Seu obstinado pai o envia a Nice, à casa de sua avó, para que ele se concentre
nos estudos do baccalauréat. É quando
Carco publica seus primeiros poemas em revistas literárias de Marseille, Toulouse
e Bruges. Em 1906 e 1907, seu paradeiro foi Rodez, onde ele estuda para concursos
administrativos. O pai insiste em que o rapaz deveria trabalhar e lhe arranja um
emprego de bedel no liceu de Agen. O jovem bedel, frequentador
de cabarés, terminou expulso do colégio, por haver levado os alunos a conhecer um
bordel. O pai tirano aperta o cerco contra a carreira artística do filho que escandalizava
a moral da burguesia provinciana.
Eis
que, em 1908 e 1909, o serviço militar se interpõe como um estorvo na vida de Carco.
Ele jamais abandonaria o prazer de suas festivas noites, numa das quais é preso
pela polícia militar, em Orange, quando dançava fardado num baile considerado indecente.
Farto de tantos empecilhos ao essencial, que para ele era a literatura, livrou-se,
por fim, do exército, na adequada patente de cabo. Ao mesmo tempo, recusou um posto
de trabalho na Compagnie des Eaux em Bayeux.
Partiu, finalmente, com destino a Paris para abraçar a Belle Époque com a ânsia
natural de um verdadeiro artista.
O
ano do seu grito de independência é 1910. Livre da tutela
do pai, ele desembarca na gare de Saint-Lazare e vai-se hospedar no hôtel
Pimodan, aquele da legenda baudelairiana. O preço da diária, no entanto, só lhe
permite uma breve permanência naquela tradicional hospedaria. Além disso, seu ídolo
Charles-Philippe, de quem ele esperava alguma ajuda no mundo das letras, já não
vivia no número 45 do quai d’Anjou, pois falecera havia pouco. Carco se hospeda
então na casa do poeta Édouard Gazanion, na rue Caulaincourt, nº 67, próximo à Butte
Montmartre. Quando seu anfitrião viaja e lhe confia o apartamento, Carco, faminto,
vende alguns móveis da residência e se evade, para hospedar-se em espeluncas úmidas.
Passa então a furtar croissants e garrafas
de leite das escadas das casas burguesas.
Ao buscar os círculos literários de Montmartre, Carco descobre
o café-cabaret Lapin Agile, onde se apresenta como cantor, interpreta uma canção
de Aristide Bruant, e é convidado por Pierre Mac Orlan para compor a mesa, juntamente
com André Salmon, Pablo Picasso, Apollinaire e Max Jacob. Sendo que Max Jacob se
tornaria depois seu companheiro de aflitiva miséria.
Vinculado à elite artística de Paris, Carco não deixava de ser visto
pela rue Lepic e pela place Pigalle, não com ostentação de intelectual cortejado,
porém qual mendigo, tremendo de frio e roendo um pão seco. A pobreza vivida serviria
de cenário para a caracterização de seus personagens, habitantes das ruas sombrias
daquele enfer bigarré de Montmartre.
Pouco
depois, Carco trabalhou na gráfica do impressor François Bernouard e ocupou uma
chambre meublé no quai de Bourbon, nº
49. Foi nesse tempo que lhe vieram à prodigiosa mente os versos de La bohême
et mon cœur, escrito na trilha visionária de Verlaine e publicado em 1912.
A birra paterna foi seu melhor incentivo. Carco mantém correspondência com Tristan Derène, de Agen, Léon Vérane (de Toulouse),
Jean Pellerin (de Grenoble) e Jean-Marc Bernard (de Valence). Funda,
com o apoio deles, a École Fantaisiste,
que primava pelo humor de delicada ironia. Com
esses parceiros, cria a revista Pan em
Montpellier.
Poeta, crítico de arte, romancista, contista, compositor e cantor, Carco colaborava nas revistas L’Homme libre e Gil
Blas para sobreviver. Certo dia, como num golpe de sorte, ele canta canções
ciganas e marselhesas no casamento da filha de Paul Fort. A esposa do editor de
Mercure de France, Madame Rachilde, gostou
tanto da peripécia do poeta que lhe pediu um texto original para a sua prestigiosa
revista literária. Assim foi publicado seu primeiro romance, Jésus-la-Caille, a história de um opiômano
e homossexual, que Francis Carco dizia ser pura autobiografia. Como ele próprio,
seu personagem é um tipo do bas-fond,
que anda pelo boulevard de Clichy, pela rue Fontaine e pela rue Pigalle, em meio
à crapule dépravé. Jésus-la-Caille, como todos os seus romances,
documenta a época dos proxenetas bandoleiros. É a narrativa
do amor frustrado da aventureira Fernande, moradora da rue Lepic, mantida pelo corso
Dominique.
