Vim, procedente da rue Lécluse, visitar, o número 10 da estreita rue Nollet,
no 17º arrondissement, é encontrei um velho prédio, onde se vê a placa assinalando
que Ici a vécu Paul Verlaine, de 1851 a 1865.
O prédio tem janelas brancas e cinco andares. Encantador e fantástico, o bairro
da infância do poeta de Fêtes Galantes conduziu-me a uma viagem no tempo, em que
atravesso cerca de sete décadas em cinco minutos de caminhada, chegando ao número
55 da mesma rua, onde existiu o hôtel Nollet, no qual se hospedaria Max Jacob no
século seguinte.
Aprofundei
a pesquisa e continuei buscando as casas onde Verlaine e outros grandes poetas moraram.
Fui ver que aspectos têm, atualmente, as ruas e os lugares das reuniões frequentadas
por Verlaine, entre 1864 e 1866: as casas de Leconte de Lisle, no boulevard des
Invalides, nº 8; de Catulle Mendès, na rue de Douai, 65, e de Banville, na rue de
Condé, 26.
Quando procurei o número 8, do boulevard des Invalides, constatei que, no
ponto em que este boulevard faz esquina com a avenue Tourville, por trás da grande
cúpula dourada do hôtel des Invalides, o que existe é o atual número 10. O número
8 ficaria no próprio Invalides. Permanece a incógnita. É provável que a numeração
tenha mudado e, portanto, era o número 10 a residência de Leconte de Lisle, onde
seus pares acorriam aos saraus literários.
Prossegui, disposto a caminhar veloz e incessantemente como a índia Iracema,
que, na ficção de José de Alencar, andava de Messejana ao Mucuripe em poucos minutos.
A temperatura fresca da tarde deste
5 de setembro de 2019 me reanima. Depois de almoçar uma salada, ganho forças. Adentro
a diversidade visual da Cité. De pronto, tenho ante os olhos a efigie do anjo guerreiro
Saint-Michel, perpetrando sua façanha dragontina. Sento-me num banco, diante do
retangular e escuro edifício, em cujo interior está incrustada a Sainte-Chapelle,
e cujo teto ela rompe com a ponta do seu aguilhão afiado. Caminho mais. Vou ao Carrefour
de l’Odéon, para me aventurar pela rue de Condé.
Vejo o pequeno, antigo e charmoso prédio de número 26, de quatro pisos e
largo portal em arco, onde Thédore de Banville apresentou o jovem Paul Verlaine
aos seus pares, nas reuniões semanais de sua casa, às quais acorriam os poetas parnasianos.
A rue de Condé passa ao largo da place de l´Odéon, onde o Théâtre de l’Odéon
exibe sua estampa de colunas clássicas. Dali se chega rapidamente às verdejações
oníricas do jardin du Luxembourg.
Encontro, na rua de Racine, uma livraria que se chama Poésie e, nela, um
editor que se chama Monsieur Breton (que coincidência). O homem, de meia idade,
com poucos cabelos brancos, olhou-me por debaixo dos óculos, com ar de desconfiança
e um pouco aborrecido, pois ele atendia a uma senhora naquele momento. Mas procurei
ser discreto e fui direto ao assunto. Perguntei se ele editaria um poète étranger, traduzido. Ele me dá o cartão
e me diz que eu poderia enviar os meus originais como quem jette une bouteille à la mer.
Saio dali, rindo do humor cáustico daquele editor que tem nome de poeta e
penso que, efetivamente, a própria vida se assemelha a uma garrafa jogada ao mar…
No dia 3 de setembro de 2019, fui, de manhã cedo, ao aeroporto de Orly. Peguei
o metrô, indo ao final da linha de Créteil e depois entrei num táxi. No aeroporto,
confirmei que eu poderia levar duas malas de 23 quilos, pagando uma taxa extra,
na viagem pela Companhia Iberia. Estava preocupado com a necessidade de transportar
os livros adquiridos para a minha pesquisa literária. Resolvido o assunto, fui comer
um sanduíche numa lanchonete e disse ao garçom que levaria o lanche para ir comendo
pelo caminho, mas resolvi comer ali mesmo na lanchonete. O sujeito veio e me convidou
a retirar-me do ambiente, porque eu dissera que levaria o sanduiche, mas decidira
comer lá mesmo, e lá, à mesa, o preço era outro. Entendi que o homem era um espírito
pouco iluminado, um desses maníacos que implicam com as pessoas. Disse-lhe, ironicamente,
que ele era très gentil e que gente com
esse excesso de zelo acabaria prejudicando a França. Retirei-me, a contragosto ou
melhor, repensei o assunto, considerando que talvez o cara tivesse alguma razão,
já que o atendimento do garçom produziria um custo adicional. Entretanto, continuei
convicto de que o homem foi grosso ao me expulsar do recinto. Concluí que a lógica
do garçom não tinha sentido, pois quando se usa o banheiro de um restaurante, não
se precisa pagar nenhum acréscimo, embora o uso do sanitário gere serviços adicionais.
O dia, contudo, foi proveitoso. Peguei um táxi até a place de Clichy. O motorista,
um cidadão argelino, bem-humorado, gostava de política e foi criticando o presidente
francês, dizendo que a popularidade do homem não andava nada bem, porquanto a maioria
não se sentia satisfeita com as reformas que ele estava implementando, especialmente
no que concerne ao acréscimo da idade para a aposentadoria. E que, em consequência
disso, voltariam os violentos protestos dos gilets
jaunes. Com minha desconfiança em relação aos políticos de modo geral, não pude
senão concordar com as observações do choffeur.
Cheguei à place de Clichy, núcleo ao redor do qual giram muitas atrações.
Eis que, na esquina dessa praça com a rue Biot, aparece um restaurante Le Cyrano
(com o subtítulo de “Bistrot depuis 1914”). Trata-se, certamente, de um pseudo-Cyrano,
um impostor, já que o endereço que os historiadores atribuem ao verdaderio Cyrano
é a place Blanche, às portas do Moulin Rouge, e não ali na place de Clichy.
