terça-feira, 15 de outubro de 2024

FLORIANO MARTINS | Maria Lúcia Dal Farra – Sobrevoando a história, surrealismo e visão de mundo

 


MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil, 1944). Poeta, ensaísta e conferencista, autora de quatro livros de poesia que se destacam entre os melhores de nossa lírica: Livro de Auras (1994), Livro de Possuídos (2002), Alumbramentos (2012), Terceto para o fim dos tempos (2017), e Livro de erros (2024). Além deles, é autora de um livro de contos, Inquilina do Intervalo (2005) e dois outros de crítica literária: O Narrador Ensimesmado (1978) e A Alquimia da Linguagem (1994), este último em Portugal.

 

FM | Depois de um século de purificação do surrealismo, registrando a sua recusa em ser confundido com uma escola ou apenas com um ismo, é impossível descartar a propriedade estética de qualquer obra criativa. Qual é a tua compreensão de um ideal estético do surrealismo?

 

MLDF | Creio que o sentido de revolução, de rebeldia, de desobediência aos paradigmas e aos comportamentos burgueses (ou não) que vigoravam então (e que persistem ainda agora, de modos diversos) é o impulso para o ato surrealista de qualquer idade. Eu diria que, desse modo, tal ato expõe um pressuposto artístico por excelência, algo que está no cerne de quaisquer gestos para o alcance da obra de arte. Mas o fato que importa, para o surrealismo, é o que vem em seguida – e o que não é pouco, pois que é a própria obra de arte. Esta se engendra por meio daquilo que tal questionamento provoca: o desocultamento de valores sensíveis (ou a crença na existência destes) que compõem outras realidades que até então não tinham sido jamais aproximadas ou mesmo sequer tocadas. Trata-se de, no mínimo, efetuar um trajeto cerebral que nunca tinha sido antes percorrido pelos nossos pobres neurônios.

 

FM | As expulsões clássicas de surrealistas realizadas na formação original parisiense foram de natureza comportamental. A má qualidade de uma obra nunca foi um aspecto levado a julgamento. Ainda hoje, embora as expulsões já não sejam uma ocorrência comum, quando comentam acerca de seus pares, fazem-no considerando simpatias e adesões, o que acentua a existência de uma irmandade. Até que ponto este clube de amigos distorce a compreensão que se poderia ter da revolução cultural mais relevante do século XX?

 

MLDF | Acho que não distorce – apenas acrescenta mais uma modalidade. São movimentos internos ao grupo, que vão aperfeiçoando melhor a ideia de uma comunidade artística que se encontra sempre in progress, como é o caso do surrealismo, que é algo imparável, com desdobramentos sempre surpreendentes que eclodem de várias maneiras no transcorrer do tempo, justo porque essa via, antes impensável, foi desvirginada. É um caminho que se abriu, uma rota que não é traçada, mas que permite também extravios – aliás, os seus atos mais praticados.

 


FM | As revistas surrealistas – antes impressas, agora também virtuais e com uma longa recuperação desde os primórdios desta atividade em edições fac-símile e em formato pdf – formam um acervo incomparável a qualquer outro movimento, escola ou vanguarda ao longo dos séculos. Defendo que as mais valiosas são aquelas que nunca refutaram outras perspectivas de vida e obra, estranhas e/ou complementares ao surrealismo. Tais revistas são, a meu ver, o espaço cativante de uma contra-ortodoxia, um exercício pleno de generosidade e partilha de mundos dispersos. Contudo, ainda existe, declarada ou não, uma imensa rejeição do surrealismo precisamente por causa do seu princípio ortodoxo. Como separar o joio e o trigo aqui?

 

MLDF | Penso que o surrealismo já perdeu, há tempos, essa mania de ortodoxia, que botou outros comportamentos estéticos em franca dissidência em relação a si – e é o que se vê, pelos exemplos que você nos dá, nas revistas impressas ou online etc. que hoje acolhem todas essas manifestações enquanto surrealismo. Porque ele mesmo, assim o creio, é contrário a tal bandeira, ele mesmo muito diversificado e libertário – raiz de onde ele sempre partiu. De modo que, começando por aquele pressuposto de inadequação social e estética, ele acolhe muitos outros, tornando-se mais para prenhe de novos e diversificados, do que propriamente para elitismos.

 

FM | Duas denominações sempre me chamaram a atenção, dentro do ambiente surrealista, não porque me pareçam inadequadas, mas sim pela divisão entre elas de elogio e rejeição: movimento surrealista e civilização surrealista. Até que ponto estas denominações diferem e o que representam à beira de parecerem antípodas?

