Originalmente, esses poemas foram
publicados em 2022 com o título The golden dot: last
poems 1997-2000 (O ponto de ouro:
últimos poemas 1997-2000), pela editora
norte-americana Lithic Press, com edição de George Scrivani e
Raymond Foye. A obra traz 110 poemas, mas para a edição brasileira foram
selecionados 55. Em quase todos, Corso medita sobre a velhice, seus amigos
mortos, os ciclos cósmicos e acontecimentos que marcaram a sua tumultuada vida,
como os anos que passou em orfanatos e presídios, sua experiência com as drogas
mais pesadas e o vício da bebida, suas leituras públicas com companheiros da geração
beat e sua infância desolada e solitária.
Nascido em Nova York, Corso teve uma
vida tumultuada desde os seus primeiros dias, pois, depois de seu nascimento,
em razão de divergências com o marido, sua mãe decidiu abandoná-lo. Ao
contrário do que se lê na Wikipédia, a mãe dele não retornou para a
Itália, “mas simplesmente fugira para o outro lado do rio, em direção a
Trenton, Nova Jersey, onde criou outra família”, como afiança Foye na
introdução.
Em razão disso, ele teve de viver a
maior parte de sua infância em orfanatos. Já seu pai se casou pela segunda vez
quando ele tinha onze anos e foi com quem ele acabou ficando, mas Corso fugiu
de casa várias vezes, provavelmente em razão de maus tratos.
II | Foye lembra que,
em 1997, quando trabalhava como editor o seu último livro, soube que Corso e a
mãe tiveram um reencontro, quando ele já estava com 67 anos e ela com 84. E que
esse reencontro foi filmado por um documentarista. No fim, porém, o reencontro
só serviu para reexpor “sentimentos dolorosos de abandono”, como observa Foye. Esse
sentimento está exposto no poema “(E quando falou a última vez...)” em que o
poeta diz:
(...) Depois de 67 anos / do ventre de onde
vim / “Eu sou ela / Venha viver comigo” / Vivi a vida quase toda sozinho /
Mesmo sendo minha mãe / Nosso sangue era estranho (...) Agora que minha vida
está completa / E vi a mãe que nunca vira / Ela forte e doce aos 84 / Eu aos 67
abençoado com bons genes / Vi mais da vida que a maioria / Mudanças, sucessos e
reveses... (...) A vida é mesmo tão preciosa / as memórias do passado / sempre
retornam para lembrar os erros / os erros que nos envergonham ante a
precariedade da vida / ensinam a pensar, ir devagar, respeitar o momento
sagrado / a importância de tudo / a bondade de tudo / significa ser salvo,
ir para o céu / vida ah vida / algo pra valer, não sei, não posso dizer”.
Por aqui se vê que o poeta sempre ficou
preso ao passado, tendo guardado nos confins da memória circunstâncias que lhe
foram decisivas e o fizeram trilhar um caminho pouco edificante, que o levou a
fazer da poesia um confessionário, numa espécie de penitência. Em seus versos,
ficam aparentes a angústia e o desespero, expostos com proverbial lucidez e
franqueza.
Do pai, obviamente, não guardava boas
lembranças. Pelo contrário. Na época de seu reencontro com a mãe, o pai já
estava em seus últimos dias. E, embora o odiasse, Corso fez um esforço para recebê-lo
em sua casa, mas acabou passando por uma situação igualmente dolorosa quando o
pai o confundiu e o chamou de Dominic. Isso
é o que se pode deduzir deste trecho de seu poema “(Caro e Santo Dr. Lucas...)”:
(...)
eu não fazia ideia de que ele tinha Alzheimer; não o via há mais de 10 anos,
ele tem 86 anos; mora em San Antonio, Texas – ele e meu irmão mais novo vieram
me visitar – ele não podia ficar sozinho; meu irmão cuidava dele; foi horrível;
eu ajudei a limpar a bunda do monstro que quase matou minha mãe de 16 anos; ela
fugiu, deixou-o, e a mim, para sempre – eu não queria a sua morte, incompleta
em vida, em minha consciência!
Dos pais adotivos que tivera também não
guardava nenhuma boa lembrança, como se pode ver no poema “(Tão profundo –
profundo – lá dentro...)”:
(...)
Nada de ruim me aconteceu / ao crescer católico / exceto os pais adotivos
católicos / 6 ao todo / só me adotavam para receber dinheiro da Igreja / Não me
amavam / Presos na Grande Depressão / De todo modo nunca relacionei a Divindade
com as ações / das pessoas / Na foto do Orfanato / eu era o garoto de cabelo
preto cacheado / sentado no colo de Cristo.