A decoração art-nouveau, com seus dourados, os espelhos antigos e os globos
de luzes amarelas dão ao ambiente, no entanto, certo ar de antiguidade. O pseudo-Cyrano
fica no andar térreo de um estreito prédio de três andares.
A alguns metros dali, encontro o velho prédio de paredes manchadas e janelas
empoeiradas, do número 45 da rua Lemercier, que é a continuação da rue Biot, que
parte da place de Clichy. Verlaine morou em 1863, quando tinha 19 anos, neste Batignolles
que se avizinha a Montmartre, setor agitado e ruidoso da cidade, hoje em dia circulado
por incontáveis carros e pessoas. Imagino que o silêncio e a quietude do tempo de
Verlaine lhe produziam uma inspiração que hoje seria diferente.
Paul Verlaine, filho
único, viveu com seus pais, Nicolas-Auguste e Élisa-Stéphanie, quando já havia obtido
seu baccalauréat no ano anterior, no lycée
Condorcet, qualificando-se para trabalhar no setor de contabilidade da Mairie du
9e arrondissement e, meses depois, no Hôtel de Ville de Paris. No ano seguinte,
ele fica órfão de pai. É nessa fase de sua vida que ele começa a frequentar os saraus
de poetas, onde conhece e faz amizade com Catulle Mendès, José Maria Heredia, Théodore
de Banville e Villiers de l’Isle-Adam.
A rua Lemercier desce
e se perde no horizonte longínquo, deixando ver o perfil quadriculado das edificações
urbanas. Volto à place de Clichy, tendo diante de mim a cara retangular dos edifícios.
Se a avenue de Clichy me pareceu árida, o boulevard de Clichy deu-me impressão
oposta, com as folhagens da ala verde em que se dividem os dois sentidos do trânsito,
e com bancos disponíveis que me deixaram comodamente observar a movimentação de
carros, bicicletas e pedestres.
Quem vem da place Clichy pelo boulevard de Clichy esbarra nos vermelhos do
Moulin Rouge, na place Blanche, logradouro sem os caprichos arquitetônicos tradicionais
de Paris. Seu chame converge unicamente para o moinho cor de vinho, cor do erotismo,
erguido com suas paletas como asas de uma águia, pairando sob o azul do céu. Desta
place Blanche, tomo a direção da rue Blanche, porventura uma descida. Cruzo a rue
de Douai, para avistar de novo o número 65, onde Baudelaire pernoitou em seu regresso
de Bruxelas, na casa de Catulle Mendès.
De
1866, ano da morte de seu pai, até 1870, Verlaine morou com sua mãe, na rue Lécluse, nr. 26, em Batingnolles, próximo à place de Clichy.
Nesse ano, ele começou a freqüentar os parnasianos.
A rue Lécluse é a segunda rua à direita de quem vai pela sombra da ala arborizada
do boulevard de Clichy. Rua curta, quase um impasse.
O prédio de número 26 é alto, tem seis andares, e dá a impressão de que os dois
andares mais altos foram construídos em tempo mais recente em relação aos mais baixos.
Foi nesse período que Verlaine frequentou os parnasianos, no apartamento
de Catulle Mendès, na rue de Douai. O prédio de seis andares, mal preservado, está
na esquina de Lécluse com a rue des Dames, onde termina a curta rue Lécluse.
O
ano de 1866 foi importante para Verlaine, do ponto de vista literário, pois consolidou
a sua participação na revista Parnasse Contemporain,
mediante a publicação, entre outros,
dos melodiosos poemas Rêve familier e Marine. Stéphane Mallarmé, recém-nomeado
professor de inglês em Besançon, escreveu elogioso artigo sobre o livro Poèmes saturniens, que já havia sido louvado
pelo mestre Victor Hugo. Paul Verlaine escreveu ao poeta de Les contemplations,
em 1867, e o visitou em Bruxelas. Emocionou-se, quando o famoso poeta, de sessenta
e cinco anos, recitou-lhe alguns versos dos Poèmes
saturniens.
Já
nesse magnífico livro de estreia, aos 22 anos, Verlaine prova ser o poeta cuja memória
se imortalizará na admiração dos pósteros: Em Nocturne parisien, ele inicia seu discurso de aedo que tem a natureza
como confidente:
Roule, roule ton flot indolent,
morne Seine,
Sur tes ponts qu’environne une
vapeur malsaine
Bien des corps ont passé, morts,
horribles, pourris,
Dont les âmes avaient pour meurtrier
Paris.
Mais tu n’en traînes pas, en
tes ondes glacées,
Autant que ton aspect m’inspire
de pensées!
De
sensibilidade à flor da pele, com características que hoje os terapeutas poderiam
classificar como as de um paciente bipolar, Verlaine exacerbava a suscetibilidade
temperamental pelo consumo de absinto. Deprimiu-se durante o enterro de Baudelaire,
no dia 31 de agosto de 1867, no cemitério de Montparnasse. Para afogar o desgosto,
bebeu descomunais doses da apelidada substância
verde, depois do funeral de seu ídolo. Na ocasião, sentiu a ausência de Théophile
Gautier, que se encontrava em Genebra. Mas encontrou Banville e Édouard Manet nas
exéquias daquele amigo que ele tanto admirava.
A
boa acolhida de Banville e Hugo às Fêtes galantes,
em 1869, proporcionou-lhe alegrias. Alguns dos poemas do livro foram escritos em
passeios vespertinos pelos jardins du
Luxembourg e de Tuileries, onde ele, depois de beber absinto nos bares do Quartier
Latin, contemplava, extasiado, les grands
jets d’eau sveltes parmi les marbres.
O
casamento de Verlaine com Mathilde Mauté foi realizado na igreja Notre-Dame-de-Clingnancourt,
na place Jules Joffrin, nº 2, no dia 11 de agosto de 1870, quando havia começado
a guerra da França com a Prússia. Mathilde Mauté inspirou alguns de seus mais lindos
poemas, como Serenade (de seu primeiro recueil Poèmes saturniens), Green e Street (do livro Romance sans paroles) e N’est
pas (de La bonne chanson).
