da morte de Rimbaud, Verlaine sentiu uma convulsão de angústia. Disse que sonhava todas as noites com aquele rapaz dotado de uma “sedução demoníaca”. Sobreviveu, porém, ao impacto. Seguiu morando em vários endereços, quase todos no Quartier Latin. Vivia em precárias condições de conforto e salubridade. Recebia, no entanto, convites de intelectuais de outros países para proferir palestras. Assim, de 1882 a 1884, viajou à Haia, a Bruxelas e a Londres e nas três cidades leu poemas e falou dos poetas malditos de Paris.

Em 1885, ano da morte de Victor Hugo, Verlaine adoeceu de artrite aguda no joelho direito, ao ponto de não haver podido assistir ao enterro da própria mãe. Desde então, hospedou-se em pardieiros e esteve diversas vezes hospitalizado para tratar da perna ulcerada e do joelho inflamado. Vivo no hospital como um beneditino, dirá, então. Em 1887, apaixona-se por Philomène Boudin, que tinha fama de prostituta e lhe roubava o pouco dinheiro que ganhava dos editores. Conhece Eugénie Krantz e se amanceba também com ela, oscilando entre os braços das duas musas, em períodos alternados, mudando-se para diversos endereços, de forma itinerante. Desfruta da amizade do poeta e jornalista Edmond Lepelletier, seu confidente de toda a vida e do artista plástico Frédéric-Auguste Cazals, por quem nutriu, a exemplo de Lucien Létinois, obsessivo amor platônico. Em 1889 fez tratamento de águas medicinais em Aix-les-Bain.

O jardin du Luxembourg me reconforta com uma brisa que as árvores filtram. À carícia do vento, as plantas assoviam. Melodia nas folhas. Leio, sob umas árvores, o Le Monde do dia 20 de agosto de 2019, que anuncia as reformas que evitariam potenciais focos de tensão social: aposentadorias, aberturas da PMA (procriação medicamente assistida) a todas as mulheres e lei antiresíduos (antigaspillage). Trata-se do método de diálogo prometido pelo Executivo francês, com vistas a evitar a crise provocada pelos gilets jaunes.

O dia ensolarado e fresco me permite flanar. Como uma salada leve, no Au Petit Suisse, restaurante com vista para o arvoredo dos magníficos jardins do Senado.

Caminho pelo quartier literário da Sorbonne e eis que já me encontro na rue Saint-Jacques, que deu guarida à residência de Paul Verlaine no número 187, quinto andar. Por ela, sigo e vejo a placa indicativa da residência de Émile Durkheim, o fundador da sociologia. (Morou ali de 1902 a 1912).

A sinalética de Paris marca, com certa eficiência, os locais onde viveram seus grandes artistas. E registra, de modo excelente, os nomes dos cidadãos franceses fuzilados em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. São incontáveis as referências às pessoas assassinadas que aparecem nas placas. Estão em toda a cidade.

A rue Saint-Jacques apresenta, entre suas atrações, a Maison des Océans (Institut Océanographique) e, um pouco mais adiante, no número 187, com largo portal azul, de cinco andares, ostentando uma janela em arco, igualmente sem a respectiva indicação, a residência de Verlaine. Ele morou nesse domicílio com Eugénie Krantz, quando contava 50 anos de idade.

A rua se alarga do lado esquerdo, a partir daquele edifício, na altura da esquina com a rue Pierre et Marie Curie. Enquanto eu observava o local e tomava nota do que via, três cidadãos aproximaram-se e me perguntaram se o que eu escrevia era poesia ou prosa. Disse-lhes que estava escrevendo sobre os lugares onde viveram alguns poetas franceses, e que ali havia encontrado um endereço de Verlaine. Um dos rapazes sorriu e exclamou: Ah, o poeta bebedor de absinto! E seguiu caminhando, com seus comparsas.

Continuei, pela mesma rua, até as proximidades do Sena, onde Paris jamais é nostálgica. A rue Saint-Jacques tem, como joias de sua coroa, livrarias interessantíssimas, o portentoso Panthéon, de gloriosas colunas, a fabulosa Sorbonne e, ao longe, além da vetusta torre da Universidade, o perfil argênteo de Notre-Dame, alçado como um pavilhão que as nuvens ungem de aura mística.

Depois do endereço acima referido, Verlaine mudou-se para a rue Cardinal Lemoine, nº 48, rua que começa na ribeira do rio de Paris e sobe o monte em direção ao Panthéon. É a rua onde o poeta morou já na fase final de sua vida, quando namorava as duas cortesãs, Philomène e Eugénie. Ele reclamava de ter que subir e descer, com a perna rígida e o joelho dolorido, a ladeira que começa no número 20 daquela rua. Pouco tempo depois, em 1895, foi morar com Eugénie Krantz na rue Saint-Victor, nº16.

A rue Cardinal Lemoine deixa de ser uma avenida e se estreita, quando se aproxima da planície que o Sena abre nas margens, em alamedas de passeio, onde me regozijo, longe da turbulência impiedosa das áreas tumultuadas de Paris.

