segunda-feira, 6 de março de 2023

MÁRCIO CATUNDA | Alfred de Musset e a torre secreta dos conflitos

Minha próxima pesquisa se concentrou na descoberta dos domicílios de Alfred de Musset, o exímio poeta, arrebatado pela sedução da beleza e pelas amarguras do amor. O libertino byroniano, o sentimental que se entregou às paixões ardentes, tendo por lema je fit serment de vivre et de mourir d’amour.

Passo pela rue Honoré-Chevalier, cansado como um peregrino pobre, chego à rue Cassette e busco o número 59, onde aquele magnífico poeta nasceu, em 11 de dezembro de 1810. A rua termina no 31 e esbarra na rue de Vaugirard. Dali para adiante é chamada Jean Bart, começando pelo número 1. Esse é um caso de numeração que foi alterada. Impossível localizar o prédio onde Alfred de Musset nasceu. Sei, no entanto, que ele percorria aquelas ruas para chegar ao Collège Royal Henri IV, na rue Clovis, onde estudou na infância.

Musset morou na rue de Grenelle 59, de 1824 a 1830, nos tempos em que estudou nas Faculdades de Direito, na place du Panthéon e de Medicina, na rue de l’École-de-Médecine, as quais abandonou, sendo admitido à École des Beaux-Arts, em 1828.

Fui ao local e vi a placa na qual se informa que o poeta ali viveu. Uma senhora, sob o grande portal daquele palácio ornado de belas estátuas, me explica que atualmente funciona ali o Musée Mailol. A residência do poeta foi adaptada à nova arquitetura do museu. As dependências do seu antigo apartamento já não existem.

Foi em 1828 que Musset promoveu um recital para uma plateia constituída de grandes escritores e leu, entre outros, estes versos de Contes d’Espagne et d’Italie, seu primeiro livro, editado em 1830:

 

C’est le temps de la ville Oh! Lorsque l’an dernier

J’y revins, que je vis ce bon Louvre et son dôme,

Paris et sa fumée, et tout ce beau royaume.

(J’entends encore au vent les postillons crier).

 

Sainte-Beuve o considerou un enfant plein de génie.
Prosper Mérimée também se espantou com o talento do jovem autor de Contes d’Espagne et d’Italie, que conhecera no Cénacle, às terças-feiras, na casa de Victor Hugo, na rue Notre-Dame-des-Champs, reunião à qual compareciam, também, Delacroix, Vigny e Nodier, entre outros.

Pelo ano de 1830, Musset começa a publicar seus poemas na Revue de Paris e, desde 1833, os divulga na renomeada Revue des Deux Mondes. Era o tempo em que ele percorria, em cabriolet, as ruas iluminadas com lanternas a gás para visitar o salão da rica Delphine de Gerardin, onde conheceu Liszt, Rossini e Chopin. Frequentava, também, o café Anglais, no boulevard des Italiens, esquina com a rue Marivaux, e o café de la Régence, na galeria do Palais Royal. Musset costumava acompanhar Victor Hugo nas escaladas às torres de Notre-Dame, para contemplar o pôr do sol.

Na continuação da rue du faubourg de Montmartre, ao cruzar o boulevard Poissonnière, vislumbro, à direita, a passage des Panoramas e, de pronto, estou no cruzamento das rues Montmartre, Feydeau e Saint-Marc. Vou pela rue Saint-Marc, onde aparece do outro lado a passage des Panoramas. As calçadas são estreitas para tanta gente que anda apressadamente, de modo que, ao escrever estas linhas, em pé, preciso estar atento para não esbarrar nalgum semelhante. Alguns passam raspando em mim. Esquivo-me e continuo. É preciso saber manobrar com pouco espaço.

Na rue de Favart, avisto os paredões do Opéra-Comique e, adiante, o boulevard des Italiens, à esquerda da qual vejo, na esquina com a rue de Marivaux, o restaurante Le Marivaux, antigo café Anglais, refúgio sentimental de Alfred de Musset. Decorado com luzes de Natal, neste dezembro de festas, o estabelecimento fica exatamente atrás do avoengo e grandioso Opéra-Comique.

Por uma coincidência feliz, assisti, à noite, no Opéra-Comique, à ópera Fortunio, de autoria de André Messager, criada em 1907, e inspirada na peça Le Chandelier, de Alfred de Musset.