No
mesmo ano em que Verlaine contraía núpcias, o jovem provinciano Arthur Rimbaud,
de 18 anos, em Charleville, sua cidade natal, impressionava os professores da escola
com primorosos poemas. O professor Georges Izambard não cessava de incentivá-lo
a viajar a Paris, a fim de descobrir um novo mundo e se consagrar nas letras francesas.
Movido por essa elevada expectativa, a primeira viagem de Rimbaud a Paris, no outono
de 1870, foi só decepção. Dormiu às margens do Sena e não encontrou os poetas que
esperava ver. Escreveu então a Théodore de Banville, pedindo sua intermediação junto
ao editor Alphonse Lemerre para publicar seus poemas. A resposta do poeta de Les cariatides foi cordial, mas nada conclusiva.
Escreveu então a Verlaine, enviando-lhe, junto com a carta, alguns poemas e lhe
pedindo apoio para estabelecer-se em Paris, onde poderia ter seus versos bem publicados
e distribuídos. Rimbaud considerava Verlaine o único poeta comparável a Baudelaire.
O autor de Fêtes galantes ficou encantado
com as ressonâncias líricas daquele contemplador da noite, que dizia ter albergue
na Grande Ursa e escutar as estrelas, enquanto sentia a brisa de setembro como um
vinho de vigor. Na sua acolhedora e afetuosa carta de resposta, expressou-se calorosamente:
venha, grande alma querida (Venez, chère grande âme, on vous appelle, on
vous attend). E não apenas o esperou na gare de Strasbourg, acompanhado por
Charles Cros, como lhe mandou a passagem de trem.
Eles,
entretanto, se desencontraram na estação de trens e o encontro só aconteceu na casa
de Verlaine, isto é, na casa de seus sogros, na rue Nicolet, nº 14, onde Rimbaud
já conversava, folgadamente, com Mathilde, mulher de Verlaine.
Tive
a grata alegria de ver duas vezes aquela pequena rua de duas quadras, ascendente
em direção à basílica de Sacré-Coeur, igreja que só foi construída alguns anos depois
que Verlaine ali residiu. Vi, na primeira ocasião, no muro, do lado esquerdo do
portão do pátio externo, a placa indicativa de que o poeta viveu no segundo andar
do edifício.
Na segunda vez, fui, num táxi, pelas ruas de simétricos edifícios de Montmartre,
até a place du Château-Rouge, lugar de confluência de quatro ruas (três das quais
vêm de encontro ao boulevard Barbès). Cruzei aquele bairro operário, habitado por
imigrantes africanos; a place du Château-Rouge é povoada de gente que veio da Argélia,
do Marrocos, da Costa do Marfim, do Senegal, do Haiti, do Congo, do Togo, do Mali…
Perfeitamente integrados ao ambiente parisiense, eles instalaram ali um mercado
de frutas, legumes, carnes e pães. Alguns cidadãos espalham cartões de bordéis.
Outros manuseiam seus celulares, na esquina da rue des Poissonniers.
Subo o terreno inclinado da rue Custine, em ascensão, até a tranquila rue
Nicolet. A casa, de dois andares, tem um largo portão de grade, mostrando um pequeno
jardim cultivado. Fica no final da rua, quase esquina com a rue Bachelet. Notei
a diferença, relativamente à ocasião anterior em que estive no local, havia cerca
de sete anos: foi retirada a placa alusiva à passagem do poeta por aquela moradia.
Sendo um imóvel de dois andares, a casa é talvez a única morada de poeta em Paris
que não é apartamento de algum grande edifício.
Recebido
pela mulher de Verlaine, o rapaz belo e talentoso de Charleville passou uns dias
hospedado pela família de Mathilde, que, no entanto,
não simpatizou com seus hábitos extravagantes, o cabelo espetado, com aspecto negligente,
aparência de marginal e maneiras selvagens. Ele evitava o banho diário, como os
cachorros, que fogem da água. E espalhava piolhos por onde andava.
Na
antologia Les poètes maudits, Verlaine
o descreve alto, quase atlético, de rosto ovalado qual um anjo desterrado, de cabelos
castanhos claros e olhos de um azul pálido inquietante. Tinha o dom da assimilação
rápida. Espírito impetuoso, absorvia todos os tons e pulsava todas as cordas, sendo
grande poeta pela graça de Deus. Verlaine destacou seu poder de ironia e os aspectos
ternos, caricaturescos e cordiais de seus dons supremos. Qualidades que surgem no
delicado encanto de alguns versos que parecem prolongar-se em sonho e música, numa
cadência rítmica de estirpe lamartiniana e virgiliana.
Na esquina da rue Nicolet com a rue Lambert, fotografei uma bela imagem de
Rimbaud, de autor desconhecido, estampada na parede com a seguinte frase: Le poète est un voleur de feu. Caminho até
a rue Muller e avisto no alto a escada enramada que conduz ao colosso marmóreo de
Sacré-Coeur.
Vou
meditando na vida e no destino daqueles dois talentosos boêmios. As ruas são labirínticas, e é preciso prestar atenção para
não perder o rumo. Parece que todas são traçadas em “X”.
Depois de ser convidado pelos pais da esposa de Verlaine a retirar-se de
sua casa (dada a proximidade do parto de Mathilde),
o pupilo de Verlaine foi morar num quarto, no apartamento de Théodore de Banville,
na rue de Buci, número 10. Ali, Rimbaud
logo criou um caso, aparecendo nu na janela do apartamento, deixando a vizinhança
perturbada.
Na
sequência de minhas peregrinações às moradias do itinerante Arthur Rimbaud, que
não teve residência fixa, desde que saiu de Charleville, fui à estreita rue Séguier, que liga o quai des Grands Augustins
à rue Saint-André des Arts.
Evado-me, pela linha 4 do metrô, e
já estou no Carrefour de l’Odéon, esquina com o boulevard Saint-Germain, ao lado
do cinema cujo nome é o do revolucionário Danton, que tem sua estátua na place Henri
Mondor, marcando o cruzamento de várias vias públicas. Ao atravessar o boulevard
Saint-Germain, encontro a estreita rue Gregoire de Tours (bispo de Tours e historiador,
538-594) e dali me dirijo à rue de Buci, para passar em frente ao apartamento onde
Rimbaud esteve hospedado na rue de Buci, nº10.
