segunda-feira, 6 de março de 2023

MÁRCIO CATUNDA | Guillaume Apollinaire e os estilhaços do mundo contemporâneo

 

Wilhelm Apollinarius Kostrowitzky, ou Guillaume Apollinaire, foi descendente de mãe russa, pai italiano e avós poloneses. Nasceu em Roma, em 1880, e teve uma infância apátrida e nômade. Estudou em Mônaco, Nice e Cannes e chegou a Paris em 1899. Mas não se fixou logo na cidade. Esteve na Alemanha e na República Checa. Em Praga, assistiu ao centenário da peça Hernani, entusiasmando-se por Victor Hugo e pela literatura francesa.

Voltou a Paris, formou-se em estenografia e foi funcionário do Crédit Mobilier et Industriel, além de redator do hebdomadário Guide du Rentier, ofícios que detestou. No início do século XX, morava na rue de Naples, 23. Depois do expediente de trabalho, ia tomar um trago no bar l’Austin’s, nas proximidades da Gare Saint-Lazare, onde conheceu Pablo Picasso. Tornou-se um dos melhores amigos do artista plástico espanhol, frequentando o seu ateliê, no 18º arrondissement, na rue Ravignan nº 13. Ali conheceu e se tornou amigo de Max Jacob e de André Salmon.

Desfrutei do salvífico conforto de um táxi até a Gare Saint-Lazare. Tive a satisfação de avistar o hôtel Austin, na rue d’Amsterdam, nº 26, lugar representativo para a história da literatura francesa, porque é onde existia o bar preferido de Apollinaire. O hôtel Austin fica ao lado de outro estabelecimento digno de registro – o hôtel Dieppe – que hospedou Baudelaire, cerca de sete décadas anteriores à frequentação de Apollinaire.

É gratificante andar pelas imediações da Gare Saint-Lazare, área onde o forasteiro que escreveu Alcools passeava nos primeiros anos, após sua chegada a Paris. Tenho a sensação, como em todo passeio pela Capital Francesa, de viajar entre o presente e o passado. E que prazer, meditar sobre a vida daquele inquieto vidente da palavra, o filho de dona Olga Kostrowitzky, que veio a Paris procedente das margens do Reno.

O ano de 1903 foi decisivo para o êxito de Apollinaire como escritor. Ao percorrer Paris, em demanda de companhias inteligentes, descobriu o café Vachette, no boulevard Saint-Michel, nº 67, esquina com a rue des Écoles. Ali conheceu e se vinculou a Mallarmé, Catulle Mendès, Jean Moréas e Joris-Karl Huysmans. Descobriu, também, a revista La Plume, onde publicou seus primeiros poemas, ao lado de Maeterlinck e Verlaine.

No dia 30 de agosto de 2019, desci as ruas de Douai e Blanche, no sentido decrescente dos números, itinerário propício para encontrar, no 9º arrondissement, a tranquila e pequena (de duas quadras) rue Henner (cujo nome homenageia um pintor) e seu número 9, em cujo segundo andar Apollinaire, o contemplador das duas margens do Sena, morou, em 1907. Nesse ano, Max Jacob o apresentou a Marie Laurencin, a musa pintora que lhe inspirou o belíssimo poema Pont Mirabeau. O namoro apaixonado com Marie Laurencin durou até 1912.

A antiga residência de Apollinaire (que ali esteve de 1907 a 1909, portanto antes dos episódios terríveis que marcaram sua vida) fica na esquina com a rue Paul Escudier (nome em tributo a um político). Acredito que o edifício mantém a mesma fachada dos tempos do poeta. São indícios disso os rostos esculpidos que se conservam sobre as janelas do terceiro e quarto andares e os pseudocapitéis coríntios com filigranas floridas no andar superior.