Por seus personagens, heróis de pouco caráter, impingiram a Carco a alcunha
de romancista da marginália ou romancier des apaches. Ele definia sua obra como un romantisme plaintif où l’exotisme se mêle
au merveilleux avec une nuance d’humour et désenchantement. Vinham da infância em Nouméa as imagens marítimas que afloravam em seus romances,
com as lembranças dos tipos humanos que conhecera nas tabernas de sua cidade natal:
prostitutas, marginais, crianças maltratadas e outros que vivem os dramas sensíveis
da condição humana.
Ao ler Les innocents, o segundo
romance de Francis Carco, de 1916, o rico Paul Bourget, romancista e crítico literário,
torna-se seu mecenas. O poeta pôde, então, pagar as contas do gás e do alfaiate,
deixar-se fotografar nos lupanares e vagabundear pelos estaminets de La Chapelle, bebendo vinho de Bourgogne, onde quer que
ressoassem acordeons e sorrissem belas mulheres. Com a mellhoria financeira, ele
adquire uma casa em Cormeilles-en-Vexin, a 50 quilômetros de Paris, e comercializa,
lucrativamente, obras de arte. Em 1913, depois
de viajar à Córsega, à Inglaterra e à Bélgica, ele volta a Paris e aluga o apartamento do quai aux Fleurs, nº 13, decorado com quadros de Modigliani,
Utrillo, Vlaminck e Dufy, pintores sobre os quais ele escreveria em revistas de
arte.
A
estupidez da guerra, que eclodira em 1914, o obriga a servir em Gray, perto de Besançon
e integrar a escola de pilotos da base aérea de Longvic, próximo a Dijon. No contexto
dessa missão, recebeu a tarefa de distribuir a correspondência dos combatentes.
Para exercitar o estro, Carco escrevia poemas no dorso dos envelopes que distribuía.
E, para amenizar o sofrimento no pavoroso ambiente da guerra, cantava, às noites,
nos caboulots (tascas). A experiência
de combatente lhe valeu a perda de seu irmão Charles, morto na trincheira de Verdun.
Um ferimento no joelho e a convalescença livraram Carco do sufoco de servir como
aprendiz de piloto.
No
regresso ao quai aux Fleurs, conhece a escritora neozelandesa Katherine Mansfield, que passeava em Paris com o marido. Simpatia
mútua e namoro instantâneo. Ela deixa o
marido John Middleton Murry, jornalista inglês, na lista de espera e se consagra
ao poeta, que a acolhe em seu apartamento. A paixão foi vivida naquele ambiente
pitoresco, com vista para as curvas arborizadas do Sena, entre pontes e tetos quadrangulares.
Por desventura, Carco recrutado para nova missão militar em Gray. Ali Mansfield
o visita em 1915. Katherine, que adotava um proceder libertino e autêntico, mantinha
intercursos ambíguos com sua colega, a escritora inglesa Beatrice Hastings. Inspirada
em Carco, Katherine Mansfield criou dois personagens de suas
shot stories: na primeira, An Indiscreet Journey, conto escrito em 1915,
ele é o Little Corporal, namorado da narradora,
com quem ela passa quatro noites em Gray, após viajar de trem, entre os soldados
franceses que partem para a frente de batalha na Primeira Guerra Mundial. No segundo
conto, Carco é o personagem sinistro Raoul Duquette, narrador de Je ne parle pas français, caracterizado como
um tipo sexualmente ambíguo, hedonista e egocêntrico, que se apresenta como escritor
e se prostitui num café de excentricidades. A paixão
desestabilizadora pela escritora neozelandesa quase impulsiona Francis Carco a se
jogar no Sena.
Pelo quai d’Orléans, em direção a Saint-Michel, reluzem as torres de Notre-Dame,
de Saint-Jacques, e o perfil redondo do Panthéon, no horizonte azul e branco. Na
Pont de l’Archevêché, um sanfoneiro cigano modula no acordeon um tema sentimental:
aquele mágico sous le ciel de Paris, que
faz a gente sonhar. Dei uma moeda ao homem de rosto enrugado e vestes surradas,
que, após terminar a canção, exercitava os dedos da mão direita, marcada pelos pontos
de uma operação, e tinha na face uma expressão de dor.
