segunda-feira, 6 de março de 2023

MÁRCIO CATUNDA | Francis Carco e asa viagens incansáveis da música e da poesia

 Francis Carco (François Marie Alexandre Carcopino-Tussoli) nasceu no dia 3 de julho de 1886, em Nouméa, na Nouvelle-Calédonie, onde passou seus primeiros dez anos. Foi um dos cinco filhos do impetuoso Jean-Dominique e da doce Marie-Antoinette Roix. Seu pai tinha o pomposo cargo de inspecteur des domaines de l’Etat naquela terra de exílio. Sua família de andarilhos italianos se estabeleceu em Châtillon-sur-Seine, onde o estudante Francis dava motivos para ser pouco estimado pelos professores. Seu objetivo, naquele tempo, era libertar-se do jugo autoritário de um pai violento, que lhe aplicava castigos corporais.

Seu obstinado pai o envia a Nice, à casa de sua avó, para que ele se concentre nos estudos do baccalauréat. É quando Carco publica seus primeiros poemas em revistas literárias de Marseille, Toulouse e Bruges. Em 1906 e 1907, seu paradeiro foi Rodez, onde ele estuda para concursos administrativos. O pai insiste em que o rapaz deveria trabalhar e lhe arranja um emprego de bedel no liceu de Agen. O jovem bedel, frequentador de cabarés, terminou expulso do colégio, por haver levado os alunos a conhecer um bordel. O pai tirano aperta o cerco contra a carreira artística do filho que escandalizava a moral da burguesia provinciana.

Eis que, em 1908 e 1909, o serviço militar se interpõe como um estorvo na vida de Carco. Ele jamais abandonaria o prazer de suas festivas noites, numa das quais é preso pela polícia militar, em Orange, quando dançava fardado num baile considerado indecente. Farto de tantos empecilhos ao essencial, que para ele era a literatura, livrou-se, por fim, do exército, na adequada patente de cabo. Ao mesmo tempo, recusou um posto de trabalho na Compagnie des Eaux em Bayeux. Partiu, finalmente, com destino a Paris para abraçar a Belle Époque com a ânsia natural de um verdadeiro artista.

O ano do seu grito de independência é 1910. Livre da tutela do pai, ele desembarca na gare de Saint-Lazare e vai-se hospedar no hôtel Pimodan, aquele da legenda baudelairiana. O preço da diária, no entanto, só lhe permite uma breve permanência naquela tradicional hospedaria. Além disso, seu ídolo Charles-Philippe, de quem ele esperava alguma ajuda no mundo das letras, já não vivia no número 45 do quai d’Anjou, pois falecera havia pouco. Carco se hospeda então na casa do poeta Édouard Gazanion, na rue Caulaincourt, nº 67, próximo à Butte Montmartre. Quando seu anfitrião viaja e lhe confia o apartamento, Carco, faminto, vende alguns móveis da residência e se evade, para hospedar-se em espeluncas úmidas. Passa então a furtar croissants e garrafas de leite das escadas das casas burguesas.

Ao buscar os círculos literários de Montmartre, Carco descobre o café-cabaret Lapin Agile, onde se apresenta como cantor, interpreta uma canção de Aristide Bruant, e é convidado por Pierre Mac Orlan para compor a mesa, juntamente com André Salmon, Pablo Picasso, Apollinaire e Max Jacob. Sendo que Max Jacob se tornaria depois seu companheiro de aflitiva miséria.

Vinculado à elite artística de Paris, Carco não deixava de ser visto pela rue Lepic e pela place Pigalle, não com ostentação de intelectual cortejado, porém qual mendigo, tremendo de frio e roendo um pão seco. A pobreza vivida serviria de cenário para a caracterização de seus personagens, habitantes das ruas sombrias daquele enfer bigarré de Montmartre.

Pouco depois, Carco trabalhou na gráfica do impressor François Bernouard e ocupou uma chambre meublé no quai de Bourbon, nº 49. Foi nesse tempo que lhe vieram à prodigiosa mente os versos de La bohême et mon cœur, escrito na trilha visionária de Verlaine e publicado em 1912.

 A birra paterna foi seu melhor incentivo. Carco mantém correspondência com Tristan Derène, de Agen, Léon Vérane (de Toulouse), Jean Pellerin (de Grenoble) e Jean-Marc Bernard (de Valence). Funda, com o apoio deles, a École Fantaisiste, que primava pelo humor de delicada ironia. Com esses parceiros, cria a revista Pan em Montpellier.

