terça-feira, 15 de outubro de 2024

GLADYS MENDÍA | Entrevista a Jeconias Mocumbe, autor de Os dedos da agonia (LP5 Editora, 2024)

 


Faz algumas semanas, fiz esta entrevista com Jeconias Mocumbe, escritor, editor e gestor cultural de Moçambique. Vencedor do I Prêmio Internacional de Poesia Lusófona Floriano Martins 2024 com o livro Os dedos da agonia. Compartilho com vocês.

 

GM | A sua poesia em Os dedos da agonia está profundamente enraizada nas experiências da guerra e do conflito na província de Cabo Delgado. Como a sua vivência pessoal e o contexto histórico de Moçambique influenciaram a criação deste livro?

 

JM | Não posso dizer que estive em um confronto direto, no entanto, perdi muita gente conhecida ex-colegas do ensino primário, secundário e de formação profissional que tiveram o azar de serem destacados para enfrentar os confrontos de Cabo Delgado, alguns deles, inclusive, familiares. Ademais, a minha profissão, de policial, obriga-me que tenha um contacto direto com as situações que ocorreram e ocorrem em Cabo Delgado, através de informações e imagens partilhadas por alguns colegas que se encontra no terreno. Somos um país e, de certa forma, cada situação que afeta a nação não nos permite sair dela incólumes, se partirmos do princípio do que se concebe como nação. Talvez esses contactos permanentes, diretos ou não, ecoem mais em minha mente de tal forma que a minha poesia se construa entre esses muros de destruição, guerra, desilusão, desconforto, morte, intimidação e desumanidade.  E o mais triste é que os que sofrem os efeitos dessa guerra são pessoas que não tiveram oportunidade de escolha. Ou seja, as pessoas são legadas à morte sem que elas consintam.    

 

GM | Nos seus versos, as armas são personificadas como divindades e brinquedos de berço, criando uma dolorosa justaposição entre a infância e a violência. O que o levou a construir essas imagens tão viscerais? Como você concebe a relação entre inocência e destruição na sua poesia?

 

JM | O contexto histórico da África é marcado por um ambiente de caos. As armas parecem ser vistas como a solução de tudo por aqui sejam diferenças ideológicas, políticas, sociais, religiosas, sempre se movem as armas. Quem tem mais poder bélico torna-se o “senhor dos senhores”. A arma ganha esse espaço divino e, em justa posição, a exposição das crianças a esses bárbaros acontecimentos aproxima-as desses instrumentos bélicos. No lugar de pavor, elas passam a enxergar as armas como instrumentos essenciais às suas vidas, de tal forma que não faz sentido que se ressintam diante de uma arma. Essa exposição acaba contribuindo para o recrudescimento da criminalidade, sobretudo de crimes bárbaros e envolvendo menores em certos cantos do país.

 

GM | A estrutura dos seus poemas parece rejeitar uma forma rígida, o que pode ser interpretado como um reflexo do caos que descreve. Como você decide a forma e a estrutura dos seus poemas? Qual o papel que a liberdade formal e a fluidez desempenham no seu processo criativo?

 

JM | Quando escrevo, a forma não define o sentimento, mas sim o próprio sentimento. No entanto, concebo a poesia como um lugar de infinitas possibilidades e sensibilidades. Para mim, a utilidade de um poema não se prende à estrutura. Isso não significa que não se deve seguir alguma forma, mas é preciso saber o que se escreve para depois, então, reinventar-se.

 


GM | No posfácio, menciona-se que Os dedos da agonia dá visibilidade às tragédias da guerra a partir de uma perspetiva poética e política. Como você vê o papel da poesia na denúncia das injustiças sociais e políticas? Você acredita que a literatura tem o poder de mudar realidades ou, pelo menos, de criar consciência sobre elas?

 

JM | A poesia, de certa forma, é o folego dos homens. Ela traz de volta a esperança quebrada ou destruída. Quando se concebe a poesia como esse espaço de repensar as situações, acredito que ela pode transformar as vivências sociais. Pode nos conscientizar do bem e do mal.

 

GM | Ao longo da obra, você utiliza uma linguagem crua e muitas vezes desprovida de pausas formais, o que pode simbolizar a falta de respiro em meio ao conflito. Como você equilibra essa dureza com a beleza estética que também caracteriza suas imagens?

 

JM | A incerteza conduz a minha escrita e o equilíbrio só se chega por via de uma reescrita constante. A tesoura sempre foi fundamental para qualquer autor/poeta. Sou tão crítico comigo mesmo que meu texto só é publicado após, no mínimo, cinco tentativas de reescrevê-lo, pois o considero sempre imperfeito.

 

GM | Em Os dedos da agonia, a natureza aparece como uma testemunha silenciosa da guerra e, muitas vezes, os elementos naturais como o rio ou o céu são tingidos de violência e morte. Qual é o lugar da natureza na sua obra e como ela se relaciona com a condição humana em meio ao conflito?

 

JM | Acredito que essas imagens têm a ver com a zona costeira em que me encontro, envolta de águas azuis, sejam do rio ou do Índico (oceano), espelhando esse sabor do céu que nos chega fétido pelo enxofre das armas. Cabo Delgado possui essa contradição em abundância: um lugar de belas praias que é impossível desdenhar, mesmo que o céu esteja crivado de balas.