Em outro poema, lembra o incidente em
que perdeu os dentes, agredido por um maître de um bistrô em Paris, em
1967, o que não teria sido motivo suficiente para que não deixasse de atrair
mulheres:
(...)
Mas isto foi há 30 anos / e durante esses anos / independente das perdas / Amei
quatro mulheres / vivi cinco anos com cada uma / e dei a cada uma delas uma
participação especial minha / Todas estão bem / Sempre mantenho amizade com as
mulheres / Só deixei de procurá-las com a idade / Mas algumas vieram até mim /
As perdas da mocidade são perdas da vaidade / A velhice com as perdas é outra
coisa (...).
Para Foye, os versos de Últimos poemas
são a coroação de uma carreira marcada por obras que demonstram “os
extraordinários poderes do poeta”, pois lê-los permite “entrar totalmente em
sua mente e testemunhar o próprio ato de criação”. Para o editor, nesses
últimos poemas, “ele voltou à vela, à meia-noite, escrevendo para si mesmo e
para o leitor solitário”. Em outras palavras: Corso fez da poesia uma maneira
de escancarar as portas de sua casa aos leitores, permitindo-lhes conhecer os
meandros de sua intimidade, num ato permanente de catarse, ou seja, um profundo
processo de libertação emocional.
IV | Foi na
biblioteca da prisão que descobriu o prazer da leitura e da literatura e
começou a escrever poesia. Liberado em 1950, retornou a Nova York, onde
conheceu Allen Ginsberg, que, mais tarde, acabou por apresentá-lo a outros membros
daquela que seria chamada de geração beat.
O primeiro volume de sua poesia foi uma edição caseira
publicada em 1955, com a ajuda dos colegas da Universidade de Harvard, onde ele
assistia aulas como aluno ouvinte: Vestal Lady on Brattle
e outros poemas.
Isto se deu no ano anterior à publicação da
primeira coletânea de poesias de Allen Ginsberg e a dois anos antes do
aparecimento de On the road, de Jack Kerouac. Em 1958,
Corso teve uma coletânea de poemas publicada pela City Lights Pocket
Poets Series: Gasoline/Vestal Lady on
Brattle. Seus poemas mais famosos são “Bomba” (escrito na máquina de
escrever na forma de uma nuvem de cogumelo) e “Casamento”, uma meditação
divertida sobre a vida matrimonial.
De profissão indefinida, Corso, em
certa época, foi chefe de uma gangue, que organizou com walkie-talkies.
Não se sabe o que fazia para sobreviver, mas, segundo Foye, teria ganho um bom
dinheiro com seus versos: mais de 100 mil dólares com o poema “Casamento”.
Seus últimos livros foram: Mindfield: new
and selected poems (1989); King of the
hill, em parceria com Nicholas Tremulis (1993); Bloody Show,
em parceria com Nicholas Tremulis (1996); Brink of the world,
em parceria com Stephen Pastore (2008); The whole shot,
entrevistas (2015); Sarpedon: a play by Gregory
Corso (1954/2016); Melted parchment (2019); e Collected
plays (2021).
Morreu em Minnesota de câncer de próstata a 17 de janeiro de 2001, na casa de uma filha que o acolhera em 2000, mas, como era o seu desejo, suas cinzas foram transportadas para o Cemitério Inglês Protestante, em Roma, e ficaram num túmulo em frente ao do poeta inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822).
Últimos
poemas, de Gregory Corso, edição bilíngue,
com seleção e tradução de Márcio Simões e introdução de Raymond Foye. Natal-RN, Sol Negro Edições, 172 páginas, R$
50,00, 2023. Site: solnegroeditora.blogspot.com E-mail: edsolnegro@hotmail.com.
ADELTO GONÇALVES (Brasi). Jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra.
TRIANA VIDAL (México, 1992). Artista plástica multidisciplinaria con experiencia en producción en barro, manejo de pastas, vidriados y control de quemas, modelado y manejo de torno alfarero. Tarotista por tradición familiar, su trabajo figurativo tiene bases en los arquetipos junguianos y en la exploración de los elementos presentes en el inconsciente colectivo. Su formación comenzó en el taller “Tres Piedras” en Monterrey Nuevo León y actualmente radica en la ciudad de Cuernavaca donde se dedica a la producción de su obra. Triana Vidal es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 256 | outubro de 2024
Artista convidada: Triana Vidal (México, 1992)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
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