FM | Depois de um século de
purificação do surrealismo, registrando a sua recusa em ser confundido com uma
escola ou apenas com um ismo, é
impossível descartar a propriedade estética de qualquer obra criativa. Qual é a
tua compreensão de um ideal estético do surrealismo?
MLDF | Creio
que o sentido de revolução, de rebeldia, de desobediência aos paradigmas e aos
comportamentos burgueses (ou não) que vigoravam então (e que persistem ainda
agora, de modos diversos) é o impulso para o ato surrealista de qualquer idade.
Eu diria que, desse modo, tal ato expõe um pressuposto artístico por excelência,
algo que está no cerne de quaisquer gestos para o alcance da obra de arte. Mas
o fato que importa, para o surrealismo, é o que vem em seguida – e o que não é
pouco, pois que é a própria obra de arte. Esta se engendra por meio daquilo que
tal questionamento provoca: o desocultamento de valores sensíveis (ou a crença
na existência destes) que compõem outras realidades que até então não tinham
sido jamais aproximadas ou mesmo sequer tocadas. Trata-se de, no mínimo,
efetuar um trajeto cerebral que nunca tinha sido antes percorrido pelos nossos
pobres neurônios.
FM | As expulsões clássicas
de surrealistas realizadas na formação original parisiense foram de natureza
comportamental. A má qualidade de uma obra nunca foi um aspecto levado a
julgamento. Ainda hoje, embora as expulsões já não sejam uma ocorrência comum,
quando comentam acerca de seus pares, fazem-no considerando simpatias e
adesões, o que acentua a existência de uma irmandade. Até que ponto este clube
de amigos distorce a compreensão que se poderia ter da revolução cultural mais
relevante do século XX?
MLDF | Acho que
não distorce – apenas acrescenta mais uma modalidade. São movimentos internos
ao grupo, que vão aperfeiçoando melhor a ideia de uma comunidade artística que
se encontra sempre in progress, como é o caso do surrealismo, que é algo
imparável, com desdobramentos sempre surpreendentes que eclodem de várias
maneiras no transcorrer do tempo, justo porque essa via, antes impensável, foi
desvirginada. É um caminho que se abriu, uma rota que não é traçada, mas que permite
também extravios – aliás, os seus atos mais praticados.
MLDF | Penso
que o surrealismo já perdeu, há tempos, essa mania de ortodoxia, que botou outros
comportamentos estéticos em franca dissidência em relação a si – e é o que se
vê, pelos exemplos que você nos dá, nas revistas impressas ou online etc. que
hoje acolhem todas essas manifestações enquanto surrealismo. Porque ele mesmo,
assim o creio, é contrário a tal bandeira, ele mesmo muito diversificado e libertário
– raiz de onde ele sempre partiu. De modo que, começando por aquele pressuposto
de inadequação social e estética, ele acolhe muitos outros, tornando-se mais
para prenhe de novos e diversificados, do que propriamente para elitismos.
FM | Duas denominações
sempre me chamaram a atenção, dentro do ambiente surrealista, não porque me
pareçam inadequadas, mas sim pela divisão entre elas de elogio e rejeição:
movimento surrealista e civilização surrealista. Até que ponto estas
denominações diferem e o que representam à beira de parecerem antípodas?
MLDF | É que a
atividade artística não é isolada no ser, ela transborda naquilo que a pessoa
faz e existe. Ser surrealista, no entanto, não tem regras fixas – eu não sou um
dos quadros de Dalí e nem todos eles reunidos, menos ainda um manifesto de
Breton. Mas quando esses objetos estéticos se tornam meio real de vida e práxis
existencial, eles acabam atingindo o nervo sensível do social admitido – visto
que incomodam! – e passam a ser (sic!) caso de polícia… O que a Arte admite e
pratica não necessariamente funciona como polo positivo para a sociedade
burguesa na qual nos inserimos. É provável que os beats e os punks estivessem
mais próximos de incorporarem uma obra de arte surrealista, quem sabe por que a
produzem em si mesmos, nos seus próprios corpos, almas e comportamentos. E,
nesse caso, talvez exemplifiquem o acolhimento que obteria uma civilização
surrealista… E daí a enorme contradição: sendo que o surrealismo trabalha pelo
não-permitido, veja-se que o imaginar em arte é consentido, mas o proceder…
MLDF | Penso
que não só o surrealismo, mas a arte em geral se renova a partir da
problematização dos modelos e das práticas já utilizadas. Não creio que o
surrealismo seja repetitivo nos seus recursos, mas é que seus recursos de
repetição não são mais os mesmos. E tais comportamentos nos são inspirados pela
própria transmutação do próprio mundo ou da nossa civilização: é preciso ser
atento e pinçar do atual real aquilo que nos interessa como motor de nosso
perpétuo desassossego.
