segunda-feira, 15 de julho de 2024

ADELTO GONÇALVES | Eliezer Moreira, uma viagem ao tempo do Império

 


I | Um romance que recupera o que teria sido a visita do aventureiro inglês Richard Francis Burton (1821-1890), cônsul de seu país de 1865 a 1869 no porto de Santos-SP, à Januária, cidade situada às margens do rio São Francisco, nos limites com o Nordeste, em setembro de 1867, é o que o leitor vai encontrar no novo livro do jornalista Eliezer Moreira, Crônica da passagem do inglês (Recife, Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, 2024). O foco central do romance é um triângulo amoroso entre Quirina, negra, escravizada e defensora da causa abolicionista, Arcanjo, negro, escravo e alfabetizado, e Ballard, um aventureiro irlandês que se radicou naquele Brasil selvagem e inóspito do século XIX, atraído pelas cores, pela paisagem e pelas perspectivas de enriquecimento fácil.

É de se notar que Burton, soldado, erudito que falava mais de vinte idiomas, escritor, agente secreto, diplomata e tradutor, viveu em quatro continentes e fez também uma viagem em busca das nascentes do rio Nilo, uma peregrinação à Meca e descobriu e traduziu  o Kama Sutra, texto indiano sobre o comportamento sexual humano, aventuras que foram retratadas no filme As montanhas da lua (1990) e que se pode acompanhar também no livro Sir Richard Francis Burton (São Paulo, Companhia das Letras, tradução de Denise Bottmann, 1993), do historiador norte-americano Edward Rice (1918-2001), obra de pesquisa que mostra esse personagem atraído pelo gnosticismo, pela prática islâmica e pelo sufismo, para quem a ideia de Deus resultava fora de propósito. E que infundia um certo respeito (e talvez repulsa) por exibir na face esquerda uma longa cicatriz, que funcionava como uma lembrança da viagem que fizera às nascentes do rio Nilo quando o acampamento em que estava fora atacado por somalis.

Em Crônica da passagem do inglês, Eliezer Moreira recupera essa história por meio de um alter ego, Heleno, aprendiz de jornalista, que, mais de um século depois da viagem de Burton ao Brasil, a pedido do editor do jornal em que trabalhava, inicia a busca de uma crônica que estaria perdida nos arquivos e que havia sido escrita por um morador da cidade ribeirinha, já trinta anos depois dos acontecimentos.

A crônica tratava da visita de dois dias e meio feita pelo explorador britânico a Januária, em meio a uma viagem exploratória que incluía passagens por outras regiões de Minas Gerais e Bahia, que coincide com o momento em que Arcanjo e o Ballard tinham um duelo marcado para decidir quem haveria de ficar com o amor de Quirina, episódio que é mantido em suspense até as últimas páginas. E cujo desfecho torna-se surpreendente e que não se conta aqui para não se estragar o prazer da leitura. Apenas se adianta que a bela Quirina acabaria por não ceder os seus encantos a nenhum dos dois apaixonados, mantendo-os subjugados por sua sedução até o final.


A utilização de um alter ego, aliás, é um recurso a que o autor já havia recorrido em seu romance anterior, Olhos bruxos (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2019), finalista do Prêmio Jabuti de 2020,  inspirado na obra de Machado de Assis (1839-1908), em que o narrador (e personagem central) é Emiliano Moreira, livreiro, bibliófilo e escritor obscuro, que alimenta a delirante ideia de furtar um pincenê do renomado autor depositado numa urna na Academia Brasileira de Letras, imaginando que, com aqueles óculos, poderia enxergar o  mundo com o mesmo talento do genial criador de personagens famosos como Capitu e Quincas Borba.

II | Já o seu novo romance assume também características de memorialismo, pois o autor viveu em Januária e, como confessa, procurou fazer um retrato fiel daquela comunidade e dos personagens que seriam inspirados em pessoas que moravam lá ao tempo da busca da crônica perdida, inclusive com seus nomes reais, e de algumas passagens por elas vividas.

Em outras palavras: a história conta o fugaz envolvimento do erudito inglês, também mineralogista e antropólogo, com acontecimentos locais, a uma época em que havia no ar a ameaça da convocação de “voluntários” para a Guerra do Paraguai (1864-1870), em meio as consequências para aquela modesta sociedade da exaustão das minas de ouro, diamantes e metais preciosos antes tão férteis, e o começo da implantação da indústria de ferro na região, o que acabava por atrair a presença de estrangeiros.

De passagem, fica-se sabendo que, ao tempo, o jovem que fosse de família de algumas posses sempre podia escapar do recrutamento “voluntário” para as forças que iriam combater o ditador paraguaio Solano Lopez (1827-1870), desde que enviasse um escravo em seu lugar. Foi o caso do negro Arcanjo, que, ao voltar do Paraguai, sentia-se homem livre com base numa lei do Império segundo a qual o fato de ter permanecido, por consentimento do seu senhor, numa terra onde a escravidão tivesse sido abolida, o escravo ganhava a condição de liberto.   

Ao acompanhar os diálogos entre as personagens, que procuram recuperar o idioma português que se falava à época, entremeado por algumas palavras de origem tupi-guarani e outras do jargão africano proveniente de várias etnias, o leitor é atraído mesmo pelos lances provocados pelo interesse sexual de dois homens pela sensual Quirina, cuja naturalidade é desconhecida.

Afinal, quando ela se descobre no mundo, já era órfã de mãe e vivia num mocambo, ou quilombo, na região de Januária. Sua mãe e seu pai, sim, eram baianos e descendentes dos malês fugitivos da Bahia que ali haviam aportado. E seria ainda descendente de Luísa Mahin, líder da Revolta dos Malês, rebelião de caráter racial contra a escravidão e a imposição da religião católica ocorrida em Salvador, em janeiro de 1835, e que assume o papel de lutadora da causa abolicionista e dos direitos dos escravizados.

Para Burton, no entanto, Quirina era, sim, uma hauçá, devido ao patuá que ela trazia no pescoço, com uma tirinha de couro no seu interior na qual estava gravado a ponta de ferro quente um versículo do Corão. Ao final, porém, o repórter Heleno, depois de muitas pesquisas, concluiria que Luísa Mahin não seria hauçá, mas da etnia jegê-nagô, o que o levaria a descartar a hipótese de que Quirina seria neta dela.

III | Com uma linguagem límpida, sem passagens herméticas, temperada pelo sentimento poético, em que o romanesco se mistura ao memorialismo, o autor não deixa de mostrar, talvez de maneira involuntária, a influência que recebe de Machado de Assis, ao construir personagens planas, que são descritas de maneira direta, não só nos aspectos físicos

Enfim, como diz no prefácio a historiadora e ensaísta Isabel Lustosa, “trata-se de um livro completo no sentido de ser capaz de proporcionar ao leitor prazer e conhecimento, ao mesmo tempo em que recupera um passado que, mesmo filtrado pelas lentes da ficção, está evidentemente fundamentado em cuidadosa e profunda pesquisa”. Melhor recomendação seria impossível. 

IV | Eliezer Moreira (1956), escritor e roteirista de cinema e TV, tem mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atuou como roteirista e repórter na TV Brasil e na TV Educativa, no Rio de Janeiro. Nasceu em Cocos, no interior da Bahia, cidade que não chegou a conhecer, pois de lá saiu com a família com apenas um ano de idade e nunca mais voltou.

Cresceu em Januária, onde viveu até os 23 anos, naquela vasta região de Minas Gerais situada entre as divisas de Bahia e Goiás, onde no passado – e ainda hoje, sob outras formas – se davam as velhas guerras por domínio territorial e político, envolvendo os coronéis e seus jagunços, a mesma região mítica que João Guimarães Rosa (1908-1967) imortalizou em Grande sertão: veredas (1956). Depois, passou por Belo Horizonte, Brasília e, por fim, Rio de Janeiro, onde mora desde 1979.

É autor também do romance A pasmaceira (Rio de Janeiro, Editora Record, 1990), vencedor do Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores (UBE), e que foi publicado em Portugal com o título Um homem querendo vender sua morte (Santarém, Rosmaninho Editora de Arte, 2016). Publicou ainda o romance Ensaio para o adeus (São Paulo, Editora Patuá, 2018), além da novela Florência diante de Deus (São Paulo, Editora Patuá, 2015) e do ensaio biográfico Jeanne Bonnot: uma vida entre guerras (Florianópolis, Editora Mulheres, 2015).  Participou com dois textos de memórias da coletânea Rio, da Glória à Piedade (Santarém, Rosmaninho Editora de Arte, 2023).

 

NOTA

Crônica da passagem do inglês, de Eliezer Moreira, com posfácio de Isabel Lustosa. Recife, Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), 236 páginas, R$ 70,00 (edição impressa), R$ 35 (e-book) 2024. Site: www.editora.cepe.com.br E-mail do autor: elmore56@gmail.com



ADELTO GONÇALVES. Jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´el-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Lard, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br.
 

 


DAMARIS CALDERÓN (Cuba, 1967). Poeta, narradora, pintora, docente y ensayista. Ha publicado más de dieciséis libros en varios países, entre ellos Cuba, Chile, Alemania, España y México. Participó en festivales internacionales de poesía en Holanda, Francia, Uruguay, Argentina, Perú, México, entre otros países. Parte de su obra ha sido traducida al inglés, holandés, francés, alemán, noruego y serbocroata e incluida en numerosas antologías de poesía cubana y latinoamericana contemporánea. En esta edición de Agulha Revista de Cultura presentamos otro aspecto fundamental de su inquietud creativa, su obra plástica. En entrevista, Damaris revela: Para mí la cultura está ligada a la tierra, a sus orígenes, al hecho de escribir, de cribar, de labrar; la escritura en bustrófedon, que era la manera de los bueyes y el paisaje. Y eso es. Si uno mira la literatura latinoamericana se va haciendo conciencia de paisajes diferenciados; ustedes tienen esto, nosotros esto otro. Recuperar la conciencia de que somos un todo, de que el cuidado del ecosistema, de la planta, de cada árbol, es parte también del cuidado del ser humano, del planeta. Los árboles y el paisaje escriben su propia poética, su propia música. Una pintura con la que ningún pintor podría competir. En ese sentido, sentir que coexistimos, que nos nutrimos y debemos cuidarnos. Son palabras que encajan muy bien en su pintura, cuyas líneas, ángulos, colores, se mezclan en la búsqueda de un punto erótico en el que el hombre se revela parte de ese todo que ella también evoca en su poesía.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 253 | julho de 2024

Artista convidada: Damaris Calderón (Cuba, 1967)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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