Em 1889, Verlaine se separou de Eugénie Krantz e reatou o romance com Philomène Boudin, com quem foi morar na rue de Vaugirad, nº 4, no hôtel Lisbonne, com a ajuda que recebera de Maurice Barrès, o qual reuniu 36 escritores que se cotizaram para dar-lhe uma renda mensal. François Copée, Edmond Lepelletier e o Conde de Montesquiou, generosos amigos, eram os que mais contribuíam para completar-lhe os recursos necessários ao pagamento de sua moradia. Houve fases em que passou dias sem residência alguma, pernoitando na casa de amigos, numa itinerância insana, passando frio e fome, em precárias condições de saúde.

Almoço um confit de canard no restaurante Au Petit Suisse, em frente às grades do maravilhoso jardim do sixième arrondissement. Nesta bem-aventurada atmosfera em que vieram a lume as Festas Galantes verlainianas, les grands jets d’eau sveltes parmi les marbres, lembro-me dos versos no velho parque solitário e gelado e escuto a voz de Verlaine.

Percorri a rue de Vaugirard, em cujo número 4 está o belo edifício onde morou Verlaine, com a placa esclarecendo que o atual hôtel Fontaines de Luxembourg, antes se chamava hôtel Lisbonne. Avisto, na esquina com o jardin du Luxembourg, a place Paul Claudel e o Théâtre de l’Odéon, prédio de arcadas de estilo românico.

Eugénie, despeitada com o desprezo sofrido, confiscou-lhe os bens e os manuscritos. Destruiu alguns originais e promoveu escândalos, em lugares públicos por onde passava o poeta saturnino.

Quanto mais festejado por Zola, Leconte de Lisle, Mallarmé, Catulle Mendès e outros, mais Verlaine sofria com a perna cheia de abcessos e temia ter o mesmo destino de Rimbaud. Os amigos recitavam-lhe os versos no Café du Palais, na place Saint-Michel (hoje restaurante Le Départ Saint-Michel), e os jovens poetas queiram conhecê-lo e cortejá-lo. A exemplo de Baudelaire, em vão tentou ingressar na Academia Francesa. Não obteve nenhum voto. Mas foi eleito “Príncipe dos Poetas”, em concurso promovido pelos colaboradores do Le Journal, após a morte de Leconte de Lille, tendo vencido concorrentes como José Maria Heredia, Sully Prudhomme e Stéphane Mallarmé.

Verlaine continuou morando em sucessivas residências, entre períodos de internamentos hospitalares. Alternava entre a companhia da disciplinadora e feia Eugénie e da depravada e afetuosa Philomène. Ambas o ajudavam nos trâmites de entrega de textos aos editores e recebimento dos parcos honorários, que não lhe bastavam para a sobrevivência material.

Da place de la Sorbonne fui pela rue Soufflot. Passei em frente ao Panthéon e transitei pela rue Clovis, ao largo da igreja de Saint-Étienne-du-Mont, onde avistei o collège Henri IV, no qual estudou Alfred de Musset. Encontrei, perpendicularmente, a rue Descartes, onde Verlaine morou, de 1891 a 1986, em três endereços, a saber, no número 18 (no hôtel Montpellier) com Philomène; no número 15, com Eugénie e, finalmente, no 39, também na companhia dessa segunda musa, que o assistiu na agonia final no dia 7 de janeiro de 1896.

Há, neste último local (rue Descartes, nº 39), placa indicativa de que ali viveu e morreu o poeta. Outra placa indica que ali também morou Ernest Hemingway. No térreo, há atualmente o restaurante La Maison de Verlaine, cujo garçom, ao ser por mim interpelado, informou quee o poeta havia ocupado apartamento no segundo andar do prédio. Os biógrafos, porém, afirmam que foi no quarto andar. Tão auspiciosa foi essa visita, que na esquina, quando me concentrava, cabisbaixo, para estudar os mapas da cidade, uma simpática senhora, gentilmente, ofereceu-se para prestar-me informações. Ficou surpresa e contente de saber que eu buscava a casa dos poetas e disse residir em local próximo a uma casa onde viveu Balzac.

Da rue Descartes voltei à esquina da rue Clovis e cheguei ao descenso atraente da rue du Cardinal Lemoine, que graciosamente, ao precipitar-se nos braços acolhedores do Sena, conduziu-me aos pés do legendário rio, no alegre favor de sua vertente.

 

  

MÁRCIO CATUNDA (Brasil, 1957). Escritor e diplomata. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu mais de quarenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais em espanhol. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021), que recebeu em seu ano de publicação o Prêmio Cecília Meyreles, da União Brasileira de Escritores, no Rio de Janeiro.

 

 

BRIDGET BATE TICHENOR (França, 1917-1990). Artista fascinante, foi também editora de moda. Sua pintura, ligada ao Surrealismo, sua biografia inclui momentos em que foi modelo de Man Ray, uma paixão que despertou em Anaïs Nin, a casa que dividia com Peggy Guggenheim e seu interesse por ocultismo, magia e alquimia. Quando conheceu o México identificou o país como o lugar sagrado de sua morada, assim como foi intensa a amizade com Leonora Carrington, Remedios Varo, Kati Horna e Alice Rahon, que ali já residiam. Metafísica e misticismo se revelaram como temas característicos de sua linguagem pictórica, o que a levou também a Roma, onde realizou uma série de pinturas intitulada Máscaras, Guias Espirituais e Divindades Duplas.
 


Agulha Revista de Cultura

Número 225 | março de 2023

Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)

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