Ali, pertinho, está a place de l’Europe (rebatizada com o acréscimo do nome de Simone Veil), que tem ao centro um pequeno jardim silvestre, com alguns arbustos. Pela rue de Constantinopla, que se desmembra no leque da praça e passa por trás da Gare Saint-Lazare, cheguei à rue de Naples, 23, no 8º arrondissement. Encontrei um bonito edifício, com um balcão central, ornado de plantas e seis andares, como todos os prédios da rua, que apresenta admirável uniformidade arquitetural. Está entre a rue du Rocher e a rue de Constantinopla. É um espaço tranquilo, de pouco trânsito. Estive ali no verão de 2019, num dia de calor.

Apollinaire conheceu André Gide num almoço no restaurante Le Cardinal, na rue de Richelieu, 103. Gide o convidou a publicar no Mercure de France e na Nouvelle Revue Française (NRF). Nesse tempo, Apollinaire frequentava os cabarés de Montmartre e os efervescentes bares e cafés de Montparnasse, como La Coupole, Le Dôme, La Rotonde e La Closerie des Lilas. Neste último, via sempre Paul Fort, Alfred Jarry, André Gide e Paul Éluard, com os quais consumia éter, ópio e haxixe.

Foi numa noite de 1907, em Montparnasse, que Guillaume desafiou o jornalista Max Daireaux para um duelo, em virtude da publicação de uma nota depreciativa contra sua pessoa. Os amigos o dissuadiram de bater-se na luta de vida ou morte contra um sujeito inferior a ele. Nesse mesmo ano, Apollinaire publica o romance pornográfico Les onze mille verges e já trabalha como redator do jornal L’Intransigeant.

Em 1909, Apollinaire foi morar em Auteil, para aproximar-se de Marie Laurencin, a musa que inspirou alguns de seus mais belos poemas. Por ela, os cais do Sena se tornaram sua paisagem sentimental. Ele recordará, em muitos versos de Alcools, os momentos de expectativa dos encontros com Marie. Passeando, com um livro à mão, à beira-rio, nas horas de espera, a semana lhe parecia infinita e o rio semelhava a sua melancolia:

 

Je passais au bord de la Seine

un livre ancien sous le bras

Le fleuve est pareil à ma peine

il s’écoule et ne tarit pas

Quand donc finira la semaine.

 

Numa caminhada vital pelas margens do Sena, no dia 27 de agosto de 2019, de clima menos cálido que o dia anterior, percorri longo trajeto, entre os portos do rio e as portas das ruas, apreciando o panorama das pontes. Passei diante das grandezas arquiteturais do Petit e do Grand Palais, que se espelham frente a frente, na similaridade da beleza monumental. Cruzei a Ponte Alexandre III, vendo seus esmaltes de frisos áureos e tons alegóricos, seus pináculos de arcanjos equestres, montados em pégasos dourados, e os tridentes luxuosos de seus candelabros, ungidos de anjos bailarinos.

O horizonte se me afigura esplêndido, com a Torre Eiffel, de fino e esgalgo bordado metálico, e na perspectiva frontal, o Hôtel des Invalides, de grandiosa e dourada cúpula, coroada de puro esplendor.

A Pont des Invalides tem, entre suas alegorias, Artêmis, sentada entre escudos, Dâmocles impávido, um arcanjo com coroa de louros, pequenos Bacos, ébrios de luz, cantando em ciranda, e Eurídice esperando Orfeu, que modula sua encantada lira. Tem ainda as estátuas Victoire Maritime e Victoire Terrestre, em mágicos contornos de colunas.

Pela Pont d’Alma, diviso os épicos corcéis decorativos da Pont d’Iena. A Torre Eiffel levanta das águas seu esguio e alto arcabouço de ferro, em suavizações verticais. Ao longe, a silhueta nebulosa de Sacré-Coeur, miragem longínqua no horizonte azulado. Incrível, essa visão da basílica de Montmartre, no alto da sua colina, num belo dia, em que os remorqueurs e os bateaux-mouches desfilam, deixando rastros de espuma, e as crianças sorridentes giram nos carrosséis.