 

GM | No contexto de Moçambique e de outros países africanos, a produção cultural foi silenciada durante séculos pelo colonialismo e pela violência. Como você vê o seu trabalho como poeta em termos de contribuir para uma maior visibilidade da literatura africana, em particular a de língua portuguesa, no cenário global?

 

JM | Apesar dos desafios, a internet tem jogado muito a nosso favor atualmente. Agora, escritores conseguem construir de forma sólida o seu reconhecimento sem se vincularem às formas tradicionais. Além disso, os concursos literários têm sido de grande valor para nós, especialmente os internacionais, pois nos permitem competir de igual para igual com vozes que não sofreram com a segregação racial. Não creio que devamos nos acomodar, pois ainda há muito a fazer pela nossa literatura, sobretudo nos países africanos lusófonos.

 

GM | Como gestor cultural e cofundador do “Projeto Tindzila”, como você combina o seu trabalho na promoção da cultura com a criação poética? Você acredita que há uma inter-relação entre essas duas facetas da sua vida?

 

JM | Tem sido uma boa experiência, pois a interação com outras pessoas me permite conhecer as outras realidades e fortalecer a minha visão sobre as coisas. Vale a pena, porque, devido a isso, pude conhecer novas pessoas, incluindo algumas que admiro e foram fundamentais para o meu desenvolvimento como poeta. 

 

GM | A voz poética de Os dedos da agonia caracteriza-se por uma profunda reflexão sobre a morte, não só como fim, mas também como origem, como anunciado no primeiro verso: “o começo de tudo é a morte”. Você poderia aprofundar essa ideia e como ela influencia sua cosmovisão como poeta?

 

JM | A ideia da destruição sempre surge aos humanos como uma forma de recomeço. Se olharmos para a natureza, ao que se diz em física ou química, que a matéria não se destrói, apenas se transforma, percebemos que nem toda morte pode significar o fim. Lembro-me de um professor meu, se não me falha a memória, chamado Bunguele, que ensinava uma disciplina de Meio Ambiente, e dizia: “Não há cerimónia sem sangue”. Isso traduz a nossa conceção tradicional, segundo a qual, em cerimónias de purificação ou exorcismo contra quaisquer males, sempre há um animal que será abatido, e esse sangue simboliza a dimensão do nosso sacrífico necessário para ensconjurar os males que nos afligem.

 

GM | Finalmente, que mensagem ou reflexão você gostaria que os leitores levassem consigo após ler Os dedos da agonia? Qual o papel que você acredita que a poesia deve cumprir nestes tempos de crise e guerra?

 

JM | A mensagem que deixo é simples: mais livros e menos armas. Nenhum outro papel deve ser atribuído à poesia senão o de difundir o amor ao próximo.

 

GM | Muito obrigada, querido Jeconias, por sua poética, por seu grande trabalho na difusão cultural e espero continuar recebendo notícias do seu caminho criativo, ao qual auguro uma longa vida. 

 

 


GLADYS MENDÍA (Venezuela, 1975). Poeta, ensayista, traductora y editora. Traductora del portugués al castellano, contando entre sus obras de traducción la antología poética de Roberto Piva titulada A catedral da dados (2017). Fue becada por la Fundación Neruda (2003 y 2017) y participó del Taller de Creación Poética con Raúl Zurita (2006). Ha publicado en varias revistas literarias, así como antologías, siendo la más reciente Archivos Temporales, Poemas de mujeres de América Latina (2022). Sus libros son: El tiempo es la herida que gotea (2009); El alcohol de estados intermedios (2009); La silenciosa desesperación del sueño (2010); Carcajadas. Reescritura de As Moradas, de Teresa de Ávila (2011); Dislocaciones de muñeca inquietantes (2012); El rincón de los manglares (2018); Telemática. Reflexiones de un adicto digital (2021); LUCES ALTAS luces de peligro (2022) y sus libros más recientes co-creados con Inteligencia Artificial: Fosforência tigra, Aire y Memorias de Árboles (2023). Es editora fundadora de Revista de Literatura y Artes LP5.cl y LP5 Editora, desde 2004. Es cofundadora de Furia del Libro (Feria de editoriales independientes, Chile). Como editora desarrolló más de veinticinco colecciones de poesía, narrativa, ensayo y audiovisuales, publicando a más de 500 autores.




TRIANA VIDAL (México, 1992). Artista plástica multidisciplinaria con experiencia en producción en barro, manejo de pastas, vidriados y control de quemas, modelado y manejo de torno alfarero.  Tarotista por tradición familiar, su trabajo figurativo tiene bases en los arquetipos junguianos y en la exploración de los elementos presentes en el inconsciente colectivo. Su formación comenzó en el taller “Tres Piedras” en Monterrey Nuevo León y actualmente radica en la ciudad de Cuernavaca donde se dedica a la producción de su obra. Triana Vidal es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.




Agulha Revista de Cultura

Número 256 | outubro de 2024

Artista convidada: Triana Vidal (México, 1992)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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