FM | O argentino Aldo
Pellegrini foi um dos raros estudiosos do surrealismo que tratou
especificamente de seu ambiente poético. Numa bibliografia surrealista, o tom
reforça a relevância da imagem plástica. Tal adjetivo sempre me pareceu uma
falha crítica, pois a essência renovadora, já no início do século XX, refere-se
à própria imagem e às suas múltiplas perspectivas. Será esta uma das inúmeras
adulterações dos princípios surrealistas ou mesmo entre elas, percebeu-se a
falta de distinção – exceto meramente técnica – entre imagem plástica e imagem
poética?
MLDF | Penso
que a imagem poética, qualquer que seja ela, possui sempre um pendor plástico,
haja vista a sua própria nomenclatura. O fato é que, no surrealismo, depois de
termos passado historicamente por modificações perceptivas derivadas, por
exemplo, da evolução dos meios técnicos de fotografia, cinema etc. (e Walter
Benjamin especula, por exemplo, se a pintura impressionista não teria sido
afetada pela percepção do olhar do artista diante do fenômeno da multidão, que
é fato social recente de meados do século passado, trazido, de início, por Poe
e Baudelaire para a literatura) – essa era de prodígios visuais, até então
impensável, alcançou vigorosamente as obras de arte. O écran, o aumento
assustador da propaganda urbana, acrescida de grafites e de todos os tipos de
sinais plásticos (a começar pelo semáforo), certamente vieram a impactar o
olhar do artista e a contaminar sua maneira de expressão. O conceito de
plasticidade teria invadido mais o surrealismo, ou se tonificado com acerbo nele,
justo porque os reais que este desencavava parecem ser – diante da abstração do
que encerram – mais notáveis quanto mais possam ser visualmente expressos. Ou
seja: o mundo ao derredor entra, com o seu furor elétrico, multicor, móvel e
camuflável quase que permanentemente exposto, como mais um forte modo de procedimento
do imaginário surrealista.
MLDF | Se, de
um lado, tais forças desencadeadas por essa Trinca mágica foram cooptadas pelo
mercado, por outro, elas continuam exercendo a sua feroz ação revolucionária
como forma de arte que, uma vez infiltrada no mercado, funciona a favor e
contra ele ao mesmo tempo, estabelecendo com o mundo mercadológico uma concorrência impossível – uma pareceria
que, utilizando-se dele, o põe em crivo sempre, perpetuamente, sabendo, por
antecipação, que também desse seu procedimento ele se apropriará. E assim
indefinidamente até quando outro fator – certamente (sic!) mercadológico – entrar
em cena e refizer essa equação em outro patamar.
FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Criador e integrante da Rede de Aproximações Líricas. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).
TRIANA VIDAL (México, 1992). Artista plástica multidisciplinaria con experiencia en producción en barro, manejo de pastas, vidriados y control de quemas, modelado y manejo de torno alfarero. Tarotista por tradición familiar, su trabajo figurativo tiene bases en los arquetipos junguianos y en la exploración de los elementos presentes en el inconsciente colectivo. Su formación comenzó en el taller “Tres Piedras” en Monterrey Nuevo León y actualmente radica en la ciudad de Cuernavaca donde se dedica a la producción de su obra. Triana Vidal es la artista invitada de esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 256 | outubro de 2024
Artista convidada: Triana Vidal (México, 1992)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
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FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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