Admirei as fachadas
dos prédios daquela estreita rua, situada num espaço urbano assimétrico e repleta
de restaurantes, crêperies e lojas de
souvenirs para turistas. Um âmbito prestigiado pelos turistas comensais. O prédio
de número 10 tem cinco andares e está decorado com jarros de flores nas grades das
janelas de vidro. Encontrei fechado o portal com duas
aldravas. Contudo, na primeira vez em que o vi estava aberto e pude entrar
no pátio onde observei o conjunto de apartamentos. Percebi que as janelas ficam
de frente umas para as outras, à pequena distância, o que torna a privacidade dos
vizinhos bastante vulnerável.
Com efeito, Rimbaud teve de abandonar o quarto do apartamento de Banville,
porque havia aparecido nu na sacada. Os vizinhos atônitos, reclamaram. O peregrino
seguiu sua trajetória.
Em seu magistral Le tombeau de Verlaine,
Mallarmé recorda o insólito episódio da chegada de Rimbaud ao apartamento de Banville.
Depois de atravessar, a pé, os caminhos de Charleville, sua província natal, até
a capital da França, o poeta, de 17 anos,
instalou-se no cômodo e jogou pela escada as velhas vestes, exclamando que não poderia
ocupar um quatro tão limpo, com aquela roupa cheia de pulgas.
Depois da estada no apartamento de Banville, na rue de Buci, Rimbaud esteve
no apartamento de Charles Cros, em outubro de 1871, na rue Séguier, 13, sempre a
expensas do seu mecenas e amigo Paul Verlaine. A beleza se tornava amarga. A repugnância
e as provocações dificultariam o encontro da plenitude visionária.
Avistei a fachada do apartamento de Charles Cros, na estreita rue Séguier,
que liga o quai des Grands Augustins à rue Saint-André des Arts. O prédio de número
13 tem uma grande porta, que parece antiquíssima. É um edifício de quatro andares,
com um apartamento por andar, três grandes janelas para cada piso e grades em pseudobalcões.
Reinam ali um silêncio e uma calma que suscitam um certo clima daqueles dias de
1870.
As janelas brancas, com vidraças expostas pela abertura das venezianas, conferem
um certo encanto ao edifício. No portal, um barbarismo: a palavra Coifirst, evocando o idioma inglês.
O
jovem marginal peregrinou, sem paradeiro fixo, com bagagem mínima, pelo Quartier
Latin. Hospedou-se nas dependências do Cercle
Zutique, a confraria de poetas criada por Charles Cros, no bar de Ernest Cabaner, que animava o grupo, tocando piano.
Chego e vejo, naquele recanto antigo do sexto arrondissement
de Paris, o prédio estreito que se alarga triangularmente
a partir do seu vértice, entre a rue de l’École de Médicine e a rue Racine;
em frente, o boulevard Saint-Michel. No térreo, há uma
loja de roupas e, nos três andares superiores, o hôtel Belloy Saint-Germain. Nas
duas esquinas, que ladeiam a geometria triangular do prédio, estão as duas livrarias
Gilbert Joseph, cujo letreiro amarelo se destaca na perspectiva. O bico do prédio,
em frente ao boulevard de Saint-Michel, configura uma aguda esquina, sui generis.
No terceiro andar desse prédio estreito, de quatro andares, havia o bar onde
os poetas se reuniam. Arthur Rimbaud dormia ali mesmo, no sofá, a troco de lavar
os pratos e servir aos clientes. Foi ali que Rimbaud
leu para eles o manuscrito de Le Bateau Ivre. O atual hôtel Belloy Saint-Germain
chamava-se hôtel des Étrangers, no ano de 1871.
As reuniões dos zutiques eram frequentadas
por Verlaine, que introduziu Rimbaud entre seus pares. Consistiam na continuação
dos denominados jantares des Vilains Bonshommes,
que duraram até o final de 1869, no antigo hotel Camoens, na esquina da rue Bonaparte
com a rue du Vieux-Colombier, em diagonal com a velha Igreja de Saint-Sulpice. Esses
encontros, interrompidos pela guerra franco-prussiana, pela Commune e pelo advento
da República, continuaram sob a égide dos zutiques.
Certa feita, no dia 2 de março de 1872, Rimbaud aprontou uma tremenda confusão.
Entre aqueles convivas do grupo, (que o pintor Fantin-Latour configurou numa tela)
havia um certo Auguste Creissels, do qual Rimbaud debochou, quando recitava, interrompendo,
com a palavra merde, cada estrofe do poema.
A invectiva provocou tumulto e, quando o fotógrafo Étienne Carjat tentou expulsar
Rimbaud do recinto, o jovem rebelde investiu contra Étienne com um bastão e o feriu
na mão e na virilha. A duras penas, Verlaine conseguiu desarmar seu doido amigo,
que correu, desaparecendo na noite. A reputação de Verlaine ficou abalada nos meios
intelectuais, porque ele acolhera aquele rapaz maluco, irreverente e mal-educado,
que provocava confusão em toda parte.
Em
dezembro de 1871, depois do nascimento de seu filho, Georges Auguste, e cessados
os sangrentos combates entre os communards
e as forças defensoras da Assembleia Nacional, Verlaine alugou para Rimbaud um apartamento
na rue Campagne-Première, na esquina com o boulevard d’Enfer, hoje denominado boulevard
Raspail, próximo ao cemitério de Montparnasse.
Do
boulevard Montparnasse, derivei em direção ao boulevard Raspail, essa grande avenida
que une os extremos topográficos de Paris. Passo diante da exótica estátua de Balzac,
obra de Rodin. Nas imediações do famoso cemitério de Montparnasse, aparece, na esquina
ao lado da estação de metrô Raspail, a rue Campagne-Première. Paro no pequeno jardim
que há, num dos lados da esquina. Os bancos estão molhados e a relva está branca,
coberta pela neve que a tempestade trouxe na noite de 29 de janeiro de 2019. Uma
vila de pequenos prédios, num corredor chamado passage de l’Enfer, com portão fechado,
conecta a rue Campagne-Première ao boulevard Raspail.