Poeta, crítico de arte, romancista, contista, compositor e cantor, Carco colaborava nas revistas L’Homme libre e Gil Blas para sobreviver. Certo dia, como num golpe de sorte, ele canta canções ciganas e marselhesas no casamento da filha de Paul Fort. A esposa do editor de Mercure de France, Madame Rachilde, gostou tanto da peripécia do poeta que lhe pediu um texto original para a sua prestigiosa revista literária. Assim foi publicado seu primeiro romance, Jésus-la-Caille, a história de um opiômano e homossexual, que Francis Carco dizia ser pura autobiografia. Como ele próprio, seu personagem é um tipo do bas-fond, que anda pelo boulevard de Clichy, pela rue Fontaine e pela rue Pigalle, em meio à crapule dépravé. Jésus-la-Caille, como todos os seus romances, documenta a época dos proxenetas bandoleiros. É a narrativa do amor frustrado da aventureira Fernande, moradora da rue Lepic, mantida pelo corso Dominique.

Por seus personagens, heróis de pouco caráter, impingiram a Carco a alcunha de romancista da marginália ou romancier des apaches. Ele definia sua obra como un romantisme plaintif où l’exotisme se mêle au merveilleux avec une nuance d’humour et désenchantement. Vinham da infância em Nouméa as imagens marítimas que afloravam em seus romances, com as lembranças dos tipos humanos que conhecera nas tabernas de sua cidade natal: prostitutas, marginais, crianças maltratadas e outros que vivem os dramas sensíveis da condição humana.

Ao ler Les innocents, o segundo romance de Francis Carco, de 1916, o rico Paul Bourget, romancista e crítico literário, torna-se seu mecenas. O poeta pôde, então, pagar as contas do gás e do alfaiate, deixar-se fotografar nos lupanares e vagabundear pelos estaminets de La Chapelle, bebendo vinho de Bourgogne, onde quer que ressoassem acordeons e sorrissem belas mulheres. Com a mellhoria financeira, ele adquire uma casa em Cormeilles-en-Vexin, a 50 quilômetros de Paris, e comercializa, lucrativamente, obras de arte. Em 1913, depois de viajar à Córsega, à Inglaterra e à Bélgica, ele volta a Paris e aluga o apartamento do quai aux Fleurs, nº 13, decorado com quadros de Modigliani, Utrillo, Vlaminck e Dufy, pintores sobre os quais ele escreveria em revistas de arte.

A estupidez da guerra, que eclodira em 1914, o obriga a servir em Gray, perto de Besançon e integrar a escola de pilotos da base aérea de Longvic, próximo a Dijon. No contexto dessa missão, recebeu a tarefa de distribuir a correspondência dos combatentes. Para exercitar o estro, Carco escrevia poemas no dorso dos envelopes que distribuía. E, para amenizar o sofrimento no pavoroso ambiente da guerra, cantava, às noites, nos caboulots (tascas). A experiência de combatente lhe valeu a perda de seu irmão Charles, morto na trincheira de Verdun. Um ferimento no joelho e a convalescença livraram Carco do sufoco de servir como aprendiz de piloto.

No regresso ao quai aux Fleurs, conhece a escritora neozelandesa Katherine Mansfield, que passeava em Paris com o marido. Simpatia mútua e namoro instantâneo. Ela deixa o marido John Middleton Murry, jornalista inglês, na lista de espera e se consagra ao poeta, que a acolhe em seu apartamento. A paixão foi vivida naquele ambiente pitoresco, com vista para as curvas arborizadas do Sena, entre pontes e tetos quadrangulares.

Por desventura, Carco recrutado para nova missão militar em Gray. Ali Mansfield o visita em 1915. Katherine, que adotava um proceder libertino e autêntico, mantinha intercursos ambíguos com sua colega, a escritora inglesa Beatrice Hastings. Inspirada em Carco, Katherine Mansfield criou dois personagens de suas shot stories: na primeira, An Indiscreet Journey, conto escrito em 1915, ele é o Little Corporal, namorado da narradora, com quem ela passa quatro noites em Gray, após viajar de trem, entre os soldados franceses que partem para a frente de batalha na Primeira Guerra Mundial. No segundo conto, Carco é o personagem sinistro Raoul Duquette, narrador de Je ne parle pas français, caracterizado como um tipo sexualmente ambíguo, hedonista e egocêntrico, que se apresenta como escritor e se prostitui num café de excentricidades. A paixão desestabilizadora pela escritora neozelandesa quase impulsiona Francis Carco a se jogar no Sena.