De súbido, veio uma avalanche de gilets jaunes (manifestantes de coletes amarelos) sobre a ponte, numa gritaria. Interceptados pela polícia, que os afugenta com o barulho infernal das sirenes, eles batem em retirada. Indiferentes àquele tumulto, os bateaux-mouches partem do cais, cheios de turistas, que se extasiam com os encantos ribeirinhos da cidade.

O movimento dos gilets jaunes pôs o Executivo Federal da França em crise. Desde 17 de novembro de 2018, quando os manifestantes tramaram um bloqueio geral dos serviços contra o aumento do preço dos combustíveis. As convocações em massa, feitas via internet, resultaram, entre outros desmandos, na destruição das vidraças das vitrines de lojas e de bancos. Um cidadão, de nome Christophe Dettinger, ex-campeão de boxe, agrediu diversos policiais. Os noticiários informam que a maioria da população exige mais eficiência do Estado e das coletividades locais. O Presidente Macron propôs um grande debate nacional e prometeu reformas nas áreas de segurança, desemprego, funções públicas, aposentadorias e instituições em geral. Nesse sentido, o governo injetaria 10 bilhões de euros para oferecer o melhor serviço público com menos impostos, ou, em outras palavras, para comprar a paz social. Esse plano previdenciário degenerou na insatisfação dos sindicatos de trabalhadores, que, no final de 2019, declaram a greve geral dos transportes públicos.

Deixo de lado as preocupações da sociedade francesa e medito no destino do rio Sena, que consiste em receber os dejetos da cidade e passar, inventando ondas, para distrair este caminhante que observa os velozes trens sobre a Ponte Bir-Hakeim. A Radio France aparece, num semicírculo branco, em frente aos enormes edifícios envidraçados da outra margem. A Pont de Grenelle ostenta sua verde estátua da Liberdade. Acordeons derramam neblina sobre um canteiro de salgueiros. Torres esguias despontam, numa apoteose de baluartes. Um pássaro verde, de bom augúrio, nos altos gravetos, anuncia a primavera.

Diante da verde Pont de Grenelle, avisto a torre Eiffel, que me impõe, frontalmente, sua tessitura exata, seu espetáculo de simetria.

Caminho duas quadras e vejo, vinte metros antes de se transformar em avenue Théophile Gautier, a rue Gros, cujo número 15 está na esquina com a rua Félicien David. É um prédio de fachada lisa, de estilo moderno, situado em frente ao Square Henri Collet (compositor e musicólogo), em pleno Auteil.

Da rue Gros, caminho à esquerda e chego à Pont Mirabeau, com as estátuas das divindades marinhas pilotando corcéis aquáticos. É a ponte dos amores perdidos de Apollinaire: Sous le Pont Mirabeau coule la SeineEnsimesmado na passarela, flano ao largo do Sena. O vento inspira o voo das gaivotas. Os barcos dormem sob os arcos. Vórtices no relevo d’água. Sinto a ressonância da sensibilidade de Apollinaire no ambiente, quando fito a largura tremulante da água verdoenga e a parcimônia dos cisnes hedonistas. De ponta a ponta, do quai Louis Blériot ao quai André Citroen, respira-se um clima nostálgico, apollinairiano. A Torre Eiffel, como um obelisco colossal, permanece regendo a paisagem. De um lado, os edifícios antigos, com pequenas varandas e fachadas de concreto; do outro, os novos prédios de envidraçadas simetrias coloridas. O Sena, largamente efusivo, ondula sua magia arcaica na passagem dos barcos.

É prazeroso ler Apollinaire e depois passear na Ponte Mirabeau, a primeira ponte metálica de Paris, onde o poeta assistia à diluição dos sentimentos nas águas do Sena. Quando morava na rue Gros, dramático e sentimental, consagrou a Pont Mirabeau nos versos melodiosos e melancólicos que Léo Ferré bordou de linda melodia. Os amores se esvaem como a onda fluida e como a lembrança das doces penas que terminavam em alegrias. A esperança é violenta:

 

Sous le pont Mirabeau coule la Seine

Et nos amours

Faut-il qu’il m’en souvienne.