O
prédio da esquina da Campagne-Première com o boulevard Raspail, onde estiveram Verlaine
e Rimbaud, tem um certo charme. É o número 35 da rua, já no final dela, com janelas
para a grande avenida. Rimbaud permaneceu ali até março
de 1872.
Verlaine
foi, aos poucos, abandonando a família para peregrinar, com Rimbaud, em aventura
boêmia, percorrendo as noites dissolutas de Paris. Vagabundos e quase mendigos,
deambulavam pelos recantos pitorescos e libertinos da cidade. Gostavam especialmente
dos bares de Montmartre, sobretudo da rue de l’Abreuvoir, assim chamada por haver existido ali um antigo bebedouro de animais.
Desde
a invasão de Paris pelos soldados prussianos em 1871, Verlaine abandonara o emprego
no Hôtel de Ville e passara a viver às
custas de sua mãe, a Sra. Stéphanie Verlaine. Quando se embriagava, tornava-se violento.
Pedia dinheiro à Sra. Stéphanie, e se não fosse imediatamente atendido, adotava
conduta agressiva e perigosa. Certa ocasião, depois de uma farra, chegou à casa
de sua mãe e rompeu os vidros onde ela guardava os fetos natimortos de seus irmãozinhos
falhados. Foi ficando cada vez mais neurótico, ao ponto de, numa discussão, espancar
a esposa Mathilde e lançar contra a parede o pequeno Georges, de três meses, que
teve a sorte de não se machucar muito, porque foram seus pés e não a cabeça que
sofreram o impacto.
Quando
Rimbaud regressa a Charleville, sua cidade natal, Verlaine tenta se reconciliar
com Mathilde. Fascinado, entretanto, pelo amigo très beau d’une beauté paysanne et rusée, escreve-lhe, perguntando quando
empreenderiam o caminho da cruz. Rimbaud,
contrariando a mãe, que desejava que ele trabalhasse, volta a Paris em junho de
1872 e se hospeda no hôtel de Cluny, na rue Victor-Cousin, nº 8, na esquina da place
de la Sorbonne.
Na parede do hotel Cluny Sorbonne, na rue Victor Cousin, nº 8, onde estive
hospedado em duas ocasiões, revi a placa onde estão inscritas as seguintes palavras
do poeta: En ce moment, j’ai une chambre jolie.
A localização é estratégica para quem quer desfrutar dos melhores passeios em Paris.
Segundo
o atendente do hotel, a quem indaguei, foi a chambre 62 a que o poeta ocupou. A dois
passos dali estão os portais da Sorbonne. A praça frontal ao edifício universitário
é um lugar aconchegante, com fontes, livrarias, cafés, a estátua de Auguste Comte
– o homem do Positivismo – e a juventude estudantil que tudo alegra com risos e
falas ruidosos. Com a fachada pontilhada de estátuas e a cruz sobre a cúpula, a
Sorbonne não esconde sua origem monástica, fundada que foi sob a égide da igreja.
No centro do retângulo frontal, o charmoso relógio, ladeado por esculturas, atrai
a atenção de quem o vê.
Desço pelo boulevard Saint-Michel e revejo o vetusto mosteiro de Cluny, com
os tijolos da carcaça de alvenaria expostos. De inopino, surge o colosso de Notre-Dame:
o precioso desenho de linhas e formas simetricamente belo. Uma grande estátua se
destaca na praça ajardinada, em frente aos prodígios da Catedral: é o imperador
Carlos Magno, mentor da cristandade.
Na rue du Cloître Notre-Dame a poesia francesa evolui com a peripécia marginal
de François Villon. Caminho por Paris em círculos concêntricos, no espaço e no tempo.
Na área agradável do Quartier Latin, onde se localiza o hotel Cluny Sorbonne,
quase em frente à formidável entrada da mais antiga universidade francesa, segui
rastreando as errâncias de Rimbaud. Passei em frente ao café Pélorier, rue Saint-Jacques
nr 176, do qual Rimbaud foi assíduo frequentador. Está quase na esquina da rue Saint-Jacques
com a rue Soufflot, que se vai inclinando até as grades do jardin de Luxembourg.
A Soufflot é a rua que nos conduz ao magnífico Panthéon, erguido em vigorosas e
altas colunas, com a inscrição Aux grands
hommes la Patrie Reconnaissante no frontispício triangular da parte superior
da fachada. As estátuas de Jean-Jacques Rousseau e de Pierre Corneille nas laterais
os promovem à condição de patronos do monumento. Somente erguendo os olhos para
o alto é que se vislumbra o cimo cônico da cúpula arrematado por uma cruz. Por trás
do Panthéon, avista-se o formoso frontispício da Église Saint-Étienne-du-Mont, na
qual jazem os restos mortais de Jean Racine, numa pilastra ao pé da sacristia, inumados
ali em 1771. Ao lado da igreja, a torre do Lycée Henri IV está belamente erguida
na rue Clovis.
Verlaine,
cada vez mais inveterado no alcoolismo e mais agressivo, quando embriagado, sai
da casa dos sogros, deixando mulher e filho, sem prévio aviso, em julho de 1872.
Viaja para a Bélgica, na companhia de Rimbaud. Em Arras, os dois poetas foram presos,
porque falavam, na cantina da estação, em tom de zombaria, de supostos crimes que
haviam cometido. O cantineiro, inopinadamente, chamou a polícia e eles tiveram árduo
trabalho para convencer o magistrado de que tudo se tratava de uma brincadeira.
Quando
o pai de Mathilde entra com ação de separação em tribunal parisiense, Verlaine escreve
à esposa, implorando a reconciliação. Ela vai à capital belga, acompanhada pela
mãe, e o casal se reconcilia. Porém, depois de uma discussão, o poeta foge de sua
mulher, quando já havia embarcado de volta a Paris. De súbito, ele desceu do vagão,
antes que o trem partisse. Sua sogra, Mauté de Fleurville, chama-o para que ele
suba outra vez ao vagão, mas ele gira a cabeça negativamente enquanto o trem parte.
Foi a última vez que Verlaine viu a esposa.
