Voltou a Paris, formou-se em estenografia
e foi funcionário do Crédit Mobilier et Industriel, além de redator do hebdomadário
Guide du Rentier, ofícios que detestou.
No início do século XX, morava na rue de Naples, 23. Depois do expediente de trabalho,
ia tomar um trago no bar l’Austin’s, nas proximidades da Gare Saint-Lazare, onde
conheceu Pablo Picasso. Tornou-se um dos melhores amigos do artista plástico espanhol,
frequentando o seu ateliê, no 18º arrondissement, na rue Ravignan nº 13. Ali conheceu
e se tornou amigo de Max Jacob e de André Salmon.
Desfrutei do salvífico conforto de um táxi até a Gare Saint-Lazare.
Tive a satisfação de avistar o hôtel Austin, na rue d’Amsterdam, nº 26, lugar representativo
para a história da literatura francesa, porque é onde existia o bar preferido de
Apollinaire. O hôtel Austin fica ao lado de outro estabelecimento digno de registro
– o hôtel Dieppe – que hospedou Baudelaire, cerca de sete décadas anteriores à frequentação
de Apollinaire.
É gratificante andar pelas imediações da Gare Saint-Lazare, área onde
o forasteiro que escreveu Alcools passeava
nos primeiros anos, após sua chegada a Paris. Tenho a sensação, como em todo passeio pela Capital
Francesa, de viajar entre o presente e o passado. E que prazer, meditar sobre a vida daquele inquieto vidente da palavra,
o filho de dona Olga Kostrowitzky, que veio a Paris procedente das margens do Reno.
O ano de 1903 foi decisivo para o
êxito de Apollinaire como escritor. Ao percorrer Paris, em demanda de companhias
inteligentes, descobriu o café Vachette, no boulevard Saint-Michel, nº 67, esquina
com a rue des Écoles. Ali conheceu e se vinculou a Mallarmé, Catulle Mendès, Jean
Moréas e Joris-Karl Huysmans. Descobriu, também, a revista La Plume, onde publicou seus primeiros poemas, ao lado de Maeterlinck
e Verlaine.
No dia 30 de agosto de 2019,
desci as ruas de Douai e Blanche, no sentido decrescente dos números, itinerário
propício para encontrar, no 9º arrondissement, a tranquila e pequena (de duas quadras)
rue Henner (cujo nome homenageia um pintor) e seu número 9, em cujo segundo andar
Apollinaire, o contemplador das duas margens do Sena, morou, em 1907. Nesse ano,
Max Jacob o apresentou a Marie Laurencin, a musa pintora que lhe inspirou o belíssimo
poema Pont Mirabeau. O namoro apaixonado com Marie Laurencin durou até 1912.
A antiga residência de Apollinaire
(que ali esteve de 1907 a 1909, portanto antes dos episódios terríveis que marcaram
sua vida) fica na esquina com a rue Paul Escudier (nome em tributo a um político).
Acredito que o edifício mantém a mesma fachada dos tempos do poeta. São indícios
disso os rostos esculpidos que se conservam sobre as janelas do terceiro e quarto
andares e os pseudocapitéis coríntios com filigranas floridas no andar superior.
Ali, pertinho, está a place de l’Europe
(rebatizada com o acréscimo do nome de Simone Veil), que tem ao centro um pequeno
jardim silvestre, com alguns arbustos. Pela rue de Constantinopla, que se desmembra
no leque da praça e passa por trás da Gare Saint-Lazare, cheguei à rue de Naples,
23, no 8º arrondissement. Encontrei um bonito edifício, com um balcão central, ornado
de plantas e seis andares, como todos os prédios da rua, que apresenta admirável
uniformidade arquitetural. Está entre a rue du Rocher e a rue de Constantinopla.
É um espaço tranquilo, de pouco trânsito. Estive ali no verão de 2019, num dia de
calor.