O
quai aux Fleurs, bordado de pontes, tem em seu número 13, um edifício largo, de
paredes e janelas brancas (seis em cada andar), de frente para a fachada lateral
do Hôtel de Ville e o Sena. Os elegantes remorqueurs
flutuantes (ao lado da ponte da Île Saint-Louis) e os retângulos do Hôtel de Ville,
configuram um painel horizontal de rara beleza. Senti uma emoção inédita ao contemplar
a vista que Francis Carco apreciava quando viveu no quai aux Fleurs, no ano de 1913,
a aventura amorosa com sua musa Katherine Mansfield.
Carco
conhece, em 1917, nos corredores do jornal L’Éclair,
a grande dame Colette, com quem viaja
para a Bretagne e se diverte intensamente nos remansos da boemia e nas redações
dos jornais.
Certa
estabilidade existencial permitiu que Francis Carco se casasse, em 1918, com Germaine
Jarrel, que ele conhecera no cabaré Lapin Agile. A obra literária de Carco cresce
nesse período, com o romance L’Équipe,
com Scènes de la vie de Montmartre (memórias)
e com o livro de contos Au coin des rues,
que Pierre Mac Orlan, Max Jacob e Francis Jammes elogiaram em artigos jornalísticos.
Em
1920, sua peça Mon homme, de três atos, escrita em parceria com André Picard,
foi encenada no Théâtre de la Renaissance, com música homônima de Maurice Yvain
e Albert Willemetz, e o ator Noël Roquevert como protagonista.
Em prazerosas viagens à Espanha, à Grécia, à Turquia,
ao Líbano, à Itália e à Tunísia, o poeta bon
vivant dissipava o patrimônio financeiro que sua mulher aportara. Brotavam-lhe
novas concepções criativas que proliferaram na intensa
produtividade das décadas de 1920 a 1950. O ambiente
marginal de Paris é o cenário permanente de sua obra em prosa ou em verso.
No
romance L’homme traqué, de 1922, Carco
relata, com maestria, o terrível conflito existencial de um indivíduo acossado pelo
remorso. A narrativa impressiona pela capacidade de infundir, por empatia, na mente
do leitor, a tensão psicológica vivida pelos personagens. Faço aqui um resumo da
estória, que os críticos consideram, com toda razão, de alto teor dostoievskiano.
Em
sua obsessão, Lampieur força uma aproximação com a moça. Embora assustada, ela o
acompanha pela rue des Prêcheurs, onde há uma barreira policial. Lampieur e Leontine
bebem e conversam. Pela agressividade demonstrada por Lampieur, Léontine teve a
convicção de que ele era efetivamente o autor do crime. Num jogo de mútua desconfiança,
passam a viver juntos, no subterrâneo da boulangerie,
local de trabalho e de residência de Lampieur.
Aquele
casal sui generis, que se despreza reciprocamente
e se enleia no mesmo tormento, é visto no boulevard de Sébastopol. Ele, com o prazer
de se vingar de seus males. Ela, vítima da sádica tirania de um homem que lhe estragara
a vida. Na cama, nem se falam. Nos bares, bebem na mesma mesa, em silêncio. Leontine
sofre ao recordar o tempo em que fora quase feliz, antes da morte de seu filho.
Tenta convencer seu companheiro de amarguras a fugirem dali. Lampieur se recusa,
conquanto veja armadilhas por toda parte.
No
arremate da narrativa, Carco confirma seu talento de representar a condição de uma
criatura atormentada. Conduz-nos à presença de um ser intimamente supliciado, mortificado
pelo delírio do remorso. Abandonado por sua confidente, o anti-herói traqué se deprime tanto, que sente horror
de si mesmo. Decai a tal ponto, que imerge no mais fundo abismo do desespero. No
cúmulo da angústia, deambula, trôpego, em frente ao local de seu delito, assustando
a vizinhança, que ameaça apelar para a polícia. Em seguida, Lampieur procura Léontine
pelo boulevard de Sébastopol e pela rue Saint-Denis e, quando a encontra, tenta
reatar a amizade e convencê-la a partirem juntos. Ela diz que partirá sozinha e
o adverte de que a situação é irremediável. Quando a polícia o captura, Lampieur
se deixa algemar sem resistência, enquanto Léontine chora em silêncio.