La joie venait toujours après la peine

  (…)

Vienne la nuit sonne l’heure

les jours s’en vont je demeure

l’amour s’en va

comme la vie est lente

et comme l’Espérance est violente.

 

No início de 1910 aconteceu a maior enchente da história do Sena. O metrô paralisou, as pontes transbordaram, a eletricidade foi cortada, 22 mil imóveis foram inundados. Inclusive o de Apollinaire, na rue Gros. Guillaume passou do prédio de número 15 ao de número 37, numa área mais alta da mesma rua.

Seu poema Vendémiaire é uma espécie de hino dionisíaco à cidade enquanto espaço mítico, e ao vinho como veículo de transcendência espiritual. Ele medita sobre a beleza de Paris nos fins de setembro, quando as vinhas noturnas expandem sua claridade e, no céu, os astros maduros, bicados pelas aves ébrias de sua glória, esperavam a vindima da aurora. Um encantamento de oráculo o inspirava, na ebriedade noturna que sucede o amanhecer, semelhante à primeira manhã do mundo:

Que Paris était beau à la fin de septembre

 

chaque nuit devenait une vigne où les pampres répandait leur clarté sur la ville et là-haut

astres mûrs becquetés par les ivres oiseaux

de ma gloire attendaient la vendange de l’aube.

 

Apollinaire se recorda de uma noite em que, ao atravessar os cais desertos e sombrios de Auteil, ouviu uma voz cantando gravemente e o lamento de outras vozes longínquas. Essas vozes ecoam, suscitando um êxtase em que ele chora a nostalgia mística de um paraíso perdido:

 

Un soir passant le long des quais déserts et sombres

rentrant à Auteil j’entendis une voix

qui chantait gravement se taisant quelquefois

pour que parvînt aussi sur les bords de la Seine

la plainte d’autres voix limpides et lointaines.

 

Em 1911, Apollinaire já desfrutava de certo prestígio literário, tendo publicado poemas nas revistas Le Festin d’Esope (por ele fundada), Vers et Prose e La Phalange.

Seu interesse por formas de artes exóticas causou-lhe graves problemas, que viriam a lhe obscurecer, temporariamente, o brilho de escritor e de jornalista do Paris-Journal. Num episódio em que Picasso também esteve implicado, Apollinaire foi acusado de desfalcar o Louvre de sua preciosa Mona Lisa. O aventureiro belga Géry Piéret, seu secretário, roubara duas estatuetas hispano-romanas do Louvre e persuadira Picasso a comprá-las. Apollinaire quis restituí-las. Picasso disse que as havia destruido, para descobrir certos arcanos da arte. Pouco tempo depois, alguém roubou a Mona Lisa Gioconda. Géry devolveu uma das estatuetas ao redator-chefe do Paris-Journal e fugiu de Paris. Apollinaire o acompanhou à Gare de Lyon e a polícia usou esse fato para acusar o poeta de furto da obra de Leonardo da Vinci. O imbróglio terminou em interrogatórios e na prisão do poeta.

 Foi Apollinaire encarcerado por cinco dias, no presídio La Santé (rue de la Santé, 42, em Montparnasse), e coroado com o estigma dos malditos. Os amigos Gide, Aragon, Paul Fort, Max Jacob, Carco e Salmon fizeram um abaixo-assinado para liberá-lo. E o aclamaram, na saída do cárcere.

Ele menciona o deplorável episódio da prisão em dois poemas. Primeiro, em Zone, de imagens mirabolantes que enaltecem Paris:

 

À la fin tu es las de ce monde ancien

Bergère ô tour Eiffel le troupeau des ponts bêle ce matin

Tu en as assez de vivre l’antiquité grecque et romaine.