Apollinaire conheceu André Gide num
almoço no restaurante Le Cardinal, na rue de Richelieu, 103. Gide o convidou a publicar
no Mercure de France e na Nouvelle Revue Française (NRF). Nesse tempo,
Apollinaire frequentava os cabarés de Montmartre e os efervescentes bares e cafés
de Montparnasse, como La Coupole, Le Dôme, La Rotonde e La Closerie des Lilas. Neste
último, via sempre Paul Fort, Alfred Jarry, André Gide e Paul Éluard, com os quais
consumia éter, ópio e haxixe.
Foi numa noite de 1907, em Montparnasse,
que Guillaume desafiou o jornalista Max Daireaux para um duelo, em virtude da publicação
de uma nota depreciativa contra sua pessoa. Os amigos o dissuadiram de bater-se
na luta de vida ou morte contra um sujeito inferior a ele. Nesse mesmo ano, Apollinaire
publica o romance pornográfico Les onze mille
verges e já trabalha como redator do jornal L’Intransigeant.
Em 1909, Apollinaire foi morar em
Auteil, para aproximar-se de Marie Laurencin, a musa que inspirou alguns de seus
mais belos poemas. Por ela, os cais do Sena se tornaram sua paisagem sentimental.
Ele recordará, em muitos versos de Alcools,
os momentos de expectativa dos encontros com Marie. Passeando, com um livro à mão,
à beira-rio, nas horas de espera, a semana lhe parecia infinita e o rio semelhava
a sua melancolia:
Je passais au bord de la Seine
un livre ancien sous le bras
Le fleuve est pareil à ma peine
il s’écoule et ne tarit pas
Quand donc finira la semaine.
Numa caminhada vital pelas margens
do Sena, no dia 27 de agosto de 2019, de clima menos cálido que o dia anterior,
percorri longo trajeto, entre os portos do rio e as portas das ruas, apreciando
o panorama das pontes. Passei diante das grandezas arquiteturais do Petit e do Grand
Palais, que se espelham frente a frente, na similaridade da beleza monumental. Cruzei
a Ponte Alexandre III, vendo seus esmaltes de frisos áureos e tons alegóricos, seus
pináculos de arcanjos equestres, montados em pégasos dourados, e os tridentes luxuosos
de seus candelabros, ungidos de anjos bailarinos.
O horizonte se me afigura esplêndido,
com a Torre Eiffel, de fino e esgalgo bordado metálico, e na perspectiva frontal,
o Hôtel des Invalides, de grandiosa e dourada cúpula, coroada de puro esplendor.
A Pont des Invalides
tem, entre suas alegorias, Artêmis, sentada entre escudos, Dâmocles impávido, um
arcanjo com coroa de louros, pequenos Bacos, ébrios de luz, cantando em ciranda,
e Eurídice esperando Orfeu, que modula sua encantada lira. Tem ainda as estátuas
Victoire Maritime e Victoire Terrestre, em mágicos contornos de colunas.
Pela Pont d’Alma,
diviso os épicos corcéis decorativos da Pont d’Iena. A Torre Eiffel levanta das
águas seu esguio e alto arcabouço de ferro, em suavizações verticais. Ao longe,
a silhueta nebulosa de Sacré-Coeur, miragem longínqua no horizonte azulado. Incrível,
essa visão da basílica de Montmartre, no alto da sua colina, num belo dia, em que
os remorqueurs e os bateaux-mouches desfilam, deixando rastros
de espuma, e as crianças sorridentes giram nos carrosséis.
De súbido, veio uma
avalanche de gilets jaunes (manifestantes
de coletes amarelos) sobre a ponte, numa gritaria. Interceptados pela polícia, que
os afugenta com o barulho infernal das sirenes, eles batem em retirada. Indiferentes
àquele tumulto, os bateaux-mouches partem do cais, cheios de turistas, que se extasiam
com os encantos ribeirinhos da cidade.
O movimento dos gilets jaunes pôs
o Executivo Federal da França em crise. Desde 17 de novembro de 2018, quando os
manifestantes tramaram um bloqueio geral dos serviços contra o aumento do preço
dos combustíveis. As convocações em massa, feitas via internet, resultaram, entre
outros desmandos, na destruição das vidraças das vitrines de lojas e de bancos.