Pelo quai d’Orléans, em direção a Saint-Michel, reluzem as torres de Notre-Dame, de Saint-Jacques, e o perfil redondo do Panthéon, no horizonte azul e branco. Na Pont de l’Archevêché, um sanfoneiro cigano modula no acordeon um tema sentimental: aquele mágico sous le ciel de Paris, que faz a gente sonhar. Dei uma moeda ao homem de rosto enrugado e vestes surradas, que, após terminar a canção, exercitava os dedos da mão direita, marcada pelos pontos de uma operação, e tinha na face uma expressão de dor.

O quai aux Fleurs, bordado de pontes, tem em seu número 13, um edifício largo, de paredes e janelas brancas (seis em cada andar), de frente para a fachada lateral do Hôtel de Ville e o Sena. Os elegantes remorqueurs flutuantes (ao lado da ponte da Île Saint-Louis) e os retângulos do Hôtel de Ville, configuram um painel horizontal de rara beleza. Senti uma emoção inédita ao contemplar a vista que Francis Carco apreciava quando viveu no quai aux Fleurs, no ano de 1913, a aventura amorosa com sua musa Katherine Mansfield.

Carco conhece, em 1917, nos corredores do jornal L’Éclair, a grande dame Colette, com quem viaja para a Bretagne e se diverte intensamente nos remansos da boemia e nas redações dos jornais.

Certa estabilidade existencial permitiu que Francis Carco se casasse, em 1918, com Germaine Jarrel, que ele conhecera no cabaré Lapin Agile. A obra literária de Carco cresce nesse período, com o romance L’Équipe, com Scènes de la vie de Montmartre (memórias) e com o livro de contos Au coin des rues, que Pierre Mac Orlan, Max Jacob e Francis Jammes elogiaram em artigos jornalísticos.

Em 1920, sua peça Mon homme, de três atos, escrita em parceria com André Picard, foi encenada no Théâtre de la Renaissance, com música homônima de Maurice Yvain e Albert Willemetz, e o ator Noël Roquevert como protagonista.

 Em prazerosas viagens à Espanha, à Grécia, à Turquia, ao Líbano, à Itália e à Tunísia, o poeta bon vivant dissipava o patrimônio financeiro que sua mulher aportara. Brotavam-lhe novas concepções criativas que proliferaram na intensa produtividade das décadas de 1920 a 1950. O ambiente marginal de Paris é o cenário permanente de sua obra em prosa ou em verso.

No romance L’homme traqué, de 1922, Carco relata, com maestria, o terrível conflito existencial de um indivíduo acossado pelo remorso. A narrativa impressiona pela capacidade de infundir, por empatia, na mente do leitor, a tensão psicológica vivida pelos personagens. Faço aqui um resumo da estória, que os críticos consideram, com toda razão, de alto teor dostoievskiano.

Lampieur, o padeiro que matou uma velha concierge para
roubar-lhe o dinheiro, fazia pouco caso de seu delito. Começou, no entanto, a preocupar-se quando foi informado pelo taberneiro Fouasse de que a polícia estava investigando o crime da rue Saint-Denis, e que uma mulher sabia do sucedido. Para o excelente funcionário Lampieur, sua cúmplice poderia ser Léontine, uma das garotas que ofereciam seus serviços no Quartier des Halles e que o observava com olhar suspeito no bar que ele frequentava.

Em sua obsessão, Lampieur força uma aproximação com a moça. Embora assustada, ela o acompanha pela rue des Prêcheurs, onde há uma barreira policial. Lampieur e Leontine bebem e conversam. Pela agressividade demonstrada por Lampieur, Léontine teve a convicção de que ele era efetivamente o autor do crime. Num jogo de mútua desconfiança, passam a viver juntos, no subterrâneo da boulangerie, local de trabalho e de residência de Lampieur.

Aquele casal sui generis, que se despreza reciprocamente e se enleia no mesmo tormento, é visto no boulevard de Sébastopol. Ele, com o prazer de se vingar de seus males. Ela, vítima da sádica tirania de um homem que lhe estragara a vida. Na cama, nem se falam. Nos bares, bebem na mesma mesa, em silêncio. Leontine sofre ao recordar o tempo em que fora quase feliz, antes da morte de seu filho. Tenta convencer seu companheiro de amarguras a fugirem dali. Lampieur se recusa, conquanto veja armadilhas por toda parte.