 

Ele recorda o momento em que o juiz lhe dá ordem de prisão:

 

Tu es à Paris chez le juge d’instruction

comme un criminel on te met en état d’arrestation.

 

O segundo poema em que ele deplora o episódio da prisão, À la Santé, evoca os dolorosos momentos em que se sentiu qual um Lázaro que, em vez de sair, entra na tumba. E, ao entrar em sua cela, escuta a voz sinistra da angústia, e anda em círculos, numa fossa, tal um urso. Nas manhãs, o céu era azul como as algemas:

 

Avant d’entrer dans ma cellule

il a fallu me rendre nu

et quelle voix sinistre ulule

Guillaume qu’est-tu devenu.

Lazare entrant dans sa tombe

Au leiu d’en sortir comme il fit

Adieu adieu chantante ronde

Ô mes années ô jeunes filles.

  (….)

Dans une fosse comme un ours

Chaque matin je me promène

Tournons tournons tournons toujours

Le ciel est bleu comme une chaîne.

 

Apollinaire não era de desanimar. Tão logo passou aquela onda tempestuosa, ele cria o periódico literário Les Soirés de Paris, em que publicará os amigos poetas e escreverá sobre os pintores que admira. Apesar dos novos êxitos, que lhe trouxeram um reconforto para o drama do caso Louvre e da subsequente prisão, para ele, só um sacrifício na guerra lhe permitiria lavar a honra e se tornar um herói francês. Um homem capaz de perder a vida para chegar à vitória, exclamaram os amigos.


Depois do terrível acontecimento da prisão e do rompimento com Marie Laurencin, Apollinaire deixou Auteil, não sem desgosto, como ele confessa em Le flâneur des deux rives. É próprio dos nostálgicos sentir saudade dos momentos sofridos: quartier charmant de mes grandes tristesses. Ele levará para sempre o souvenir dos passeios à beira-rio, tanto dos dias de encantamento quanto daqueles sem cor nem vida.

De 1910 a 1918, Apollinaire publicou, diariamente, suas crônicas de arte, nos jornais L’Intransigeant, Montjoie! e Paris-Journal. Escreveu a respeito de todos os grandes pintores de sua época, comentando salões oficiais e independentes e exposições realizadas em diferentes galerias. Em relação a seu grande amigo Picasso, declarou sempre sua admiração pelo talento com que o grande espanhol revelou seu naturalismo amoroso, dobrado pelo misticismo que, na Espanha, jaz no fundo das almas, mesmo as menos religiosas.

A respeito de Marie Laurencin, escreveu alguns artigos, que reuniu em seu livro Chroniques d’art, 1910-1918. Em março de 1912, comentou a exposição da pintora na Galérie Barbazanges, a convite de Robert Delaunay, elogiando suas telas e aquarelas. A seu ver, as obras de Laurencin foram inspiradas pelas Graças e pelas Musas, e seu estilo decorativo, espontâneo e original, está dotado de um grau superior de helenismo, isento de tendência doutrinária ou social. Seu elogio mais efusivo foi para o quadro Femmes et Éventails, que considerou um dos melhores da Vernissage aux Indépendants, em 20 de março, no quai d’Orsay. De sua obra pictórica, destacou o instinto de composição, única e original, pela disposição das linhas e a escolha das cores.

As referidas crônicas se reportam, entre outros temas, à animação da vida em Montparnasse, que sucedeu Montmartre, na atualização da geografia cultural de Paris. Aludem, também, à apresentação de Parade, de Jean Cocteau em 1917, um poema-cênico que Erik Satie transpôs em música, com coreografia de Picasso e Léonide Massine. Apollinaire elogia a desenvoltura com que os bailarinos formam figuras com seus corpos em movimento, numa formidável associação de dança, pintura, música e mímica.

