GM | A sua
poesia em Os dedos da agonia está profundamente enraizada nas
experiências da guerra e do conflito na província de Cabo Delgado. Como a sua
vivência pessoal e o contexto histórico de Moçambique influenciaram a criação
deste livro?
JM | Não posso dizer que estive em um
confronto direto, no entanto, perdi muita gente conhecida — ex-colegas do ensino primário,
secundário e de formação profissional — que tiveram o azar de serem destacados para enfrentar os confrontos de
Cabo Delgado, alguns deles, inclusive, familiares. Ademais, a minha profissão,
de policial, obriga-me que tenha um contacto direto com as situações que
ocorreram e ocorrem em Cabo Delgado, através de informações e imagens
partilhadas por alguns colegas que se encontra no terreno. Somos um país e, de
certa forma, cada situação que afeta a nação não nos permite sair dela
incólumes, se partirmos do princípio do que se concebe como nação. Talvez esses
contactos permanentes, diretos ou não, ecoem mais em minha mente de tal forma
que a minha poesia se construa entre esses muros de destruição, guerra,
desilusão, desconforto, morte, intimidação e desumanidade. E o mais triste é que os que sofrem os
efeitos dessa guerra são pessoas que não tiveram oportunidade de escolha. Ou
seja, as pessoas são legadas à morte sem que elas consintam.
GM | Nos seus
versos, as armas são personificadas como divindades e brinquedos de berço,
criando uma dolorosa justaposição entre a infância e a violência. O que o levou
a construir essas imagens tão viscerais? Como você concebe a relação entre
inocência e destruição na sua poesia?
JM | O contexto histórico da África é marcado
por um ambiente de caos. As armas parecem ser vistas como a solução de tudo por
aqui — sejam diferenças ideológicas,
políticas, sociais, religiosas, sempre se movem as armas. Quem tem mais poder
bélico torna-se o “senhor dos senhores”. A arma ganha esse espaço divino e, em
justa posição, a exposição das crianças a esses bárbaros acontecimentos aproxima-as
desses instrumentos bélicos. No lugar de pavor, elas passam a enxergar as armas
como instrumentos essenciais às suas vidas, de tal forma que não faz sentido
que se ressintam diante de uma arma. Essa exposição acaba contribuindo para o
recrudescimento da criminalidade, sobretudo de crimes bárbaros e envolvendo
menores em certos cantos do país.
GM | A
estrutura dos seus poemas parece rejeitar uma forma rígida, o que pode ser
interpretado como um reflexo do caos que descreve. Como você decide a forma e a
estrutura dos seus poemas? Qual o papel que a liberdade formal e a fluidez
desempenham no seu processo criativo?
JM | Quando escrevo, a forma não define o
sentimento, mas sim o próprio sentimento. No entanto, concebo a poesia como um
lugar de infinitas possibilidades e sensibilidades. Para mim, a utilidade de um
poema não se prende à estrutura. Isso não significa que não se deve seguir
alguma forma, mas é preciso saber o que se escreve para depois, então,
reinventar-se.
JM | A poesia, de certa forma, é o folego
dos homens. Ela traz de volta a esperança quebrada ou destruída. Quando se
concebe a poesia como esse espaço de repensar as situações, acredito que ela
pode transformar as vivências sociais. Pode nos conscientizar do bem e do mal.
GM | Ao longo
da obra, você utiliza uma linguagem crua e muitas vezes desprovida de pausas
formais, o que pode simbolizar a falta de respiro em meio ao conflito. Como
você equilibra essa dureza com a beleza estética que também caracteriza suas
imagens?
JM | A incerteza conduz a minha escrita e
o equilíbrio só se chega por via de uma reescrita constante. A tesoura sempre
foi fundamental para qualquer autor/poeta. Sou tão crítico comigo mesmo que meu
texto só é publicado após, no mínimo, cinco tentativas de reescrevê-lo, pois o
considero sempre imperfeito.
GM | Em Os
dedos da agonia, a natureza aparece como uma testemunha silenciosa da
guerra e, muitas vezes, os elementos naturais como o rio ou o céu são tingidos
de violência e morte. Qual é o lugar da natureza na sua obra e como ela se
relaciona com a condição humana em meio ao conflito?
JM | Acredito que essas imagens têm a ver
com a zona costeira em que me encontro, envolta de águas azuis, sejam do rio ou
do Índico (oceano), espelhando esse sabor do céu que nos chega fétido pelo
enxofre das armas. Cabo Delgado possui essa contradição em abundância: um lugar
de belas praias que é impossível desdenhar, mesmo que o céu esteja crivado de
balas.
GM | No
contexto de Moçambique e de outros países africanos, a produção cultural foi silenciada
durante séculos pelo colonialismo e pela violência. Como você vê o seu trabalho
como poeta em termos de contribuir para uma maior visibilidade da literatura
africana, em particular a de língua portuguesa, no cenário global?