Verlaine
oscilava entre a tentação de aprofundar a aventura irresponsável com Rimbaud e o
remorso de haver abandonado a vida conjugal. Os dois poetas viajaram a Londres e
ali discutiram e se separaram. Rimbaud volta a Charleville e a Roche, onde sua família
tinha uma casa. Extenuado, insone, delirante, na noite do inferno. Rimbaud escreve
ao amigo, pedindo perdão: está chorando muito, reconhece os erros e jura fidelidade.
Eles tornam a se encontrar em Bruxelas. O efeito da vida nômade e boêmia sobre o
espírito de Verlaine era desestabilizador. O sogro reintroduziu a demanda judicial
de separação e o poeta enviou cartas a Mathilde e a diversos amigos, ameaçando suicidar-se.
Em
Bruxelas, continua a ebriedade delirante. Num dos seus muitos momentos de crise,
os poetas discutem e proferem insultos recíprocos. Rimbaud resolve regressar a Paris
e romper a relação. Verlaine, que havia comprado um revólver para matar-se, dispara
dois tiros sobre o amigo, um dos quais lhe atinge o pulso direito. Depois de socorrido
e feito o curativo, Rimbaud continua decidido a partir. Já na rua, Verlaine ameaça
matá-lo e depois matar-se, e põe a mão no bolso para sacar a arma. Amedrontado,
Rimbaud corre e denuncia o amigo à polícia. Depois de extraída a bala, Rimbaud regressa
a Paris, com dinheiro que lhe dera a mãe de Verlaine, presente ao transe todo. Escreve
Une saison en enfer e decide tornar-se
para sempre um nômade:
Je quitte l’Europe. L’air marin
brûlera mes poumons; les climats perdus me tanneront. Nager, broyer l’herbe, chasser,
fumer surtout; boire des liqueurs fortes comme du metal bouillant – comme faisaient
ces chers ancêtres autour des feux.
Na
busca de sensações inusitadas, Rimbaud retorna a Londres, numa perambulação que
resultará em esperanças absurdas e desilusões: J’ai cru acquerir des pouvoirs surnaturels. Eh bien! Je dois enterrer mon
imagination et mes souvenirs.
Julgado
e condenado a dois anos de prisão, o poeta saturnino escreve na prisão a Victor
Hugo, pedindo ajuda e intermediação para que Mathilde o perdoe. Cumpre a pena, resignadamente,
de agosto de 1873 a janeiro de 1875. Ao sair da cadeia, traga, a duras penas, a
separação de Mathilde, pronunciada pelo Tribunal de la Seine. Apregoa aos amigos a sua conversão ao catolicismo.
De fato, escreveu os belos poemas místicos de Sagesse, enquanto esteve recluso. Assim ele expressa sua submissão à
vontade de Deus, numa declaração de entrega devocional:
O mon Dieu, vous m`avez blessé
d`amour
et la blessure est encore vibrante
(…)
Vous connaissez tout cela, tout
cela.
Et que je suis plus pauvre que
personne,
mais ce que j’ai, mon Dieu,
je vous le donne.
Enquanto
Verlaine esteve preso, Rimbaud morou em Roche, onde terminou de escrever Une saison en enfer, com referências metafóricas
as suas pregressas experiências devassas. Ao sair do cárcere, Verlaine forja um
reencontro com Rimbaud e lhe fala de sua conversão ao catolicismo. O amigo debochou
de sua fé, chamando-o de “Loyola”. Depois de uma bebedeira, Verlaine perdeu as estribeiras
e tentou seduzir outra vez o seu colega de desregramento dos sentidos, o qual, desta
feita, lhe aplicou um murro certeiro, que o fez cair ao solo.
Eles
tomaram rumos diferentes. Rimbaud escreve Les
illuminations, seu magnífico poema místico, com influência de La tentation de Saint-Antoine, de Flaubert.
Expressa os extáticos ardores de uma experiência sem limites de espaço e tempo.
Uma sensação de absoluta essência, em revelações de luz. O haxixe o intoxica, deixando
sequelas.
Verlaine
arranjou emprego de professor de francês em Stickney, na Inglaterra, onde permaneceu
de março de 1875 a janeiro de 1877. De regresso à França, deu aulas no colégio jesuíta
Nôtre-Dame de Rethel, em Ardennes. Em 1878, foi a Paris e reviu o filho, mas frustrou-se
com a ausência de Mathilde, pois queria aproveitar a ocasião para reatar o casamento.
Por outro lado, apaixonou-se pelo seu ex-aluno Lucien Létinois e, em 1880, comprou,
com dinheiro de sua mãe, uma fazenda em Juniville, a 17 quilômetros de Coulommes,
para que a família de Lucien a cultivasse. Nesse mesmo ano, publicou o livro Sagesse, que contém os poemas religiosos
escritos na prisão. O negócio da fazenda fracassa e Lucien acaba morrendo de febre
tifoide.
Rimbaud,
por sua vez, meteu-se nas mais estapafúrdias aventuras, tendo viajado a diversos
países europeus, caminhando grandes distâncias a pé. De 1874 a 1876, esteve na Alemanha,
na Áustria e na Holanda. Alistou-se no exército holandês de mercenários e viajou
para a Indonésia. Desertou e embarcou de volta para a França. Despediu-se de Paris,
depois de passar uns dias no apartamento do poeta e músico Ernest Cabaner, situado
na rue La Rochefoucauld, nº 58, entre a place Pigalle e a rue Fontaine, próximo
ao local onde moraria, décadas depois, o poeta André Breton.
Rimbaud
tornou a viajar em 1879, desta feita para Alexandria e, em seguida, Chipre, onde
foi vigilante de obras da empresa Ernest Jean
& Thial. Pegou febre tifoide, veio se tratar em Marseille. Partiu, de novo,
em 1880, para Aden, no Iêmen, e, depois, para a Somália. Viajou 20 dias a cavalo,
pelo deserto, até Harar, na Etiópia, onde se estabeleceu como comerciante de peles,
marfim, almíscar, incenso e armas. Passou 11 anos entre a Somália e o Iêmen, exposto
ao clima atroz e à crueldade dos bandoleiros. Caminhava a pé, de 20 a 40 quilômetros
diariamente, levando sua mercadoria clandestina sobre camelos, junto às caravanas
de abissínios, fustigados pelo calor infernal do deserto. Chega ao Egito em 1887,
com os bolsos cheios de ouro. Adoece de sífilis.