Dandy, inventor de fantasias, jogral e jogador, Alfred semeava idílios nas alcovas de mulheres aristocratas, de atrizes e de senhoritas das maisons de tolérance. Escrevia, fervorosamente, tendo sua estreia na dramaturgia ocorrido em 1830, com a encenação da peça La nuit vénitienne, no Théâtre de l’Odéon. Os temas italianos o apaixonaram sempre.

Apesar de o público haver recebido essa peça friamente, em 1830, no Théâtre de l’Odéon, Musset recebeu, naquela noite, o maior testemunho de admiração jamais vivido. Quando ele adentrava o teatro, ao atirar ao chão o resto de um cigarro, viu um jovem recolher num papel a ponta do cigarro, como uma relíquia preciosa. Assim conta o seu irmão Paul de Musset, na famosa Biographie por ele escrita.

Naquela Paris de tantos flirts e amores fortuitos, onde cortejava duquesas e atrizes e frequentava os banhos chineses (les bains Chinois) no boulevard des nº. 27, Alfred de Musset se sentia, no entanto, só. Encharcava-se de absinto, misturado com cerveja, e se refugiava no jardin du Luxembourg ou no jardin des Plantes. De fato, em seu soneto Une promenade au jardin des plantes, ele diz, logo de início: Sous ces arbres chéris, où j’allais à mon tour/pour cueillir, en passant, seul, un brin de verveine.

Os tais banhos chineses ficavam num edifício, atualmente residencial, de portal em arco e pátio retangular, onde vi bicicletas e motos estacionadas, restaurantes, um ateliê de quadros, uma clínica odontológica, uns velhos candelabros e um chão de pedras que falam da antiguidade e das mudanças que o tempo lhes impôs. No lado direito da entrada do pátio, há, na altura do segundo andar, um pedaço de mármore escuro que provém de tempo anterior ao do resto da fachada. Na parte baixa, de ambos lados, há dois restaurantes populares: uma pizzaria e um especializado em yakisoba, (culinária chinesa, disfarçada de japonesa). Entro no yakisoba e almoço. Regresso, em seguida, pelo boulevard Haussmann e uma surpresa se afigura na esquina da rue Laffitte, no final da perspectiva: a feérica visão da basílica do Sacré-Coeur, tendo aos pés, em distância mais próxima, as colunas de Notre-Dame-de-Lorette.

No seguimento do boulevard des Italiens, vejo o Gaumont Opéra, na esquina onde essa artéria urbana passa a se chamar de boulevard des Capucines.


O ano de 1836, que marcou sua aproximação de Alphonse Lamartine, foi de muitas produções, entre as quais La Confession d’un enfant du siècle, em que Musset revela, entre outras confidências, seu sofrimento pela morte de seu pai, vítima da epidemia de cólera, em 1832. Menciona o desmaio que teve ao precipitar-se para abraçar o corpo de seu finado pai. Fala da dor física que o abatera e das lágrimas que lhe ensinaram a virtude.

O notável desempenho de Musset na criação dramatúrgica lhe engrandece a obra literária. Não obstante sua decepção inicial com o metiê cênico, as peças seguintes que ele escreveu foram objeto de reiterados elogios por parte da crítica especializada. André del Sarto, o grande pintor italiano que trabalhou na corte francesa de François I, é objeto de uma de suas peças mais admiradas. Na fabulação de Musset, a fatalidade se abate sobre o artista em seu ateliê em Florença, quando é traído pela esposa e pelo discípulo Cordiani, desventura que o induz ao suicídio. A realidade histórica é outra. Andrea del Sarto era escravo de uma mulher, cuja beleza o subjugava. Não cometeu suicídio: morreu de peste aos 42 anos, em 1531.

A peça de Alfred foi publicada em abril de 1833, na Revue des Deux Mondes. Somente quinze anos depois é que os diretores de teatro descobrem Musset e encenam, sucessivamente, na Comédie Française, Un Caprice, em 1847, e mais três peças, em 1848: Il ne faut jurer de rien, Il faut qu’une porte soit ouverte ou fermée e Le Chadelier, esta representada no Théâtre-Historique. Em nova versão apresentada em 1850, no Odéon, Musset retoca André del Sarto, fazendo morrerem Cordiani e André.

Théophile Gautier, o mais entusiasta de seus incentivadores, é pródigo em elogiar-lhe o estro. Un Caprice era, para Gautier, a obra mais fina, mais delicada e mais graciosa que a Comédie-Française produzira desde o tempo de Marivaux (1688-1767). Quanto a Lorenzaccio, escrita por Musset na idade de 20 anos, tratava-se de um chef-d’oeuvre que lembra as profundas análises de Shakespeare.

Lorenzaccio é ambientada em Florença, quando a cidade está ocupada pelas tropas do imperador Carlos V, que instalou no trono, em 1537, o duque Alexandre Médici, um tirano que rivaliza com seus adversários da família Strozzis. Seu primo Lorenzo toma o partido dos rivais dos Médicis e, para vingar a prisão dos filhos de Philippe Strozzi, assassina o duque Alexandre. Morto o tirano, o Conselho dos Oito elege Cosme de Médici, que assume o governo de Florença, jurando fidelidade a Carlos V. Lorenzo é, por fim, assassinado pelos fiéis à aristocracia dos Médicis. A peça só foi montada em 1896, no Théâtre de la Renaissance, por Sarah Bernhardt, 30 anos depois da morte de Musset.

O tédio da vida e a melancolia sofrida com a morte do pai foram curados por Musset à base de música, leitura, absinto e cerveja. Leitor entusiasta de Leopardi, Petrarca e Casanova, espectador dos concertos do Opéra e do Théâtre Italien, Musset escrevera obras maravilhosas sobre a Itália, antes de visitar o país de seus devaneios. Contes d’Espagne et d’Italie, La nuit vénitienne, André del Sarto e Lorenzaccio perfazem uma lista de obras-primas que comprovam esse fenômeno extraordinário.

Seus estudos de cultura italiana suscitaram-lhe o desejo extremo de ir à Itália, viagem que realizou na companhia de George Sand (Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant). O namoro com Sand, então jovem escritora que publicava na Revue des Deux-Mondes começou no restaurante Les Trois Frères, na galeria do Palais-Royal. Um dia, passeando pelos jardins de Paris, ele aos 23 anos, e ela aos 29, (então casada com o barão Casimir Dudevant, e acompanhada dos filhos) decidiram viajar juntos a Veneza.

George Sand, mulher decidida, independente, vai à rue Grenelle, nº 59 e pede à mãe de Alfred, Madame Edmée, licença para viajar com o poeta, do qual cuidaria com afeição materna. O casal parte, no inverno de 1833 e a aventura termina com uma febre quase mortal de Musset, que regressou a Paris, em abril de 1824, debilitado e deprimido. George Sand, que já tivera alguns amantes, inclusive Prosper Mérimée (célebre autor do livro Carmen, que deu ensejo à ópera de igual título, da autoria de Georges Bizet), amasiara-se com o Dr. Pagello, médico de Alfred, em pleno hotel Danieli, diante do fantástico Grand Canal veneziano.

Por sua parte, conquanto sofresse desbragadamente a frustração do namoro com a escritora, Alfred não baixou o tom de suas aventuras. Reatou o romance com Sand no ano seguinte, porém logo aconteceu a ruptura definitiva. Diversos novos relacionamentos, com muitas garotas, saciavam parcialmente sua sede de amor. Ninon, por exemplo, à qual ele dedica as Stances (Je regarde le ciel, Ninon, et je vous vois) era Marie Nodier, filha de Charles Nodier, o talentoso contista que dirigia a Bibliothéque de l’Arsenal, onde promovia animados saraus poéticos. Segundo Paul de Musset, essa musa, que morava na rue de Buci, foi também a inspiradora do poema Nuit de Décembre e também da novela Emmeline.

Fui ao quai Voltaire, número 25, e fotografei o endereço onde Musset viveu de 1834 a 1849. O tempo talvez não tenha desfigurado significativamente a formosa fachada clara do grandioso edifício de belo balcão central e grandes janelas retangulares. No mesmo prédio, além da placa indicativa de que o poeta ali habitou, outra informa que viveu também, de 1939 a 1972, Henry de Motherland, que foi membro da Academia Francesa.

Na continuação do quai Voltaire, em direção a Saint-Michel e à Île de la Cité, chego ao quai Malaquais 19, onde estava situada a “mansarde bleue”, ninho dos amores do casal romântico George e Alfred. A placa, sobre alto e amplo portal verde, revela que George Sand viveu ali de 1832 a 1836. Noutra placa, quatro números antes, se informa que ali residiu Anatole France.

