quarta-feira, 8 de março de 2023

MÁRCIO CATUNDA | Théophile Gautier e o testemunho das realidades reversas

Pierre-Jules Théophile Gautier, filho de Jean-Pierre Gautier e de Adélaïde-Antoinette Cocard, nasceu no dia 31 de agosto de 1811, em Tarbes, cidade do departamento dos Altos Pirineus, na região da Occitânia. Morou em Paris desde os nove anos, quando estudou no internato do collège Louis-le-Grand, na rue Saint-Jacques, 123, e, três meses depois, no collège Charlemagne, na rue Saint-Antoine, no Marais, onde conheceu Gérard de Labrunie, o fabuloso Nerval, que o apresentará a Victor Hugo. Em 1829, Gautier estudou pintura no ateliê de Louis-Édouard Rioult, na rue Saint-Antoine.

Nesse período de seus estudos de artes plásticas, Gautier se reunia com seus pares, homens de espírito, na rue de la Fontaine-Saint-Georges (hoje rue Pierre-Fontaine), no ateliê de Paul Gavarni, artista que Baudelaire menciona em seu poema L’idéal.

De 1828 a 1833, Théophile viveu com seus pais na place Royale, nº 8, no tempo em que, sendo vizinho de Victor Hugo, frequentou a casa do autor de Les misérables, na companhia de Gérard de Nerval. É desse tempo a irreverência com que Gautier personificou na plateia o jovem do “gilet rouge”, fazendo estardalhaço na estreia da peça Hernani, de Victor Hugo. Peça que suscitou, em 1830, o entusiasmo da juventude. Data desse ano, também, a publicação do livro Poésies, de Théophile Gautier.

Seu livro Mademoiselle de Maupin, de 1834, causou espécie. Sainte-Beuve o considerou um livro de patologia. Sua personagem principal, Diana Vernon, vestia-se masculinamente e viajava pelo mundo. O prefácio de Mademoiselle de Maupin é uma invectiva contra os críticos literários e os burgueses da monarchie de Juillet (nome dado ao regime político do reinado de Louis-Philippe, entre 1830 e 1848). Gautier se volta contra o utilitarismo dos oportunistas do regime (principalmente os do jornal Le Constitutionnel, que apoiava a coalizão de liberais, bonapartistas e anticlericais). O poeta combatia, também, o profetismo progressista hugoliano (arte em função do progresso moral, social e político). A essa estética, Gautier se opunha, propondo a arte pela arte, em nome da beleza como paixão única do artista.

Em toda a sua carreira de brilhante escritor, Gautier se manterá fiel à sua estética, rindo do jeito interesseiro e astuto dos políticos e da ideia de subordinar a arte à vida prática, aventada por alguns críticos.

Em agosto de 1836, Gautier realiza, na companhia de Gérard de Nerval, uma viagem à Bélgica, da qual resultará uma série de artigos intitulados Un tour en Belgique, publicados na Chronique de Paris, de setembro a dezembro. Data desse período o seu relacionamento com Eugénie Fort, que lhe dará um filho de nome Charles-Marie Théophile, cuja pensão alimentícia o poeta pagará.

Depois de morar na casa da rue du Doyenné (também conhecida por impasse du Doyenné), de 1834 a 1835, ele se muda para um apartamento na rua de Navarin, nº 14, cujo primeiro e segundo andares ocupou, de 1839 a 1841. Tanto na rue du Doyenné quanto na rue de Navarin, teve a alegre companhia de Gérard de Nerval, parceiro das noites boêmias, com quem escreveu diversos textos. Théophile Gautier era então o poeta de cabeleira esdrúxula e hábitos extravagantes, que soltava fogos de artifício no jardim, criava gatos, um cachorro, ratos brancos e um papagaio, e que tinha um tanque cheio de peixes. Era o autor de Grotesques, que sonhava com uma consagração maior no cenário da literatura francesa.

Gautier residiu duas vezes na rue de Navarin. Na segunda vez, no número 22. Dali saiu para o hôtel Pimodam, onde, em 1845, na companhia de Nerval, Dumas, Flaubert, Délacroix e Baudelaire, passou pela magnífica experiência do Clube dos Hashishins. Nerval, o de prodigiosa imaginação, começaria ali a transfigurar o real em cintilantes eclipses da razão.

Conquanto sempre acossado por problemas financeiros, Gautier realizou o sonho de sua juventude. Havia nascido para viajar e escrever. Viajou à Espanha em 1840 e à Argélia, em 1845. Outras peregrinações virão com o tempo. Visitará também, nas décadas seguintes, a Inglaterra, a Holanda, a Itália, a Grécia, a Turquia, a Rússia e o Egito.

De sua memorável viagem à Espanha, em que se fez acompanhar de seu amigo Eugène Piot (jornalista e crítico de arte), Gautier registrou, em Voyage en Espagne, as mais indeléveis impressões. Esse livro é um autêntico tratado de sociologia e antropologia espanholas. Sua narrativa contém detalhadas apreciações sobre diversas cidades que visitou. Com sua elegante prosa, faz um inventário das obras de arte contempladas na fisionomia gótica de Burgos, dos prodígios dos pintores espanhóis do Museu do Prado (especialmente a obra pictórica de Goya), da prolífica produção teatral dos espanhóis, caracterizada por um romantismo anterior a Shakespeare, do colosso arquitetônico do Escorial e da paisagem escarpada de rochedods de Toledo (la ville des belles épées et des dagues romantiques).

Em seguida, Gautier relata seu trajeto a caminho de Andaluzia, quando, ao atravessar a região de La Mancha, lembrou-se do Cavaleiro da Triste Figura e de seu escudeiro Sancho. Em Granada, encantou-se com a vista das colinas, visitou o Albaicin e a Alhambra, dos quais descreveu a sofisticação ornamental mourisca, com a simetria da decoração de arcos e colunas bem como as filigranas da caligrafia árabe. Subiu e desceu a montanha até o cimo do Mulhacen.

Chegou a Málaga, montado numa mula e apreciou a brancura das casas, o tom índigo intenso do mar, a intensidade brilhante do dia. Dali partiu para Córdoba (la villa des califes), guardada pelo alado arcanjo Raphael, o sentinela que se avista no alto de sua coluna.

A mesquita-catedral cordobesa o impressionou, com sua esplanada plantada de elegantes colunas de mármore, pórfiro e jaspe, e seu Mihrah, constelado entre mosaicos vítreos, sobre os quais estão gravados versículos do Corão em letras de cristal dourado.