 Apollinaire alugou, então, o famoso apartamento do sexto andar do boulevard Saint-Germain, nº 202, e o decorou de fetiches africanos e polinésios, entre outros objetos insólitos. Nas paredes, telas de Henri Rousseau, Braque, De Chirico, Toulouse Lautrec, Cézanne e Matisse, um verdadeiro museu de fauvistas, cubistas e expressionistas. Na parede da entrada, ele fixou um cartão com a frase: on est prié de ne pas emmerder le monde.

 Era do seu feitio o rompante com que se dispunha a lavar as injúrias com sangue. Quando Alcools veio a lume, em 1913, com todos os poemas sem pontuação, Georges Duhamel criticou severamente o livro no Mercure de France. Alguns termos pejorativos e o qualificativo de facchino (porteiro de hotel) foram considerados por Apollinaire como insultos e ele quis enfrentar-se em duelo com aquele critiqueur, mas André Billy, seu parceiro na edição da revista Les Soirées de Paris, o dissuadiu de apelar para as armas.

Quando a guerra começou em 1914, o amigo Blaise Cendrars, estrangeiro como ele, alistou-se rapidamente. (Cendrars voltaria da guerra mutilado, sem um braço). Apollinaire tudo fez até que conseguiu ser aceito entre os combatentes.

Em 1915 é Madeleine Pagès a sua nova musa, professora de letras. Todas as musas lhe foram pródigas na inspiração que consagrou aquele que terminou os dias quando a guerra terminou.

Mal conheceu, em Nice, a morena Louise de Coligny-Châtillon (Lou, para os íntimos), não tardou a partir para o Front, em Nîmes, em 1916. No horror da trincheira, rastejou pela terra coberta de sangue, lama e cadáveres. No poema “Chant d’honneur”, de Calligrammes, ele se revela solidário com a tragédia de muitos soldados, atingidos por obuses, na route de Tahure, e lamenta o sofrimento causado pela guerra:

 

Vos coeurs sont tous en moi je sens chaque blessure

O mes soldats souffrants ô blessés à mourir.

 

Durante a missão militar de Apollinaire, os amigos Picasso e Max Jacob sentiram-lhe a falta no Bateau-Lavoir, na rue Ravignan, e guardavam o seu cachimbo e o copo em que ele bebia absinto.

No boulevard Saint-Germain, revi o bonito prédio de número 202, na esquina com a rue Saint-Guillaume, maravilhosa morada que Apollinaire nem pôde aproveitar demoradamente, porque a guerra o obrigou a se ausentar dali e a morte o abateu meses depois de regressar da frente de combate. Ali, ao lado, vizinhos à église Saint-Germain-des-Prés, estão o café de Flore e o café Les Deux-Magots. Junto à igreja, há o pequeno jardim, cujo monumento central é uma cabeça de Dora Maar, esculpida por Pablo Picasso, em homenagem a Guillaume Apollinaire. O paredão da torre vetusta e pardacenta serve de fundo para a mencionada escultura.

Segundo a escritora Louise Faure-Favier, em seu livro Souvenir sur Apollinaire, o poeta reclamava de uma chaminé que poluía o pequeno terraço, de onde ele contemplava um pedaço bonito da cidade.

Nos tempos em que o combatente enfrentava a terrível insensatez dos homens, Lou se hospedou em seu apartamento do boulevard Saint-Germain.

No dia 17 de março de 1916, Apollinaire lia o Mercure de France numa trincheira próxima à Ville-aux-Bois, próximo a Reims, quando um estilhaço de um obus lhe penetrou o capacete e a têmpora direita.

         Hospitalizado no Val-de-Grâce, com vertigens e cefaleias, extraíram-lhe fragmentos de chumbo do crânio. Após alguns meses naquele hospital militar, Apollinaire retorna às atividades literárias. Pelo mérito do seu heroísmo, deram-lhe a cruz da guerra, que ele recebeu com a cabeça enfaixada por uma tira de couro.