É
incrível como um poeta boêmio, que cantava nos bares, teve disciplina para elaborar
uma obra tão vasta e significativa no gênero ficcional. Conquanto não tenha descuidado o estro lírico, a obra romanesca de Francis Carco supera
em número a poética.
Não
é por acaso que Carco considerava Brumes
o seu melhor romance. Essa estória, que protagoniza a marginália das brumosas ruas
do porto de Anvers, na Bélgica, tem requintes de fábula grotesca. Os tipos implacáveis
da criação ficcional de Carco – proxenetas, prostitutas, traficantes, homicidas,
entre outros párias – frequentam o sórdido cabaré do holandês Feempje, que fora
policial e matara seu pai. Feempje tornara-se arruaceiro e violento por causa de
uma namorada que o desprezara em Amsterdam. Tivera a mão amputada, após uma rixa
mortal com seu rival. Com um gancho de ferro, Feempje impõe sua lei sobre os convivas
de má reputação que rodeiam aquele ambiente de embarcações e marujos. Desconfia
que sua amante Flossie, bailarina de seu cabaret, tem um caso com o pianista e cozinheiro
belga Edgar. Ao suspeitar que Edgar engravidara Flossie, com ânimo belicoso, Feempje
se dispõe a trucidar o rival.
Num
tempo em que a peste grassava, morrem quatro personagens: Lulu-la-Parisienne, a
protegida do cafetão François-le-Balafré e dois clientes da mère Koetge, que vendia
cocaína às meninas da rue des Bouchers e mantinha submisso seu amante, o velho Lionel
Poop, atormentador de mulheres (duas já se haviam suicidado por sua causa).
O
belga Edgar reclama da violência com que o holandês Feempje trata a própria mulher.
O holandês protesta que a mulher é sua e avança com seu gancho. Balafré, presente
ao transe, tenta acalmá-lo, mas a briga é inevitável. Edgar e Balafré derrubam Feempje.
Ele desmaia. Abrem o quarto de Flossie e a veem morta.
A
contenda violenta termina na delegacia, onde prestam depoimento Poop, com a mão
enfaixada por um acidente, e a velha Koetge, chorando.
Li,
comprado na livraria em frente ao Palais-Royal, a edição original de Nuits de Paris, datada de 14 de fevereiro
de 1926. Nesse livro de memórias no formato de crônica, Carco evoca os tempos idílicos
em que percorria a place Pigalle, sentindo-lhe os perfumes e outras delícias étonnantes. Montmartre, durante o dia, diz
ele, dava a impressão de uma cidade entrincheirada. À noite, porém, as boites célebres
da rue Pigalle estavam habilmente camufladas.
Seu
prazer era deambular e observar os clientes dos bares noturnos de Montmartre. Ao
lamentar que talvez fosse ele o transeunte que, dentre todos, se recolheria primeiro
a casa, iça a bandeira da nostalgia dos tempos de Aristide Bruant, cujas canções
exaltavam a miséria das ruas, sob a chuva de inverno. Aristide vestia casaco negro,
calçava botas e mancava, em razão de uma perna estropiada. Mantinha, todavia, o
entusiasmo e a força de alguém cuja glória correra mundo. A ginga de sua poesia
hipnotizava o público. Seus fãs, fascinados, o aplaudiam sob as luminárias rubras
das tabernas.
Carco
confessa que sentia pela rua um prazer vivo e cotidiano. Precisava caminhar pelos
quartiers, dispersivamente, para sentir-se liberto de suas inquietudes. Tinha uma
misteriosa impressão de ter vivido diversas existências sucessivas épuisées sans jamais me rendre compte. Essa
sensação lhe provocava desgosto, e o remédio era deixar-se levar pelo singular atrativo
dos bares e das maisons publiques. Deixar-se
comover pelo acordeão, que ressoa inebriante, pela solidão do velho pobre, junto
ao metrô Barbès e pelo desatino dos vadios de mãos nos bolsos e bagana nos lábios.
O
boulevard de la Chapelle faz-lhe recordar o Assommoir,
que Zola situou nessa área de Paris, próximo aos pavilhões sombrios do hospital
Lariboisière, que se avista, além da fumaça dos trens da gare du Nord.