Em Sevilla, o primeiro que lhe chamou a atenção foi a torre La Giralda, que se mostra no horizonte com sua lâmpada e sua construção quadrada. Na percepção de Gautier, Sevilha é uma cidade alegre, que contrasta com a austeridade lúgubre de Córdoba. A beleza das sevilhanas acrescenta um encanto novo às graças do bairro de Triana e à Torre del Oro, às margens do Guadalquivir, bem como à esplêndida catedral e ao belo Alcázar. Nos arredores de Córdoba, Gautier visitou as ruínas de Italica, pátria do poeta Silius Italicus e dos imperadores Trajano, Adriano e Teodósio. Ressaltou, em seu relato, a antiguidade das muralhas sevilhanas, cuja fundação se atribui a Júlio César.

Em Cádiz, desfrutou da paisagem da cidade emoldurada em muralhas e rochedos, da qual se vêm os barcos flutuando no azul do mar. Com sua brancura cintilante, Cádiz lhe pareceu uma imensa coroa de filigrana de prata.

Para testemunhar que percorrera a Espanha de ponta a ponta, o poeta estendeu sua viagem até Gibraltar, cidade situada na entrada de um golfo, tal como Cádiz. Dali avistou Alceciras alçada em brancas casas que reluzem no azul universal como o ventre prateado de um peixe à flor da água. A parte final da viagem transcorreu em Valência, de onde Gautier embarcou de regresso à França, levando na memória as magníficas visões da terra de Cervantes.

Com erudição inigualável, Gautier estudou, em Voyage en Espagne, as cores e as formas arquitetônicas das igrejas e a história legendária da Espanha. Admirável a força de espírito do grande poeta viageiro, que enfrentou privações de todo gênero, sob o calor sufocante, exposto ao perigo dos assaltos. Viagem divertida, porém estoica, dadas as condições de deslocamento disponíveis naquele tempo em que os transportes eram tão precários e os viajantes se expunham perigosamente às intempéries.

Ainda em 1840, Gautier escreveu, para a grande Ópera de Paris, o célebre libreto do ballé Giselle. Com música de Adolphe Adam, Giselle é a história trágica da desilusão amorosa da jovem camponesa que dá nome ao espetáculo.

Os anos da década de 1840 foram os tempos de plenitude em que Gautier escreveu com Nerval o libreto do ballé La damnation de Faust, que Hector Berlioz compusera, depois de ler a tradução que Nerval fizera da obra imortal do grande Goethe. A estreia de La damnation de Faust aconteceu no Opéra-Comique, em 6 de dezembro de 1846.

Naquele período áureo de sua vida, Gautier frequentou, aos domingos, o salão de Apollonie Sabatier, la Présidente, que tinha seu feudo domiciliar na avenue Frochot. Théophile revia sempre, na casa da ilustre anfitriã, gente da categoria de Flaubert, Baudelaire, Henri Monier, entre outros expoentes da grande literatura francesa. Gautier mostrava-se indulgente com o caráter insólito de Baudelaire, que ali destilava sua irreverência na forma de impropérios contra o gênero humano e seus principais protagonistas.

Por ser de fácil convívio social, Théophile Gautier se relacionava afortunadamente com pessoas de prestígio e cultura. Além da casa de Apollonie Sabatier, ele comparecia aos salões de Louise Colet, amante de Flaubert, e aos saraus e às prazerosas conversações da princesa Mathilde Bonaparte, na rue de Courcelles.

A partir de 1848, Gautier morou na rue de Rougemont, nº 14, entre a rue Bergère e o boulevard Poissonnière.

Hospedei-me, na quarta viagem de estudos, num hotel na curta rue de la Boule-Rouge, próximo à Grange-Batelière, área onde também Isidore Ducasse morou, cerca de 18 anos antes de Gautier. Pela fantasticamente tumultuada rue du faubourg Montmartre, tomo a direção da rue Bergère, para descobrir os lugares onde Théophile Gautier morou.

Percorri a rue Rougemont, que começa numa entrada à direita da rue Bergère, cujas laterais são grades de ferro. A rue Rougemont é interrompida pelos prédios que a fecham, forjando um impasse. Nela está situado o hôtel Rougemont. No final do seu trajeto, do lado direito de quem por ela entra, há outro portão, com as grades, porém, fechadas. Além desse portão, o caminho continua noutra estreita passagem, cheia de hotéis e silenciosa, diversa do estardalhaço de carros e pedestres da rue du faubourg Montmartre. Essa continuação da rue de Rougemont se chama Cité Bergère. Seu portão dá de frente para o restaurant Chartier, localizado no prédio onde viveu e morreu Lautréamont, em 1870.

Théophile Gautier viajou, em 1849, à Inglaterra, com a namorada Marie Mattei. Data desse período sua ligação amorosa com a contralto Ernesta Grisi, com quem teve as filhas Judith e Estelle. Ele cortejava Ernesta desde 1839, quando assistira à atuação da cantora no Théâtre Italien, no papel de Adalgiza, na ópera Norma, de Vincenzo Bellini. Elogiara o talento e a beleza da artista no tabloide La Presse. Sua amizade com a irmã de Ernesta, a bailarina Carlotta Grisi, é simultânea ao relacionamento com aquela que veio a ser a mãe de suas duas filhas. O poeta flertava com Carlotta desde que a conhecera nos ensaios do balé Giselle, em 1840. Sempre dividido entre duas belas mulheres, ele confessou haver verdadeiramente amado apenas uma mulher: Carlotta. E com o sentimento que se costuma taxar de amor platônico.

De agosto a novembro de 1850, esteve na Itália, com Marie Mattei e o amigo escritor Louis de Cormerin. Atenho-me detalhadamente a alguns aspectos dessa que foi a viagem que mais impressionou Gautier; mais até do que a desejada peregrinação ao Egito, realizada alguns anos depois.

Dois dias em Milão lhe mostraram a elegância gótica do Duomo e a famosa tela L’Ultima Cena, de Da Vinci. É fascinante constatar o encantamento de Gautier em Veneza. Ele narra em êxtase sua estada na cidade lacustre. Deslumbra-se, entre diversas surpresas, com a basílica de San Marco, com alguns quadros expostos na Accademia e com a paisagem vista de todos os ângulos de cima da Campanille, de 99 metros de altura.

No livro que escreveu sobre a cidade dos Doges, descreve, com entusiasmo, a perspectiva que se vê do alto da torre da piazza San Marco: em direção ao mar, o campanário vermelho de San Giorgio, a Giudecca e suas igrejas, e as diversas ilhas que compõem o arquipélago veneziano. Em direção à Piazza, a Dogana, a Salute, a entrada do Canal Grande, e as torres das igrejas de San Moisè, Santo Stefano e Santa Maria Gloriosa dei Frari. No horizonte extremo, os montes Eugâneos.

Apreciou o exuberante rococó da fachada da igreja San Moisè, em cujas proximidades se hospedara. Visitou a ilha de San Servolo, para conhecer o hospício de alienados mentais. Contemplou, na ilha da Guidecca, a igreja del Santissimo Redentore e os prodígios pictóricos nela guardados.

Da catedral de Veneza ele elogia o altar dentro de um templo inundado de ouro. Confessa que nem Colônia, nem Estrasburgo, nem Sevilha e nem mesmo Córdoba, com sua mesquita, impressionaram-no tanto.

A respeito da Pietà de Ticiano, afirma, no livro Venecia, Impresiones del Viajero, que esse derradeiro quadro do patriarca da pintura, morto pela peste aos 99 anos, quando ainda trabalhava: representa um Cristo descido da cruz; o céu está escuro, um dia lívido ilumina piedosamente o cadáver sustentado por José de Arimateia e Santa Maria Madalena. Ambos, tristes e sombrios, parecem desesperar da ressurreição de seu Mestre. Gautier observa que uma inscrição, num canto da tela, atesta que Ticiano deixou o quadro inacabado e que Palma o terminou. Nota ainda o poeta que, na Accademia, além do ômega, encontra-se também o alfa da vida pictórica do grande artista, na forma do quadro cujo motivo é a Prezentazione di Maria al Tempio, pintado na extrema juventude de Ticiano, com um colorido luminoso e claro que tem a poderosa e forte serenidade de Fidias.

Durante todo o mês em que Gautier permaneceu na deslumbrante Veneza recordava-se, a todo instante, dos magníficos versos de Musset: À Venise, la rouge, rien ne bouge.

Na biografia de Gautier, escrita por Stéphane Guénan, estão relatados alguns dos momentos de satisfação estética desfrutados na Sereníssima, onde o poeta permaneceu até 5 de setembro de 1850. Apenas uma nota triste: ao ler o Journal des débats, enquanto tomava um sorvete no Caffé Florian, o poeta lê a notícia da morte de Balzac. Gautier deixa Veneza, lamentando a ausência de Maria Mattei no restante da viagem, que prossegue no trajeto a Pádua, Florença, Roma e Nápoles.

Alguns dos magistrais contos fantásticos de Gautier resultam também de sua viagem à Itália. Indubitavelmente, as contemplações e os estudos, que lhe inspiraram seu trajeto pela Península Italiana, acenderam-lhe na mente as luminárias da criatividade. Pela maestria com que estão urdidos e por me identificar com os temas narrados, comentarei três contos de Gautier, que constam na edição de seus Contes et récits fantastiques. Dois desses magníficos contos (Arria Marcella e Jettatura) são totalmente ambientados em Nápoles e estão cheios de referências à civilização italiana. Já o outro, Avatar, se passa em sua maior parte em Paris.

 Começo pelo conto intitulado Arria Marcela, que foi publicado dois anos depois da viagem do poeta à Itália. Segundo Alain Buisine, prefaciador da citada edição, há duas provas de que Gérard de Nerval foi o modelo para a criação do personagem Octavien. A primeira é o fato de que a quarta novela de Les filles du feu, do grande Nerval, tem uma parte que se ambienta em Nápoles e se intitula Octavie. A segunda prova é que a novela que antecede Octavie, e que se chama Isis, começa com a evocação de uma ressurreição momentânea de Pompeia.

Octavien, personagem central de Arria Marcella, é um jovem hiper-romântico que se deslumbra, no Museu Archeologico Nazionale de Nápoles com um fragmento de lava sólida de Pompeia, que tem o contorno de um corpo feminino. Em sua visita às ruínas da cidade ressuscitada, ele se emociona ao chegar ao local onde se encontrava o esqueleto da dama cujo molde contemplara no museu napolitano. À noite, no hotel, Octavien se desloca espiritualmente à cidade fóssil. Escuta rumores indefinidos, vê formas humanas e encontra reconstruídas todas as casas de Pompeia. Estupefato, vê os habitantes daquela cidade dos tempos do imperador Tito, com seus trajes coetâneos. Que fantasmagoria arcaica! Octavien chega a conversar em latim com um jovem pompeano que o conduz ao teatro Odéon para assistir à peça La Casina, de Plauto. Sentado próximo ao prosceninum, Octavien avista uma mulher encantadora. Era a própria Arria Marcella, de olhar veludoso e ardente. Uma voz lhe gritava, do fundo do coração, que aquela era a mesma mulher, cujo fragmento de lava que lhe moldara o corpo vira no museu. Ela mesma se identifica perante o seu admirador e declara que o pensamento ardente de Octavien fizera com que o seu espírito emergisse do mundo invisível. Octavien teve consciência de que estava diante do seu primeiro e derradeiro amor.

A magia quimérica do pensamento forjara a reversão da realidade lógica dos sentidos, criando uma epistemologia pura do espírito. A transfiguração de Arria Marcella faz um percurso que vai da ressurreição de seus restos calcinados pelo Vesúvio até o regresso ao estado de ruína desmantelada.

As crenças filosóficas do personagem são efetivamente as mesmas do autor. Tampouco estranhas, portanto, ao místico Gérard de Nerval, inspirador dessa fantástica estória.


A ficção do conto Avatar, constante de Contes et récits fantastiques, do genial Théophile Gautier, apenas no início é ambientada em Florença. Na sequência da narrativa, todos os episódios se passam em Paris. Versa sobre a vida de um rapaz de nome Octave de Saville, que mora na rue Saint-Lazare. Aquele sujeito triste, sem ânimo de viver, definhava miseravelmente, abatido por uma mortal melancolia, desde que se desenganara quanto à possibilidade de ser correspondido em seu amor pela condessa Prascovie Labinska, que ele conhecera no parque de Cascines, o lugar mais aprazível de Florença. Não mais reter a vida e deixá-la esvoaçar foi a represália do homem apaixonado contra a sua frustrada empresa amorosa. A condessa era uma criatura de angelical pureza. Era, definitivamente, a mais fiel das esposas. Quanto ao conde Olaf, este possuía tanto os dons do espírito quanto os do corpo. Diante de um rival dotado de tantas virtudes, Octave não teria a menor chance.

O Dr. Balthazar Cherbonneau, um médico que aprendera, junto ao sanyasi Brahma-Logum e a outros ascetas da Índia, todos os enigmas dos trânsitos da alma humana, determina-se a curar seu paciente daquela enfermidade insólita.

O conde Olaf Labinski ouve falar nos milagres realizados pelo magnetizador Cherbonneau e vai visitá-lo no rez-de-chaussée de um velho prédio da rue du Regard. O taumaturgo, após fazer algumas demonstrações de seus conhecimentos mágicos, desacorda o conde para despossuí-lo de sua alma. Em seguida, manda chamar Octave e também o adormece. Após criar uma atmosfera cálida no ambiente, o avatar coloca a alma de Octave no corpo do conde Labinski e a alma do conde no corpo de Octave.

A confusão identitária gerada por essa troca de almas é algo hilariante. Imagine-se o estarrecimento do conde Labinski quando chega a casa e, com cara de Octave, não é reconhecido por seus lacaios. Viu ali um homem, que era ele mesmo, ocupando seu domicílio. Ao olhar-se no espelho, viu uma cara que não era a sua. Em face daquela metamorfose, Labinski não podia provar sua identidade nem ostentar o título de conde. Como se desvencilhar daquela pele na qual o médico-faquir o vestira?

Com o corpo de Octave de Saville, o conde Olaf, agora chamado pelo narrador de Olaf-de Saville, vai tomar satisfação junto ao feiticeiro que lhe roubara o corpo. O médico hinduísta lhe aplica um choque elétrico no braço, que o desnorteia. Olaf-de Saville procura então a clínica do Dr. B…, em Passy. (Esse Dr. B… é o Dr. Blanche, o mesmo médico que acompanhou o tratamento psíquico de Gérard de Nerval). O Dr. Blanche ouve aquela confissão insólita do seu consulente que alega ter sofrido uma mudança radical de aspecto. Em resposta, o terapeuta convida Olaf-de Saville a passar duas semanas em repouso em sua clínica, achando que seu interlocutor experimentava um período de confusão mental. Olaf-de Saville declina do convite e volta à residência de Octave-Labinski.

Prascovie, ao deparar o marido na dualidade Octave-Labinski, estranha-lhe a inquietude das maneiras e a ardência do olhar. Faz mil conjecturas sobre o fenômeno estranho da repentina mudança no comportamento de seu esposo. Movida por esse sentimento, ela evita dormir na companhia de Octave. Fecha a porta, passa o ferrolho e tem pesadelos a noite inteira.

Octave se angustia, questionando os meios a que recorrera para conquistar uma mulher cuja invencível pureza desmontava qualquer maquinação, por mais infernal que fosse. No café da manhã, a condessa fala a seu suposto marido uma frase em polonês. Ele não sabe o que responder. O diálogo se faz impossível e a desconfiança de Prascovie aumenta. Octave tem então a convicção de que seria impossível enganar o pudor celeste de Prascovie.

Durante o encontro dos dois rivais de almas trocadas, Olaf-de Saville perde as estribeiras e se lança contra o pescoço do falso conde, gritando-lhe – Ladrão! Devolve minha pele! A condessa chama os lacaios que levam o conde, na certeza de que o pobre Octave enlouquecera.

O largo universo ficara estreito para ambos. A solução era um dos dois desaparecer do mundo: Eu matarei meu corpo habitado por vosso espírito impostor ou vós matareis o vosso, onde minha alma se indigna de estar aprisionada; assim concluía a carta que Olaf-de Saville enviou a Octave-Labinski.

Ficou acertado que o duelo aconteceria no bois de Boulogne, às 6 da manhã, mais precisamente na avenida des Poteaux, onde havia um terreno de areia próprio para esse tipo de ritual mortífero.

Octave, no corpo do conde, demonstra maior habilidade na esgrima e, no entrelaçamento das espadas, a arma de Olaf é arrematada e cai longe. Octave propõe então a seu rival um pacto: ambos regressariam ao laboratório do Dr. Cherbonneau, de onde haviam saído transfigurados.

No ritual de restituição dos respectivos espíritos a cada corpo, o espírito do conde foi facilmente transportado a seu invólucro original. O espírito de Octave, contudo, se recusa a regressar à morada carnal e voa para uma distância inacessível. A solução encontrada pelo Dr. Cherbonneau foi retirar-se de seu velho corpo de 70 anos e entrar no corpo jovem de Octave.

Enquanto o conde voltava a seu lar, e era recebido afetuosamente por sua esposa, Octave de Saville, animado pelo espírito do velho médico, recebia um convite para assistir ao enterro do M. Balthazar de Cherbonneau. O médico, por sua vez, revestido de sua nova aparência, seguiu sua velha carcaça ao cemitério, viu-se enterrar e escutou as palavras ali pronunciadas em sua homenagem.

O discurso de Gautier é sofisticado: cultíssimo, cheio de referências estéticas, de cunho histórico, literário, filosófico ou mitológico. A minuciosa precisão com que ele descreve as florações e as ervas de cada canteiro dos jardins da mansão da condessa é algo impressionante.

Tem razão o crítico Alain Buisine, ao dizer, no prefácio de Contes et récits fantastiques, de Théophile Gautier, que a riqueza descritiva do estilo de Gautier constitui uma caracterização pictórica, hiper-realista, da linguagem: Disons qu’une telle picturalisation du reél chez Théophile Gautier, d’ailleurs bien plus hyperréaliste que réaliste, n’est pas simplement une méditation seconde pour le réprésenter: elle en est immédiatement et intrinsèquement constructive. Le réel pose, et la beauté de sa pose est sa condition d’existence. En tant que tel le réel est déjà un tableau, une collection de tableaux, et l’écrivain fera semblant de se contenter de les transposer, de les transcrire dans son écriture.

O próprio Gautier confirma essa tese de seu zelo pela caracterização pictórica de suas imagens literárias, ao escrever no conto Jettatura: Il faut peindre le décor des scènes que l’on raconte.

Jettatura, outra de suas extraordinárias ficções inspiradas na Itália, alude à crença popular, tradicional dos napolitanos, de que há pessoas dotadas de mau olhado; uma influência capaz de causar danos à saúde dos outros.

O enredo gira em torno de Paul d’Aspremont, cidadão francês, que chega a Nápoles procedente de Marselha. D’Aspremont se dirige ao hôtel de Rome, para encontrar-se com sua noiva, a Miss Alicia Ward (uma belíssima jovem inglesa), e o tio dela, o comodoro Joshua Ward, de 60 anos. Paul tem um olhar estranho. Alicia empalidece quando ele a admira fixamente.

Às vezes, ela sentia frio, sob o olhar inquieto de seu noivo. Ela se balançava numa rede, cujo nó das cordas fora dado pelo comodoro. As cordas se romperam e ela caiu, sem me machucar. Paul d’Aspremont não consegue esconder o mau humor diante da presença do conde napolitano Altavilla, que os visita. Todas as vezes que Paul o olhava com expressão sinistra, o conde arrancava uma flor e a lançava, de modo a cortar o eflúvio da olhada irritada.

Alicia reclama do estrago que Altavilla faz em suas flores. Ele promete enviar-lhe cem corbeilles de fleurs vivantes, e o faz, duas horas depois.

Juntamente com os vasos de flores, o conde napolitano presenteia Alicia com um monstruoso par de chifres de boi da Sicília.


    Os lacaios do hotel dirigiam contra o hóspede indesejado o signo cabalístico, formado pelo dedo pequeno e o indicador da mão esticados, enquanto os dois outros dedos, dobrados sob a palma, juntam-se ao polegar. Comentam-se alguns fatos insólitos acontecidos desde a chegada de Paul d’Aspremont a Nápoles. O mar estava unido como o gelo, d’Aspremont olhou de certa maneira e veio uma grande onda lançar na água três tripulantes de um barco. Paul fixava o olhar numa nuvem e não tardava a cair um temporal. Ele entra no teatro Pulcinella e confunde os atores.

Na visita seguinte do conde, Alicia pergunta-lhe que significavam aqueles chifres que a servente dissera terem o poder de prevenir contra o fascino ou a jettatura.

O conde esclareceu o significado de fascino ou jettatura e assegurou que os chifres funcionariam como um para-raios que retém a descarga da influência perniciosa, exercida pela pessoa dotada de mau olhado. Aduziu que aquela superstição, na qual ele também acreditava, era antiga. Asseverou que, no entanto, em todo o Oriente ainda se usam amuletos.

O conde aconselha a moça e seu tio a tomarem cuidado com a jettatura. De pronto, em meio àquela conversação sobre chifres e amuletos, para a estranheza de Miss Ward e de seu tio, Altavilla pede ao comodoro a mão de sua sobrinha. Na condição de marido, teria como defendê-la. Instado a revelar o nome do suposto jettatore, Altavilla diz não desejar ser um denunciador e dá a Alicia alguns dias para refletir.

Em toda parte, Paul d’Aspremont escuta a palavra jettatura, pronunciada com uma expressão ameaçadora, e observa o gesto bizarro que sua presença provoca. Pergunta o que ele tem de singular ou de ridículo para chamar a atenção das pessoas de maneira desfavorável. No mercado de Chiaja, mostram-lhe as mãos com o auricular e o índice alongados, murmurando imprecações. Ele compra, casualmente numa livraria, o Tratado da Jettatura, do signor Niccolò Valetta, lê o livro e entende o poder fatal de que fora dotado: ele era um jettatore. Paul ficou tão impressionado com essa estranha revelação que se assustou com a própria imagem no espelho. Convenceu-se de que, embora capaz de sentimentos afetuosos, o veneno involuntário do seu olhar prejudicava os outros, destilando miasmas mórbidos ao redor de si. Ele se recorda então de circunstâncias infelizes de sua vida. Ao nascer, provocara a morte de parto de sua mãe. Uma dançarina inglesa se acidentara fatalmente, impactada por seu olhar de admiração. A própria miss Ward perdera a saúde, depois de conhecê-lo.

Quando saiu a passear com seu noivo, Alicia percebeu que ele evitava olhar diretamente em seus olhos. Assim, ela lhe pediu que fixasse o olhar no semblante dela. Ante o olhar avassalador de Paul, ela sente uma dor profunda no peito e algumas gotas de sangue lhe molham o lenço.

Naquelas condições de precária saúde, Alicia decide casar-se com Paul d’Aspremont, mas eis que o comodoro hesita, apesar de ter empenhado sua palavra. O tio da noiva sabe que o mal que Paul d’Aspremont causa aos outros é involuntário. No entanto, vê a sobrinha morrendo aos poucos e diz a ela que ninguém se casa com um vampiro, por melhores que sejam as intenções dele.

O encontro dos rivais resulta no agendamento de um duelo, que terá lugar nas ruínas de Pompeia, na primeira hora matinal. Os adversários lutarão com punhais e de olhos vendados. Paul reza para morrer no fatal combate, a fim de que Alicia sobreviva.

Os inimigos se encontram no pátio dos banhos antigos de Pompeia, no final da voie Consulaire, perto da rue de la Fortune. No embate atroz, o conde napolitano perde a vida, abatido por uma punhalada. Diante de sua impossível condição existencial, Paul queima os olhos com uma lâmina ardente. Poderia assim ser o marido de Alicia, sem que ela definhasse heroicamente sob o seu olhar. A tragédia, porém, estava consumada.

Envolto nas trevas da cegueira, o homem estigmatizado consegue chegar à habitação de Alicia. Um silêncio sinistro ali reinava. Atormentado por terríveis pressentimentos, ele se dirige, tateando, ao leito fúnebre de Alicia e encontra o cadáver de sua noiva.

Transido de dor e desespero, Paul caminha em direção ao mar. Chega à borda do rochedo e cai no meio das ondas que a tempestade agitava.

Desde então, o comodoro já não bebe o seu rum com chá. Come com a ponta dos dentes e diz apenas duas palavras por dia. Tornou-se um homem pálido.

Nos contos de Théophile Gautier, tão primorosamente escritos, observa-se extrema destreza na definição das cores e das circunstâncias bem como na descrição detalhada das experiências dos personagens.

Quanto a seu esmero perfeccionista na caracterização dos personagens, nota-se que os cabelos, os olhos, a boca, o formato do rosto, a compleição física, os trajes, tudo é especificado minuciosamente, num discurso cultíssimo. Gautier descreve os ambientes por meio de comparações e alusões a obras literárias ou a imagens pintadas pelos mais destacados artistas plásticos. Uma ironia finíssima se dilui, delicadamente, na concepção psicológica, na expressão dos sentimentos e nas considerações sobre as atitudes dos personagens. Determinadas insinuações irônicas, associadas ao inusitado das situações, revelam o agradável sentido de humor de Théophile Gautier.

Essas virtudes da arte do engenhoso Gautier foram motivo suficiente para que Charles Baudelaire o chamasse de mestre e lhe dedicasse suas perenes Flores do Mal.

A prodigiosa viagem de Gautier à Península Italiana resultou, como se vê, em maravilhosos escritos. Foi, porém, objeto de certo desgosto. Ele foi expulso de Nápoles, em 4 de novembro de 1850, no décimo segundo dia de sua estada na terra de Alfonso Maria de Ligorio. Não se sabe muito a esse respeito. Atribui-se, no entanto, a causa de sua defenestração a suas ideias revolucionárias. As insurreições republicanas, acontecidas dois anos antes no Norte da Itália, inquietavam as autoridades napolitanas, ao ponto de convidarem aquele escritor socialista a retirar-se da cidade. Os antecedentes de tal hostilidade teriam sido tanto os artigos que ele escrevera em jornais franceses sobre a Itália, no contexto de suas críticas aos regimes absolutistas, quanto a visita que fizera em Nápoles à poeta Irène Ricciardi Capecelatro, irmã do líder político Giuseppe Ricciardi.

 Em 1852, Gautier vai, com Ernesta e a filha Estelle, à Grécia e à Turquia, onde, entre outros estudos, pesquisou sobre o ritual da confraria dos Aissaoua, que praticava o êxtase aromático. Nesse mesmo ano, faz a primeira edição de Emaux et camées, cujos primeiros poemas já haviam sido publicados na Revue des Deux Mondes. Deste tesouro de curtas estrofes em ritmo de oito sílabas, joias polidas com habilidade de ourives, destaco esta prosopopeia do seu panteísmo místico, intitulada L’obélisque de Paris, do livro Émaux et camées, tema que lhe fora proposto, numa carta, pelo polígrafo Maxime du Camp e que ele desenvolveu numa graciosa sátira. O obelisco da place de la Concorde, aos pés do cadafalso de Louis XVI, chora sua saudade das barcas sagradas dos faraós. Molhada pelas chuvas do outono e pelas neves do inverno, a pedra esguia sente falta do sol ardente, das brisas e das palmeiras do Egito. E maldiz o Sena, cheio de vigas que não valem os crocodilos do Nilo:

 

Sur cette place je m’ennui,

obélisque deparreillé.

Neige, givre, bruine et pluie

glacent mon flanc déjà rouillé.

 

Et ma vieille aiguille rougie

aux fournaises d’un ciel de feux,

prends des paleurs de nostalgie

dans cet air qui n’est jamais bleu.

 (…)

Sur l’échafaud de Louis seize,

monolite au sens abolit,

on a mit mon secret, qui pèse

le poids de cinq mille ans d’oubli.

 (…)

La Seine, noir égout de rues,

fleuve immonde fait des ruisseaux,

salit mon pied, qui dans ses crues,

baisait le Nile, père des eaux

 (…)

Le Nil, géant à barbe blanche,

coiffé de lotus et de joncs,

versant de son urne qui penche

des crocodilles pour goujons.

 

Depois da viagem a Constantinopla, Théophile morou, a partir de 1853, na rue de la Grange-Batelière, nº 24, quinto andar, num grande apartamento com terraço, de onde se avistava o hôtel Drouot, em Montmartre, atrás do hôtel des Ventes. Nesse tempo, ele se torna um competente crítico de música e escreve sobre as óperas apresentadas no Théâtre Italien. Permanece no mencionado endereço até abril de 1857.

No 9º arrondissement, onde me hospedei no final de 2019, neste Montmartre cheio de atrativos culturais, atravesso a passage Verdeau e encontro, diante de mim, a rue de La Grange-Batelière, nome decorrente do fato de haver existido ali, na Idade Média, uma fortaleza feudal e um riacho, ambos assim denominados. Também vejo, frente a frente, outro corredor comercial de longa data, a passage Jouffroy, construída, como a Verdeau, no tempo de Louis-Philippe, de 1845 a 1846. Ambas conservam ainda as armações metálicas e os tetos envidraçados. Nelas, de antigo, o charme das boutiques, das livrarias e dos restaurantes atraem os flâneurs. Vejo a formosa fachada do velho hôtel Drouot e imagino Gautier por ali na década de 1850, quando residiu naquela área.

Em julho de 1854, ele vai à Alemanha, na condição de jornalista convidado, a fim de escrever sobre o festival de verão do Théâtre Royal de Munich. Recebeu um adiantamento de 200 francos da parte de Girardin, dono do La Presse, para que escrevesse as reportagens que desejasse. Gautier fez tantas que publicou também artigos no Le Moniteur. Escreveu sobre as montagens de peças de autoria de Sófocles, Goethe, Schiller e Lessing, entre outros, comentando o estilo da interpretação dos respectivos elencos. Gautier foi recebido pelo rei da Baviera e, antes de regressar à França, visitou ainda Dresde, Nuremberg e Frankfurt. Nessa última cidade, encontrou-se com o filho Toto (Théophile) que cursava ali o seu baccalauréat. O ano de 1854 foi também marcante, porque foi o da morte de seu pai, Jean-Pierre Gautier. A mãe do poeta havia falecido seis anos antes.

 No dia 30 de janeiro de 1855, Théophile Gautier publica, no editorial de La Presse, o necrológio de seu querido Nerval: une âme charmante a quitté notre planète, et poursuit son rêve dans ces mondes plus splendides et plus beaux qu’elle avait déjà tant de fois visités en esprit. Muito emocionado, Gautier acorre à missa de corpo presente, na catedral Notre-Dame e, em seguida, à inumação de seu admirado amigo, no cemitério Père-Lachaise.

Gautier dirige, em 1856, o periódico L’Artiste, situado na rue Lafitte, 21, no qual escreve sobre os grandes pintores de sua época. Publica ali poemas de seu amigo Baudelaire, constantes de Les Fleurs du Mal, livro que os críticos do jornal Le Figaro execraram, ao ponto de provocar aquele processo que censurou e multou o seu grande autor.

Naquele tempo em que os artigos publicados em jornais permitiam aos escritores viver de literatura, Gautier acelera sua produção de textos para o jornal Le Moniteur universel (jornal alinhado com a política imperial de Napoleão III), no qual publica, em 1857, o elogio de Odes funambulesques, de Théodore de Banville, bem como alguns de seus principais contos fantásticos, como os aqui referidos Avatar e Jettatura.

Outorgam a Théophile Gautier, em 1858, o título de Oficial da Légion d’Honneur, em decreto firmado pelo imperador Napoleão III. Comenda que foi para ele um desagravo, pelo fato de a Academia haver-se privado, insensivelmente, da honra de incluí-lo entre seus pares. Tampouco Balzac, Baudelaire, George Sand e Alexandre Dumas lograram êxito em suas candidaturas.

O ano de 1858 foi também (em outubro) o da viagem de Gautier à Rússia, país que há muito admirava. Por adorar a pátria de Dostoiévski, apesar de detestar o frio, escreveu Trésors d’art de la Russie ancienne et moderne, como resultado de sua visita a São Petersburgo.

Viu frustrada sua expectativa de viagem à China, quando as autoridades francesas recusaram sua petição de recursos para uma estada, na condição de historiógrafo, no gigante país do Oriente. Decepcionou-se com as autoridades francesas e se queixou da insensibilidade da maioria da humanidade em relação ao Belo e ao Bem.

Em 1862, Gautier é eleito Presidente da Société Nationale des Beaux-Arts. No ano seguinte, publica o romance La Capitaine Fracasse. Nesse livro, a descrição pormenorizada de um vislumbre de Notre-Dame faz-nos recordar o que Proust afirma, em seu ensaio Journées de lecture, ao referir-se, sobretudo a Voyage en Espagne, sobre o polimento que Gautier infunde em cada frase, acentuando e perfazendo a marca plena de graça e alacridade de sua personalidade. Proust assinala: nous n’exageront pas sa puissance spirituelle. E conclui: comme nous le suivons dans ses aventures, ce compagnon plein d’entrain; il est si symphatique que tout autour de lui nous le devient. Vejamos este excerto de Gautier, do livro La Capitaine Fracasse:

 

Notre-Dame apparaissait en plein, se montrant par le chevet avec ses arcs-boutants semblables à des côtes de poisson gigantesques, ses deux tours carrées et sa flèche aiguë plantée sur le point d’intersection des nerfs. D’autres clochetons plus humbles trahissant au-dessus des toits des églises ou des chapelles enfouies dans la cohue des maisons, mordaient de leurs dents noires la bande claire du ciel, mais la cathédrale attirait surtout les regards de Sigognac qui n’était jamais venu à Paris et que la grandeur de ce monument étonnait.

 

Foram certamente felizes os anos da maturidade intelectual, em que, desde 1868, Gautier foi bibliotecário da princesa Mathilde, cujo salão frequentou na rue de Courcelles, 24.

Após deixar a rua de La Grange-Batelière, já instalado na casa situada em Neuilly, Gautier não tolerava as visitas de Catulle Mendès, namorado de sua filha Judith. Desconfiava dos costumes e das esperanças do jovem poeta que viria a ser seu genro. Não assistiu ao casamento de Judith e Catulle em 1866. Opôs-se àquele matrimônio com tal veemência, que a discórdia redundou em sua separação de Ernesta Grisi.

De 1864 (ano de sua segunda viagem à Espanha) a 1869, Gautier foi 8 vezes a Genebra com Carlotta Grisi (a irmã de Ernesta), amiga cuja companhia o satisfazia mais do que qualquer outra mulher, sobretudo do ponto de vista intelectual. Durante uma de suas viagens a Genebra, aconteceu a morte de Baudelaire, no final de agosto de 1867, e Gautier não pôde assistir aos funerais de seu grande amigo. Sua produção literária se intensificou nesse período, mediante a publicação, em diversos jornais, de artigos que compunham uma história do romantismo, que ficou inacabada.

Em 1886, onze anos depois da morte de Baudelaire, Gautier escreve seu magnífico ensaio sobre o poeta das Flores do Mal. Rememora o primeiro encontro com Baudelaire no hôtel Pimodan em 1846. Ressalta a espirituosidade do dândi extraviado na boemia, que avançava axiomas satanicamente monstruosos, conservando porém sua categoria e suas maneiras. Evoca os sonhos e os êxtases do clube dos haxixeiros, no salão do artista plástico Fernand Boissard.

Do estilo engenhoso da poesia de Baudelaire, cheio de variantes e de rebuscamentos, diz Théophile ser a expressão natural de um cérebro que se esforça para exprimir o pensamento no que ele tem de mais inefável, traduzindo as confidências sutis da neurose e as confissões da paixão. A prosa baudelairiana, contudo, é produzida numa língua correta, clara, pura e exata. Quanto a suas doutrinas filosóficas, aquele sumo sacerdote da poesia admitia a perversidade original como um elemento que se encontra sempre no fundo das mais puras almas. Professava, não obstante, o mais altivo asco pelas torpezas do espírito e pela fealdade da matéria. Spleen e Idéal poderiam ser as palavras de seu sinete. Nesse sentido, o senso crítico de Baudelaire observava, nas sinuosidades da imensa madrepérola de Paris, os maus instintos nascentes e os mais ignóbeis hábitos.

Gautier comenta alguns poemas de Les fleurs du mal, cuja imoralidade erudita exige elevada cultura literária da parte dos leitores. A censura não foi mais que um modo de reconhecer que Baudelaire trazia uma obra original e de um sabor todo particular. Em outros poemas, Gautier destaca a devoção com que Baudelaire enaltece o trabalho do poeta. Em Bénédiction, por exemplo, o poeta, perseguido pelo sarcasmo e pela inveja, insultado e torturado, se alça à eterna glória, coroado pela luz dos mártires que sofreram pela Verdade e pela Beleza. No poema Le Soleil, o poeta é apresentado como um andarilho que percorre a cidade, semeando versos pelas ruas tortuosas e entrando, como o Sol, no palácio, no hospital ou na igreja, sempre puro, brilhante, clareando a rosa e a carniça.

Gautier deplora a morte de seu amigo, acometido de uma enfermidade que o impedia de falar. Reconhece quanto é doloroso, para os sobreviventes, ver partir tão cedo uma inteligência notável que por muito tempo ainda poderia dar frutos, e perder no caminho cada vez mais deserto da vida um companheiro de juventude.

Por fim, o autor do ensaio elogia os Pequenos poemas em prosa, que traduzem os movimentos mais secretos da alma, as melancolias caprichosas e o spleen alucinado das neuroses: A maior glória de Baudelaire foi, portanto, ter feito entrar nas possibilidades do estilo séries e coisas, de sensações e de efeitos inominados por Adão, o grande nomenclador.

Gautier escreveu, em 1867, o ensaio La vie de Gérard de Nerval, em que relata as lembranças daquele seu grande amigo. Com a riqueza de detalhes que caracteriza seu estilo, Gautier descreve o rosto e louva o caráter de Nerval. Faz revelações imprescindíveis para desvendar os enigmas da figura quase mítica daquele tipo admirável. Diz que o cérebro de Nerval foi preparado pela natureza para armazenar um arsenal de conhecimentos. No entanto, alojaram-se nele tantas informações sobre sistemas teológicos e filosóficos que aquele panthéon tornou-se uma Cafarnaum, cuja cúpula desmoronou.

Comenta Gautier que Gérard levava sempre consigo alguns livros e cinco ou seis cadernos de notas para as longas caminhadas. Por haver consagrado parte de sua vida à fantasia, ao sonho e ao lazer, seu colega do liceu Charlemagne deixou muitos textos inéditos. Recordou-se Gautier do tempo em que eles residiram no impasse du Doyenné, onde transcorreram os mais belos anos de suas vidas. Naquela idade de ouro, Gautier preparava o macaroni, enquanto Gérard fazia as compras no açougue que havia na vizinhança. Nerval lia à noite com uma lâmpada de cobre sobre a cabeça, e quando dormia, a lâmpada caía, com o risco de incendiar o ambiente.

Eles escreviam a quatro mãos artigos para o folhetim dramático La Presse, com as iniciais G.G. Um substituía o outro, quando um dos dois viajava para escrever novas reportagens. Gérard comparava aquela alternância fraterna à dos Dióscuros.

Gautier refere-se às impressionantes narrativas de Nerval, que eram verdadeiros sonhos cosmogônicos de um deus ébrio de néctar. As qualidades da inteligência de Nerval eram tão admiráveis que era difícil perceber qualquer alteração ou desordem em seu cérebro. E, depois de cada acesso, Nerval narrava, com uma eloquência e uma poesia maravilhosas, o que havia visto nas alucinações, mil vezes superiores às fantasmagorias do haxixe e do ópio. O talento de Nerval sobressaía por sua maneira de passar, de um modo imprevisto, do pensamento ao sonho e de um incidente cômico a algum êxtase etéreo. Seu livro Voyage en Orient demonstra sua destreza ao descrever as nuances de todos os detalhes do mundo maometano, apresentadas com fineza e rara consciência de observação. Suas aventuras no Líbano têm uma graça especial. Há, no livro, episódios que revelam atitudes inocentes e jocosas de Nerval, como o pedido da mão da filha do chefe druso, uma moça que se parecia com aquela cuja paixão Nerval buscava se esquecer no Oriente. E, depois de tanta empolgação, uma febre o advertira de que seria melhor dar o dito por não dito e devolver a noiva a seu poderoso pai.

Gautier também atribui destaque à novela Sylvie, em Gérard de Nerval traz a lume lembranças idílicas da infância, em meio à paisagem graciosa de Ermenonville.

Gautier alude, por fim, à ideia da continuação dos tipos através de várias formas na literatura de Gérard. Os caracteres de sua ficção, tal como se crê nas tradições orientais, manifestam-se, sucessivamente, no oceano das idades. A respeito do misticismo de Nerval, comenta em La Vie de Gérard: Initié aux mythologies et aux superstitions de tous les peuples, chaque chose devenait pour lui un augure et prenait des sens inconnus au vulgaire. Les nombres, les étoiles, les vols d’oiseaux, les traversées fortuites d’un animal sur le chemin influaient sur ses résolutions.

O ano de 1869 foi o da viagem de Gautier ao Egito, para assistir à inauguração do canal de Suez. Foi também o do início da deterioração de sua saúde. Fumador de charutos, padeceu de edema pulmonar e foi acometido de crises cardíacas. Os Goncourt o viram pálido e envelhecido na casa da princesa Mathilde. Ninguém diria que ele, no entanto, sobreviveria a um dos irmãos Goncourt.

Grande parte da prosa de Gautier foi escrita à luz de suas viagens. Como exceção à regra, suas ficções egípcias foram escritas antes da viagem ao país dos faraós. O Egito era o país de sua fascinação. Sou egípcio, és alemão. Parece-me que vivi no Oriente…, dissera em carta a Nerval, datada de 1843. No relato “Égypte”, de L’Orient, ele descreve, com os pormenores característicos de seu proverbial estilo, os incríveis cuidados adotados pelos europeus para se protegerem dos ardores do Sol naquele país onde as oftalmias são frequentes.

Depois de atravessar a Île Saint-Louis, tomo o metrô Pont Marie, que se conecta com a Linha Um, a amarela, no Palais-Royal, e zarpo na direção de La Défense.

Saio na parada Pont de Neuilly e logo encontro a rue de Longchamp, logradouro pitoresco, tranquilo, enfeitado lateralmente por arbustos que lhe atribuem um colorido natural. Ar puro, na quietude da Ville de Neuilly-sur-Seine, longe dos redemoinhos das multidões.

A visão da encantadora casa, onde Théophile Gautier se instalou com a família em 1857, coroa de êxito minha peregrinação. Ali, ele recebia os amigos Baudelaire, Flaubert, Puvis de Chavannes e Gustave Dorée, entre outros.

Gautier morou na rue de Longchamp, 32, de 1857 a 1872, ano em que pereceu de uma afecção coronária, após escrever o seu último livro, Tableaux de Siège. A companhia de suas duas irmãs, sua nora e seus dois netos, constituiu um consolo nas horas de sofrimento.

Ele abominou os estragos que a guerra contra a Prússia fez em Paris, danificando sua casa, que foi objeto de avarias, durante a Comuna de 1871. Em Paris, naquele ano, havia carência de alimentos. Depois de passar uns dias com suas duas irmãs numa vivenda provisória na rue de Beaune, Gautier refugiou-se em Versailles. O incêndio do Louvre, os bombardeios e a estupidez suicida da Commune o desesperavam.

Passados os dias mais truculentos da tormenta dos belicosos, ele regressou, na primavera do mesmo ano, para restaurar sua mansão, da qual desfrutou apenas por mais um ano. Enfermo, Gautier faleceu no dia 23 de outubro de 1872, aos 61 anos. Dirá Mallarmé, em seu Tombeau de Théophile Gautier: Ô de notre bonheur, toi, le fatal emblème.

Na parede do lado direito da casa, há uma placa, em que constam as datas cruciais da existência de Théophile Gautier: o nascimento, em 1811, e a morte, em 1872, aos 61 anos. É uma maravilha que o casarão de três andares, três janelas por piso e um sótão de janelas redondas como escotilhas, que o fazem de algum modo semelhar uma embarcação, conserve suas antigas características, o que se pode comprovar pela foto na placa, que mostra a casa nos tempos em que o poeta a ocupou. Mostra, ainda, a fotografia dele em 1867, ostentando fartas a barba e a cabeleira, vestindo elegantemente seu casaco e apoiando o braço direito numa cadeira.

Volto ao ponto do metrô e vejo os grandes edifícios envidraçados que marcam um espaço moderno de Paris, onde o grande arco branco e retangular de La Défense constitui um dos arautos, um dos símbolos épicos da cidade. Regresso pela Linha Um até a parada do Hôtel de Ville.

 

 

MÁRCIO CATUNDA (Brasil, 1957). Escritor e diplomata. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu mais de quarenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais em espanhol. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021), que recebeu em seu ano de publicação o Prêmio Cecília Meyreles, da União Brasileira de Escritores, no Rio de Janeiro.

 

 

BRIDGET BATE TICHENOR (França, 1917-1990). Artista fascinante, foi também editora de moda. Sua pintura, ligada ao Surrealismo, sua biografia inclui momentos em que foi modelo de Man Ray, uma paixão que despertou em Anaïs Nin, a casa que dividia com Peggy Guggenheim e seu interesse por ocultismo, magia e alquimia. Quando conheceu o México identificou o país como o lugar sagrado de sua morada, assim como foi intensa a amizade com Leonora Carrington, Remedios Varo, Kati Horna e Alice Rahon, que ali já residiam. Metafísica e misticismo se revelaram como temas característicos de sua linguagem pictórica, o que a levou também a Roma, onde realizou uma série de pinturas intitulada Máscaras, Guias Espirituais e Divindades Duplas.
 



Agulha Revista de Cultura

Número 225 | março de 2023

Artista convidada: Briget Bate Tichenor (França, 1917-1990)

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