Um cidadão, de nome Christophe Dettinger, ex-campeão de boxe, agrediu diversos policiais.
Os noticiários informam que a maioria da população exige mais eficiência do Estado
e das coletividades locais. O Presidente Macron propôs um grande debate nacional
e prometeu reformas nas áreas de segurança, desemprego, funções públicas, aposentadorias
e instituições em geral. Nesse sentido, o governo injetaria 10 bilhões de euros
para oferecer o melhor serviço público com menos impostos, ou, em outras palavras,
para comprar a paz social. Esse plano previdenciário degenerou na insatisfação dos
sindicatos de trabalhadores, que, no final de 2019, declaram a greve geral dos transportes
públicos.
Deixo de lado as preocupações
da sociedade francesa e medito no destino do rio Sena, que consiste em receber os
dejetos da cidade e passar, inventando ondas, para distrair este caminhante que
observa os velozes trens sobre a Ponte Bir-Hakeim. A Radio France aparece, num semicírculo
branco, em frente aos enormes edifícios envidraçados da outra margem. A Pont de
Grenelle ostenta sua verde estátua da Liberdade. Acordeons derramam neblina sobre
um canteiro de salgueiros. Torres esguias despontam, numa apoteose de baluartes.
Um pássaro verde, de bom augúrio, nos altos gravetos, anuncia a primavera.
Diante da verde Pont de Grenelle,
avisto a torre Eiffel, que me impõe, frontalmente, sua tessitura exata, seu espetáculo
de simetria.
Caminho duas quadras e vejo, vinte
metros antes de se transformar em avenue Théophile Gautier, a rue Gros, cujo número
15 está na esquina com a rua Félicien David. É um prédio de fachada lisa, de estilo
moderno, situado em frente ao Square Henri Collet (compositor e musicólogo), em
pleno Auteil.
É prazeroso ler Apollinaire e depois
passear na Ponte Mirabeau, a primeira ponte metálica de Paris, onde o poeta assistia
à diluição dos sentimentos nas águas do Sena. Quando morava na rue Gros, dramático
e sentimental, consagrou a Pont Mirabeau nos versos melodiosos e melancólicos que
Léo Ferré bordou de linda melodia. Os amores se esvaem como a onda fluida e como
a lembrança das doces penas que terminavam em alegrias. A esperança é violenta:
Sous le pont Mirabeau
coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu’il m’en souvienne.
La joie venait toujours
après la peine
(…)
Vienne la nuit sonne
l’heure
les jours s’en vont
je demeure
l’amour s’en va
comme la vie est lente
et comme l’Espérance
est violente.
No início de 1910 aconteceu a maior
enchente da história do Sena. O metrô paralisou, as pontes transbordaram, a eletricidade
foi cortada, 22 mil imóveis foram inundados. Inclusive o de Apollinaire, na rue
Gros. Guillaume passou do prédio de número 15 ao de número 37, numa área mais alta
da mesma rua.
Seu poema Vendémiaire é uma espécie de hino dionisíaco à cidade enquanto espaço
mítico, e ao vinho como veículo de transcendência espiritual. Ele medita sobre a
beleza de Paris nos fins de setembro, quando as vinhas noturnas expandem sua claridade
e, no céu, os astros maduros, bicados pelas aves ébrias de sua glória, esperavam
a vindima da aurora. Um encantamento de oráculo o inspirava, na ebriedade noturna
que sucede o amanhecer, semelhante à primeira manhã do mundo:
Que Paris était beau à la fin de septembre
chaque nuit devenait une vigne
où les pampres répandait leur clarté sur la ville et là-haut
astres mûrs becquetés par les
ivres oiseaux
de ma gloire attendaient la vendange
de l’aube.