JM | Apesar dos desafios, a internet tem
jogado muito a nosso favor atualmente. Agora, escritores conseguem construir de
forma sólida o seu reconhecimento sem se vincularem às formas tradicionais.
Além disso, os concursos literários têm sido de grande valor para nós, especialmente
os internacionais, pois nos permitem competir de igual para igual com vozes que
não sofreram com a segregação racial. Não creio que devamos nos acomodar, pois
ainda há muito a fazer pela nossa literatura, sobretudo nos países africanos
lusófonos.
GM | Como
gestor cultural e cofundador do “Projeto Tindzila”, como você combina o seu
trabalho na promoção da cultura com a criação poética? Você acredita que há uma
inter-relação entre essas duas facetas da sua vida?
JM | Tem sido uma boa experiência, pois a
interação com outras pessoas me permite conhecer as outras realidades e fortalecer
a minha visão sobre as coisas. Vale a pena, porque, devido a isso, pude conhecer
novas pessoas, incluindo algumas que admiro e foram fundamentais para o meu
desenvolvimento como poeta.
GM | A voz
poética de Os dedos da agonia caracteriza-se por uma profunda reflexão
sobre a morte, não só como fim, mas também como origem, como anunciado no
primeiro verso: “o começo de tudo é a morte”. Você poderia aprofundar essa ideia
e como ela influencia sua cosmovisão como poeta?
JM | A ideia da destruição sempre surge
aos humanos como uma forma de recomeço. Se olharmos para a natureza, ao que se
diz em física ou química, que a matéria não se destrói, apenas se transforma, percebemos
que nem toda morte pode significar o fim. Lembro-me de um professor meu, se não
me falha a memória, chamado Bunguele, que ensinava uma disciplina de Meio
Ambiente, e dizia: “Não há cerimónia sem sangue”. Isso traduz a nossa conceção
tradicional, segundo a qual, em cerimónias de purificação ou exorcismo contra
quaisquer males, sempre há um animal que será abatido, e esse sangue simboliza
a dimensão do nosso sacrífico necessário para ensconjurar os males que nos
afligem.
GM | Finalmente,
que mensagem ou reflexão você gostaria que os leitores levassem consigo após
ler Os dedos da agonia? Qual o papel que você acredita que a poesia deve
cumprir nestes tempos de crise e guerra?
JM | A mensagem que deixo é simples: mais
livros e menos armas. Nenhum outro papel deve ser atribuído à poesia senão o de
difundir o amor ao próximo.
GM | Muito obrigada, querido Jeconias, por sua poética, por seu grande trabalho na difusão cultural e espero continuar recebendo notícias do seu caminho criativo, ao qual auguro uma longa vida.
GLADYS MENDÍA (Venezuela, 1975). Poeta, ensayista, traductora y editora. Traductora del portugués al castellano, contando entre sus obras de traducción la antología poética de Roberto Piva titulada A catedral da dados (2017). Fue becada por la Fundación Neruda (2003 y 2017) y participó del Taller de Creación Poética con Raúl Zurita (2006). Ha publicado en varias revistas literarias, así como antologías, siendo la más reciente Archivos Temporales, Poemas de mujeres de América Latina (2022). Sus libros son: El tiempo es la herida que gotea (2009); El alcohol de estados intermedios (2009); La silenciosa desesperación del sueño (2010); Carcajadas. Reescritura de As Moradas, de Teresa de Ávila (2011); Dislocaciones de muñeca inquietantes (2012); El rincón de los manglares (2018); Telemática. Reflexiones de un adicto digital (2021); LUCES ALTAS luces de peligro (2022) y sus libros más recientes co-creados con Inteligencia Artificial: Fosforência tigra, Aire y Memorias de Árboles (2023). Es editora fundadora de Revista de Literatura y Artes LP5.cl y LP5 Editora, desde 2004. Es cofundadora de Furia del Libro (Feria de editoriales independientes, Chile). Como editora desarrolló más de veinticinco colecciones de poesía, narrativa, ensayo y audiovisuales, publicando a más de 500 autores.
TRIANA VIDAL (México, 1992). Artista plástica multidisciplinaria con experiencia en producción en barro, manejo de pastas, vidriados y control de quemas, modelado y manejo de torno alfarero. Tarotista por tradición familiar, su trabajo figurativo tiene bases en los arquetipos junguianos y en la exploración de los elementos presentes en el inconsciente colectivo. Su formación comenzó en el taller “Tres Piedras” en Monterrey Nuevo León y actualmente radica en la ciudad de Cuernavaca donde se dedica a la producción de su obra. Triana Vidal es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 256 | outubro de 2024
Artista convidada: Triana Vidal (México, 1992)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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