sábado, 27 de maio de 2023

FLORIANO MARTINS | A última linha capaz de devoção (Homenagem a Marosa di Giorgio)

 



























 


Durante toda a noite, certa noite, eu estive digitando os originais do primeiro livro de Marosa di Giorgio, Druida. Quanto mais adentrava o bosque de sua escrita, mais me vinha à memória uma série de fotos que fiz no centro do mundo, na cidade Mitad del Mundo, no Equador. Ali se apresentaram para nós, poetas convidados, um grupo de dançarinas de uma das etnias locais. Me meti entre elas, a fotografá-las, com suas cores grandiosas, como se a câmara estivesse dançando e me levasse com ela. Por anos, guardei a maior parte dessas fotos. Talvez à espera da leitura de Druida. Suas histórias delirantes me recordam o bosque de orações que era a dança daquelas mulheres equatorianas. Meus olhos ardentes liam os passos no ar como asas e um trinar de seus movimentos era o mesmo que agora eu reconhecia em uma das passagens do livro de Marosa. O livro, uma prosa poética iluminada pelo disfarce de uma narrativa memorialística. Pensei então em minhas fotografias, que elas deveriam também evocar um disfarce, que o traço da dança deveria expressar não o registro fotográfico, mas antes a leveza de uma ponta de lápis, e que não haveria melhor ponte onde esses pigmentos poderiam realizar seu bailado do que na pele sugerida de flores e plantas exóticas. Como no livro de Marosa, tudo deveria ser uma fonte de imagens transbordantes a partir de pontos, os mais comuns, um pequeno e insurgente golpe de presságios, a alquimia das formas que são como sombras que não buscam lugar algum. O que então eu resolvi chamar de

 

A última linha capaz de devoção.

 

 


São fotos em movimento, imparáveis. Fico procurando qual é o ponto de apoio de cada uma e não discirno, porque me parece que, quando as vou decodificar, elas se esmaecem e eu perco de vista as figurações! Parece mesmo que elas andam, pulam para fora de si mesmas, explodem - a palavra é que elas não se contêm e vazam!!!! Incrível, meu lindo querido! Nem parecem fotos, não sei o que parecem e além do mais há algo de oriental - os panos que se espalham, as cores brotam uma do contraste com a outra, olha, uma epifania só!

Do borrão nasce uma forma que quer dizer para que veio, e implora uma palavra. Noutra, o desmanche predomina e as formas se debatem em cores e em fragmentos que não se dão entre si e duelam. Noutra, uma cúpula de espinhos aprisiona uma forma que é cutucada contra a opacidade herética que o ar, a pedra, um espanto de asas quer contê-la. Noutra, uma dúbia flor encosta a sua beleza de impertinências sobre o corpo que parece se apoiar na ousadia do crescimento desmesurado daquelas pétalas em direção à porosidade que a foto quer subtrair. Noutra, bumerangues despetalados e fora dos eixos produzem o difícil equilíbrio que, sem misericórdia, desloca o corpo numa montagem desnaturada sob o testemunho dos céus.  Noutra, um capim centenário e idoso, eriçado contra o tempo e em forma de flor lubricamente aberta imita raios impossíveis e esquecidos na geologia de suas lembranças, enquanto lhe nasce descentrado um monumento rubro de cio. Noutra, pensamentos pendurados no varal expõem suas tendências heráldicas para quem puder decifrar, enquanto outros, já esfiapados de tantas viagens, jogam a sua plumagem para quem puder com elas se abanar. Noutra, o milagre da flor pairando sideral sobre o mundo das coisas mais altas, competindo com elas nas braçadas que dá no ar que a tange mais para dentro dos seus estames. Noutra, explosões de água e fogo se conjugam para botar no seu seio a mulher que as sustém como aura própria. Noutra, solidão absoluta batida por traços, espectros de uma luz esfiapada e desarrazoada que desalinhava qualquer certeza sobre essa dor. Noutra, mundo submarino de cascalhos e fósseis procurando, ao léu, meios de libertação, enquanto Brüegel, sem escafandro e mudado em mulher hierática com azuis escorregando da cabeça nuca afora, contempla a obra interrompida.  Noutra, o peso do mundo me pede genuflexão e quase me enrosco como feto para que tudo recomece verde, esbranquiçado e hesitante como no primeiro dia. 