Ao cabo de tais perigosas aventuras, depois de
uma queda, Rimbaud sentiu fortes dores no joelho direito. O médico recomendou-lhe
regressar ao seu país para tratamento em Marselha. Carregado, durante 16 dias, numa
padiola, na Abissínia, esperou mais onze dias, em Aden, pelo barco que o repatriaria.
A
doença era um tumor cancerígeno. No hospital de la Conception, em Marseille, padeceu
terríveis dores, até que, no dia 27 de maio de 1891, os médicos lhe amputaram a
perna direita. Durante um mês de convalescença, foi assistido por sua irmã Isabelle.
Partiu de muletas para Roche, na esperança de regressar a Harar, mas a doença só
lhe permitiu chegar a Paris e voltar a Marselha para morrer, no dia 10 de novembro
de 1891.
Chego ao velho Marais, bairro tumultuado por tantos transeuntes. Vou até
a rue de La Roquette, 17, onde Verlaine teve residência em 1882. Tinha 38 anos,
quando alugou aquele apartamento, no quinto andar, onde morou com a mãe. No ano
seguinte, 1883, ele se muda para uma casa em Malval, que a Sra. Stephanie Verlaine
comprara da família Létinois. Nesse período, com seu temperamento neurastênico,
entre violentas alterações de humor, depois de exibir um punhal para a própria mãe,
foi preso outra vez, tendo permanecido um mês no cárcere.
O prédio da rue de La Roquete situa-se na bifurcação entre essa rua e a rue
Saint-Sabin. Alto e branco como um farol no mar de viaturas incessantes da cidade.
O Marais, nas proximidades da place de la Bastille é um pandemônio. Uma criatura
buzina estridentemente. Outras, não menos apressadas, quase esbarram em mim. Uma
camioneta e um ônibus também passam quase me raspando, na esquina de onde vejo as
ruas estreitas, com paredes pardacentas e anúncios comerciais que evocam um passado
longínquo. Espraiam-se “fast-foods” de toda sorte ao longo das quadras do antigo
quartier.
Volto ao âmbito da Bastilha e vislumbro sua coluna verde no panorama nublado.
No topo, o dourado arcanjo bailarino. Um jovem de camisa verde e barba rala se aproxima
para me pedir uma cotisation mensuelle
para a Biodiversité.
Quando se vai cruzar a rua, uma moto aparece do nada. No meio daquela confusão
toda, é preciso andar com redobrada atenção. Há que se desviar, igualmente, dos
dejetos que jazem nas calçadas. Cidade grande é assim.
Vejo-me, num átimo, no quai Henri IV, ante a morosidade clara do Sena. Descubro
um ângulo espetacular, onde aparece, sobre altos prédios, a cabeça azulada e retangular
da torre Montparnasse e, em frente, além das pontes, as duas torres de Notre-Dame,
circundadas pelos canteiros de guindastes e escadas, pelos quais os operários sobem
para refazer as relíquias que o fogo consumiu.
A
fama de Verlaine foi-se propagando celeremente, tendo ele contribuído para a divulgação
da poesia de Stéphane Mallarmé, Tristan Corbiére e Arthur Rimbaud, na famosa antologia
intitulada Poetas Malditos.
Verlaine
frequentou, a partir de 1884, o apartamento de Mallarmé, onde se encontrava, às
terças-feiras à noite, na rue de Rome, com o anfitrião e outros amigos, entre os
quais Paul Valéry e André Gide.
Ao
tomar conhecimento da morte de Rimbaud, Verlaine sentiu uma convulsão de angústia.
Disse que sonhava todas as noites com aquele rapaz dotado de uma “sedução demoníaca”.
Sobreviveu, porém, ao impacto. Seguiu morando em vários endereços, quase todos no
Quartier Latin. Vivia em precárias condições de conforto e salubridade. Recebia,
no entanto, convites de intelectuais de outros países para proferir palestras. Assim,
de 1882 a 1884, viajou à Haia, a Bruxelas e a Londres e nas três cidades leu poemas
e falou dos poetas malditos de Paris.
O jardin du Luxembourg me reconforta com uma
brisa que as árvores filtram. À carícia do vento, as plantas assoviam. Melodia nas
folhas. Leio, sob umas árvores, o Le Monde do dia 20 de agosto de 2019, que anuncia
as reformas que evitariam potenciais focos de tensão social: aposentadorias, aberturas
da PMA (procriação medicamente assistida) a todas as mulheres e lei antiresíduos
(antigaspillage). Trata-se do método de diálogo prometido pelo Executivo francês,
com vistas a evitar a crise provocada pelos gilets
jaunes.
O dia ensolarado e fresco me permite flanar.
Como uma salada leve, no Au Petit Suisse, restaurante com vista para o arvoredo
dos magníficos jardins do Senado.
Caminho pelo quartier literário da Sorbonne
e eis que já me encontro na rue Saint-Jacques, que deu guarida à residência de Paul
Verlaine no número 187, quinto andar. Por ela, sigo e vejo a placa indicativa da
residência de Émile Durkheim, o fundador da sociologia. (Morou ali de 1902 a 1912).
A sinalética de Paris marca, com certa eficiência,
os locais onde viveram seus grandes artistas. E registra, de modo excelente, os
nomes dos cidadãos franceses fuzilados em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial.
São incontáveis as referências às pessoas assassinadas que aparecem nas placas.
Estão em toda a cidade.
A rue Saint-Jacques apresenta, entre suas atrações, a Maison
des Océans (Institut Océanographique) e, um pouco mais adiante, no número 187, com
largo portal azul, de cinco andares, ostentando uma janela em arco, igualmente sem
a respectiva indicação, a residência de Verlaine. Ele morou nesse domicílio com
Eugénie Krantz, quando contava 50 anos de idade.
