segunda-feira, 15 de julho de 2024

ADELTO GONÇALVES | Novo livro de Marcos Barrero explora os dramas dos invisíveis da sociedade

 


I | Os personagens de Malditos sejam, livro de microcontos de Marcos Barrero, são pessoas anônimas e esquecidas pela sociedade de consumo. Ou seja, os excluídos, que vão de vendedores de doces a malabaristas de semáforos e chapeiros de padaria. Em sua maioria, nordestinos, bolivianos, venezuelanos e nigerianos. Enfim, homens e mulheres invisíveis, que tentam sobreviver a qualquer custo na grande metrópole.

Frequentam clubes sociais de bairros paulistanos ricos apenas para fazer entrega de comida ou encomenda.  Avistam baladas, restaurantes e outros recintos finos das janelas dos ônibus, que passam longe e lotados. Vivem atormentados pela sobra de salário no fim do mês. Acumulam carnês, contas de água e luz.  Manter o aluguel em dia é uma epopeia – afinal, o despejo de um quarto de muquifo e a volta para as ruas constituem uma tragédia banalizada e cotidiana.

Depois de dois livros de poemas breves, elípticos e sugestivos – Catchup, mostarda e calorias (2008) e Pra machucar meu coração (2017) –, Marcos Barrero surge agora com Malditos sejam (São Paulo, Editora Almedina Brasil, 2023), um livro de microcontos ou microficções. São verdadeiros flagrantes da vida real de remediados, desajustados e excluídos. A prosa não deixa de ser poética e traz vestígios de lirismo. Mas o caráter de urgência revela, também, certo tom jornalístico, lembrando reportagens de um tempo ruim. O autor usa um recurso parecido com versos não metrificados e reproduz o linguajar das ruas. Um exemplo é “Trilhos da Mooca”:

Não ligamos pro tempo, não. / Queremos ir sentados. / De pé, vc não sabe, é um empurra-empurra. / Cotovelada daqui, um pisão de pé ali. / O trecho é longo. / Se dá pane no trem, se chove, se tem briga. / Vixe. / Ferrou. / É punk, mano. / Só queremos ir sentados. / É mais suave o sofrimento”.

A poetização do cotidiano pode ser vista até mesmo num microconto ao extremo, que reproduz apenas o momento de um assalto na rua, como em “Asfalto selvagem”: “ – Mãos ao alto.  / – Perdeu. / – Ajoelha, filho da puta!/  – Perdeu, playboy! Eis as flores do asfalto”.

 

II | Há personagens que poderiam ser inspirados em tipos que o autor conheceu nas redações de revistas e jornais pelos quais passou. Um caso é “O diagramador”, que traça o perfil de um “inimigo do vernáculo e das boas ideias”. A figura nunca perde a oportunidade de ridicularizar ex-colegas, como os professores que haviam recebido um ultimato na universidade: “ou defendiam tese, obtinham titulação ou caíam fora”. O tipo desprezível “parecia extasiado com o perrengue dos colegas”. O diagramador, diz o microconto, “viveu uma vida em garranchos, arranjado com uma tese mequetrefe – o que é regra na universidade brasileira”.

Nesse mesmo microconto, o autor recorda dois colegas de trabalho de outros tempos, que teriam sido ridicularizados pelo diagramador, pintado como uma espécie de hippie anacrônico. Descreve-os: “... A., um tipo malvestido e mal-humorado, até prestou bons serviços à inteligentsia brasileira ao criar e dirigir uma boa revista. Tentou a literatura, mas foi abatido pela própria mediocridade. Vivia, sozinho, num asfixiante cafofo na Avenida São João. Era um homem sem qualidades. J., comunistão, sindicalista, pragmático, havia sido um bom repórter de jornalões...”

 

III | Os microcontos também são monólogo e diálogo. Quase sempre uma reprodução superligeira de um ato, tendo como protagonista um figurante mais expressivo. Às vezes, surgem outros personagens. Veja-se “Maria da Penha”, que faz alusão à lei federal nº 11.340/2006, que tornou mais rigorosa a punição para agressões a mulheres no ambiente doméstico. Leva esse nome, aliás, em homenagem a uma mulher agredida pelo marido por seis anos, até se tornar paraplégica e sofrer atentado com arma de fogo.


Eis o microconto: “Fiquei prisioneira por tempo demais. / Muita mulher deve estar passando o que passei. / Sofri maus tratos. / Puxava meu cabelo, me xingava, rasgava minha roupa. / Socou meu rosto. / Quebrou meu celular, comprei novo, quebrou. / Quebrou meu braço. / Tinha outra, dois filhos. / Vinha de madrugada. / Me comia. / Pendurou câmeras na casa. /  Ficava com minha chave / Trocava cadeados. / Preso três vezes em flagrante. / Descumpriu a lei. / Voltou, ronda a casa. / Quando vem, ligo 190. / Fica parado no portão. / Ri. / Sabe que a polícia demora. / Sai. E na noite seguinte, volta”.

Em suma, eis um livro de notável crueza, colado na realidade brasileira, que não se entrega a mimimis e vitimizações de personagens. O que é, é – um “papo reto”. Não guarda parentesco com certa literatura bem-comportada, falso moralista, contaminada por modismos e gêneros de ocasião. Também nada tem a ver com autoficção e autopiedade. Pode ser qualquer coisa, ou coisa nenhuma, menos um tedioso mais do mesmo. Os personagens de Malditos não aparecem na TV e não saem nos jornais. São os desvalidos, os merdunchos, como dizia o escritor João Antônio (1937-1996). Essa brava gente brasileira é o mais bem-acabado retrato em preto e branco de outro país – uma nação invisível.

 

IV | Jornalista, escritor e professor de Jornalismo, Marcos Barrero é autor também dos livros Assis de A a Z, História dos Campeonatos Regionais (esportes), Casa da Fazenda (co-autoria), Dez Décadas – a História do Santos FC (co-autoria) e Empresários Brasileiros (co-autoria).

Foi roteirista e diretor da Rede Globo, tendo escrito roteiros para especiais de vários artistas, como Renato Aragão e Roberto Carlos. Tornou-se o primeiro ombudsman de rádio do mundo na Bandeirantes/AM, em 1996, conforme registra a Organization of News Ombudsman, de San Diego/Califórnia-EUA. Atuou como professor de Jornalismo, Telejornalismo e Radiojornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), de 1990 a 2004. Permaneceu em sala de aula por quase 30 anos em várias universidades.

Foi apresentador, diretor artístico e um dos fundadores da allTV, com a qual ganhou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição ao Telejornalismo Brasileiro em 2005. Formou-se em Jornalismo pela Faculdade Casper Líbero, de São Paulo, e possui curso de especialização em Jornalismo Brasileiro pela mesma instituição.

Foi chefe de redação do extinto jornal Gazeta Esportiva e editor das revistas Placar e Sala de Aula, da Editora Abril. Fez várias coberturas internacionais e ganhou os principais prêmios jornalísticos do País, inclusive o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

Desempenhou ainda as funções de repórter, redator e editor na revista Manchete, nos jornais O Estado de S. Paulo, Gazeta Esportiva e Diário de S. Paulo, na Editora Abril e nas emissoras de rádio Jovem Pan e Bandeirantes. Escreveu artigos e resenhas de livros para as revistas Veja, Isto É e Leia Livros e para os jornais Folha de S. Paulo e Folha da Tarde.

 

NOTA

Malditos sejam, de Marcos Barrero. São Paulo: Editora Almedina Brasil, 136 páginas, R$ 70,00, 2023. Site da editora: www.almedina.com.br E-mails: apoiocliente@almedina.net geral@almedina.net lumarbarrero@gmail.com.

 


ADELTO GONÇALVES. Jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

 

 


DAMARIS CALDERÓN (Cuba, 1967). Poeta, narradora, pintora, docente y ensayista. Ha publicado más de dieciséis libros en varios países, entre ellos Cuba, Chile, Alemania, España y México. Participó en festivales internacionales de poesía en Holanda, Francia, Uruguay, Argentina, Perú, México, entre otros países. Parte de su obra ha sido traducida al inglés, holandés, francés, alemán, noruego y serbocroata e incluida en numerosas antologías de poesía cubana y latinoamericana contemporánea. En esta edición de Agulha Revista de Cultura presentamos otro aspecto fundamental de su inquietud creativa, su obra plástica. En entrevista, Damaris revela: Para mí la cultura está ligada a la tierra, a sus orígenes, al hecho de escribir, de cribar, de labrar; la escritura en bustrófedon, que era la manera de los bueyes y el paisaje. Y eso es. Si uno mira la literatura latinoamericana se va haciendo conciencia de paisajes diferenciados; ustedes tienen esto, nosotros esto otro. Recuperar la conciencia de que somos un todo, de que el cuidado del ecosistema, de la planta, de cada árbol, es parte también del cuidado del ser humano, del planeta. Los árboles y el paisaje escriben su propia poética, su propia música. Una pintura con la que ningún pintor podría competir. En ese sentido, sentir que coexistimos, que nos nutrimos y debemos cuidarnos. Son palabras que encajan muy bien en su pintura, cuyas líneas, ángulos, colores, se mezclan en la búsqueda de un punto erótico en el que el hombre se revela parte de ese todo que ella también evoca en su poesía.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 253 | julho de 2024

Artista convidada: Damaris Calderón (Cuba, 1967)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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