Apollinaire se recorda de uma noite
em que, ao atravessar os cais desertos e sombrios de Auteil, ouviu uma voz cantando
gravemente e o lamento de outras vozes longínquas. Essas vozes ecoam, suscitando
um êxtase em que ele chora a nostalgia mística de um paraíso perdido:
Un soir passant le long des quais
déserts et sombres
rentrant à Auteil j’entendis
une voix
qui chantait gravement se taisant
quelquefois
pour que parvînt aussi sur les
bords de la Seine
la plainte d’autres voix limpides
et lointaines.
Em 1911, Apollinaire já desfrutava
de certo prestígio literário, tendo publicado poemas nas revistas Le Festin d’Esope (por ele fundada), Vers et Prose e La Phalange.
Seu interesse por formas de artes
exóticas causou-lhe graves problemas, que viriam a lhe obscurecer, temporariamente,
o brilho de escritor e de jornalista do Paris-Journal. Num episódio em que Picasso também esteve
implicado, Apollinaire foi acusado de desfalcar o Louvre de sua preciosa Mona Lisa.
O aventureiro belga Géry Piéret, seu secretário, roubara duas estatuetas hispano-romanas
do Louvre e persuadira Picasso a comprá-las. Apollinaire quis restituí-las. Picasso
disse que as havia destruido, para descobrir certos arcanos da arte. Pouco tempo
depois, alguém roubou a Mona Lisa Gioconda. Géry devolveu uma das estatuetas ao
redator-chefe do Paris-Journal e fugiu
de Paris. Apollinaire o acompanhou à Gare de Lyon e a polícia usou esse fato para
acusar o poeta de furto da obra de Leonardo da Vinci. O imbróglio terminou em interrogatórios
e na prisão do poeta.
Foi Apollinaire encarcerado por cinco dias, no
presídio La Santé (rue de la Santé, 42, em Montparnasse), e coroado com o estigma dos malditos. Os amigos Gide, Aragon, Paul
Fort, Max Jacob, Carco e Salmon fizeram um abaixo-assinado para liberá-lo. E o aclamaram,
na saída do cárcere.
Ele menciona o deplorável episódio
da prisão em dois poemas. Primeiro, em Zone,
de imagens mirabolantes que enaltecem Paris:
À la fin tu es las de ce monde
ancien
Bergère ô tour Eiffel le troupeau
des ponts bêle ce matin
Tu
en as assez de vivre l’antiquité grecque et romaine.
Ele recorda o momento em que o juiz
lhe dá ordem de prisão:
Tu es à Paris chez le juge d’instruction
comme un criminel on te met en
état d’arrestation.
O segundo poema em que ele deplora
o episódio da prisão, À la Santé, evoca
os dolorosos momentos em que se sentiu qual um Lázaro que, em vez de sair, entra
na tumba. E, ao entrar em sua cela, escuta a voz sinistra da angústia, e anda em
círculos, numa fossa, tal um urso. Nas manhãs, o céu era azul como as algemas:
Avant d’entrer dans ma cellule
il a fallu me rendre nu
et quelle voix sinistre ulule
Guillaume qu’est-tu devenu.
Lazare entrant dans sa tombe
Au leiu d’en sortir comme il
fit
Adieu adieu chantante ronde
Ô mes années ô jeunes filles.
(….)
Dans une fosse comme un ours
Chaque matin je me promène
Tournons tournons tournons toujours
Le ciel est bleu comme une chaîne.
Apollinaire não era de desanimar.
Tão logo passou aquela onda tempestuosa, ele cria o periódico literário Les Soirés de Paris, em que publicará os
amigos poetas e escreverá sobre os pintores que admira. Apesar dos novos êxitos,
que lhe trouxeram um reconforto para o drama do caso Louvre e da subsequente prisão, para ele, só um sacrifício na guerra
lhe permitiria lavar a honra e se tornar um herói francês. Um homem capaz de perder a vida para chegar à vitória, exclamaram os
amigos.