O convalescente sentiu dormência e latejamento no braço esquerdo. Era uma ameaça de paralisia e ele foi submetido a outra trepanação, no hôpital des Italiens, 41 quai d’ Orsay. Do final de março a julho de 1916, foram quatro meses de intenso sofrimento para o poeta combatente.

Ando seis quadras, da Pont de l’Alma até a esquina do boulevard de la Tour-Maubourg com a Pont des Invalides. Diviso o grande edifício onde outrora existiu o hôpital des Italiens, onde o herói Apollinaire foi trepanado e sobreviveu ao ferimento de guerra. No local, funciona atualmente a Association des Maires de France. Uma parte da área do quai d’Orsay está em obras, com carretas despejando grandes pedras recortadas entre grades de alumínio que obstruem parte da calçada. Avisto as colunas e os arcanjos-pégasos que ornamentam a Ponte Alexandre III. Aprecio o bordado florido e cinzento entre o arco e a reta horizontal. Vejo-me diante da cúpula metálica do Grand Palais.

André Breton o visitou no hôpital des Italiens, no dia 10 de maio de 1916. Na oportunidade, recebeu, em seu exemplar de Alcools, um autógrafo de Apollinaire.

Breton e Aragon celebraram o regresso de Apollinaire às lides literárias de Paris, numa noite de dezembro de 1916. Nessa ocasião, Apollinaire os apresentou a Soupault e os três se tornaram seus discípulos, na invenção do surrealismo.

É de notar-se a gratidão de Philippe Soupault àquele que lhe mostrou a poesia viva e a penitência do fogo e que, ao publicar Alcools, orientou toda a poesia do seu tempo.

Reanimado, Apollinaire comparecia ao café de Flore, na companhia da discreta e elegante Jacqueline Kolb, a russa que veio a ser sua esposa. Ele frequentou, também, o ateliê de Picasso, na rue Schoelcher, e o café La Rotonde, na esquina do boulevard Raspail com o boulevard Montparnasse. Naquele Montparnasse que Léon-Paul Fargue qualificava de dourado, aéreo e terno, capaz de pôr em fuga os demônios da solidão de Baudelaire, de Manet e de Apollinaire.

Afirma Cocteau, em seu livro A dificuldade de ser, que Apollinaire era um homem com o qual nunca se desentendera, porque era atento e se mantinha sem tropeço na instabilidade de que é feita a poesia. Era corpulento sem ser gordo, o rosto pálido, de traços romanos, e tinha um pequeno bigode acima de uma boca que soltava palavras por meio de uma voz curta, com uma graça um pouco pedante e como se perdesse o fôlego. Os olhos riam da seriedade do rosto. O riso chegava aos quatro cantos do organismo, o invadia, o sacudia, imprimindo-lhe solavancos. Em seguida, esse riso silencioso se esvaziava pelo olhar e o corpo voltava ao seu lugar.

O ano de 1917 foi de consagração para Apollinaire. Pierre Reverdy publicou na revista Nord-Sud uma apologia ao oráculo da modernidade. A peça Les mamelles de Tirésias, drama sur-réaliste, foi representada em 24 de junho de 1917, no conservatório Renée Maubel, na subida da butte, na atual rue de l’Armée-d’Orient, nº 4, hoje chamado Théatre Maubel-Galabru. A peça chocou o público e foi criticada pelos puristas.

O enredo da peça acontece em Zanzibar. A heroína Thérèse decide tornar-se homem e deixa a seu marido a tarefa de procriar. A representação foi interrompida por um falso oficial britânico que brandiu uma pistola. Era Jacques Vaché, o amigo escritor com quem Breton consumia ópio. Ali estavam Paul Fort, Billy, Romains, Cocteau. É interessante notar que Apollinaire foi quem utilizou, pela primeira vez, o neologismo surrealista, por ele inventado, para definir a sua peça esdrúxula. O adjetivo se tornou marca registrada.