Carco
evoca o fenômeno da prostituição, no baile noturno do faubourg Saint-Martin, animado
por acordeão e banjo. Tocado pelo gosto secreto e o charme amargo dessa inquieta
sensibilidade que a noite suscita, Carco sucumbia à tentação de buscar as prometeuses nocturnes, de lábios vermelhos,
mulheres errantes que cantarolavam um refrão e, sem desgosto nem vergonha de nada,
se dirigiam a cada homem que encontravam.
Em
meio a esse teatro de múltiplas distrações, ele recorda o cabaret Le Jockey, de
violenta luz elétrica e cortinas róseas, que ocultavam seu interior. Encontrava
ali o poeta Mac Orlan. Evoca, também, o metrô de alta galeria de ramas iluminadas,
no quartier charmant do boulevard de la
Villette. A água fria e espessa do canal Saint-Martin espelhava a imagem de uma
presença dissimulada e expandia uma inquieta desolação.
Sob
os amplos tetos de Halles, tudo era motivo de perplexidade: os toldos luzentes,
os grandes pavilhões sonoros, as luzes, que dão à cidade um aspecto feérico, as
laranjas exalando um odor de éter no ambiente, os jardins molhados, as carnes, as
pilhas de cestas e caixotes, os comerciantes de roupas, servindo seus clientes em
porções medidas, e a miséria humana, na figura dos carregadores oprimidos sob suas
cargas.
Na
rive gauche, que Carco considera lointaine,
La Taverne de l’Olympia, na avenue de Wagram, tinha bailes a que compareciam joviais
e sorridentes mulheres. Tudo ali respirava um frenesi dissimulado. Os casais dançavam
em contorções que negligenciavam toda decência em benefício do prazer.
No
Caf’ Conc’ da rue Biot, o cantor Félix Mayol gozava de um prestígio imenso junto
aos seus admiradores. Era uma criatura encantadora, apesar da barriga proeminente,
dos braços curtinhos, do toupet de cabelos
artificiais e da voz fatigada. O público lhe pedia, delirando, que cantasse Cousine ou L’Petit coiffeur ou Les mains
de femmes.
O
tom de melancolia das palavras de Francis Carco não ofusca o entusiasmo com que
ele reverencia os lugares memoráveis de Paris.
Viajor
incansável, Carco foi dar uma conferência em Alexandria, em 1933, e lá conheceu
Eliane Négrin. O namoro engrenou de imediato. Ela deixou o marido, o empresário
egípcio Nissim Aghion, e os três filhos. Carco se divorciou de Germaine Jarrel.
O casal passou a coabitar, em Montmartre, em fevereiro de 1936.
O horror da guerra assola a Europa, e Eliane,
de origem judia, é suscetível de perseguição pelo Estado francês sob as ordens alemãs.
Carco havia desafiado Hitler, em 1939, assinando, com os romancistas Roland Dorgèles
e Pierre Benoit, um telegrama desaforado, na ocasião do cinquentenário do ditador
genocida. Os três desejaram a Hitler um bom aniversário, à condition que ce soit
le dernier. Nessas perigosas condições, exilar-se de Paris era uma questão de
sobrevivência.
A itinerância de Francis Carco prossegue, em 1942, quando ele peregrina num trajeto que inclui Rodez, Lyon,
Nice e Genebra, cidades onde ganha algum trocado, cantando nas brasseries. Na
Suíça, encontra os amigos Maurice Barraud, pintor que
ilustrou seu livro Au coin des rues, e Jean Graven, poeta e eminente advogado.
Em 1944, depois de cinco anos de ausência, ele revê a paisagem do Sena e
chora de emoção. Tanta mudança o deixa perplexo: Montmartre coberto de pedras, amigos
mortos, fontes secas, moinhos destroçados, o baile do Moulin de la Galette proscrito;
sequer os mendigos cantavam velhas canções de Bruant. Da rue Douai, onde se havia
instalado, muda-se para o no 79 do quai d’Orsay.