No quai Malaquais, após haver visitado o local onde morou George Sand, medito à margem do Sena. Passa o rio como se não passasse. Deixa fluir o sereno ondular. Ele passa por mim, e eu por ele, sem que nos encontremos no passeio. Existimos, porém, no mesmo hábitat, sob os arcos das pontes de cimento e a celestial abóbada do espaço, viajantes de um destino misterioso.

Sento-me à sombra, feito uma criança e me descalço para melhor sentir a energia que nos alimenta. Porque o Sena corre, abraçando o chão e eu respiro com ele o ar vertente que nos reúne no afã de viver.

Musset é sublime na arte da narrativa. Datada de 15 de maio
de 1838, a novela Le fils du Titien, amour à la venitienne, foi publicada na Revue des Deux-Mondes, no mesmo ano. É uma bela narrativa, de estilo fluido, simples, natural como quem respira. Sem rebuscamentos ou demasiadas alusões eruditas, Alfred de Musset nos conta a humaníssima história de amor entre o pintor Pompônio Filippo Vecellio Pippo (o segundo filho de Ticiano, também conhecido pelos apelidos de Pippo e de Tizianello) e sua amada Béatrice Donato.

Tive o prazer de ler Le fils du Titien o mais vagarosamente possível para que a satisfação da leitura não acabasse depressa. O relato, que tem lugar em Veneza, é uma réplica do romance de Alfred de Musset e George Sand. Enquanto Béatrice quer alçar o jovem amante aos píncaros da Arte, Pippo sacrifica a arte pelo amor.

O tempo histórico da narrativa é fevereiro de 1850. Pippo, ou Tizianello, tem 25 anos e vive nas proximidades da Riva degli Schiavoni e do palácio Nani. Perambula naquele sestiere veneziano, arrastando sua espada e trajando sua capa, sob os raios da lua, que se reclina por trás da ilha Giudecca. A aurora doura o palácio ducal. Uma mulher, com aspecto de femme de chambre, entrega a Pippo um estranho presente: uma bolsa de veludo, bordada de ouro e se retira sem nada dizer. Ele desconfia que aquela peripécia provém de Monna Bianchina, uma bela namorada que Pippo abandonara.

A signora Dorothée, madrinha do Tizianello, revela-se como a remetente da tal bolsa aveludada, cuja utilidade principal era trazer ao afilhado grande sorte nas jogatinas do salão da condessa Orsini, que ele frequentava, jogador inveterado. A signora Dorothée assegura ao rapaz que a pessoa que confeccionara o aquele presente é uma das mulheres mais nobres e belas de Veneza.

Béatrice Loredano, viúva do procurateur Donato, era a mulher que presenteara Pippo com a bolsa bordada em ouro, após haver contemplado um quadro (o único de Tizianello) e se encantar com o talento do jovem artista. Naquele século de Júlio II e Leão X, a pintura era uma religião para os artistas e uma glória para a Itália.

Depois de conhecer Béatrice Donato, Pippo deixa de frequentar o salão da condessa Orsini, onde as apostas e os amores se mesclavam em sua vida de sedutor de belas damas. Ele passava a metade do dia com sua maîtresse e a outra metade a olhar o mar e a beber vinho de Samos num cabaré da ilha de Lido. Como o preconceito social pesava sobre a união de uma mulher da nobreza com um pintor, o casal não se expunha publicamente. Em vez de percorrerem os labirintos de Veneza, que para Alfred de Musset é a patrie du plaisir, aqueles apaixonados amantes vogavam em gôndola ao redor da ilha dos Armênios, entre o céu e o mar, sob o plenilúnio que ilumina os amores.

Béatrice insiste no projeto de fazer do filho de Ticiano o sucessor do pai, que fora o rei dos artistas. Tizianello pintara apenas um magnífico quadro, que um incêndio destruíra, no palácio Dolfin. Embora dotado de extremo talento, não interessava ao artista prosseguir na carreira de pintor. A amante consegue convencê-lo a reduzir as horas de ócio para pintar-lhe o retrato e pousa com seu vestido de tafetá, ornada de joias, como a Vênus coroada, do pintor italiano Páris Bordonne.

Do ponto de vista de Béatrice, Pippo personificava o conflito entre o talento e a preguiça. Pippo, por sua vez, acredita que não vale a pena tentar ombrear-se à grandeza de seu pai. Tampouco estava seguro de que seria possível algum pintor superar o retumbante êxito do velho Vecellio. Entre os pintores, apenas Rubens fora tão atrevido quanto Ticiano, imenso artista. Tizianello sentia-se pleno com as graças que Deus lhe outorgara: a riqueza e uma mulher bonita que o amava.

Conquanto o jogo e a vida boêmia o enfeitiçassem, Pippo aceita o desafio de trabalhar um pouco todos os dias e até concebe o projeto de produzir uma tela que represente Raphael, no Campo Vaccino, em Roma, momentos antes da morte daquele mestre, no ano de 1520, aos 37 anos.

Um certo Tito, pintor menor, parente longínquo de Ticiano, adotara o nome artístico de Tizianello, para fazer-se passar por herdeiro de Ticiano. Um dia, ao visitar o Convento dos Servitas, Pippo o encontra e chuta a base do andaime em que subira o pretenso Tizianello. Em consequência, o usurpador oscila, perde o equilíbrio e cai no meio de suas tintas das quais ficou manchado da mais estranha maneira.

Os adversários teriam duelado ali mesmo, sob os portais do templo, se um sacerdote não tivesse apartado a briga. O impostor se diz ameaçado de morte e os circunstantes quase acreditam. Contudo, Pippo se identifica como filho de Ticiano e aplica ao farsante uma lição de moral, recriminado-o por usar indevidamente o nome do glorioso pintor.

 De volta a casa, o artista termina a linda tela que retrata a beleza de sua musa e a intitula Vénus amoureuse. Escreve também um soneto, em que louva os encantos de Béatrice e declara ser aquele seu último quadro, o qual, por mais belo que seja, não vale um beijo do modelo.

Musset se inspirou em sua namorada, Aimée d’Alton, para criar o modelo de Béatrice. O idílio vivido com Aimée não foi longo. Ele se apaixonou, em seguida, pelas atrizes Rachel e Pauline Garcia, vinculadas ao Théâtre-Italien.

Da imensa admiração de Musset pela terra de Dante, ficaram tantos registros que seria difícil comentá-los aqui. Menciono, entretanto, o mais belo poema que li sobre Veneza, que consta nos Contes d’Espagne et d’Italie. Em suas estrofes, mormente no final do poema, ao referir-se às lágrimas que lhe custaram a volúpia, percebe-se uma espécie de profecia do que ele viveria, quase cinco anos depois, quando visitou Veneza com George Sand:

 

Dans Venise la rouge,

 Pas un bateau qui bouge,

 Pas un pêcheur dans l’eau,

 Pas un falot.

Seul, assis à la grève,

Le grand lion soulève,

Sur l’horizon serein,

Son pied d’airain.

Autour de lui, par groupes,

Navires et chaloupes,

Pareils à des hérons

Couchés en ronds,

Dorment sur l’eau qui fume,

Et croisent dans la brume,

En légers tourbillons,

Leurs pavillons.

La lune qui s’efface

Couvre son front qui passe

D’un nuage étoilé

Demi-voilé.

Ainsi, la dame abbesse

De Sainte-Croix rabaisse

Sa cape aux larges plis

Sur son surplis.

Et les palais antiques,

Et les graves portiques,

Et les blancs escaliers

Des chevaliers,

Et les ponts, et les rues,

Et les mornes statues,

Et le golfe mouvant

Qui tremble au vent,

Tout se tait, fors les gardes

Aux longues hallebardes,

Qui veillent aux créneaux

Des arsenaux.

Ah ! maintenant plus d’une

Attend, au clair de lune,

Quelque jeune muguet,

L’oreille au guet.

Pour le bal qu’on prépare,

Plus d’une qui se pare,

Met devant son miroir

Le masque noir.

Sur sa couche embaumée,

La Vanina pâmée

Presse encor son amant,

En s’endormant;

Et Narcissa, la folle,

Au fond de sa gondole,

S’oublie en un festin

Jusqu’au matin.

Et qui, dans l’Italie,

N’a son grain de folie?

Qui ne garde aux amours

Ses plus beaux jours?

Laissons la vieille horloge,

Au palais du vieux doge,

Lui compter de ses nuits

Les longs ennuis.

Comptons plutôt, ma belle,

Sur ta bouche rebelle

Tant de baisers donnés…

Ou pardonnés.

Comptons plutôt tes charmes,

Comptons les douces larmes,

Qu’à nos yeux a coûté

La volupté!

 

Alfred de Musset foi nomeado bibliotecário do Ministério da Instrução, em 1838. Por detestar o ofício burocrático, o poeta se ausentava sempre de seu gabinete, ao longo do expediente diário. Certos dias, nem sequer comparecia ao trabalho. Em 1843, posto a serviço da Guarda Nacional, Alfred negligencia suas funções e chega a ser punido com alguns dias de prisão. O sucesso no teatro viria a recompensar aquelas agruras dos empregos nas tirânicas instituições do Estado. Repercutiram, favoravelmente, as peças André del Sarto, Le Chandelier, On ne badine pas avec l’amour e Il ne faut jurer de rien, apresentadas, sucessivamente, no Théâtre-Français (antigo nome da Comédie-Française). Musset recebe a Légion d’Honneur em 1845 e é eleito para a Académie Française em 1852, depois do sucesso de Les Caprices de Marianne, publicada na Revue des Deux Mondes em 1833 e apresentada no Théâtre Français em 1852. Nessa fase de sua maturidade existencial, o alcoolismo e o tabagismo agravaram-lhe a doença dos pulmões. Sua irmã Marcelline ocupou-se do poeta, nos derradeiros anos em que a saúde de Musset se foi debilitando gradualmente.

Sigo, de manhã, em direção à rue Mont-Thabor, o derradeiro domicílio de Musset. Depois de Opéra, o metrô para de repente, antes da estação Madeleine. E não há qualquer explicação por parte do condutor. Silêncio. Algumas pessoas conversam. São 13h30. Ouvem-se passos do lado de fora, nos trilhos. Calor e penumbra.

Algumas pessoas falam baixo para não demonstrar preocupação. Duas mulheres, sentadas à minha frente, abanam-se. Ouvem-se, novamente, passos do lado de fora do trem, como alguém voltando do lugar aonde ia. O escuro do lado de fora não deixa ver quem está ali. O trem vai lotado. Algumas pessoas viajam em pé.

Num repente, acendem-se as luzes e o motor volta a funcionar, depois de 11 minutos de interrupção. O trem prossegue até Concorde, onde desço, com a sensação de quem se livra de um problema.

A rue du Mont-Thabor é paralela à rue Rivoli e ao jardin des Tuileries, onde, numa noite de primavera, sob os floridos castanheiros, Alfred de Musset escreveu La Nuit de Mai. Os prédios da rua são largos e têm grandes janelas. O de aspecto mais antigo e de maiores janelas é o de número 6, onde Musset morreu, no dia 2 de maio de 1857. O poeta prodígio viveu somente sete anos nessa residência, cuja fachada denuncia que foi reformada. Efetivamente, já se passaram 164 anos. Pergunto-me o que restou daquele tempo. Pelo menos, há uma grande placa em honra à memória do poeta, que é uma das glórias da literatura francesa. Ele faleceu, portanto, com 47 anos. A última ocasião em que desfrutou da vida noturna de Paris foi no jantar a que comparecera, a convite do príncipe Napoleão, no Palais-Royal. Desde então, já não saiu de seu leito de enfermo.

A rue du Mont-Thabor começa na rue d’Alger. Por ela me encaminho ao jardin des Tuileries, onde é possível desfrutar da tarde que o Sol aquece de luz. É preciso sentar um momento à sombra do arvoredo para prosseguir. Os tetos de Paris são cinzentos, cor de melancolia. Árvores verdes e céu azul alegram o instante.

 

 

 

MÁRCIO CATUNDA (Brasil, 1957). Escritor e diplomata. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu mais de quarenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais em espanhol. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021), que recebeu em seu ano de publicação o Prêmio Cecília Meyreles, da União Brasileira de Escritores, no Rio de Janeiro.

 

 

BRIDGET BATE TICHENOR (França, 1917-1990). Artista fascinante, foi também editora de moda. Sua pintura, ligada ao Surrealismo, sua biografia inclui momentos em que foi modelo de Man Ray, uma paixão que despertou em Anaïs Nin, a casa que dividia com Peggy Guggenheim e seu interesse por ocultismo, magia e alquimia. Quando conheceu o México identificou o país como o lugar sagrado de sua morada, assim como foi intensa a amizade com Leonora Carrington, Remedios Varo, Kati Horna e Alice Rahon, que ali já residiam. Metafísica e misticismo se revelaram como temas característicos de sua linguagem pictórica, o que a levou também a Roma, onde realizou uma série de pinturas intitulada Máscaras, Guias Espirituais e Divindades Duplas.





Agulha Revista de Cultura

Número 225 | março de 2023

Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)

editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

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