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Maio de 2023

 

 




PROPRIEDADE IMAGINÁRIA

Galeria Virtual | FLORIANO MARTINS

SALAS DE VISITA

 

1990-2012 A IMAGEM E A SEMELHANÇA Entrevista com Floriano Martins

1998-2023 TRAJETÓRIA DE UM CAPISTA (seleção)

2010-2014 SÁTIRA DE ESPELHOS 

2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz

2012 PERMANÊNCIA DA REALIDADE

2013 SOMBRAS RAPTADAS Texto de Berta Lucía Estrada

2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO Texto de Mía Gallegos

2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins

2014 MÁSCARA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins

2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins

2015 A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO Texto de Leila Ferraz

2015 A EXPRESSÃO DO LAMENTO 

2016 CIRCO CYCLAME

2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli

2017 OSSOS DO ESPÍRITO 

2018 SELVA DE PELES Texto de Elys Regina Zils

2023 O CEGO IDEALISTA Texto de Wasily Kaplowitz

2023 A ÚLTIMA LINHA CAPAZ DE DEVOÇÃO Texto de Maria Lúcia Dal Farra

 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artistas plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 22 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a assemblagem e outros recursos. Iniciou seu percurso com colagens, algumas das quais para capas de seus livros e de outros autores. Em 2011 o crítico Jacob Klintowitz foi o curador de sua primeira individual, em São Paulo, toda ela montada a partir de suas fotografias digitais. A segunda individual foi em 2016, no Centro de Estudos Brasileiros, da Embaixada do Brasil na Costa Rica. A esta altura já havia inscrito algumas de suas obras na galeria Saatchi Art: https://www.saatchiart.com/florianomartins, bem como criado uma soma valiosa de capas de livros. Propriedade imaginária é uma galeria desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins que jamais foi realizada, Museu imaginário, documentário baseado na construção de maquete de um museu em miniatura que abrigaria toda a sua obra plástica. 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2023



quinta-feira, 25 de maio de 2023

Agulha Revista de Cultura # 230 | maio de 2023

  

∞ editorial | A enigmática luz de cada texto

 



01
 Lê texto, escreve texto, revisa texto, compartilha texto, mas quem já parou para pensar o que é um texto? Com certeza é muito mais do que um aglomerado de palavras ou sequência aleatória de frases, sob o ponto de vista linguístico, cognitivo ou discursivo. Mas o que caracteriza um texto? Gosto da visão do texto como um tecido, inclusive a palavra “texto” tem origem no latim como ‘algo que foi tecido’ ou ‘entrelaçamento’. Soma-se a visão de Barthes, em O Prazer do Texto, para quem: Texto quer dizer Tecido; [acentua] a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos dos neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia da aranha). Assim o texto pode ser entendido como um tecido, uma entidade significativa composta por uma rede de relações, uma entidade significativa e um artefato sócio-histórico.

Sim, o texto é uma reconstrução do mundo. Nesse aspecto, recordo novamente a Barthes, agora em A morte do autor: a verdade da escrita, o escritor não pode deixar de imitar um gesto sempre anterior, nunca original; o seu único poder é o de misturar as escritas, de as contrariar umas às outras, de modo a nunca se apoiar numa delas; se quisesse exprimir-se, pelo menos deveria saber que a coisa interior que tem a pretensão de traduzir não passa de um dicionário totalmente composto, cujas palavras só podem explicar-se através de outras palavra. Ou seja, um texto é composto por escritas múltiplas, uma diversidade que se transforma em unidade no seu destino, o leitor. De modo que podemos entender o texto como uma unidade de sentido que foi produzida por um autor, e é interpretada por um leitor. Uma dança onde o autor leva o leitor para dançar com ele.

Por falar em dança, cabe lembrar que o texto aqui é compreendido em sua acepção mais ampla, que engloba toda capacidade textual do seu humano, como poema, música, pintura, escultura, etc., assim que pode ser verbal ou não verbal. Entre os tantos teóricos que se debruçaram sobre o tema do texto, encontramos também outros critérios de divisão, como o artístico. Temos os textos tradicionalmente literários, como romances, poemas, crônicas e outros não literários, como artigos científicos, anúncios. Alguns poemas são dotados de um lirismo que nos contagia como uma música que brota dos versos e penetra no nosso íntimo. Porém como definir a beleza de um texto? O que torna um texto belo? Estou certa de que um texto poético é muito mais do que uma soma de versos, estrofes e figuras de estilo, mas deixo essa reflexão com vocês.

 Depois de divagar sobre o texto, encerro esse texto com o convite para a leitura dos textos que compõe esta edição da Agulha dedicada à “Arte no século XXI”. Temos muita poesia, música e reflexões diversas nas autorias de Carlos M. Luis, Carolina Zamudio, César Bisso, Gloria Lenardón, Jorge Vicente, Liliana Quinto Laguna, María Elena Pérez, Marosa di Giorgio, Susana Wlad, Thomas Albornoz Neves.

Boa leitura!

 

02 | Ao conversar com Floriano Martins, que cuidou da presença de Wedgwood Steventon (Inglaterra,
1955) como nosso artista convidado, o surrealista inglês lhe enviou algumas notas autobiográficas que aqui reproduzimos:

 1971 foi um ano importante. Folheando uma revista de vida selvagem, tive a ideia de me tornar um fotógrafo da vida selvagem. No ano seguinte, 1972, comprei um livro que mudou tudo. Primeiro da série Time Life sobre Fotografia, The camera. Ver trabalhos de pessoas como Imogen Cunningham, Paul Strand, Alfred Stieglitz e outros mudou minha perspectiva da imagem fotográfica.

De 1973 a 1981 trabalhei na indústria fotográfica enquanto fazia o meu trabalho pessoal. Iniciando os portfólios, The Dreaming, 1977-1989. Histórias pessoais

1990-1997. Silêncio e solidão 1989-2006.

Em 1994, enquanto participava de um workshop fotográfico no Photographers Place em Derbyshire, tive a sensação de que estava no lugar errado, indo na direção errada. Saí sabendo que minha vida e trabalho iriam para um lugar diferente.

Em abril de 1995 descobri o trabalho de Conroy Maddox. Ao conhecê-lo algumas semanas depois, ficamos amigos e ele me ensinou muito, a pintura e o trabalho de colagem se tornaram as forças dominantes. Fotografia usada apenas para fazer trabalhos de colagem de fotos. Os romances Collage, Aviary 2002-2005 e mais tarde Pictures from a Jade Palace, 2010-2015 surgiram nessa época.

Depois de deixar a profissão de fotógrafo em 1981, trabalhei na indústria de cerâmica de 1983 a 2007. Logo fui despedido. Perder meu emprego resultou na série Arcadia, Post Industrial Landscapes.

Os anos seguintes viram o surgimento das séries Tales from Laputa e A Walk in the Forest.

Então a fotografia voltou a ser forte. Um meio mais poderoso com sua capacidade de capturar o instante em que um pensamento entra em sua mente. Passing shots, surgiu depois de fotografar um Cavalo em um campo. O que ele estava pensando? Como foi o dia dele? Todos os animais e pássaros da série parecem perdidos e imersos em pensamentos. A sua fotografia dá-lhes uma voz, uma presença. Postcards from an Island é a minha viagem fotográfica pessoal através do meu tempo, da minha presença aqui. Menagerie, uma série de trabalhos de colagem de fotos. Não me lembro de onde eles vieram. Acho as imagens perturbadoras, pois os animais presentes têm medo e tristeza por eles. E os pássaros parecem majestosos e possuem poderes secretos. Todas as criaturas da obra são colocadas em um ambiente decrépito feito pelo homem. Uma vez o paraíso, agora um lugar infernal.

Spontaneous Combustion. Um corpo de trabalho recente usando filme instantâneo. Eu ainda tenho que descobrir onde isso está indo.


Um achado casual em uma livraria de um drop card do grupo surrealista Leeds, em 1996, me aproximou deles e, nos próximos anos, de outros grupos. Apesar de nunca ter sido membro de nenhum deles em particular, envolvi-me em exposições coletivas no Reino Unido, bem como na França, Espanha, Portugal, Holanda, República Tcheca, Colômbia, EUA e Canadá, incluindo exposições individuais. Além de contribuir para publicações e pesquisas surrealistas.

A criação de obras, sejam elas pinturas, colagens ou fotografias são todas manifestações e reações ao questionamento constante da realidade e a busca pela compreensão do cotidiano. O Mundo Natural é um tema chave em praticamente todos os meus trabalhos. Sempre, desde criança, questionei e lutei contra a aceitação das noções cotidianas da realidade. O mundo para mim nunca esteve em um verdadeiro estado de realidade. As maravilhas da natureza dilaceradas, remodeladas, para satisfazer as demandas de setores da raça humana. A constante busca por mais e mais de tudo. Uma falsidade completa. Dentro da esfera surrealista, o verdadeiro meio é questionar, contra-atacar e expor os absurdos daqueles que procuram dominar o uso.

Hoje e até ao fim o trabalho continua. 

Elys Regina Zils

 

 

∞ índice

 

CARLOS M. LUIS | Los surrealistas en la América

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/carlos-m-luis-los-surrealistas-en-la.html

 

CAROLINA ZAMUDIO | Tango, la poesía de la nostalgia

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/carolina-zamudio-tango-la-poesia-de-la.html

 

CÉSAR BISSO | Acerca del nuevo libro del poeta Alejandro Cesario

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/cesar-bisso-acerca-del-nuevo-libro-del.html

 

GLORIA LENARDÓN | Leer

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/gloria-lenardon-leer.html

 

JORGE VICENTE | Gladys Mendía, uma flor de barranco

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/jorge-vicente-gladys-mendia-uma-flor-de.html

 

LILIANA QUINTO LAGUNA | Arte, una embarcación en medio de turbulencias

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/liliana-quinto-laguna-el-arte-en-el.html

 

MARÍA ELENA PÉREZ | Hilda Riveros: un recuerdo imborrable tras una década

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/maria-elena-perez-hilda-riveros-un.html

 

MAROSA DI GIORGIO | Armonía Sommers, la que vivía en sus libros

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/marosa-di-giorgio-armonia-sommers-la.html

 

SUSANA WALD | Manifiesto obligado

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/il-est-urgent-de-proclamer-que-mystere.html

 

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | Robert L. Haas, a frase no verso

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2023/05/thomaz-albornoz-neves-robert-l-haas.html


 



Wedgwood Steventon


 

Agulha Revista de Cultura

Número 230 | maio de 2023

Artista convidado: Wedgwood Steventon (Inglaterra, 1955)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023 

 


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 



quarta-feira, 24 de maio de 2023

GLORIA LENARDÓN | Leer

 


Leer bajo una luz directa, recorriendo los renglones del mismo modo que se contempla la arboleda de una avenida, no inquieta, por el contrario, la distensión, un pensamiento ligero que interpreta los renglones automáticamente se desliza sin sobresaltos de un punto a otro. El desafío del lector y texto reunidos es entablar una intimidad de viejos conocidos, un buen pasar inmediato.

La relación entre el lector y el texto no siempre mantiene el mismo apetito, y es tentada por distintos estímulos, algunos visibles, otros no tanto, depende de la naturaleza del texto. Hay textos reacios, resistentes a la develación, que se encierran en sí mismos, esquivos, aunque no dejan de deslizar relevancias, en el transcurrir de la lectura hay indicios que ayudan a correr el velo, al descubrimiento. Hay indicios que juegan el papel de desestabilizar, provocar disputa, lucha verbal que al fin y al cabo resolverá la lengua filosa. Los resultados de una lectura que carece de contraposición son contrarios, van en contra de la intervención del pensamiento que tensiona la lectura, contra el habla interior, el instinto de husmear en lo que despierta sospecha, de responder interrogantes que se presentan sinuosos. La cabeza “ubicada enteramente del lado de la sentimentalidad” vaga entregada, floja, afloja la tensión, relaja el músculo, y con él el pensamiento que se rebela, el deseo de hurgar debajo de las apariencias.


Leer puede transformarse en una operación de rescate. Cuando leer produce cierta desorientación o zozobra, cuando sumergirse en la lectura es también advertir el peligro de un naufragio porque el rumbo del texto desorienta o engaña de tal modo que urge el socorro, la tabla de salvación es la letra, su fortaleza, su densidad y aquello que con ella guarda relación, lo alineado a su eje. La lectura que pregunta con una curiosidad de alta intensidad, empuja hacia el “contenido cierto” del que habla W. Benjamín. Si el lector no le hace preguntas al texto, si no siente esa necesidad, es porque conoce de antemano todas sus respuestas.

La desestabilización, los saltos imprevistos, otra dimensión en la interpretación, fruto de una materia resistente, son dados por una letra a reacción, o mejor: una letra reactiva, que ha absorbido mucho y conducido y procesado nutrientes de otros textos, de la literatura, la cultura, de los viejos tiempos y de los tiempos que corren, cuya combustión emana, captar esos efluvios, sus fluidos, inflama la lectura, excita el pensamiento aplicado a desenmascarar.

“Estar con quien se ama y pensar en otra cosa, es de esta manera como tengo los mejores pensamientos, como invento lo mejor para mi trabajo. Ocurre lo mismo con el texto, produce en mí el mejor placer si llega a hacerse escuchar indirectamente, si leyéndolo me siento llevado a levantar la cabeza a menudo, a escuchar otra cosa”, y un poquito más adelante Roland Barthes agrega “como la de un pájaro que no oye nada de lo que escuchamos, que escucha lo que no oímos” (El Placer del texto, 1977). Para escuchar estimulando el espíritu, alentando la revelación, hay que esquivar contratiempos, la escucha tiene sus bemoles, sus dificultades, por empezar las condiciones del oído, sus aptitudes, las poco entrenadas para individualizar sonidos dentro de la maraña del ruido, no ayudan, igualmente los timbres monocordes o demasiado estridentes. Un entendimiento frente a frente con el texto que se lee descubre rápido su valor, leer como el pájaro de Barthes, levantando la cabeza, un oído fino obliga a levantarla, sin cabecear, pájaro que lee vuela.

 

DOS LECTURAS INQUIETANTES

 

1. Toda la ceguera del mundo, de Néstor Ponce

[Primera finalista del Concurso de Novela de Crímenes Medellín Negro 2013. Editada por Ediciones B, Colombia 2014.]

 

“Aquellos ojos negros…” la cita no señala el ritmo de un bolero, porque no es precisamente un bolero lo que signa esta novela tan turbulenta desde el primer paso; pero sí los ojos, la mirada (el nombre de cada capítulo de “Toda la ceguera del mundo” la explicita) que fluctúa sobre los personajes y los unta con un brillito cáustico, los fija a una especie de vodevil sangriento, de gran guiñol movido por una mano macabra, de cómic negro. Néstor Ponce, habilitado, urde su historia sin perder de vista los hechos que sucedieron en los años particularmente descarados de la vida argentina de finales del siglo XX y comienzos del XXI, los de la era Menem.

Sucede en La Plata, el nombre de la ciudad, su literalidad, cae perfecto a los personajes que van tras sus quimeras abiertamente: tras la plata fresca Ángel y El Cicatriz, narcotraficantes mexicanos que en guerra con los narcotraficantes colombianos batallan por monopolizar y expandir la droga en la Argentina involucrando a argentinos devenidos narcos que provienen de todos los rangos sociales; la copa plateada, la maravillosa del triunfo –en este caso la del clásico Estudiantes versus Gimnasia de La Plata– que empuja a un grupo, el de la Vieja Vanguardia Tripera, vejete y adorador de los triunfos pasados, a imaginar el plan más descabellado para hacerlo cumplir a rajatabla y remozar el viejo brillo de su equipo; la pasión de amor del precipitado mexicano Ilhuicamina (nombre de príncipe azteca, alias Ilhu) por la argentina de ojos azules: Ana Marías, que iluminado por la pasión y los versos vuela de México tras sus huellas pese al peligro de que ya exista un Ángel que se la arrebate; los planes ardorosos del grupo de pensión Los imbancables que para salirse de su vida rutinaria se lanza a una acción de dudoso éxito; el fuego plateado del asado brillante como una estrella en el estómago de los argentinos de esta novela situada en una ciudad criolla.

 Salvo los feos, sucios y malos, que venden droga y matan y se hacen ricos, tan negros como los personajes negros de una novela negra, los otros protagonistas demuestran otros intereses, pero también trafican. Llevan y traen libros, los leen, los investigan, los escriben. Hay un profesor experto en Teoría Literaria de la universidad de La Plata, jubilado, que asa de maravillas, y al calor de su fantasía bien alimentada seduce imbatiblemente a mujeres jóvenes. El poeta mexicano Ilhu, junto a su congénere Manlio, fundan en el DF de México el “Movimiento Inmóvil”, se mueven en el “Parque Hundido” tratando de levantar cabeza– ambos son poetas inéditos–, Manlio vende sus tortillas a sus adeptos de las distintas regiones, escribe sus “textículos, cortos relatos escritos con los huevos y el alma”. En el tráfico de esta novela, la novela de las miradas, los cautivantes ojos de Edna Lieberman, la amada del poema de Bolaños, se truecan por los ojos azules de Ana Marías, la amada de Ilhu, en la historia de Ponce. Hay una búsqueda de referencias argentinas que se le mezclan al poeta Ilhu: Borges, Cortázar, Saer, Gardel, José Larralde.

 Entre el humor y el realismo crudo la mirada del narrador Ponce no se da tregua, ojo, es una mirada protagonista por capciosa, por querer ver más allá, por no pestañear frente a lo que enfoca, una paradoja a partir del título: “Toda la ceguera del mundo”.

 

2. Macedonio para empezar aplaudiendo, de Liliana Heer


“…un prólogo mudable, que, me avisan, se anda cambiando de página, no haya disgusto entre los prólogos…” (Macedonio Fernández). Y no hay disgusto entre los prólogos , porque conviven reafirmando su independencia, no hay disgusto pero sí mudanza, la obra de teatro de Liliana Heer: “Macedonio/ para empezar aplaudiendo”, desafía la ortodoxia de una obra de teatro retomando a Macedonio y su universo de figuraciones; por empezar Liliana Heer muda de género, va de la novela al drama, de la acción a la no acción, de un solo autor a varios , a muchos, en su obra de teatro hay una larga introducción, los prologuistas son cantidad, cooperan para satisfacer la demanda de una entrada interminable, de una reunión de prolegómenos. A esta obra de Liliana Heer, que cerró el congreso sobre Macedonio Fernández realizado en la Biblioteca Nacional durante el 2013 y que publicó editorial Paradiso este año, no le bastaron los personajes inmovilizados en una conversación al compás de la guitarra de Macedonio, sino que los veintitantos autores anunciantes de lo que iba a venir a continuación ocuparon la mitad del libro ilustrado por Vanina Muraro. “Un respiro liberador en la gravedad de los prólogos que aún me faltan”, dice Macedonio en su novela Eterna habilitando nuevas escenas, renglones adicionales, para comodidad de sus prólogos que corrieron por su rigurosa cuenta; Liliana Heer habilita un colectivo, arranca con él, uno no afecto a la congruencia ni a un plan previo sino a la suma y a la libertad que les permitió desarrollarse y prosperar.


Después sí: “Macedonio / para empezar aplaudiendo”, con sus tres actos, el primer acto se proyecta inmediatamente al segundo con intención de detenerlo, el segundo no se sabe muy bien cómo avanza, si realmente avanza, hacia el tercero, que sí se declara con intensión de continuar, se anuncia como: “Sin apuro por concluir”. La pretensión de permanencia, el deseo siempre presente que se renueva: durar. La obra inventa un transcurrir, tres actos en una larga escena donde la permanencia se sustenta en el intercambio de voces, pero no hay realmente diálogo, los personajes entretenidos en sus propios parlamentos recorren circuitos independientes, salvo contactos eventuales, monologan, su habla no es el de la comunicación.

Se trata de teatro. Liliana Heer actúa a sabiendas, escribe en consecuencia, si hay que hacer la obra, obra, trabaja con conocimiento. Presenta a los personajes, el primer actor, más allá del orden, es Macedonio, el que pulsa las cuerdas, no guitarrea, encuentra la vibración justa para cada nota, gracias a su alta concentración de recursos de primera mano; los espectadores se fascinan: “están bajo rapto”, se les roba la atención podría sospecharse aunque el rapto sea otro; la atención está captada, tomada por la no acción, los personajes no se mueven, atrapados en el decir, concentrados en lo que los convoca: el papel de la memoria, los laureles que se ganan o se pierden en la carrera por conseguir longevidad en la escena, el gusto por condimentar la lengua que los alimenta. La invención, la luz de la chispa, el fuego, la amenaza del quemo, el plagio que tizna y oscurece cualquier brillo. A los personajes la novela Museo de la novela de la Eterna de Macedonio, les corta el aliento, pero no la persistencia, el intercambio de frases, aunque Macedonio domine la escena con su presencia ineludible. Tomando, la cabeza hecha una esponja, Heer va del Macedonio original al Macedonio propio disfrutando del transporte; desafiante, acerca una guitarra de última generación para que Macedonio actúe en el nuevo escenario dependiendo para seguir adelante –como el resto– del gesto de aprobación de la Eterna corporizada en una mujer.

Formaciones y letras disparadas a Xul Solar: “Idiomas en compostura colgante”, más citas, comparaciones, alusiones, reflejos, al cine tampoco se lo pierde de vista, en este “estirar sin contar”, como subraya en boca de un personaje Liliana Heer en este libro para el teatro, moviendo cómodamente su batuta y encaminándose con dirección intencionada hacia otro sector del escenario.

 

EPÍLOGO

 

Macedonio Fernández – Museo de la novela de la Eterna [Primera edición 1967]

Prólogo de lo nunca visto

El género de lo nunca hablado, el de tan frecuente invocación, lo sin precedentes, será entrenado, pues él mismo nunca existió, nunca hubo lo nunca habido, en el corriente año y como es justo en Buenos Aires, la primera ciudad del mundo viniendo del campo inmediato, la única ciudad que se presta para conclusión de una vuelta al mundo empezando en ella… La Novela enviará esta noche su orquesta de solistas –seis guitarras– a ejecutar varias polifonías en obsequio de las orquestas de los bares Ideal, Sibarita y Real, para que oigan música. El Polígrafo del Silencio con eruditos gestos explicará el propósito, y circulará entre el personal de las orquestas escuchantes la bandejita sin fondo de la gratuidad haciendo sonar las moneditas del agradecimiento… Esta novela que fue y será futurista hasta que se escriba, como es su autor, que hasta hoy no ha escrito página alguna futura y aún ha dejado para lo futuro el ser futurista en prueba de su entusiasmo por serlo efectivamente cuanto antes.

 

 

 

Gloria Lenardón (Argentina, 1945). Vive en la ciudad de Rosario desde 1970. Escritora, narradora, coordinadora de talleres literarios, colaboradora en distintos medios: Diario La Capital, Pagina/12, Rosario/12. Novelas publicadas: La reina mora (premio Emecé 1986/87, premio Fondo Nacional de las Artes), A corta distancia (editorial Sudamericana 1994), Eva maravillosa (editorial Alción 2006), Shopping (editorial Ross 2012), La Bohemia (narrativa gráfica, editorial Iván Rosado 2016). Dirigió la colección Semillas de Eva, que reúne una serie de narradoras de diferentes campos, con la intención de investigar la escritura femenina y difundirla. Integra La Ronda, agrupación que acompaña a las madres de Plaza de mayo (Rosario). Integra La Palabra Colectiva, una colectiva de escritoras y editoras argentinas, que apoya a mujeres en situación de violencia, la diversidad de género, la conquista de derechos y fomenta la cultura y la educación.

 


WEDGWOOD STEVENTON (Inglaterra, 1955) | Começou a fotografar em 1973 passando para pintura e colagem em 1995, posteriormente descobrindo o cinema. Colabora, sempre de forma independente, no círculo do Surrealismo desde 1995. Como ele próprio declara: O espírito e o mistério da natureza ligado à existência humana é um tema importante em todos os meus trabalhos. Em uma mostra realizada em 2020, Steventon observou, acerca de sua própria obra: Pinceladas repentinas, a mistura de cores a óleo e, às vezes, a adição de colagens se unem para formar o trabalho finalizado. Nenhum primeiro pensamento, mas a pintura da mente inconsciente. Regras do automatismo. A natureza e o mundo humano se unem para contar a história. Um mundo em fluxo. Uma jornada contínua para explicar uma existência na vida em que nos encontramos.




Agulha Revista de Cultura

Número 230 | maio de 2023

Artista convidado: Wedgwood Steventon (Inglaterra, 1955)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023 

 


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com