Vou
de Auteil ao quai d’Orsay pela margem do Sena, que parece desfilar diante das árvores
e dos edifícios. Vejo, de perto, o formoso esquema de metal da torre Eiffel. A ponte
d’Iena dá a impressão de quase passar por baixo dos quatro pés da estrutura de raízes
de ferro da torre. O elegante edifício, onde o boêmio Carco morou, tem aspecto moderno,
com fachada ampla e clara e grandes janelas, com pequenos balcões. No tempo do poeta,
não havia, obviamente, esse movimento intenso de carros nas duas direções do quai
d’Orsay. O autor de De Montmartre au Quartier Latin (1927) tinha o bom gosto de morar com vista para o
rio e cantar os jardins da catedral de Paris.
Francis Carco louvou Paris desde a primeira vez que a contemplou. Veja-se
este poema, Au pied des tours de Notre-Dame,
publicado em Mortefontaine, suite nervalienne,
em 1947, e musicado por Charles Dumont:
Au pied des tours de Notre-Dame la Seine
Coule entre les quais.
Ah! Le gai, le joli muguet!
Qui n’a pas son petit bouquet?
Allons, fleurissez-vous, mesdames?
Mais c’ était toi j’évoquais
Sur le parvis de Notre-Dame
N’y reviendras-tu donc jamais?
Voici le charmant mois de mai.
Dans le jardin du Luxembourg,
Les fueilles tombent par centaines
Et j’ entends battre le tambour
Tout en courant la prétentaine
Parmi des combres incertaines
Qui me rappellent mes amours.
Os
perfumes se reúnem no zênite do dia para que a atmosfera cante um hino, abençoando
o ar e todos os seres nele imersos. Nos espaços auspiciosos, coroados de cintilações
entre as pontes do rio Sena, dedico o fulgor nervoso destas palavras irrefletidas.
Île Saint-Louis, contigo vou aonde me levem as sensações!
O
céu gris é a bandeira lírica de Paris. Há na cidade uma delicada boemia subliminar.
Perto da água, a cidade mostra os telhados escuros, as filigranas das pontes e o
fluir do rio sobre a leveza do tempo. Perto da água, onde outrora passearam os poetas
que cruzaram a ponte para ir a Montparnasse, flanar é um ato sublime. Os palácios
são arautos do rio, que exubera a sua água lustral, entre os arcos elegantes.
Caminho
pela Pont Marie e ouso escrever: la cloche sonne comme une tendresse ancienne. Entre
ce soir qui flotte et le rêve qui chante, le ciel blêmit au lointain. A
voz do vento na chuva intermitente é uma canção que chora nas folhas. A tarde se
dissipa no frio crepuscular. Notre-Dame mostra sua torre gótica, retangular. A luxúria
rítmica dos barcos arrefece o estardalhaço das ruas. A água bailarina, de tranças
anímicas, parece hipnotizar as gaivotas rasantes e os salgueiros murmurantes da
Pont de Sully.
É um regozijo ficar só, num recanto silencioso, entre duas pontes de ornamentados
arcos, espreitando a fluidez da água que reflete as cores de um claro dia. Em seu
fluxo ondulatório, la Seine escorre, realçando a beleza arquitetural de Paris. Um
banco de pedra empoeirado se transforma no altar do culto que celebro, na religião
da perplexidade e do encantamento. E o melhor louvor de Paris pode ser este de ver
os pássaros, refugiado dos estrídulos que ressoam em ultrapasse a estas margens
calmas e acolhedoras.
A contribuição de Carco para o cancioneiro popular francês é das mais relevantes.
Ele compôs cerca de 250 canções para grandes intérpretes da música francesa. Menciono
alguns exemplos dos grandes sucessos que seus poemas alcançaram, como Le doux
caboulot e Chanson tendre.
O primeiro foi musicado por Jacques Larmanjat e cantado por Marie Dubas em 1931,
e por Jean Sablon e Suzy Solidor em 1935. O segundo, com música de Jacques Larmanjat,
teve também repercussão na voz Fréhel em 1935. L’Orgue des amoureux, com
música de Varel et Bailly, fez sucesso na voz de Édith Piaf em 1949.
Subi
a montanha, pelas escadarias da basílica de Sacré-Coeur. Andar no alto da colina
de Montmartre é uma experiência incrível. A basílica é um formidável ícone erguido,
com o Cristo estampado na fachada e a cúpula redonda, coroada de seu pináculo esplêndido.
Tem dois reis cavaleiros, espadas em riste, guardando os três portais da entrada.