De 1910 a 1918, Apollinaire publicou,
diariamente, suas crônicas de arte, nos jornais L’Intransigeant, Montjoie!
e Paris-Journal. Escreveu a respeito de
todos os grandes pintores de sua época, comentando salões oficiais e independentes
e exposições realizadas em diferentes galerias. Em relação a seu grande amigo Picasso,
declarou sempre sua admiração pelo talento com que o grande espanhol revelou seu
naturalismo amoroso, dobrado pelo misticismo que, na Espanha, jaz no fundo das almas,
mesmo as menos religiosas.
A respeito de Marie Laurencin, escreveu
alguns artigos, que reuniu em seu livro Chroniques
d’art, 1910-1918. Em março de 1912, comentou a exposição da pintora na Galérie
Barbazanges, a convite de Robert Delaunay, elogiando suas telas e aquarelas. A seu
ver, as obras de Laurencin foram inspiradas pelas Graças e pelas Musas, e seu estilo
decorativo, espontâneo e original, está dotado de um grau superior de helenismo,
isento de tendência doutrinária ou social. Seu elogio mais efusivo foi para o quadro
Femmes et Éventails, que considerou um
dos melhores da Vernissage aux Indépendants,
em 20 de março, no quai d’Orsay. De sua obra pictórica, destacou o instinto de composição,
única e original, pela disposição das linhas e a escolha das cores.
As referidas crônicas se reportam,
entre outros temas, à animação da vida em Montparnasse, que sucedeu Montmartre,
na atualização da geografia cultural de Paris. Aludem, também, à apresentação de
Parade, de Jean Cocteau em 1917, um poema-cênico
que Erik Satie transpôs em música, com coreografia de Picasso e Léonide Massine.
Apollinaire elogia a desenvoltura com que os bailarinos formam figuras com seus
corpos em movimento, numa formidável associação de dança, pintura, música e mímica.
Apollinaire alugou, então, o famoso apartamento
do sexto andar do boulevard Saint-Germain, nº 202, e o decorou de fetiches africanos
e polinésios, entre outros objetos insólitos. Nas paredes, telas de Henri Rousseau,
Braque, De Chirico, Toulouse Lautrec, Cézanne e Matisse, um verdadeiro museu de
fauvistas, cubistas e expressionistas. Na parede da entrada, ele fixou um cartão
com a frase: on est prié de ne pas emmerder
le monde.
Era do seu feitio o rompante com que se dispunha
a lavar as injúrias com sangue. Quando Alcools
veio a lume, em 1913, com todos os poemas sem pontuação, Georges Duhamel criticou
severamente o livro no Mercure de France.
Alguns termos pejorativos e o qualificativo de facchino (porteiro de hotel) foram considerados por Apollinaire como
insultos e ele quis enfrentar-se em duelo com aquele critiqueur, mas André Billy, seu parceiro na edição da revista Les Soirées
de Paris, o dissuadiu de apelar para as armas.
Quando a guerra começou em 1914, o
amigo Blaise Cendrars, estrangeiro como ele, alistou-se rapidamente. (Cendrars voltaria
da guerra mutilado, sem um braço). Apollinaire tudo fez até que conseguiu ser aceito
entre os combatentes.
Em 1915 é Madeleine Pagès a sua nova
musa, professora de letras. Todas as musas lhe foram pródigas na inspiração que
consagrou aquele que terminou os dias quando a guerra terminou.
Mal conheceu, em Nice, a morena Louise
de Coligny-Châtillon (Lou, para os íntimos), não tardou a partir para o Front, em
Nîmes, em 1916. No horror da trincheira, rastejou pela terra coberta de sangue,
lama e cadáveres. No poema “Chant d’honneur”, de Calligrammes, ele se revela solidário com a tragédia de muitos soldados,
atingidos por obuses, na route de Tahure,
e lamenta o sofrimento causado pela guerra:
Vos coeurs sont tous en moi je
sens chaque blessure
O mes soldats souffrants ô blessés
à mourir.
Durante a missão militar de Apollinaire,
os amigos Picasso e Max Jacob sentiram-lhe a falta no Bateau-Lavoir, na rue Ravignan,
e guardavam o seu cachimbo e o copo em que ele bebia absinto.
