Frequentam clubes sociais de bairros
paulistanos ricos apenas para fazer entrega de comida ou encomenda. Avistam baladas, restaurantes e outros
recintos finos das janelas dos ônibus, que passam longe e lotados. Vivem
atormentados pela sobra de salário no fim do mês. Acumulam carnês, contas de
água e luz. Manter o aluguel em dia é
uma epopeia – afinal, o despejo de um quarto de muquifo e a volta para as ruas constituem
uma tragédia banalizada e cotidiana.
Depois
de dois livros de poemas breves, elípticos e sugestivos – Catchup, mostarda
e calorias (2008) e Pra machucar meu coração
(2017) –, Marcos Barrero surge agora com Malditos sejam (São
Paulo, Editora Almedina Brasil, 2023), um livro de microcontos ou microficções.
São verdadeiros flagrantes da vida real de remediados, desajustados e
excluídos. A prosa não deixa de ser poética e traz vestígios de lirismo. Mas o
caráter de urgência revela, também, certo tom jornalístico, lembrando
reportagens de um tempo ruim. O autor usa um recurso parecido com versos não
metrificados e reproduz o linguajar das ruas. Um exemplo é “Trilhos da Mooca”:
“Não
ligamos pro tempo, não. / Queremos ir sentados. / De pé, vc não sabe, é um
empurra-empurra. / Cotovelada daqui, um pisão de pé ali. / O trecho é longo. /
Se dá pane no trem, se chove, se tem briga. / Vixe. / Ferrou. / É punk, mano. /
Só queremos ir sentados. / É mais suave o sofrimento”.
A
poetização do cotidiano pode ser vista até mesmo num microconto ao extremo, que
reproduz apenas o momento de um assalto na
rua, como em “Asfalto selvagem”: “ – Mãos ao alto. / – Perdeu. / – Ajoelha, filho da puta!/ – Perdeu, playboy! Eis as flores do asfalto”.
II
| Há personagens
que poderiam ser inspirados em tipos que o autor conheceu nas redações de
revistas e jornais pelos quais passou. Um caso é “O diagramador”, que traça o
perfil de um “inimigo do vernáculo e das boas ideias”. A figura nunca perde a
oportunidade de ridicularizar ex-colegas, como os professores que haviam
recebido um ultimato na universidade: “ou defendiam tese, obtinham titulação ou
caíam fora”. O tipo desprezível “parecia extasiado com o perrengue dos
colegas”. O diagramador, diz o microconto, “viveu uma vida em garranchos,
arranjado com uma tese mequetrefe – o que é regra na universidade brasileira”.
Nesse
mesmo microconto, o autor recorda dois colegas de trabalho de outros tempos,
que teriam sido ridicularizados pelo diagramador, pintado como uma espécie de hippie
anacrônico. Descreve-os: “... A., um tipo malvestido e mal-humorado, até
prestou bons serviços à inteligentsia brasileira ao criar e dirigir uma boa
revista. Tentou a literatura, mas foi abatido pela própria mediocridade. Vivia,
sozinho, num asfixiante cafofo na Avenida São João. Era um homem sem
qualidades. J., comunistão, sindicalista, pragmático, havia sido um bom
repórter de jornalões...”
III
| Os microcontos
também são monólogo e diálogo. Quase sempre uma reprodução superligeira de um
ato, tendo como protagonista um figurante mais expressivo. Às vezes, surgem
outros personagens. Veja-se “Maria da Penha”, que faz alusão à lei federal nº
11.340/2006, que tornou mais rigorosa a punição para agressões a mulheres no
ambiente doméstico. Leva esse nome, aliás, em homenagem a uma mulher agredida
pelo marido por seis anos, até se tornar paraplégica e sofrer atentado com arma
de fogo.
Em
suma, eis um livro de notável crueza, colado na realidade brasileira, que não
se entrega a mimimis e vitimizações de personagens. O que é, é – um “papo
reto”. Não guarda parentesco com certa literatura bem-comportada, falso
moralista, contaminada por modismos e gêneros de ocasião. Também nada tem a ver
com autoficção e autopiedade. Pode ser qualquer coisa, ou coisa nenhuma, menos
um tedioso mais do mesmo. Os personagens de Malditos não aparecem na TV
e não saem nos jornais. São os desvalidos, os merdunchos, como dizia o
escritor João Antônio (1937-1996). Essa brava gente brasileira é o mais
bem-acabado retrato em preto e branco de outro país – uma nação invisível.
IV
| Jornalista,
escritor e professor de Jornalismo, Marcos Barrero é autor também dos livros Assis
de A a Z, História dos Campeonatos Regionais (esportes), Casa da
Fazenda (co-autoria), Dez Décadas – a História do Santos FC (co-autoria)
e Empresários Brasileiros (co-autoria).
Foi
roteirista e diretor da Rede Globo, tendo escrito roteiros para especiais de
vários artistas, como Renato Aragão e Roberto Carlos. Tornou-se o primeiro ombudsman
de rádio do mundo na Bandeirantes/AM, em 1996, conforme registra a Organization
of News Ombudsman, de San Diego/Califórnia-EUA. Atuou como professor
de Jornalismo, Telejornalismo e Radiojornalismo na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), de 1990 a 2004. Permaneceu em sala de aula por
quase 30 anos em várias universidades.
Foi
apresentador, diretor artístico e um dos fundadores da allTV, com a qual ganhou
o Prêmio Esso de Melhor Contribuição ao Telejornalismo Brasileiro em 2005.
Formou-se em Jornalismo pela Faculdade Casper Líbero, de São Paulo, e possui
curso de especialização em Jornalismo Brasileiro pela mesma instituição.
Foi
chefe de redação do extinto jornal Gazeta Esportiva e editor das revistas Placar
e Sala de Aula, da Editora Abril. Fez várias coberturas internacionais e
ganhou os principais prêmios jornalísticos do País, inclusive o Prêmio da
Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
Desempenhou
ainda as funções de repórter, redator e editor na revista Manchete, nos
jornais O Estado de S. Paulo, Gazeta Esportiva e Diário de S. Paulo,
na Editora Abril e nas emissoras de rádio Jovem Pan e Bandeirantes. Escreveu artigos
e resenhas de livros para as revistas Veja, Isto É e Leia Livros
e para os jornais Folha de S. Paulo e Folha da Tarde.
NOTA
Malditos
sejam, de Marcos
Barrero. São Paulo: Editora Almedina Brasil, 136 páginas, R$ 70,00, 2023. Site da editora: www.almedina.com.br E-mails: apoiocliente@almedina.net geral@almedina.net lumarbarrero@gmail.com.
ADELTO GONÇALVES. Jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
DAMARIS CALDERÓN (Cuba, 1967). Poeta, narradora, pintora, docente y ensayista. Ha publicado más de dieciséis libros en varios países, entre ellos Cuba, Chile, Alemania, España y México. Participó en festivales internacionales de poesía en Holanda, Francia, Uruguay, Argentina, Perú, México, entre otros países. Parte de su obra ha sido traducida al inglés, holandés, francés, alemán, noruego y serbocroata e incluida en numerosas antologías de poesía cubana y latinoamericana contemporánea. En esta edición de Agulha Revista de Cultura presentamos otro aspecto fundamental de su inquietud creativa, su obra plástica. En entrevista, Damaris revela: Para mí la cultura está ligada a la tierra, a sus orígenes, al hecho de escribir, de cribar, de labrar; la escritura en bustrófedon, que era la manera de los bueyes y el paisaje. Y eso es. Si uno mira la literatura latinoamericana se va haciendo conciencia de paisajes diferenciados; ustedes tienen esto, nosotros esto otro. Recuperar la conciencia de que somos un todo, de que el cuidado del ecosistema, de la planta, de cada árbol, es parte también del cuidado del ser humano, del planeta. Los árboles y el paisaje escriben su propia poética, su propia música. Una pintura con la que ningún pintor podría competir. En ese sentido, sentir que coexistimos, que nos nutrimos y debemos cuidarnos. Son palabras que encajan muy bien en su pintura, cuyas líneas, ángulos, colores, se mezclan en la búsqueda de un punto erótico en el que el hombre se revela parte de ese todo que ella también evoca en su poesía.
Agulha Revista de Cultura
Número 253 | julho de 2024
Artista convidada: Damaris Calderón (Cuba, 1967)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
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