 

MLDF | É que a atividade artística não é isolada no ser, ela transborda naquilo que a pessoa faz e existe. Ser surrealista, no entanto, não tem regras fixas – eu não sou um dos quadros de Dalí e nem todos eles reunidos, menos ainda um manifesto de Breton. Mas quando esses objetos estéticos se tornam meio real de vida e práxis existencial, eles acabam atingindo o nervo sensível do social admitido – visto que incomodam! – e passam a ser (sic!) caso de polícia… O que a Arte admite e pratica não necessariamente funciona como polo positivo para a sociedade burguesa na qual nos inserimos. É provável que os beats e os punks estivessem mais próximos de incorporarem uma obra de arte surrealista, quem sabe por que a produzem em si mesmos, nos seus próprios corpos, almas e comportamentos. E, nesse caso, talvez exemplifiquem o acolhimento que obteria uma civilização surrealista… E daí a enorme contradição: sendo que o surrealismo trabalha pelo não-permitido, veja-se que o imaginar em arte é consentido, mas o proceder…  

 


FM | É comum evocar no surrealismo o seu poder imaginativo e o seu carácter experimental, aspectos estritamente complementares. Porém, na inquestionável impossibilidade de uma renovação perene no ambiente de criação artística, em muitos casos, o que se verifica no surrealismo é uma repetição de recursos, modos de ser e truques de linguagem. Como lidar com essas oscilações tão comuns em qualquer território criativo?

 

MLDF | Penso que não só o surrealismo, mas a arte em geral se renova a partir da problematização dos modelos e das práticas já utilizadas. Não creio que o surrealismo seja repetitivo nos seus recursos, mas é que seus recursos de repetição não são mais os mesmos. E tais comportamentos nos são inspirados pela própria transmutação do próprio mundo ou da nossa civilização: é preciso ser atento e pinçar do atual real aquilo que nos interessa como motor de nosso perpétuo desassossego.

 

FM | O argentino Aldo Pellegrini foi um dos raros estudiosos do surrealismo que tratou especificamente de seu ambiente poético. Numa bibliografia surrealista, o tom reforça a relevância da imagem plástica. Tal adjetivo sempre me pareceu uma falha crítica, pois a essência renovadora, já no início do século XX, refere-se à própria imagem e às suas múltiplas perspectivas. Será esta uma das inúmeras adulterações dos princípios surrealistas ou mesmo entre elas, percebeu-se a falta de distinção – exceto meramente técnica – entre imagem plástica e imagem poética?

 

MLDF | Penso que a imagem poética, qualquer que seja ela, possui sempre um pendor plástico, haja vista a sua própria nomenclatura. O fato é que, no surrealismo, depois de termos passado historicamente por modificações perceptivas derivadas, por exemplo, da evolução dos meios técnicos de fotografia, cinema etc. (e Walter Benjamin especula, por exemplo, se a pintura impressionista não teria sido afetada pela percepção do olhar do artista diante do fenômeno da multidão, que é fato social recente de meados do século passado, trazido, de início, por Poe e Baudelaire para a literatura) – essa era de prodígios visuais, até então impensável, alcançou vigorosamente as obras de arte. O écran, o aumento assustador da propaganda urbana, acrescida de grafites e de todos os tipos de sinais plásticos (a começar pelo semáforo), certamente vieram a impactar o olhar do artista e a contaminar sua maneira de expressão. O conceito de plasticidade teria invadido mais o surrealismo, ou se tonificado com acerbo nele, justo porque os reais que este desencavava parecem ser – diante da abstração do que encerram – mais notáveis quanto mais possam ser visualmente expressos. Ou seja: o mundo ao derredor entra, com o seu furor elétrico, multicor, móvel e camuflável quase que permanentemente exposto, como mais um forte modo de procedimento do imaginário surrealista.

 


FM | No seu surgimento, as expectativas sociais do surrealismo giravam em torno do que então era apresentado como ações revolucionárias, especialmente o que se baseava nas proposições de Marx e Freud. Octavio Paz chegou a declarar que o século XX seria lembrado como o século de Freud e do Surrealismo. Ao eliminar Marx das suas profecias, esqueceu – isto se é de fato um esquecimento – que o mercado derrotaria, no mínimo, todas as pretensões revolucionárias, sem deixar de lado as duas destacadas pelo mexicano. Como avaliar o tema em nosso tempo? Diante de um absolutismo virulento do mercado, o que aconteceu com as forças desencadeadas por Freud, Marx e o Surrealismo?

 

MLDF | Se, de um lado, tais forças desencadeadas por essa Trinca mágica foram cooptadas pelo mercado, por outro, elas continuam exercendo a sua feroz ação revolucionária como forma de arte que, uma vez infiltrada no mercado, funciona a favor e contra ele ao mesmo tempo, estabelecendo com o mundo mercadológico uma concorrência impossível – uma pareceria que, utilizando-se dele, o põe em crivo sempre, perpetuamente, sabendo, por antecipação, que também desse seu procedimento ele se apropriará. E assim indefinidamente até quando outro fator – certamente (sic!) mercadológico – entrar em cena e refizer essa equação em outro patamar.

 

 


FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Criador e integrante da Rede de Aproximações Líricas. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).

 

 


TRIANA VIDAL (México, 1992). Artista plástica multidisciplinaria con experiencia en producción en barro, manejo de pastas, vidriados y control de quemas, modelado y manejo de torno alfarero. Tarotista por tradición familiar, su trabajo figurativo tiene bases en los arquetipos junguianos y en la exploración de los elementos presentes en el inconsciente colectivo. Su formación comenzó en el taller “Tres Piedras” en Monterrey Nuevo León y actualmente radica en la ciudad de Cuernavaca donde se dedica a la producción de su obra. Triana Vidal es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.




Agulha Revista de Cultura

Número 256 | outubro de 2024

Artista convidada: Triana Vidal (México, 1992)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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