A
place Tertre é a referência inicial da caminhada. A rue Berthe está ao lado. A rue
des Saules é uma descida medonha, para quem já subiu ao cimo da elevação. Depois
de cruzar a rue de l’Abreuvoir, na esquina da rue Saint-Vincent, surge o Lapin Agile.
Preencho de alegrias o coração, ao avistar esse conservatório vivo da canção francesa,
cabaré que favoreceu a eclosão de novos talentos. Artistas capazes de cantar sem
microfone. O ambiente tem a atmosfera das veillées
d’autrefois. Não é restaurante. É um cabaret
artistique, onde somente a bebida é servida durante os espetáculos. Em plena
ladeira, num cantinho entre duas ruas, o Lapin Agile é um chalé de janelas verdes,
telhado íngreme e paredes amarelas, decoradas de plantas trepadeiras e de um mural
jocoso, em que aparece um coelho de chapéu, conduzindo uma garrafa e deslizando
o pé numa panela. Tem ao redor um cercadinho folclórico de madeira, que lhe dá um
ar de escola infantil. Realça sua chaminé branca como um farol que orienta os transeuntes
naqueles encantados jardins amuralhados. Estabelecido em 1913, por Aristide Bruant,
o Lapin Agile foi lugar privilegiado da boemia artística do século XX, nos tempos
de Max Jacob, Picasso, Roland Dorgèles, Francis Carco, Blaise Cendrars e Pierre
Mac Orlan.
Fotografo
o imóvel, por todos os ângulos, e dou risadas de contentamento. Um corvo galhardo
grasna nas ressecadas galharias. Faz-me imenso bem o ar que respiro.
Subo
ao Sacré-Coeur ainda uma vez. Contorno o colosso circular, ao redor do pedestal
majestoso da torre e desço daquela altura panorâmica. Num quiosque de turismo, tomo
um café sagrado, que me reanima a seguir na trajetória dos poetas visionários.
Ocorre-me agora a pitoresca letra da canção Rue
Berthe, do fabuloso Bruant, que se refere diretamente a essa região parisiense.
Igualmente, lembro-me da Chanson tendre, que, na voz gutural de Francis Carco, tem
um charme indizível. É um encanto de melodia, ao som de acordeão e piano. Eu a escuto
de tempos em tempos num disco produzido pela Radio France, com coleções de poemas,
recitados ou cantados pelos próprios autores. As rimas sucessivas e a entonação
nostálgica produzem a sensação de um lirismo pleno de saudade e melancolia. O final
irreverente denota o seu impecável sentido de humor:
En souvenir de nos vingt ans
Par ce beau matin de printemps,
J’ai voulu revoir tout là-bas,
L’auberge au milieu des lilas.
On entendait dans les branches,
Les oiseaux chanter dimanche
Et ta chaste robe blanche,
Paraissait guider mes pas.
(…)
Mais rien n’était à sa place
Je suis resté, tête basse,
À ma faire dans la glace
Face à face
La grimace...
Enfin j’ai poussé la porte
Que m’importe
N. I. Ni
C’est fini.
Pourtant quand descendit le
soir
Je suis venu tout seul m’asseoir
Sur le banc de bois vermoulu
Où tu ne revins jamais plus.
Tu me paraissais plus belle,
Plus charmante, plus cruelle
Qu’aucune de toutes celles
pour qui mon coeur a battu.
Tout avait l’air à sa place
Même ton nom sur la glace
Quoi qu’on fasse
Toute trace…
Puis avec un pauvre rire
J’ai cru lire:
Après tout,
On s’en fout.
Dentre as maravilhas de minha coleção de poemas musicados, escuto, frequentemente,
na voz de tenor do fantástico Jean Ferrat, a linda elegia que Louis Aragon
escreveu em memória de Francis Carco.
O Sena ondula na trajetória da sua correnteza. Recosto-me nas altas paredes
da Rive Gauche. Deixo que o tempo decorra. Deito-me na pedra fria de um banco, à
raiz do quai d'Anjou. No refúgio que a turbamulta não perturba, Paris me permite
um repouso contemplativo.
Ocioso, com uma prazerosa preguiça, vejo, do outro lado, na Rive Droite, os ruidosos carros que passam. Sobre a calçada da margem do rio, alguns diletantes tomam banho de sol. O domingo lhes entrega essa dádiva, e o advento de setembro refresca a tarde neste momento de harmonia. Nuvens se escondem por trás dos prédios do Marais, de onde vim assistir ao frêmito verde do Sena. Vim sonhar à luz dos seus reflexos.