Depois de tomar soupe aux ognions, no café de Flore, vim descansar num banco do jardim lateral à velha Saint-Germain-des-Prés, ornamentada de figuras policromáticas e luminosos, ovalados vitrais que clareiam o altar.

Próxima dali também está a igreja de Saint-Thomas-d’Aquin, onde Apollinaire se casou com Jacqueline Kolb, no dia 2 de maio de 1918. Fica na rue Saint-Thomas-d’Aquin, que corta o boulevard Saint-Germain, a uma quadra do famoso apartamento onde o poeta viveu seus derradeiros dias.

Pablo Picasso foi uma das testemunhas do casamento. A plenitude existencial de Apollinaire, ao lado de sua Jolie Russe (les cheveux d’or on dirait/un bel éclair qui durerait) duraria pouco. De março a agosto de 1918, a guerra fez estragos em Paris. Durante esse período, 44 bombardeios aéreos causaram 250 mortos na cidade. No dia 29 de março, um obus destruiu a nave da igreja de Saint-Gervais. De súbito, em consequência da guerra, começou a terrível epidemia da denominada gripe espanhola que matou 200 pessoas por dia em Paris.

A guerra não foi para o flâneur des deux rives um paraíso artificial. O poeta dos ideogramas líricos só durou 27 meses, depois daquela trágica trincheira em que foi ferido. André Breton passeou com ele todas as tardes do mês que antecedeu à morte do ilustre morador do boulevard Saint-Germain. Raramente Breton foi pródigo em louvações. É de notar, portanto, que ele ao citar Apollinaire, ouvrez cette porte où je frappe en pleurant, declara que se sentia à vontade e esperançoso, ao visitá-lo: il n’est guère de porte où, pour frapper, j’ai été plus à l’aise, plus dilaté d’espoir que celle de Guillaume.

Na noite de 3 de novembro de 1918, quando lia, para Picasso e Max Jacob, a peça Couleurs du temps, no apartamento do boulevard Saint-Germain, Apollinaire foi acometido por uma febre, decorrente da gripe que arrasava a população parisiense. Daquele dia até 10 de novembro, a doença se agravou e degenerou na pneumonia que o arrastou dali para o cemitério de Père-Lachaise, aos 38 anos de idade.

Apollinaire exercitou experiências anticanônicas no tom e no ritmo da poesia. Inovou a linguagem pela expansão espontânea da palavra e do pensamento, a serviço da liberdade criativa. Seu extraordinário legado vai do lirismo encantador de Alcools, expressão de altos voos, fluentes, ao ludismo ideogramático dos Calligrammes. Constitui o modelo que serviu às gerações subsequentes de poetas que fundaram a arte da palavra em sedimentos de liberdade.

 


MÁRCIO CATUNDA (Brasil, 1957). Escritor e diplomata. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu mais de quarenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais em espanhol. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021), que recebeu em seu ano de publicação o Prêmio Cecília Meyreles, da União Brasileira de Escritores, no Rio de Janeiro.

 

BRIDGET BATE TICHENOR (França, 1917-1990). Artista fascinante, foi também editora de moda. Sua pintura, ligada ao Surrealismo, sua biografia inclui momentos em que foi modelo de Man Ray, uma paixão que despertou em Anaïs Nin, a casa que dividia com Peggy Guggenheim e seu interesse por ocultismo, magia e alquimia. Quando conheceu o México identificou o país como o lugar sagrado de sua morada, assim como foi intensa a amizade com Leonora Carrington, Remedios Varo, Kati Horna e Alice Rahon, que ali já residiam. Metafísica e misticismo se revelaram como temas característicos de sua linguagem pictórica, o que a levou também a Roma, onde realizou uma série de pinturas intitulada Máscaras, Guias Espirituais e Divindades Duplas.





Agulha Revista de Cultura

Número 225 | março de 2023

Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)

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