Segundo a escritora Louise Faure-Favier,
em seu livro Souvenir sur Apollinaire,
o poeta reclamava de uma chaminé que poluía o pequeno terraço, de onde ele contemplava
um pedaço bonito da cidade.
Nos tempos em que o combatente enfrentava
a terrível insensatez dos homens, Lou se hospedou em seu apartamento do boulevard
Saint-Germain.
No dia 17 de março de 1916, Apollinaire
lia o Mercure de France numa trincheira
próxima à Ville-aux-Bois, próximo a Reims, quando um estilhaço de um obus lhe penetrou
o capacete e a têmpora direita.
Hospitalizado
no Val-de-Grâce, com vertigens e cefaleias, extraíram-lhe fragmentos de chumbo do
crânio. Após alguns meses naquele hospital militar, Apollinaire retorna às atividades
literárias. Pelo mérito do seu heroísmo, deram-lhe a cruz da guerra, que ele recebeu
com a cabeça enfaixada por uma tira de couro.
O convalescente sentiu dormência e
latejamento no braço esquerdo. Era uma ameaça de paralisia e ele foi submetido a
outra trepanação, no hôpital des Italiens, 41 quai d’ Orsay. Do final de março a
julho de 1916, foram quatro meses de intenso sofrimento para o poeta combatente.
Ando seis quadras, da Pont de l’Alma
até a esquina do boulevard de la Tour-Maubourg com a Pont des Invalides. Diviso
o grande edifício onde outrora existiu o hôpital des Italiens, onde o herói Apollinaire
foi trepanado e sobreviveu ao ferimento de guerra. No local, funciona atualmente
a Association des Maires de France. Uma parte da área do quai d’Orsay está em obras,
com carretas despejando grandes pedras recortadas entre grades de alumínio que obstruem
parte da calçada. Avisto as colunas e os arcanjos-pégasos que ornamentam a Ponte
Alexandre III. Aprecio o bordado florido e cinzento entre o arco e a reta horizontal.
Vejo-me diante da cúpula metálica do Grand Palais.
André Breton o visitou no hôpital
des Italiens, no dia 10 de maio de 1916. Na oportunidade, recebeu, em seu exemplar
de Alcools, um autógrafo de Apollinaire.
Breton e Aragon celebraram o regresso
de Apollinaire às lides literárias de Paris, numa noite de dezembro de 1916. Nessa
ocasião, Apollinaire os apresentou a Soupault e os três se tornaram seus discípulos,
na invenção do surrealismo.
É de notar-se a gratidão de Philippe
Soupault àquele que lhe mostrou a poesia viva
e a penitência do fogo e que, ao publicar Alcools, orientou toda a poesia do seu tempo.
Reanimado, Apollinaire comparecia
ao café de Flore, na companhia da discreta e elegante Jacqueline Kolb, a russa que
veio a ser sua esposa. Ele frequentou, também, o ateliê de Picasso, na rue Schoelcher,
e o café La Rotonde, na esquina do boulevard Raspail com o boulevard Montparnasse.
Naquele Montparnasse que Léon-Paul Fargue qualificava de dourado, aéreo e terno,
capaz de pôr em fuga os demônios da solidão de Baudelaire, de Manet e de Apollinaire.
Afirma Cocteau, em seu livro A dificuldade de ser, que Apollinaire era
um homem com o qual nunca se desentendera, porque era atento e se mantinha sem tropeço
na instabilidade de que é feita a poesia. Era corpulento sem ser gordo, o rosto
pálido, de traços romanos, e tinha um pequeno bigode acima de uma boca que soltava
palavras por meio de uma voz curta, com uma graça um pouco pedante e como se perdesse
o fôlego. Os olhos riam da seriedade do rosto. O riso chegava aos quatro cantos
do organismo, o invadia, o sacudia, imprimindo-lhe solavancos. Em seguida, esse
riso silencioso se esvaziava pelo olhar e o corpo voltava ao seu lugar.
O ano de 1917 foi de consagração para
Apollinaire. Pierre Reverdy publicou na revista Nord-Sud uma apologia ao oráculo da modernidade. A peça Les mamelles de Tirésias, drama sur-réaliste, foi representada em 24 de junho
de 1917, no conservatório Renée Maubel, na subida da butte, na atual rue de l’Armée-d’Orient, nº 4, hoje chamado Théatre
Maubel-Galabru. A peça chocou o público e foi criticada pelos puristas.
O enredo da peça acontece em Zanzibar.
A heroína Thérèse decide tornar-se homem e deixa a seu marido a tarefa de procriar.
A representação foi interrompida por um falso oficial britânico que brandiu uma
pistola. Era Jacques Vaché, o amigo escritor com quem Breton consumia ópio. Ali
estavam Paul Fort, Billy, Romains, Cocteau. É interessante notar que Apollinaire
foi quem utilizou, pela primeira vez, o neologismo surrealista, por ele inventado, para definir a sua peça esdrúxula. O
adjetivo se tornou marca registrada.
Depois de tomar soupe aux ognions, no café de Flore, vim
descansar num banco do jardim lateral à velha Saint-Germain-des-Prés, ornamentada
de figuras policromáticas e luminosos, ovalados vitrais que clareiam o altar.
Próxima dali também está a igreja
de Saint-Thomas-d’Aquin, onde Apollinaire se casou com Jacqueline Kolb, no dia 2
de maio de 1918. Fica na rue Saint-Thomas-d’Aquin, que corta o boulevard Saint-Germain,
a uma quadra do famoso apartamento onde o poeta viveu seus derradeiros dias.
Pablo Picasso foi uma das testemunhas
do casamento. A plenitude existencial
de Apollinaire, ao lado de sua Jolie Russe
(les cheveux d’or on dirait/un bel éclair
qui durerait) duraria pouco. De março a agosto de 1918, a guerra fez
estragos em Paris. Durante esse período, 44 bombardeios aéreos causaram 250 mortos
na cidade. No dia 29 de março, um obus destruiu a nave da igreja de Saint-Gervais.
De súbito, em consequência da guerra, começou a terrível epidemia da denominada
gripe espanhola que matou 200 pessoas por dia em Paris.
A guerra não foi para o flâneur des deux rives um paraíso artificial.
O poeta dos ideogramas líricos só durou 27 meses, depois daquela trágica trincheira
em que foi ferido. André Breton passeou com ele todas as tardes do mês que antecedeu
à morte do ilustre morador do boulevard Saint-Germain. Raramente Breton foi pródigo
em louvações. É de notar, portanto, que
ele ao citar Apollinaire, ouvrez cette porte
où je frappe en pleurant, declara que se sentia à vontade e esperançoso, ao
visitá-lo: il n’est guère de porte où, pour
frapper, j’ai été plus à l’aise, plus dilaté d’espoir que celle de Guillaume.
Na noite de 3 de novembro de 1918,
quando lia, para Picasso e Max Jacob, a peça Couleurs du temps, no apartamento do boulevard Saint-Germain, Apollinaire
foi acometido por uma febre, decorrente da gripe que arrasava a população parisiense.
Daquele dia até 10 de novembro, a doença se agravou e degenerou na pneumonia que
o arrastou dali para o cemitério de Père-Lachaise, aos 38 anos de idade.
Apollinaire exercitou experiências
anticanônicas no tom e no ritmo da poesia. Inovou a linguagem pela expansão espontânea
da palavra e do pensamento, a serviço da liberdade criativa. Seu extraordinário
legado vai do lirismo encantador de Alcools,
expressão de altos voos, fluentes, ao ludismo ideogramático dos Calligrammes. Constitui o modelo que serviu
às gerações subsequentes de poetas que fundaram a arte da palavra em sedimentos
de liberdade.
Agulha Revista de Cultura
Número 225 | março de 2023
Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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