Cruzo a ilha pela rue Poulletier para chegar ao quai de Béthune. Avisto a
placa de letras desbotadas, onde se avisa que ali, no número 18, morou Francis Carco,
de 1948 a 1958, no período final de sua existência.
Mais adiante, onde estaria o número 10 do quai de Béthune, existiu uma das
residências de Baudelaire. O número 10 já não existe. Tendo sido renumerada, a rua
termina no número 12, em frente à Ponte de Sully e na esquina com o boulevard Henri
IV.
Ao voltar em direção a rue Le Regrattier, avisto no alto as torres de Notre-Dame,
com os andaimes metálicos de sua reconstrução.
Em Ombres vivantes (1947), Francis
Carco evoca o exílio e os mortos da guerra, entre os quais seu grande amigo Max
Jacob. Em 1948, Carco instala-se no quai de Béthune, 48. Escreve, então, seus derradeiros
livros, na década de 1950: Romance de Paris
(poesia), em 1950, Compagnons de la mauvaise
chance (1954) e mais dois autobiográficos: Francis Carco vous parle (1953) e Rendez-vous avec moi-même (1957).
Em
seu Romance de Paris, a cidade dos amores
do poeta é ainda o tema central. São os ícones do imaginário de Carco: Os moulins de Montmartre, os bals musette, sob os auspícios de um accordéon, a nave da Cité, com seu castelo
de duas torres, Notre-Dame e o mastro da Sainte Chapelle.
Neste excerto, extraído do poema Montmartre, do livro La bohème et mon coeur, escrito em sua juventude,
nota-se quão afetuosamente François Carco teceu loas aos recantos idílicos de sua
juventude. Seu coração boêmio se se consolava da nostalgia com os reflexos da manhã
dourada nas vidraças das janelas:
Montmartre a connu d’autres
jeux
D’autres voix, d’autres rires
jeunes,
Mais cela n’ importe, le jaune
Matin brille dans les carreaux.
O
traço marcante de sua poesia é essa nostalgia sublimada e generosa que exala puro
sentimento. Carco mostrou-se fiel aos sortilégios de Paris, chorou a juventude que
passa pelo dia como as esperanças incertas transitam pela vida. Veja-se nessa estrofe
do poema À l’amitié, do livro Petite Suite Sentimentale (1923), o lamento
de Carco a respeito as duvidosas esperanças que esmaecem, qual penumbra depois do
esplendor da mocidade boêmia:
Folle bohème, ô ma jeunesse
Qui t’ en vas par ce froid matin,
En attendant que le jour naisse,
Qu’ as tu fait de tant de promesses
Et de tant d’ espoirs incertains,
De Montmartre au quartier Latin?
Numa iluminada tarde invernal, o sino de Notre-Dame anuncia que o instante
passa e só restará a graciosa memória desta hora de alumbramento. Meditar é um convite
ao exercício da literatura contemplativa. A beleza da paisagem inspira-me a viajar
ao reino das palavras. Todo o mistério consiste em que a beleza é, a um tempo, efêmera
e eterna.
O escritor das classes perigosas (no dizer de Julien Green), recebeu em vida
relevantes reconhecimentos como a eleição para a Académie Goncourt, a comenda de
cavaleiro da Légion d’honneur e o Grand Prix de poésie de la Ville de Paris. [Após seu falecimento, a passage de la Goutte-d'Or,
no 18º arrondissement, foi denominada rue Francis Carco.
Francis Carco era primo do historiador Jérôme Carcopino, e irmão de Jean
Marèze, poeta e autor de famosas canções, como Sombre dimanche, Escale,
entre outras. Nos dias finais de sua existência, Carco sofria do mal de Parkinson.
Conta-se que, no dia 26 de maio de 1958, às 20 horas, momento em que faleceu, passava
sob suas janelas a Guarda Republicana, tocando L’Ajaccienne (a canção que enaltece os Bonapartes e tem como refrão
les exilés sont de retour). Francis Carco
foi inumado no cemitério de Bagneaux, ao lado de seu irmão, Jean Marèze, que se
suicidou em 1942. Sua segunda mulher, Éliane Négrin, falecida em 1970, também repousa
naquele campo santo.
Agulha Revista de Cultura
Número 225 | março de 2023
Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2023
∞ contatos
Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário