Nesse
período de seus estudos de artes plásticas, Gautier se reunia com seus pares, homens
de espírito, na rue de la Fontaine-Saint-Georges (hoje rue Pierre-Fontaine), no
ateliê de Paul Gavarni, artista que Baudelaire menciona em seu poema L’idéal.
De
1828 a 1833, Théophile viveu com seus pais na place Royale, nº 8, no tempo em que,
sendo vizinho de Victor Hugo, frequentou a casa do autor de Les misérables, na companhia de Gérard de
Nerval. É desse tempo a irreverência com que Gautier personificou na plateia o jovem
do “gilet rouge”, fazendo estardalhaço na estreia da peça Hernani, de Victor Hugo.
Peça que suscitou, em 1830, o entusiasmo da juventude. Data desse ano, também, a
publicação do livro Poésies, de Théophile
Gautier.
Seu
livro Mademoiselle de Maupin, de 1834,
causou espécie. Sainte-Beuve o considerou um livro de patologia. Sua personagem principal, Diana Vernon, vestia-se
masculinamente e viajava pelo mundo. O prefácio de Mademoiselle de Maupin é uma invectiva contra os críticos literários
e os burgueses da monarchie de Juillet
(nome dado ao regime político do reinado de Louis-Philippe, entre 1830 e 1848).
Gautier se volta contra o utilitarismo dos oportunistas do regime (principalmente
os do jornal Le Constitutionnel, que apoiava
a coalizão de liberais, bonapartistas e anticlericais). O poeta combatia, também,
o profetismo progressista hugoliano (arte em função do progresso moral, social e
político). A essa estética, Gautier se opunha, propondo a arte pela arte, em nome
da beleza como paixão única do artista.
Em
toda a sua carreira de brilhante escritor, Gautier se manterá fiel à sua estética,
rindo do jeito interesseiro e astuto dos políticos e da ideia de subordinar a arte
à vida prática, aventada por alguns críticos.
Em
agosto de 1836, Gautier realiza, na companhia de Gérard de Nerval, uma viagem à
Bélgica, da qual resultará uma série de artigos intitulados Un tour en Belgique, publicados na Chronique de Paris, de setembro a dezembro.
Data desse período o seu relacionamento com Eugénie Fort, que lhe dará um filho
de nome Charles-Marie Théophile, cuja pensão alimentícia o poeta pagará.
Depois
de morar na casa da rue du Doyenné (também conhecida por impasse du Doyenné), de
1834 a 1835, ele se muda para um apartamento na rua de Navarin, nº 14, cujo primeiro
e segundo andares ocupou, de 1839 a 1841. Tanto na rue du Doyenné quanto na rue
de Navarin, teve a alegre companhia de Gérard de Nerval, parceiro das noites boêmias,
com quem escreveu diversos textos. Théophile Gautier era então o poeta de cabeleira
esdrúxula e hábitos extravagantes, que soltava fogos de artifício no jardim, criava
gatos, um cachorro, ratos brancos e um papagaio, e que tinha um tanque cheio de
peixes. Era o autor de Grotesques, que
sonhava com uma consagração maior no cenário da literatura francesa.
Gautier
residiu duas vezes na rue de Navarin. Na segunda vez, no número 22. Dali saiu para
o hôtel Pimodam, onde, em 1845, na companhia de Nerval, Dumas, Flaubert, Délacroix
e Baudelaire, passou pela magnífica experiência do Clube dos Hashishins. Nerval,
o de prodigiosa imaginação, começaria ali a transfigurar o real em cintilantes eclipses
da razão.
Conquanto
sempre acossado por problemas financeiros, Gautier realizou o sonho de sua juventude.
Havia nascido para viajar e escrever. Viajou à Espanha em 1840 e à Argélia, em 1845.
Outras peregrinações virão com o tempo. Visitará também, nas décadas seguintes,
a Inglaterra, a Holanda, a Itália, a Grécia, a Turquia, a Rússia e o Egito.
De
sua memorável viagem à Espanha, em que se fez acompanhar de seu amigo Eugène Piot
(jornalista e crítico de arte), Gautier registrou, em Voyage en Espagne, as mais indeléveis impressões. Esse livro é um autêntico
tratado de sociologia e antropologia espanholas. Sua narrativa contém detalhadas
apreciações sobre diversas cidades que visitou. Com sua elegante prosa, faz um inventário
das obras de arte contempladas na fisionomia
gótica de Burgos, dos prodígios dos pintores espanhóis do Museu do Prado (especialmente
a obra pictórica de Goya), da prolífica produção teatral dos espanhóis, caracterizada por um romantismo anterior a Shakespeare,
do colosso arquitetônico do Escorial e da paisagem escarpada de rochedods de Toledo
(la ville des belles épées et des dagues romantiques).
Em
seguida, Gautier relata seu trajeto a caminho de Andaluzia, quando, ao atravessar
a região de La Mancha, lembrou-se do Cavaleiro da Triste Figura e de seu escudeiro
Sancho. Em Granada, encantou-se com a vista das colinas, visitou o Albaicin e a
Alhambra, dos quais descreveu a sofisticação ornamental mourisca, com a simetria
da decoração de arcos e colunas bem como as filigranas da caligrafia árabe. Subiu
e desceu a montanha até o cimo do Mulhacen.
Chegou
a Málaga, montado numa mula e apreciou a brancura das casas, o tom índigo intenso
do mar, a intensidade brilhante do dia. Dali partiu para Córdoba (la villa des califes), guardada pelo alado
arcanjo Raphael, o sentinela que se avista no alto de sua coluna.
A
mesquita-catedral cordobesa o impressionou, com sua esplanada plantada de elegantes
colunas de mármore, pórfiro e jaspe, e seu Mihrah,
constelado entre mosaicos vítreos, sobre os quais estão gravados versículos do Corão
em letras de cristal dourado.
Em
Cádiz, desfrutou da paisagem da cidade emoldurada em muralhas e rochedos, da qual
se vêm os barcos flutuando no azul do mar. Com sua brancura cintilante, Cádiz lhe
pareceu uma imensa coroa de filigrana de prata.
Para
testemunhar que percorrera a Espanha de ponta a ponta, o poeta estendeu sua viagem
até Gibraltar, cidade situada na entrada de um golfo, tal como Cádiz. Dali avistou
Alceciras alçada em brancas casas que reluzem
no azul universal como o ventre prateado de um peixe à flor da água. A parte
final da viagem transcorreu em Valência, de onde Gautier embarcou de regresso à
França, levando na memória as magníficas visões da terra de Cervantes.
Com
erudição inigualável, Gautier estudou, em Voyage
en Espagne, as cores e as formas arquitetônicas das igrejas e a história legendária
da Espanha. Admirável a força de espírito do grande poeta viageiro, que enfrentou
privações de todo gênero, sob o calor sufocante, exposto ao perigo dos assaltos.
Viagem divertida, porém estoica, dadas as condições de deslocamento disponíveis
naquele tempo em que os transportes eram tão precários e os viajantes se expunham
perigosamente às intempéries.
Ainda
em 1840, Gautier escreveu, para a grande Ópera de Paris, o célebre libreto do ballé
Giselle. Com música de Adolphe Adam, Giselle é a história trágica da desilusão
amorosa da jovem camponesa que dá nome ao espetáculo.
Os
anos da década de 1840 foram os tempos de plenitude em que Gautier escreveu com
Nerval o libreto do ballé La damnation de
Faust, que Hector Berlioz compusera, depois de ler a tradução que Nerval fizera
da obra imortal do grande Goethe. A estreia de La damnation de Faust aconteceu no Opéra-Comique, em 6 de dezembro de
1846.
Naquele
período áureo de sua vida, Gautier frequentou, aos domingos, o salão de Apollonie
Sabatier, la Présidente, que tinha seu feudo domiciliar na avenue Frochot. Théophile
revia sempre, na casa da ilustre anfitriã, gente da categoria de Flaubert, Baudelaire,
Henri Monier, entre outros expoentes da grande literatura francesa. Gautier mostrava-se
indulgente com o caráter insólito de Baudelaire, que ali destilava sua irreverência
na forma de impropérios contra o gênero humano e seus principais protagonistas.
Por
ser de fácil convívio social, Théophile Gautier se relacionava afortunadamente com
pessoas de prestígio e cultura. Além da casa de Apollonie Sabatier, ele comparecia
aos salões de Louise Colet, amante de Flaubert, e aos saraus e às prazerosas conversações
da princesa Mathilde Bonaparte, na rue de Courcelles.
A
partir de 1848, Gautier morou na rue de Rougemont, nº 14, entre a rue Bergère e
o boulevard Poissonnière.
Hospedei-me,
na quarta viagem de estudos, num hotel na curta rue de la Boule-Rouge, próximo à
Grange-Batelière, área onde também Isidore Ducasse morou, cerca de 18 anos antes
de Gautier. Pela fantasticamente tumultuada rue du faubourg Montmartre, tomo a direção
da rue Bergère, para descobrir os lugares onde Théophile Gautier morou.
Percorri
a rue Rougemont, que começa numa entrada à direita da rue Bergère, cujas laterais
são grades de ferro. A rue Rougemont é interrompida pelos prédios que a fecham,
forjando um impasse. Nela está situado o hôtel Rougemont. No final do seu trajeto,
do lado direito de quem por ela entra, há outro portão, com as grades, porém, fechadas.
Além desse portão, o caminho continua noutra estreita passagem, cheia de hotéis
e silenciosa, diversa do estardalhaço de carros e pedestres da rue du faubourg Montmartre.
Essa continuação da rue de Rougemont se chama Cité Bergère. Seu portão dá de frente
para o restaurant Chartier, localizado no prédio onde viveu e morreu Lautréamont,
em 1870.
Théophile
Gautier viajou, em 1849, à Inglaterra, com a namorada Marie Mattei. Data desse período
sua ligação amorosa com a contralto Ernesta Grisi, com quem teve as filhas Judith
e Estelle. Ele cortejava Ernesta desde 1839, quando assistira à atuação da cantora
no Théâtre Italien, no papel de Adalgiza, na ópera Norma, de Vincenzo Bellini. Elogiara o talento e a beleza da artista
no tabloide La Presse. Sua amizade com
a irmã de Ernesta, a bailarina Carlotta Grisi, é simultânea ao relacionamento com
aquela que veio a ser a mãe de suas duas filhas. O poeta flertava com Carlotta desde
que a conhecera nos ensaios do balé Giselle,
em 1840. Sempre dividido entre duas belas mulheres, ele confessou haver verdadeiramente
amado apenas uma mulher: Carlotta. E com o sentimento que se costuma taxar de amor
platônico.
De
agosto a novembro de 1850, esteve na Itália, com Marie Mattei e o amigo escritor
Louis de Cormerin. Atenho-me detalhadamente a alguns aspectos dessa que foi a viagem
que mais impressionou Gautier; mais até do que a desejada peregrinação ao Egito,
realizada alguns anos depois.
Dois
dias em Milão lhe mostraram a elegância gótica do Duomo e a famosa tela L’Ultima
Cena, de Da Vinci. É fascinante constatar o encantamento de Gautier em Veneza.
Ele narra em êxtase sua estada na cidade lacustre. Deslumbra-se, entre diversas
surpresas, com a basílica de San Marco, com alguns quadros expostos na Accademia e com a paisagem vista de todos
os ângulos de cima da Campanille, de 99
metros de altura.
No
livro que escreveu sobre a cidade dos Doges, descreve, com entusiasmo, a perspectiva
que se vê do alto da torre da piazza San Marco:
em direção ao mar, o campanário vermelho de San Giorgio, a Giudecca e suas igrejas,
e as diversas ilhas que compõem o arquipélago veneziano. Em direção à Piazza, a
Dogana, a Salute, a entrada do Canal Grande, e as torres das igrejas de San Moisè,
Santo Stefano e Santa Maria Gloriosa dei Frari. No horizonte extremo, os montes
Eugâneos.
Apreciou
o exuberante rococó da fachada da igreja San Moisè, em cujas proximidades se hospedara.
Visitou a ilha de San Servolo, para conhecer o hospício de alienados mentais. Contemplou,
na ilha da Guidecca, a igreja del Santissimo Redentore e os prodígios pictóricos
nela guardados.
Da
catedral de Veneza ele elogia o altar dentro
de um templo inundado de ouro. Confessa que nem Colônia, nem Estrasburgo, nem
Sevilha e nem mesmo Córdoba, com sua mesquita, impressionaram-no tanto.
A
respeito da Pietà de Ticiano, afirma,
no livro Venecia, Impresiones del Viajero,
que esse derradeiro quadro do patriarca da
pintura, morto pela peste aos 99 anos, quando ainda trabalhava: representa um Cristo descido da cruz; o céu está
escuro, um dia lívido ilumina piedosamente o cadáver sustentado por José de Arimateia
e Santa Maria Madalena. Ambos, tristes e sombrios, parecem desesperar da ressurreição
de seu Mestre. Gautier observa que uma inscrição, num canto da tela, atesta
que Ticiano deixou o quadro inacabado e que Palma o terminou. Nota ainda o poeta
que, na Accademia, além do ômega, encontra-se também o alfa
da vida pictórica do grande artista, na forma do quadro cujo motivo é a Prezentazione di Maria al Tempio, pintado na extrema juventude de Ticiano, com
um colorido luminoso e claro que tem a poderosa e forte serenidade de Fidias.
Durante
todo o mês em que Gautier permaneceu na deslumbrante Veneza recordava-se, a todo
instante, dos magníficos versos de Musset: À
Venise, la rouge, rien ne bouge.
Na
biografia de Gautier, escrita por Stéphane Guénan, estão relatados alguns dos momentos
de satisfação estética desfrutados na Sereníssima, onde o poeta permaneceu até 5
de setembro de 1850. Apenas uma nota triste: ao ler o Journal des débats, enquanto tomava um sorvete no Caffé Florian, o poeta
lê a notícia da morte de Balzac. Gautier deixa Veneza, lamentando a ausência de
Maria Mattei no restante da viagem, que prossegue no trajeto a Pádua, Florença,
Roma e Nápoles.
Alguns
dos magistrais contos fantásticos de Gautier resultam também de sua viagem à Itália.
Indubitavelmente, as contemplações e os estudos, que lhe inspiraram seu trajeto
pela Península Italiana, acenderam-lhe na mente as luminárias da criatividade. Pela
maestria com que estão urdidos e por me identificar com os temas narrados, comentarei
três contos de Gautier, que constam na edição de seus Contes et récits fantastiques. Dois desses magníficos contos (Arria Marcella e Jettatura) são totalmente ambientados em Nápoles e estão cheios de
referências à civilização italiana. Já o outro, Avatar, se passa em sua maior parte em Paris.
Começo pelo conto intitulado Arria Marcela, que foi publicado dois anos
depois da viagem do poeta à Itália. Segundo Alain Buisine, prefaciador da citada
edição, há duas provas de que Gérard de Nerval foi o modelo para a criação do personagem
Octavien. A primeira é o fato de que a quarta novela de Les filles du feu, do grande Nerval, tem uma parte que se ambienta em
Nápoles e se intitula Octavie. A segunda
prova é que a novela que antecede Octavie, e que se chama Isis, começa com a evocação de uma ressurreição momentânea de Pompeia.
Octavien,
personagem central de Arria Marcella,
é um jovem hiper-romântico que se deslumbra, no Museu Archeologico Nazionale de Nápoles com um fragmento de lava sólida
de Pompeia, que tem o contorno de um corpo feminino. Em sua visita às ruínas da
cidade ressuscitada, ele se emociona ao
chegar ao local onde se encontrava o esqueleto da dama cujo molde contemplara no
museu napolitano. À noite, no hotel, Octavien se desloca espiritualmente à cidade
fóssil. Escuta rumores indefinidos, vê formas humanas e encontra reconstruídas todas
as casas de Pompeia. Estupefato, vê os habitantes daquela cidade dos tempos do imperador
Tito, com seus trajes coetâneos. Que fantasmagoria arcaica! Octavien chega a conversar
em latim com um jovem pompeano que o conduz ao teatro Odéon para assistir à peça
La Casina, de Plauto. Sentado próximo
ao prosceninum, Octavien avista uma mulher
encantadora. Era a própria Arria Marcella, de olhar veludoso e ardente. Uma voz
lhe gritava, do fundo do coração, que aquela era a mesma mulher, cujo fragmento
de lava que lhe moldara o corpo vira no museu. Ela mesma se identifica perante o
seu admirador e declara que o pensamento ardente de Octavien fizera com que o seu
espírito emergisse do mundo invisível. Octavien teve consciência de que estava diante
do seu primeiro e derradeiro amor.
A
magia quimérica do pensamento forjara a reversão da realidade lógica dos sentidos,
criando uma epistemologia pura do espírito. A transfiguração de Arria Marcella faz
um percurso que vai da ressurreição de seus restos calcinados pelo Vesúvio até o
regresso ao estado de ruína desmantelada.
As
crenças filosóficas do personagem são efetivamente as mesmas do autor. Tampouco
estranhas, portanto, ao místico Gérard de Nerval, inspirador dessa fantástica estória.
O
Dr. Balthazar Cherbonneau, um médico que aprendera, junto ao sanyasi Brahma-Logum e a outros ascetas da
Índia, todos os enigmas dos trânsitos da alma humana, determina-se a curar seu paciente
daquela enfermidade insólita.
O
conde Olaf Labinski ouve falar nos milagres realizados pelo magnetizador Cherbonneau
e vai visitá-lo no rez-de-chaussée de
um velho prédio da rue du Regard. O taumaturgo, após fazer algumas demonstrações
de seus conhecimentos mágicos, desacorda o conde para despossuí-lo de sua alma.
Em seguida, manda chamar Octave e também o adormece. Após criar uma atmosfera cálida
no ambiente, o avatar coloca a alma de
Octave no corpo do conde Labinski e a alma do conde no corpo de Octave.
A
confusão identitária gerada por essa troca de almas é algo hilariante. Imagine-se
o estarrecimento do conde Labinski quando chega a casa e, com cara de Octave, não
é reconhecido por seus lacaios. Viu ali um homem, que era ele mesmo, ocupando seu
domicílio. Ao olhar-se no espelho, viu uma cara que não era a sua. Em face daquela
metamorfose, Labinski não podia provar sua identidade nem ostentar o título de conde.
Como se desvencilhar daquela pele na qual o médico-faquir o vestira?
Com
o corpo de Octave de Saville, o conde Olaf, agora chamado pelo narrador de Olaf-de
Saville, vai tomar satisfação junto ao feiticeiro que lhe roubara o corpo. O médico
hinduísta lhe aplica um choque elétrico no braço, que o desnorteia. Olaf-de Saville
procura então a clínica do Dr. B…, em Passy. (Esse Dr. B… é o Dr. Blanche, o mesmo
médico que acompanhou o tratamento psíquico de Gérard de Nerval). O Dr. Blanche
ouve aquela confissão insólita do seu consulente que alega ter sofrido uma mudança
radical de aspecto. Em resposta, o terapeuta convida Olaf-de Saville a passar duas
semanas em repouso em sua clínica, achando que seu interlocutor experimentava um
período de confusão mental. Olaf-de Saville declina do convite e volta à residência
de Octave-Labinski.
Prascovie,
ao deparar o marido na dualidade Octave-Labinski, estranha-lhe a inquietude das
maneiras e a ardência do olhar. Faz mil conjecturas sobre o fenômeno estranho da
repentina mudança no comportamento de seu esposo. Movida por esse sentimento, ela
evita dormir na companhia de Octave. Fecha a porta, passa o ferrolho e tem pesadelos
a noite inteira.
Octave
se angustia, questionando os meios a que recorrera para conquistar uma mulher cuja
invencível pureza desmontava qualquer maquinação, por mais infernal que fosse. No
café da manhã, a condessa fala a seu suposto marido uma frase em polonês. Ele não
sabe o que responder. O diálogo se faz impossível e a desconfiança de Prascovie
aumenta. Octave tem então a convicção de que seria impossível enganar o pudor celeste
de Prascovie.
Durante
o encontro dos dois rivais de almas trocadas, Olaf-de Saville perde as estribeiras
e se lança contra o pescoço do falso conde, gritando-lhe – Ladrão! Devolve minha
pele! A condessa chama os lacaios que levam o conde, na certeza de que o pobre Octave enlouquecera.
O
largo universo ficara estreito para ambos. A solução era um dos dois desaparecer
do mundo: Eu matarei meu corpo habitado por
vosso espírito impostor ou vós matareis o vosso, onde minha alma se indigna de estar
aprisionada; assim concluía a carta que Olaf-de Saville enviou a Octave-Labinski.
Ficou
acertado que o duelo aconteceria no bois de Boulogne, às 6 da manhã, mais precisamente
na avenida des Poteaux, onde havia um terreno de areia próprio para esse tipo de
ritual mortífero.
Octave,
no corpo do conde, demonstra maior habilidade na esgrima e, no entrelaçamento das
espadas, a arma de Olaf é arrematada e cai longe. Octave propõe então a seu rival
um pacto: ambos regressariam ao laboratório do Dr. Cherbonneau, de onde haviam saído
transfigurados.
No
ritual de restituição dos respectivos espíritos a cada corpo, o espírito do conde
foi facilmente transportado a seu invólucro original. O espírito de Octave, contudo,
se recusa a regressar à morada carnal e voa para uma distância inacessível. A solução
encontrada pelo Dr. Cherbonneau foi retirar-se de seu velho corpo de 70 anos e entrar
no corpo jovem de Octave.
Enquanto
o conde voltava a seu lar, e era recebido afetuosamente por sua esposa, Octave de
Saville, animado pelo espírito do velho médico, recebia um convite para assistir
ao enterro do M. Balthazar de Cherbonneau. O médico, por sua vez, revestido de sua
nova aparência, seguiu sua velha carcaça ao cemitério, viu-se enterrar e escutou
as palavras ali pronunciadas em sua homenagem.
O
discurso de Gautier é sofisticado: cultíssimo, cheio de referências estéticas, de
cunho histórico, literário, filosófico ou mitológico. A minuciosa precisão com que
ele descreve as florações e as ervas de cada canteiro dos jardins da mansão da condessa
é algo impressionante.
Tem
razão o crítico Alain Buisine, ao dizer, no prefácio de Contes et récits fantastiques, de Théophile Gautier, que a riqueza descritiva
do estilo de Gautier constitui uma caracterização pictórica, hiper-realista, da
linguagem: Disons qu’une telle picturalisation
du reél chez Théophile Gautier, d’ailleurs bien plus hyperréaliste que réaliste,
n’est pas simplement une méditation seconde pour le réprésenter: elle en est immédiatement
et intrinsèquement constructive. Le réel pose, et la beauté de sa pose est sa condition
d’existence. En tant que tel le réel est déjà un tableau, une collection de tableaux,
et l’écrivain fera semblant de se contenter de les transposer, de les transcrire
dans son écriture.
O
próprio Gautier confirma essa tese de seu zelo pela caracterização pictórica de
suas imagens literárias, ao escrever no conto Jettatura: Il faut peindre le
décor des scènes que l’on raconte.
Jettatura,
outra de suas extraordinárias ficções inspiradas na Itália, alude à crença popular, tradicional
dos napolitanos, de que há pessoas dotadas de mau olhado; uma influência capaz de
causar danos à saúde dos outros.
O
enredo gira em torno de Paul d’Aspremont, cidadão francês, que chega a Nápoles procedente
de Marselha. D’Aspremont se dirige ao hôtel de Rome, para encontrar-se com sua noiva,
a Miss Alicia Ward (uma belíssima jovem inglesa), e o tio dela, o comodoro Joshua
Ward, de 60 anos. Paul tem um olhar estranho. Alicia empalidece quando ele a admira
fixamente.
Às
vezes, ela sentia frio, sob o olhar inquieto de seu noivo. Ela se balançava numa
rede, cujo nó das cordas fora dado pelo comodoro. As cordas se romperam e ela caiu,
sem me machucar. Paul d’Aspremont não consegue esconder o mau humor diante da presença
do conde napolitano Altavilla, que os visita. Todas as vezes que Paul o olhava com
expressão sinistra, o conde arrancava uma flor e a lançava, de modo a cortar o eflúvio
da olhada irritada.
Alicia
reclama do estrago que Altavilla faz em suas flores. Ele promete enviar-lhe cem
corbeilles de fleurs vivantes, e o faz,
duas horas depois.
Juntamente
com os vasos de flores, o conde napolitano presenteia Alicia com um monstruoso par
de chifres de boi da Sicília.
Na
visita seguinte do conde, Alicia pergunta-lhe que significavam aqueles chifres que
a servente dissera terem o poder de prevenir contra o fascino ou a jettatura.
O
conde esclareceu o significado de fascino
ou jettatura e assegurou que os chifres
funcionariam como um para-raios que retém a descarga da influência perniciosa, exercida
pela pessoa dotada de mau olhado. Aduziu que aquela superstição, na qual ele também acreditava, era antiga. Asseverou que,
no entanto, em todo o Oriente ainda se usam amuletos.
O
conde aconselha a moça e seu tio a tomarem cuidado com a jettatura. De pronto, em meio àquela conversação sobre chifres e amuletos,
para a estranheza de Miss Ward e de seu tio, Altavilla pede ao comodoro a mão de
sua sobrinha. Na condição de marido, teria como defendê-la. Instado a revelar o
nome do suposto jettatore, Altavilla diz
não desejar ser um denunciador e dá a Alicia alguns dias para refletir.
Em
toda parte, Paul d’Aspremont escuta a palavra jettatura, pronunciada com uma expressão ameaçadora, e observa o gesto
bizarro que sua presença provoca. Pergunta o que ele tem de singular ou de ridículo
para chamar a atenção das pessoas de maneira desfavorável. No mercado de Chiaja,
mostram-lhe as mãos com o auricular e o índice alongados, murmurando imprecações.
Ele compra, casualmente numa livraria, o Tratado
da Jettatura, do signor Niccolò Valetta, lê o livro e entende o poder fatal
de que fora dotado: ele era um jettatore.
Paul ficou tão impressionado com essa estranha revelação que se assustou com a própria
imagem no espelho. Convenceu-se de que, embora capaz de sentimentos afetuosos, o
veneno involuntário do seu olhar prejudicava os outros, destilando miasmas mórbidos
ao redor de si. Ele se recorda então de circunstâncias infelizes de sua vida. Ao
nascer, provocara a morte de parto de sua mãe. Uma dançarina inglesa se acidentara
fatalmente, impactada por seu olhar de admiração. A própria miss Ward perdera a
saúde, depois de conhecê-lo.
Quando
saiu a passear com seu noivo, Alicia percebeu que ele evitava olhar diretamente
em seus olhos. Assim, ela lhe pediu que fixasse o olhar no semblante dela. Ante
o olhar avassalador de Paul, ela sente uma dor profunda no peito e algumas gotas
de sangue lhe molham o lenço.
Naquelas
condições de precária saúde, Alicia decide casar-se com Paul d’Aspremont, mas eis
que o comodoro hesita, apesar de ter empenhado sua palavra. O tio da noiva sabe
que o mal que Paul d’Aspremont causa aos outros é involuntário. No entanto, vê a
sobrinha morrendo aos poucos e diz a ela que ninguém se casa com um vampiro, por
melhores que sejam as intenções dele.
O
encontro dos rivais resulta no agendamento de um duelo, que terá lugar nas ruínas
de Pompeia, na primeira hora matinal. Os adversários lutarão com punhais e de olhos
vendados. Paul reza para morrer no fatal combate, a fim de que Alicia sobreviva.
Os
inimigos se encontram no pátio dos banhos antigos de Pompeia, no final da voie Consulaire,
perto da rue de la Fortune. No embate atroz, o conde napolitano perde a vida, abatido
por uma punhalada. Diante de sua impossível condição existencial, Paul queima os
olhos com uma lâmina ardente. Poderia assim ser o marido de Alicia, sem que ela
definhasse heroicamente sob o seu olhar. A tragédia, porém, estava consumada.
Envolto
nas trevas da cegueira, o homem estigmatizado consegue chegar à habitação de Alicia.
Um silêncio sinistro ali reinava. Atormentado por terríveis pressentimentos, ele
se dirige, tateando, ao leito fúnebre de Alicia e encontra o cadáver de sua noiva.
Transido
de dor e desespero, Paul caminha em direção ao mar. Chega à borda do rochedo e cai
no meio das ondas que a tempestade agitava.
Desde
então, o comodoro já não bebe o seu rum com chá. Come com a ponta dos dentes e diz
apenas duas palavras por dia. Tornou-se um homem pálido.
Nos
contos de Théophile Gautier, tão primorosamente escritos, observa-se extrema destreza
na definição das cores e das circunstâncias bem como na descrição detalhada das
experiências dos personagens.
Quanto
a seu esmero perfeccionista na caracterização dos personagens, nota-se que os cabelos,
os olhos, a boca, o formato do rosto, a compleição física, os trajes, tudo é especificado
minuciosamente, num discurso cultíssimo. Gautier descreve os ambientes por meio
de comparações e alusões a obras literárias ou a imagens pintadas pelos mais destacados
artistas plásticos. Uma ironia finíssima se dilui, delicadamente, na concepção psicológica,
na expressão dos sentimentos e nas considerações sobre as atitudes dos personagens.
Determinadas insinuações irônicas, associadas ao inusitado das situações, revelam
o agradável sentido de humor de Théophile Gautier.
Essas
virtudes da arte do engenhoso Gautier foram motivo suficiente para que Charles Baudelaire
o chamasse de mestre e lhe dedicasse suas perenes Flores do Mal.
A
prodigiosa viagem de Gautier à Península Italiana resultou, como se vê, em maravilhosos
escritos. Foi, porém, objeto de certo desgosto. Ele foi expulso de Nápoles, em 4
de novembro de 1850, no décimo segundo dia de sua estada na terra de Alfonso Maria
de Ligorio. Não se sabe muito a esse respeito. Atribui-se, no entanto, a causa de
sua defenestração a suas ideias revolucionárias. As insurreições republicanas, acontecidas
dois anos antes no Norte da Itália, inquietavam as autoridades napolitanas, ao ponto
de convidarem aquele escritor socialista
a retirar-se da cidade. Os antecedentes de tal hostilidade teriam sido tanto os
artigos que ele escrevera em jornais franceses sobre a Itália, no contexto de suas
críticas aos regimes absolutistas, quanto a visita que fizera em Nápoles à poeta
Irène Ricciardi Capecelatro, irmã do líder político Giuseppe Ricciardi.
Em 1852, Gautier vai, com Ernesta e a filha Estelle,
à Grécia e à Turquia, onde, entre outros estudos, pesquisou sobre o ritual da confraria
dos Aissaoua, que praticava o êxtase aromático.
Nesse mesmo ano, faz a primeira edição de Emaux
et camées, cujos primeiros poemas já haviam sido publicados na Revue des Deux Mondes. Deste tesouro de curtas
estrofes em ritmo de oito sílabas, joias polidas com habilidade de ourives, destaco
esta prosopopeia do seu panteísmo místico, intitulada L’obélisque de Paris, do livro Émaux
et camées, tema que lhe fora proposto, numa carta, pelo polígrafo Maxime du
Camp e que ele desenvolveu numa graciosa sátira. O obelisco da place de la Concorde,
aos pés do cadafalso de Louis XVI, chora sua saudade das barcas sagradas dos faraós.
Molhada pelas chuvas do outono e pelas neves do inverno, a pedra esguia sente falta
do sol ardente, das brisas e das palmeiras do Egito. E maldiz o Sena, cheio de vigas
que não valem os crocodilos do Nilo:
Sur cette place je m’ennui,
obélisque deparreillé.
Neige, givre, bruine et pluie
glacent mon flanc déjà rouillé.
Et ma vieille aiguille rougie
aux fournaises d’un ciel de
feux,
prends des paleurs de nostalgie
dans cet air qui n’est jamais
bleu.
(…)
Sur l’échafaud de Louis seize,
monolite au sens abolit,
on a mit mon secret, qui pèse
le poids de cinq mille ans d’oubli.
(…)
La Seine, noir égout de rues,
fleuve immonde fait des ruisseaux,
salit mon pied, qui dans ses
crues,
baisait le Nile, père des eaux
(…)
Le Nil, géant à barbe blanche,
coiffé de lotus et de joncs,
versant de son urne qui penche
des crocodilles pour goujons.
Depois
da viagem a Constantinopla, Théophile morou, a partir de 1853, na rue de la Grange-Batelière,
nº 24, quinto andar, num grande apartamento com terraço, de onde se avistava o hôtel
Drouot, em Montmartre, atrás do hôtel des Ventes. Nesse tempo, ele se torna um competente
crítico de música e escreve sobre as óperas apresentadas no Théâtre Italien. Permanece
no mencionado endereço até abril de 1857.
No
9º arrondissement, onde me hospedei no final de 2019, neste Montmartre cheio de
atrativos culturais, atravesso a passage Verdeau e encontro, diante de mim, a rue
de La Grange-Batelière, nome decorrente do fato de haver existido ali, na Idade
Média, uma fortaleza feudal e um riacho, ambos assim denominados. Também vejo, frente
a frente, outro corredor comercial de longa data, a passage Jouffroy, construída,
como a Verdeau, no tempo de Louis-Philippe, de 1845 a 1846. Ambas conservam ainda
as armações metálicas e os tetos envidraçados. Nelas, de antigo, o charme das boutiques,
das livrarias e dos restaurantes atraem os flâneurs.
Vejo a formosa fachada do velho hôtel Drouot e imagino Gautier por ali na década
de 1850, quando residiu naquela área.
No dia 30 de janeiro de 1855, Théophile Gautier
publica, no editorial de La Presse, o
necrológio de seu querido Nerval: une âme
charmante a quitté notre planète, et poursuit son rêve dans ces mondes plus splendides
et plus beaux qu’elle avait déjà tant de fois visités en esprit. Muito
emocionado, Gautier acorre à missa de corpo presente, na catedral Notre-Dame e,
em seguida, à inumação de seu admirado amigo, no cemitério Père-Lachaise.
Gautier
dirige, em 1856, o periódico L’Artiste,
situado na rue Lafitte, 21, no qual escreve sobre os grandes pintores de sua época.
Publica ali poemas de seu amigo Baudelaire, constantes de Les Fleurs du Mal, livro que os críticos do jornal Le Figaro execraram, ao ponto de provocar
aquele processo que censurou e multou o seu grande autor.
Naquele
tempo em que os artigos publicados em jornais permitiam aos escritores viver de
literatura, Gautier acelera sua produção de textos para o jornal Le Moniteur universel (jornal alinhado com
a política imperial de Napoleão III), no qual publica, em 1857, o elogio de Odes funambulesques, de Théodore de Banville,
bem como alguns de seus principais contos fantásticos, como os aqui referidos Avatar e Jettatura.
Outorgam
a Théophile Gautier, em 1858, o título de Oficial da Légion d’Honneur, em decreto
firmado pelo imperador Napoleão III. Comenda que foi para ele um desagravo, pelo
fato de a Academia haver-se privado, insensivelmente, da honra de incluí-lo entre
seus pares. Tampouco Balzac, Baudelaire, George Sand e Alexandre Dumas lograram
êxito em suas candidaturas.
O
ano de 1858 foi também (em outubro) o da viagem de Gautier à Rússia, país que há
muito admirava. Por adorar a pátria de Dostoiévski, apesar de detestar o frio, escreveu
Trésors d’art de la Russie ancienne et moderne,
como resultado de sua visita a São Petersburgo.
Viu
frustrada sua expectativa de viagem à China, quando as autoridades francesas recusaram
sua petição de recursos para uma estada, na condição de historiógrafo, no gigante
país do Oriente. Decepcionou-se com as autoridades francesas e se queixou da insensibilidade
da maioria da humanidade em relação ao Belo e ao Bem.
Em 1862, Gautier é eleito Presidente
da Société Nationale des Beaux-Arts. No ano seguinte, publica o romance La Capitaine Fracasse. Nesse livro, a descrição pormenorizada de um
vislumbre de Notre-Dame faz-nos recordar o que Proust afirma, em seu ensaio Journées de lecture, ao referir-se, sobretudo
a Voyage en Espagne, sobre o polimento
que Gautier infunde em cada frase, acentuando e perfazendo a marca plena de graça
e alacridade de sua personalidade. Proust assinala: nous n’exageront
pas sa puissance spirituelle. E conclui: comme nous le suivons dans ses aventures, ce compagnon plein d’entrain;
il est si symphatique que tout autour de lui nous le devient. Vejamos este excerto
de Gautier, do livro La Capitaine Fracasse:
Notre-Dame
apparaissait en plein, se montrant par le chevet avec ses arcs-boutants semblables
à des côtes de poisson gigantesques, ses deux tours carrées et sa flèche aiguë plantée
sur le point d’intersection des nerfs. D’autres clochetons plus humbles trahissant
au-dessus des toits des églises ou des chapelles enfouies dans la cohue des maisons,
mordaient de leurs dents noires la bande claire du ciel, mais la cathédrale attirait
surtout les regards de Sigognac qui n’était jamais venu à Paris et que la grandeur
de ce monument étonnait.
Foram
certamente felizes os anos da maturidade intelectual, em que, desde 1868, Gautier
foi bibliotecário da princesa Mathilde, cujo salão frequentou na rue de Courcelles,
24.
Após deixar a rua de La Grange-Batelière, já instalado
na casa situada em Neuilly, Gautier não tolerava as visitas de Catulle Mendès, namorado
de sua filha Judith. Desconfiava dos costumes
e das esperanças do jovem poeta que viria a ser seu genro. Não assistiu ao casamento
de Judith e Catulle em 1866. Opôs-se àquele matrimônio com tal veemência, que a
discórdia redundou em sua separação de Ernesta Grisi.
De
1864 (ano de sua segunda viagem à Espanha) a 1869, Gautier foi 8 vezes a Genebra
com Carlotta Grisi (a irmã de Ernesta), amiga cuja companhia o satisfazia mais do
que qualquer outra mulher, sobretudo do ponto de vista intelectual. Durante uma
de suas viagens a Genebra, aconteceu a morte de Baudelaire, no final de agosto de
1867, e Gautier não pôde assistir aos funerais de seu grande amigo. Sua produção
literária se intensificou nesse período, mediante a publicação, em diversos jornais,
de artigos que compunham uma história do romantismo, que ficou inacabada.
Em
1886, onze anos depois da morte de Baudelaire, Gautier escreve seu magnífico ensaio
sobre o poeta das Flores do Mal. Rememora
o primeiro encontro com Baudelaire no hôtel Pimodan em 1846. Ressalta a espirituosidade
do dândi extraviado na boemia, que avançava axiomas satanicamente monstruosos, conservando
porém sua categoria e suas maneiras. Evoca os sonhos e os êxtases do clube dos haxixeiros,
no salão do artista plástico Fernand Boissard.
Do
estilo engenhoso da poesia de Baudelaire, cheio de variantes e de rebuscamentos,
diz Théophile ser a expressão natural de um cérebro que se esforça para exprimir
o pensamento no que ele tem de mais inefável, traduzindo as confidências sutis da
neurose e as confissões da paixão. A prosa baudelairiana, contudo, é produzida numa
língua correta, clara, pura e exata. Quanto a suas doutrinas filosóficas, aquele
sumo sacerdote da poesia admitia a perversidade original como um elemento que se
encontra sempre no fundo das mais puras almas. Professava, não obstante, o mais
altivo asco pelas torpezas do espírito e pela fealdade da matéria. Spleen e Idéal poderiam ser as palavras de
seu sinete. Nesse sentido, o senso crítico de Baudelaire observava, nas sinuosidades
da imensa madrepérola de Paris, os maus instintos nascentes e os mais ignóbeis hábitos.
Gautier
comenta alguns poemas de Les fleurs du mal,
cuja imoralidade erudita exige elevada cultura literária da parte dos leitores.
A censura não foi mais que um modo de reconhecer que Baudelaire trazia uma obra
original e de um sabor todo particular. Em outros poemas, Gautier destaca a devoção
com que Baudelaire enaltece o trabalho do poeta. Em Bénédiction, por exemplo, o poeta, perseguido pelo sarcasmo e pela inveja,
insultado e torturado, se alça à eterna glória, coroado pela luz dos mártires que
sofreram pela Verdade e pela Beleza. No poema Le Soleil, o poeta é apresentado
como um andarilho que percorre a cidade, semeando versos pelas ruas tortuosas e
entrando, como o Sol, no palácio, no hospital ou na igreja, sempre puro, brilhante,
clareando a rosa e a carniça.
Gautier
deplora a morte de seu amigo, acometido de uma enfermidade que o impedia de falar.
Reconhece quanto é doloroso, para os sobreviventes, ver partir tão cedo uma inteligência
notável que por muito tempo ainda poderia dar frutos, e perder no caminho cada vez
mais deserto da vida um companheiro de juventude.
Por
fim, o autor do ensaio elogia os Pequenos
poemas em prosa, que traduzem os movimentos mais secretos da alma, as melancolias
caprichosas e o spleen alucinado das neuroses:
A maior glória de Baudelaire foi, portanto,
ter feito entrar nas possibilidades do estilo séries e coisas, de sensações e de
efeitos inominados por Adão, o grande nomenclador.
Gautier
escreveu, em 1867, o ensaio La vie de Gérard
de Nerval, em que relata as lembranças daquele seu grande amigo. Com a riqueza
de detalhes que caracteriza seu estilo, Gautier descreve o rosto e louva o caráter
de Nerval. Faz revelações imprescindíveis para desvendar os enigmas da figura quase
mítica daquele tipo admirável. Diz que o cérebro de Nerval foi preparado pela natureza
para armazenar um arsenal de conhecimentos. No entanto, alojaram-se nele tantas
informações sobre sistemas teológicos e filosóficos que aquele panthéon tornou-se
uma Cafarnaum, cuja cúpula desmoronou.
Comenta
Gautier que Gérard levava sempre consigo alguns livros e cinco ou seis cadernos
de notas para as longas caminhadas. Por haver consagrado parte de sua vida à fantasia,
ao sonho e ao lazer, seu colega do liceu Charlemagne deixou muitos textos inéditos.
Recordou-se Gautier do tempo em que eles residiram no impasse du Doyenné, onde transcorreram
os mais belos anos de suas vidas. Naquela idade de ouro, Gautier preparava o macaroni, enquanto Gérard fazia as compras
no açougue que havia na vizinhança. Nerval lia à noite com uma lâmpada de cobre
sobre a cabeça, e quando dormia, a lâmpada caía, com o risco de incendiar o ambiente.
Eles
escreviam a quatro mãos artigos para o folhetim dramático La Presse, com as iniciais G.G. Um substituía o outro, quando um dos
dois viajava para escrever novas reportagens. Gérard comparava aquela alternância
fraterna à dos Dióscuros.
Gautier
refere-se às impressionantes narrativas de Nerval, que eram verdadeiros sonhos cosmogônicos
de um deus ébrio de néctar. As qualidades da inteligência de Nerval eram tão admiráveis
que era difícil perceber qualquer alteração ou desordem em seu cérebro. E, depois
de cada acesso, Nerval narrava, com uma eloquência e uma poesia maravilhosas, o
que havia visto nas alucinações, mil vezes superiores às fantasmagorias do haxixe
e do ópio. O talento de Nerval sobressaía por sua maneira de passar, de um modo
imprevisto, do pensamento ao sonho e de um incidente cômico a algum êxtase etéreo.
Seu livro Voyage en Orient demonstra sua
destreza ao descrever as nuances de todos os detalhes do mundo maometano, apresentadas
com fineza e rara consciência de observação. Suas aventuras no Líbano têm uma graça
especial. Há, no livro, episódios que revelam atitudes inocentes e jocosas de Nerval,
como o pedido da mão da filha do chefe druso, uma moça que se parecia com aquela
cuja paixão Nerval buscava se esquecer no Oriente. E, depois de tanta empolgação,
uma febre o advertira de que seria melhor dar o dito por não dito e devolver a noiva
a seu poderoso pai.
Gautier
também atribui destaque à novela Sylvie, em
Gérard de Nerval traz a lume lembranças idílicas da infância, em meio à paisagem
graciosa de Ermenonville.
Gautier alude, por
fim, à ideia da continuação dos tipos através de várias formas na literatura de
Gérard. Os caracteres de sua ficção, tal como se crê nas tradições orientais, manifestam-se,
sucessivamente, no oceano das idades. A respeito do misticismo de Nerval, comenta em La Vie de Gérard: Initié aux mythologies et aux
superstitions de tous les peuples, chaque chose devenait pour lui un augure et prenait
des sens inconnus au vulgaire. Les nombres, les étoiles, les vols d’oiseaux, les
traversées fortuites d’un animal sur le chemin influaient sur ses résolutions.
O
ano de 1869 foi o da viagem de Gautier ao Egito, para assistir à inauguração do
canal de Suez. Foi também o do início da deterioração de sua saúde. Fumador de charutos,
padeceu de edema pulmonar e foi acometido de crises cardíacas. Os Goncourt o viram
pálido e envelhecido na casa da princesa Mathilde. Ninguém diria que ele, no entanto,
sobreviveria a um dos irmãos Goncourt.
Grande
parte da prosa de Gautier foi escrita à luz de suas viagens. Como exceção à regra,
suas ficções egípcias foram escritas antes da viagem ao país dos faraós. O Egito
era o país de sua fascinação. Sou egípcio,
és alemão. Parece-me que vivi no Oriente…, dissera em carta a Nerval, datada
de 1843. No relato “Égypte”, de L’Orient,
ele descreve, com os pormenores característicos de seu proverbial estilo, os incríveis
cuidados adotados pelos europeus para se protegerem dos ardores do Sol naquele país
onde as oftalmias são frequentes.
Depois de atravessar a Île Saint-Louis, tomo o metrô Pont Marie, que se conecta
com a Linha Um, a amarela, no Palais-Royal, e zarpo na direção de La Défense.
Saio na parada Pont de Neuilly e logo encontro a rue de Longchamp, logradouro
pitoresco, tranquilo, enfeitado lateralmente por arbustos que lhe atribuem um colorido
natural. Ar puro, na quietude da Ville de Neuilly-sur-Seine, longe dos redemoinhos
das multidões.
A visão da encantadora casa, onde Théophile Gautier se instalou com a família
em 1857, coroa de êxito minha peregrinação. Ali, ele recebia os amigos Baudelaire,
Flaubert, Puvis de Chavannes e Gustave Dorée, entre outros.
Gautier
morou na rue de Longchamp, 32, de 1857 a 1872, ano em que pereceu de uma afecção
coronária, após escrever o seu último livro, Tableaux de Siège. A companhia de suas duas irmãs, sua nora e seus dois
netos, constituiu um consolo nas horas de sofrimento.
Ele
abominou os estragos que a guerra contra a Prússia fez em Paris, danificando sua
casa, que foi objeto de avarias, durante a Comuna de
1871. Em Paris, naquele ano, havia carência
de alimentos. Depois de passar uns dias com suas duas irmãs numa vivenda provisória
na rue de Beaune, Gautier refugiou-se em Versailles. O incêndio do Louvre, os bombardeios
e a estupidez suicida da Commune o desesperavam.
Passados os dias mais truculentos da tormenta dos belicosos, ele regressou,
na primavera do mesmo ano, para restaurar sua mansão, da qual desfrutou apenas por
mais um ano. Enfermo, Gautier faleceu no dia 23 de outubro de 1872, aos 61 anos.
Dirá Mallarmé, em seu Tombeau de Théophile Gautier: Ô
de notre bonheur, toi, le fatal emblème.
Na parede do lado direito da casa, há uma placa, em que constam as datas
cruciais da existência de Théophile Gautier: o nascimento, em 1811, e a morte, em
1872, aos 61 anos. É uma maravilha que o casarão de três andares, três janelas por
piso e um sótão de janelas redondas como escotilhas, que o fazem de algum modo semelhar
uma embarcação, conserve suas antigas características, o que se pode comprovar pela
foto na placa, que mostra a casa nos tempos em que o poeta a ocupou. Mostra, ainda,
a fotografia dele em 1867, ostentando fartas a barba e a cabeleira, vestindo elegantemente
seu casaco e apoiando o braço direito numa cadeira.
Volto ao ponto do metrô e vejo os grandes edifícios envidraçados que marcam
um espaço moderno de Paris, onde o grande arco branco e retangular de La Défense
constitui um dos arautos, um dos símbolos épicos da cidade. Regresso pela Linha
Um até a parada do Hôtel de Ville.
Agulha Revista de Cultura
Número 225 | março de 2023
Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)
editor | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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