A
rua se alarga do lado esquerdo, a partir daquele edifício, na altura da esquina
com a rue Pierre et Marie Curie. Enquanto eu observava o local e tomava nota do
que via, três cidadãos aproximaram-se e me perguntaram se o que eu escrevia era
poesia ou prosa. Disse-lhes que estava escrevendo sobre os lugares onde viveram
alguns poetas franceses, e que ali havia encontrado um endereço de Verlaine. Um
dos rapazes sorriu e exclamou: Ah, o poeta
bebedor de absinto! E seguiu caminhando, com seus comparsas.
Continuei, pela mesma rua, até as proximidades do Sena,
onde Paris jamais é nostálgica. A rue Saint-Jacques tem, como joias de sua coroa,
livrarias interessantíssimas, o portentoso Panthéon, de gloriosas colunas, a fabulosa
Sorbonne e, ao longe, além da vetusta torre da Universidade, o perfil argênteo de
Notre-Dame, alçado como um pavilhão que as nuvens ungem de aura mística.
Depois
do endereço acima referido, Verlaine mudou-se para a rue Cardinal Lemoine, nº 48,
rua que começa na ribeira do rio de Paris e sobe o monte em direção ao Panthéon.
É a rua onde o poeta morou já na fase final de sua vida, quando namorava as duas
cortesãs, Philomène e Eugénie. Ele reclamava de ter que subir e descer, com a perna
rígida e o joelho dolorido, a ladeira que começa no número 20 daquela rua. Pouco
tempo depois, em 1895, foi morar com Eugénie Krantz na rue Saint-Victor, nº16.
A
rue Cardinal Lemoine deixa de ser uma avenida e se estreita, quando se aproxima
da planície que o Sena abre nas margens, em alamedas de passeio, onde me regozijo,
longe da turbulência impiedosa das áreas tumultuadas de Paris.
Em 1889, Verlaine se separou de Eugénie Krantz e reatou o
romance com Philomène Boudin, com quem foi morar na rue de Vaugirad, nº 4, no hôtel
Lisbonne, com a ajuda que recebera de Maurice Barrès, o qual reuniu 36 escritores
que se cotizaram para dar-lhe uma renda mensal. François Copée, Edmond Lepelletier
e o Conde de Montesquiou, generosos amigos, eram os que mais contribuíam para completar-lhe
os recursos necessários ao pagamento de sua moradia. Houve fases em que passou dias
sem residência alguma, pernoitando na casa de amigos, numa itinerância insana, passando
frio e fome, em precárias condições de saúde.
Almoço
um confit de canard no restaurante Au
Petit Suisse, em frente às grades do maravilhoso jardim do sixième arrondissement.
Nesta bem-aventurada atmosfera em que vieram a lume as Festas Galantes verlainianas,
les grands jets d’eau sveltes parmi les marbres,
lembro-me dos versos no velho parque solitário
e gelado e escuto a voz de Verlaine.
Percorri
a rue de Vaugirard, em cujo número 4 está o belo edifício onde morou Verlaine, com
a placa esclarecendo que o atual hôtel Fontaines de Luxembourg, antes se chamava
hôtel Lisbonne. Avisto, na esquina com o jardin du Luxembourg, a place Paul Claudel
e o Théâtre de l’Odéon, prédio de arcadas de estilo românico.
Eugénie,
despeitada com o desprezo sofrido, confiscou-lhe os bens e os manuscritos. Destruiu
alguns originais e promoveu escândalos, em lugares públicos por onde passava o poeta
saturnino.
Quanto
mais festejado por Zola, Leconte de Lisle, Mallarmé, Catulle Mendès e outros, mais
Verlaine sofria com a perna cheia de abcessos e temia ter o mesmo destino de Rimbaud.
Os amigos recitavam-lhe os versos no Café du Palais, na place Saint-Michel (hoje
restaurante Le Départ Saint-Michel), e
os jovens poetas queiram conhecê-lo e cortejá-lo. A exemplo de Baudelaire, em vão
tentou ingressar na Academia Francesa. Não obteve nenhum voto. Mas foi eleito “Príncipe
dos Poetas”, em concurso promovido pelos colaboradores do Le Journal, após a morte de
Leconte de Lille, tendo vencido concorrentes como José Maria Heredia, Sully Prudhomme
e Stéphane Mallarmé.
Verlaine
continuou morando em sucessivas residências, entre períodos de internamentos hospitalares.
Alternava entre a companhia da disciplinadora e feia Eugénie e da depravada e afetuosa
Philomène. Ambas o ajudavam nos trâmites de entrega de textos aos editores e recebimento
dos parcos honorários, que não lhe bastavam para a sobrevivência material.
Da place
de la Sorbonne fui pela rue Soufflot. Passei em frente ao Panthéon
e transitei pela rue Clovis, ao largo da igreja de Saint-Étienne-du-Mont, onde avistei
o collège Henri IV, no qual estudou Alfred de Musset. Encontrei, perpendicularmente,
a rue Descartes, onde Verlaine morou, de 1891 a 1986, em três endereços, a saber,
no número 18 (no hôtel Montpellier) com Philomène; no número 15, com Eugénie e,
finalmente, no 39, também na companhia dessa segunda musa, que o assistiu na agonia
final no dia 7 de janeiro de 1896.
Há,
neste último local (rue Descartes, nº 39), placa indicativa de que ali viveu e morreu
o poeta. Outra placa indica que ali também morou Ernest Hemingway. No térreo, há
atualmente o restaurante La Maison de Verlaine, cujo garçom, ao ser por mim interpelado,
informou quee o poeta havia ocupado apartamento no segundo andar do prédio. Os biógrafos,
porém, afirmam que foi no quarto andar. Tão auspiciosa foi essa visita, que na esquina,
quando me concentrava, cabisbaixo, para estudar os mapas da cidade, uma simpática
senhora, gentilmente, ofereceu-se para prestar-me informações. Ficou surpresa e
contente de saber que eu buscava a casa dos poetas e disse residir em local próximo
a uma casa onde viveu Balzac.
Da
rue Descartes voltei à esquina da rue Clovis e cheguei ao descenso atraente da rue
du Cardinal Lemoine, que graciosamente, ao precipitar-se nos braços acolhedores
do Sena, conduziu-me aos pés do legendário rio, no alegre favor de sua vertente.
Agulha Revista de Cultura
Número 225 | março de 2023
Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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