No arremate da narrativa, Carco confirma seu talento de representar a condição de uma criatura atormentada. Conduz-nos à presença de um ser intimamente supliciado, mortificado pelo delírio do remorso. Abandonado por sua confidente, o anti-herói traqué se deprime tanto, que sente horror de si mesmo. Decai a tal ponto, que imerge no mais fundo abismo do desespero. No cúmulo da angústia, deambula, trôpego, em frente ao local de seu delito, assustando a vizinhança, que ameaça apelar para a polícia. Em seguida, Lampieur procura Léontine pelo boulevard de Sébastopol e pela rue Saint-Denis e, quando a encontra, tenta reatar a amizade e convencê-la a partirem juntos. Ela diz que partirá sozinha e o adverte de que a situação é irremediável. Quando a polícia o captura, Lampieur se deixa algemar sem resistência, enquanto Léontine chora em silêncio.

É incrível como um poeta boêmio, que cantava nos bares, teve disciplina para elaborar uma obra tão vasta e significativa no gênero ficcional. Conquanto não tenha descuidado o estro lírico, a obra romanesca de Francis Carco supera em número a poética.

Não é por acaso que Carco considerava Brumes o seu melhor romance. Essa estória, que protagoniza a marginália das brumosas ruas do porto de Anvers, na Bélgica, tem requintes de fábula grotesca. Os tipos implacáveis da criação ficcional de Carco – proxenetas, prostitutas, traficantes, homicidas, entre outros párias – frequentam o sórdido cabaré do holandês Feempje, que fora policial e matara seu pai. Feempje tornara-se arruaceiro e violento por causa de uma namorada que o desprezara em Amsterdam. Tivera a mão amputada, após uma rixa mortal com seu rival. Com um gancho de ferro, Feempje impõe sua lei sobre os convivas de má reputação que rodeiam aquele ambiente de embarcações e marujos. Desconfia que sua amante Flossie, bailarina de seu cabaret, tem um caso com o pianista e cozinheiro belga Edgar. Ao suspeitar que Edgar engravidara Flossie, com ânimo belicoso, Feempje se dispõe a trucidar o rival.

Num tempo em que a peste grassava, morrem quatro personagens: Lulu-la-Parisienne, a protegida do cafetão François-le-Balafré e dois clientes da mère Koetge, que vendia cocaína às meninas da rue des Bouchers e mantinha submisso seu amante, o velho Lionel Poop, atormentador de mulheres (duas já se haviam suicidado por sua causa).

O belga Edgar reclama da violência com que o holandês Feempje trata a própria mulher. O holandês protesta que a mulher é sua e avança com seu gancho. Balafré, presente ao transe, tenta acalmá-lo, mas a briga é inevitável. Edgar e Balafré derrubam Feempje. Ele desmaia. Abrem o quarto de Flossie e a veem morta.

A contenda violenta termina na delegacia, onde prestam depoimento Poop, com a mão enfaixada por um acidente, e a velha Koetge, chorando.

Li, comprado na livraria em frente ao Palais-Royal, a edição original de Nuits de Paris, datada de 14 de fevereiro de 1926. Nesse livro de memórias no formato de crônica, Carco evoca os tempos idílicos em que percorria a place Pigalle, sentindo-lhe os perfumes e outras delícias étonnantes. Montmartre, durante o dia, diz ele, dava a impressão de uma cidade entrincheirada. À noite, porém, as boites célebres da rue Pigalle estavam habilmente camufladas.

Seu prazer era deambular e observar os clientes dos bares noturnos de Montmartre. Ao lamentar que talvez fosse ele o transeunte que, dentre todos, se recolheria primeiro a casa, iça a bandeira da nostalgia dos tempos de Aristide Bruant, cujas canções exaltavam a miséria das ruas, sob a chuva de inverno. Aristide vestia casaco negro, calçava botas e mancava, em razão de uma perna estropiada. Mantinha, todavia, o entusiasmo e a força de alguém cuja glória correra mundo. A ginga de sua poesia hipnotizava o público. Seus fãs, fascinados, o aplaudiam sob as luminárias rubras das tabernas.

Carco confessa que sentia pela rua um prazer vivo e cotidiano. Precisava caminhar pelos quartiers, dispersivamente, para sentir-se liberto de suas inquietudes. Tinha uma misteriosa impressão de ter vivido diversas existências sucessivas épuisées sans jamais me rendre compte. Essa sensação lhe provocava desgosto, e o remédio era deixar-se levar pelo singular atrativo dos bares e das maisons publiques. Deixar-se comover pelo acordeão, que ressoa inebriante, pela solidão do velho pobre, junto ao metrô Barbès e pelo desatino dos vadios de mãos nos bolsos e bagana nos lábios.

O boulevard de la Chapelle faz-lhe recordar o Assommoir, que Zola situou nessa área de Paris, próximo aos pavilhões sombrios do hospital Lariboisière, que se avista, além da fumaça dos trens da gare du Nord.

Carco evoca o fenômeno da prostituição, no baile noturno do faubourg Saint-Martin, animado por acordeão e banjo. Tocado pelo gosto secreto e o charme amargo dessa inquieta sensibilidade que a noite suscita, Carco sucumbia à tentação de buscar as prometeuses nocturnes, de lábios vermelhos, mulheres errantes que cantarolavam um refrão e, sem desgosto nem vergonha de nada, se dirigiam a cada homem que encontravam.

Em meio a esse teatro de múltiplas distrações, ele recorda o cabaret Le Jockey, de violenta luz elétrica e cortinas róseas, que ocultavam seu interior. Encontrava ali o poeta Mac Orlan. Evoca, também, o metrô de alta galeria de ramas iluminadas, no quartier charmant do boulevard de la Villette. A água fria e espessa do canal Saint-Martin espelhava a imagem de uma presença dissimulada e expandia uma inquieta desolação.

Sob os amplos tetos de Halles, tudo era motivo de perplexidade: os toldos luzentes, os grandes pavilhões sonoros, as luzes, que dão à cidade um aspecto feérico, as laranjas exalando um odor de éter no ambiente, os jardins molhados, as carnes, as pilhas de cestas e caixotes, os comerciantes de roupas, servindo seus clientes em porções medidas, e a miséria humana, na figura dos carregadores oprimidos sob suas cargas.

Na rive gauche, que Carco considera lointaine, La Taverne de l’Olympia, na avenue de Wagram, tinha bailes a que compareciam joviais e sorridentes mulheres. Tudo ali respirava um frenesi dissimulado. Os casais dançavam em contorções que negligenciavam toda decência em benefício do prazer.

No Caf’ Conc’ da rue Biot, o cantor Félix Mayol gozava de um prestígio imenso junto aos seus admiradores. Era uma criatura encantadora, apesar da barriga proeminente, dos braços curtinhos, do toupet de cabelos artificiais e da voz fatigada. O público lhe pedia, delirando, que cantasse Cousine ou L’Petit coiffeur ou Les mains de femmes.

O tom de melancolia das palavras de Francis Carco não ofusca o entusiasmo com que ele reverencia os lugares memoráveis de Paris.

Viajor incansável, Carco foi dar uma conferência em Alexandria, em 1933, e lá conheceu Eliane Négrin. O namoro engrenou de imediato. Ela deixou o marido, o empresário egípcio Nissim Aghion, e os três filhos. Carco se divorciou de Germaine Jarrel. O casal passou a coabitar, em Montmartre, em fevereiro de 1936.

O horror da guerra assola a Europa, e Eliane, de origem judia, é suscetível de perseguição pelo Estado francês sob as ordens alemãs. Carco havia desafiado Hitler, em 1939, assinando, com os romancistas Roland Dorgèles e Pierre Benoit, um telegrama desaforado, na ocasião do cinquentenário do ditador genocida. Os três desejaram a Hitler um bom aniversário, à condition que ce soit le dernier. Nessas perigosas condições, exilar-se de Paris era uma questão de sobrevivência.

A itinerância de Francis Carco prossegue, em 1942, quando ele peregrina num trajeto que inclui Rodez, Lyon, Nice e Genebra, cidades onde ganha algum trocado, cantando nas brasseries. Na Suíça, encontra os amigos Maurice Barraud, pintor que ilustrou seu livro Au coin des rues, e Jean Graven, poeta e eminente advogado.

Em 1944, depois de cinco anos de ausência, ele revê a paisagem do Sena e chora de emoção. Tanta mudança o deixa perplexo: Montmartre coberto de pedras, amigos mortos, fontes secas, moinhos destroçados, o baile do Moulin de la Galette proscrito; sequer os mendigos cantavam velhas canções de Bruant. Da rue Douai, onde se havia instalado, muda-se para o no 79 do quai d’Orsay.

Vou de Auteil ao quai d’Orsay pela margem do Sena, que parece desfilar diante das árvores e dos edifícios. Vejo, de perto, o formoso esquema de metal da torre Eiffel. A ponte d’Iena dá a impressão de quase passar por baixo dos quatro pés da estrutura de raízes de ferro da torre. O elegante edifício, onde o boêmio Carco morou, tem aspecto moderno, com fachada ampla e clara e grandes janelas, com pequenos balcões. No tempo do poeta, não havia, obviamente, esse movimento intenso de carros nas duas direções do quai d’Orsay. O autor de De Montmartre au Quartier Latin (1927) tinha o bom gosto de morar com vista para o rio e cantar os jardins da catedral de Paris.

Francis Carco louvou Paris desde a primeira vez que a contemplou. Veja-se este poema, Au pied des tours de Notre-Dame, publicado em Mortefontaine, suite nervalienne, em 1947, e musicado por Charles Dumont:

 

Au pied des tours de Notre-Dame la Seine

         Coule entre les quais.

Ah! Le gai, le joli muguet!

Qui n’a pas son petit bouquet?

Allons, fleurissez-vous, mesdames?

Mais c’ était toi j’évoquais

Sur le parvis de Notre-Dame

N’y reviendras-tu donc jamais?

Voici le charmant mois de mai.

Dans le jardin du Luxembourg,

Les fueilles tombent par centaines

Et j’ entends battre le tambour

Tout en courant la prétentaine

Parmi des combres incertaines

Qui me rappellent mes amours.

 

Os perfumes se reúnem no zênite do dia para que a atmosfera cante um hino, abençoando o ar e todos os seres nele imersos. Nos espaços auspiciosos, coroados de cintilações entre as pontes do rio Sena, dedico o fulgor nervoso destas palavras irrefletidas. Île Saint-Louis, contigo vou aonde me levem as sensações!

O céu gris é a bandeira lírica de Paris. Há na cidade uma delicada boemia subliminar. Perto da água, a cidade mostra os telhados escuros, as filigranas das pontes e o fluir do rio sobre a leveza do tempo. Perto da água, onde outrora passearam os poetas que cruzaram a ponte para ir a Montparnasse, flanar é um ato sublime. Os palácios são arautos do rio, que exubera a sua água lustral, entre os arcos elegantes.

Caminho pela Pont Marie e ouso escrever: la cloche sonne comme une tendresse ancienne. Entre ce soir qui flotte et le rêve qui chante, le ciel blêmit au lointain. A voz do vento na chuva intermitente é uma canção que chora nas folhas. A tarde se dissipa no frio crepuscular. Notre-Dame mostra sua torre gótica, retangular. A luxúria rítmica dos barcos arrefece o estardalhaço das ruas. A água bailarina, de tranças anímicas, parece hipnotizar as gaivotas rasantes e os salgueiros murmurantes da Pont de Sully.

É um regozijo ficar só, num recanto silencioso, entre duas pontes de ornamentados arcos, espreitando a fluidez da água que reflete as cores de um claro dia. Em seu fluxo ondulatório, la Seine escorre, realçando a beleza arquitetural de Paris. Um banco de pedra empoeirado se transforma no altar do culto que celebro, na religião da perplexidade e do encantamento. E o melhor louvor de Paris pode ser este de ver os pássaros, refugiado dos estrídulos que ressoam em ultrapasse a estas margens calmas e acolhedoras.

A contribuição de Carco para o cancioneiro popular francês é das mais relevantes. Ele compôs cerca de 250 canções para grandes intérpretes da música francesa. Menciono alguns exemplos dos grandes sucessos que seus poemas alcançaram, como Le doux caboulot e Chanson tendre. O primeiro foi musicado por Jacques Larmanjat e cantado por Marie Dubas em 1931, e por Jean Sablon e Suzy Solidor em 1935. O segundo, com música de Jacques Larmanjat, teve também repercussão na voz Fréhel em 1935. L’Orgue des amoureux, com música de Varel et Bailly, fez sucesso na voz de Édith Piaf em 1949.

Subi a montanha, pelas escadarias da basílica de Sacré-Coeur. Andar no alto da colina de Montmartre é uma experiência incrível. A basílica é um formidável ícone erguido, com o Cristo estampado na fachada e a cúpula redonda, coroada de seu pináculo esplêndido. Tem dois reis cavaleiros, espadas em riste, guardando os três portais da entrada.

A place Tertre é a referência inicial da caminhada. A rue Berthe está ao lado. A rue des Saules é uma descida medonha, para quem já subiu ao cimo da elevação. Depois de cruzar a rue de l’Abreuvoir, na esquina da rue Saint-Vincent, surge o Lapin Agile. Preencho de alegrias o coração, ao avistar esse conservatório vivo da canção francesa, cabaré que favoreceu a eclosão de novos talentos. Artistas capazes de cantar sem microfone. O ambiente tem a atmosfera das veillées d’autrefois. Não é restaurante. É um cabaret artistique, onde somente a bebida é servida durante os espetáculos. Em plena ladeira, num cantinho entre duas ruas, o Lapin Agile é um chalé de janelas verdes, telhado íngreme e paredes amarelas, decoradas de plantas trepadeiras e de um mural jocoso, em que aparece um coelho de chapéu, conduzindo uma garrafa e deslizando o pé numa panela. Tem ao redor um cercadinho folclórico de madeira, que lhe dá um ar de escola infantil. Realça sua chaminé branca como um farol que orienta os transeuntes naqueles encantados jardins amuralhados. Estabelecido em 1913, por Aristide Bruant, o Lapin Agile foi lugar privilegiado da boemia artística do século XX, nos tempos de Max Jacob, Picasso, Roland Dorgèles, Francis Carco, Blaise Cendrars e Pierre Mac Orlan.

Fotografo o imóvel, por todos os ângulos, e dou risadas de contentamento. Um corvo galhardo grasna nas ressecadas galharias. Faz-me imenso bem o ar que respiro.

Subo ao Sacré-Coeur ainda uma vez. Contorno o colosso circular, ao redor do pedestal majestoso da torre e desço daquela altura panorâmica. Num quiosque de turismo, tomo um café sagrado, que me reanima a seguir na trajetória dos poetas visionários.

 Ocorre-me agora a pitoresca letra da canção Rue Berthe, do fabuloso Bruant, que se refere diretamente a essa região parisiense. Igualmente, lembro-me da Chanson tendre, que, na voz gutural de Francis Carco, tem um charme indizível. É um encanto de melodia, ao som de acordeão e piano. Eu a escuto de tempos em tempos num disco produzido pela Radio France, com coleções de poemas, recitados ou cantados pelos próprios autores. As rimas sucessivas e a entonação nostálgica produzem a sensação de um lirismo pleno de saudade e melancolia. O final irreverente denota o seu impecável sentido de humor:

 

En souvenir de nos vingt ans

Par ce beau matin de printemps,

J’ai voulu revoir tout là-bas,

L’auberge au milieu des lilas.

On entendait dans les branches,

Les oiseaux chanter dimanche

Et ta chaste robe blanche,

Paraissait guider mes pas.

  (…)

Mais rien n’était à sa place

Je suis resté, tête basse,

À ma faire dans la glace

Face à face

La grimace...

Enfin j’ai poussé la porte

Que m’importe

N. I. Ni

C’est fini.

Pourtant quand descendit le soir

Je suis venu tout seul m’asseoir

Sur le banc de bois vermoulu

Où tu ne revins jamais plus.

Tu me paraissais plus belle,

Plus charmante, plus cruelle

Qu’aucune de toutes celles

pour qui mon coeur a battu.

Tout avait l’air à sa place

Même ton nom sur la glace

Quoi qu’on fasse

Toute trace…

Puis avec un pauvre rire

J’ai cru lire:

Après tout,

On s’en fout.

 

Dentre as maravilhas de minha coleção de poemas musicados, escuto, frequentemente, na voz de tenor do fantástico Jean Ferrat, a linda elegia que Louis Aragon escreveu em memória de Francis Carco.

No dia 1º de setembro de 2019, vou à Île Saint-Louis, recanto
sereno onde me faço acompanhar das gaivotas. Barcos discorrem, deixando seus rastos de espuma. As pequenas folhas se alegram com o vento que as desperta. Aparece um grande barco, que se chama Capitaine Fracasse, título de um romance de Théophile Gautier. Os comensais nele se deleitam, flutuando, enquanto se alimentam.

O Sena ondula na trajetória da sua correnteza. Recosto-me nas altas paredes da Rive Gauche. Deixo que o tempo decorra. Deito-me na pedra fria de um banco, à raiz do quai d'Anjou. No refúgio que a turbamulta não perturba, Paris me permite um repouso contemplativo.

Ocioso, com uma prazerosa preguiça, vejo, do outro lado, na Rive Droite, os ruidosos carros que passam. Sobre a calçada da margem do rio, alguns diletantes tomam banho de sol. O domingo lhes entrega essa dádiva, e o advento de setembro refresca a tarde neste momento de harmonia. Nuvens se escondem por trás dos prédios do Marais, de onde vim assistir ao frêmito verde do Sena. Vim sonhar à luz dos seus reflexos.

Cruzo a ilha pela rue Poulletier para chegar ao quai de Béthune. Avisto a placa de letras desbotadas, onde se avisa que ali, no número 18, morou Francis Carco, de 1948 a 1958, no período final de sua existência.

Mais adiante, onde estaria o número 10 do quai de Béthune, existiu uma das residências de Baudelaire. O número 10 já não existe. Tendo sido renumerada, a rua termina no número 12, em frente à Ponte de Sully e na esquina com o boulevard Henri IV.

Ao voltar em direção a rue Le Regrattier, avisto no alto as torres de Notre-Dame, com os andaimes metálicos de sua reconstrução.

Em Ombres vivantes (1947), Francis Carco evoca o exílio e os mortos da guerra, entre os quais seu grande amigo Max Jacob. Em 1948, Carco instala-se no quai de Béthune, 48. Escreve, então, seus derradeiros livros, na década de 1950: Romance de Paris (poesia), em 1950, Compagnons de la mauvaise chance (1954) e mais dois autobiográficos: Francis Carco vous parle (1953) e Rendez-vous avec moi-même (1957).

Em seu Romance de Paris, a cidade dos amores do poeta é ainda o tema central. São os ícones do imaginário de Carco: Os moulins de Montmartre, os bals musette, sob os auspícios de um accordéon, a nave da Cité, com seu castelo de duas torres, Notre-Dame e o mastro da Sainte Chapelle.

 Neste excerto, extraído do poema Montmartre, do livro La bohème et mon coeur, escrito em sua juventude, nota-se quão afetuosamente François Carco teceu loas aos recantos idílicos de sua juventude. Seu coração boêmio se se consolava da nostalgia com os reflexos da manhã dourada nas vidraças das janelas:

 

Montmartre a connu d’autres jeux

D’autres voix, d’autres rires jeunes,

Mais cela n’ importe, le jaune

Matin brille dans les carreaux.

 

O traço marcante de sua poesia é essa nostalgia sublimada e generosa que exala puro sentimento. Carco mostrou-se fiel aos sortilégios de Paris, chorou a juventude que passa pelo dia como as esperanças incertas transitam pela vida. Veja-se nessa estrofe do poema À l’amitié, do livro Petite Suite Sentimentale (1923), o lamento de Carco a respeito as duvidosas esperanças que esmaecem, qual penumbra depois do esplendor da mocidade boêmia:

 

Folle bohème, ô ma jeunesse

Qui t’ en vas par ce froid matin,

En attendant que le jour naisse,

Qu’ as tu fait de tant de promesses

Et de tant d’ espoirs incertains,

De Montmartre au quartier Latin?

 

Numa iluminada tarde invernal, o sino de Notre-Dame anuncia que o instante passa e só restará a graciosa memória desta hora de alumbramento. Meditar é um convite ao exercício da literatura contemplativa. A beleza da paisagem inspira-me a viajar ao reino das palavras. Todo o mistério consiste em que a beleza é, a um tempo, efêmera e eterna.

O escritor das classes perigosas (no dizer de Julien Green), recebeu em vida relevantes reconhecimentos como a eleição para a Académie Goncourt, a comenda de cavaleiro da Légion d’honneur e o Grand Prix de poésie de la Ville de Paris. [Após seu falecimento, a passage de la Goutte-d'Or, no 18º arrondissement, foi denominada rue Francis Carco.

Francis Carco era primo do historiador Jérôme Carcopino, e irmão de Jean Marèze, poeta e autor de famosas canções, como Sombre dimanche, Escale, entre outras. Nos dias finais de sua existência, Carco sofria do mal de Parkinson. Conta-se que, no dia 26 de maio de 1958, às 20 horas, momento em que faleceu, passava sob suas janelas a Guarda Republicana, tocando L’Ajaccienne (a canção que enaltece os Bonapartes e tem como refrão les exilés sont de retour). Francis Carco foi inumado no cemitério de Bagneaux, ao lado de seu irmão, Jean Marèze, que se suicidou em 1942. Sua segunda mulher, Éliane Négrin, falecida em 1970, também repousa naquele campo santo.

 

 

 

MÁRCIO CATUNDA (Brasil, 1957). Escritor e diplomata. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu mais de quarenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais em espanhol. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021), que recebeu em seu ano de publicação o Prêmio Cecília Meyreles, da União Brasileira de Escritores, no Rio de Janeiro.

 

 

BRIDGET BATE TICHENOR (França, 1917-1990). Artista fascinante, foi também editora de moda. Sua pintura, ligada ao Surrealismo, sua biografia inclui momentos em que foi modelo de Man Ray, uma paixão que despertou em Anaïs Nin, a casa que dividia com Peggy Guggenheim e seu interesse por ocultismo, magia e alquimia. Quando conheceu o México identificou o país como o lugar sagrado de sua morada, assim como foi intensa a amizade com Leonora Carrington, Remedios Varo, Kati Horna e Alice Rahon, que ali já residiam. Metafísica e misticismo se revelaram como temas característicos de sua linguagem pictórica, o que a levou também a Roma, onde realizou uma série de pinturas intitulada Máscaras, Guias Espirituais e Divindades Duplas.

 



Agulha Revista de Cultura

Número 225 | março de 2023

Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023

 


∞ contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário