segunda-feira, 7 de setembro de 2015

ALCEBÍADES DINIZ MIGUEL | A beleza onírica do abismo (Dolphi Trost e o exílio perpétuo)


Ainsi, dans le temps des fables, après les inondations et les déluges, il sortit de la terre des hommes armés, qui s’exterminèrent.

Montesquieu, L’esprit des lois (livro XXIII, cap. XXIII)
Castelos aéreos dos Cárpatos

A Romênia, esse pequeno país situado no centro da Europa – ao norte dos Balcãs, que escapa do completo isolamento continental graças a uma pequena faixa de terra banhada pelo Mar Negro – talvez represente com a clareza mais absoluta e feroz as marchas e contramarchas daquilo que os discursos otimistas/progressistas costumam denominar “progresso”, as equívocas relações entre Civilização e Barbárie. Acossada por nações mais poderosas e potencialmente inimigas em suas fronteiras (a Hungria, a Turquia, por um bom tempo a Rússia Soviética), falantes de um idioma que mescla o latim com as múltiplas influências eslavas e orientais, os romenos também prestam sua homenagem à língua e à cultura francesa, transformando a capital, Bucareste, na “Paris do Leste” ou “Pequena Paris” (Micul Paris).
O romeno mundialmente reconhecido, a personalidade de projeção internacional do país não é nenhum atleta, político defensor de causas urgentes ou cantor/ator a mobilizar massas de fãs, mas o príncipe da Valáquia, Vlad Țepeș ou Vlad III, denominado “o empalador” – prática de tortura que o nobre romeno apreciava sobremaneira, embora seu apetite por sangue e por refinadas, brutais formas de tortura não excluísse outros métodos. Não deixa de ser curioso, contudo, que a fama do rei da Valáquia não surgiu devido à construção de um imenso império, mas exatamente devido à violência extrema que caracterizava as ações defensivas desse nobre, que buscava manter as fronteiras de seu minúsculo reinado. Tal violência, aliás, não foi sequer recriada dentro de uma perspectiva histórica rigorosa, mas evocada e resgatada pelo imaginário por um autor estrangeiro (Bram Stoker, um britânico/irlandês) que transformou o velho monarca em monstro sobrenatural. Os sucessivos resgates desse mito moderno – sendo que podemos destacar entre os exemplos mais recentes as elegantes e equilibradas abordagens que vemos em The Historian de Elizabeth Kostova e The Dracula Papers, Book I: The Scholar’s Tale de Reggie Oliver –, a um só tempo moderno e ancestral, nacional (muitas vezes quase nacionalista) e mundial, imaginário e histórico, oculto (ou enigmático) e massificado, sumarizam o fascínio imenso que o obscuro território balcânico dos romenos exerceu e exerce na imaginação e no sonho humanos.
Mas esse é apenas um lado da equação, exótico, pitoresco, talvez mesmo frívolo. A tensão entre barbárie e esforço civilizacional também se projeta na história do país, em seus pogroms, na adesão eufórica ao nacionalismo fascista que incluía envio de tropas a territórios vizinhos para combater os inimigos ideológicos e raciais do Reich simbolizada pela feroz Guarda de Ferro, na imposição de um regime comunista de brutal perseguição a oposicionistas simbolizada pela sinistra polícia política, a Secutitate. Esses cenários de crueldade e loucura foram muito bem evocadas por Curzio Malaparte em seu estranho memorial da Segunda Guerra Mundial, ao recordar as cenas de horror e morte que testemunhou na Romênia. Era o período em que os romenos contaram com a sua versão nacional do hrer, o Conducător Marechal Ion Antonescu, um aliado tão diligente de Hitler que colocou as tropas romenas em confronto direto com a URSS, de modo que tal força auxiliar chegou a acumular algumas vitórias compartilhadas com seus poderosos companheiros germânicos até o princípio da derrocada na Batalha de Stalingrado, na qual o grosso da força militar romena foi aniquilada. Malaparte – um pseudônimo carregado de ironia, afinal “mala parte” é a parte má, que o autor Kurt Erich Suckert utilizava para eludir seu imponente nome alemão – era, ele próprio, uma figura equívoca e ambígua, do tipo que abundava no período que vai dos anos 1930 ao final da Segunda Guerra Mundial, [1] alguém que atacava as lideranças centrais nazistas e fascistas, embora mantivesse relações amistosas com grupos e líderes ligados ao regime fascista antes de uma tardia conversão ao socialismo de feição soviética. Seu segundo livro, Tecnica del colpo di Stato (1931), fez sucesso considerável dentro e fora da Itália. Com o início da Segunda Guerra, em 1939, logo tornou-se correspondente de guerra, acompanhando os exércitos alemães como capitão do exército italiano.
Registrou essas andanças em um livro inclassificável, rememoração autobiográfica e conto cruel, que é Kaputt (1944). No capítulo Os ratos de Jassy” – o livro é dividido em “ciclos” nos quais as narrativas são unificadas na figura de animais “totêmicos” como cavalos, cães, ratos ou moscas – as atrocidades cometidas pelo exército fascista romeno parecem não conhecer limites. Em certos momentos, como no estupro coletivo de prisioneiras de guerra russas que pilotavam um bombardeiro, a soldadesca romena perde toda e qualquer característica humana, transformando-se pura e simplesmente em monstros, fantásticos seres de rapina com feições vagamente humanas que poderiam figurar em gravuras de Goya, Alfred Kubin ou Otto Dix. Essa impressão torna-se mais patente pelo uso constante que Malaparte faz da expressão romena “La dracu” – literalmente “para o diabo” – que logo se transforma em um refrão hipnótico, uma evocação do próprio demônio, em uma língua ancestral e bárbara. Na narrativa, os caminhos do sonho, do delírio, da lembrança e da realidade se confundem nas observações tecidas pelo autor sobre uma guerra estranha e desesperada, na qual, contudo, sobra espaço para um elogio irônico – “na Moldávia, todos conhecem Proust de cor e salteado”. O momento culminante, o clímax do horror ocorre durante um pogrom simultâneo a um ataque de paraquedistas soviéticos. O assalto aos judeus é descrito meticulosamente, uma mescla de visão alucinante mas verdadeira que temos nas “danças da morte” de Brueghel com o distanciamento estetizante das cenas de guerra em Ernst Jünger. Ao final, os corpos, deformados pelos golpes, pelas balas, pelas granadas, são preservados da devoração pelos cães mas atacados novamente pelos homens, que saqueiam os cadáveres impiedosamente, retirando cada roupa, cada brinco e cada sapato, deixando os mortos nus empilhados em sarjetas para não atrapalhar o trânsito. Em um capítulo posterior, “Críquete na Polônia”  uma cena ainda mais dantesca surge dos remotos rincões romenos: trata-se de uma descrição da prática local de exterminar judeus jogando-os em vagões de gado até a lotação máxima possível – “duzentos em cada vagão” –, trancados, lacrados, em uma lenta viagem que levava a lugar algum. Ou melhor, que levava a um único e remoto destino, a estação morte lenta. Esse é o resultado final do pogrom de Jassy: uma segunda e ainda maior, mais tenebrosa pilha de cadáveres. O leitor pode ser tentado a concordar com o Reichminister e protetor da Polônia, Hans Frank, [2] que estabelece conversas amistosas com um aparentemente irônico Malaparte ao longo de todos os capítulos da sessão “ratos” de Kaputt: “Os romenos não são um povo civilizado”.
Dificilmente Trost e seus amigos, aliados e eventuais inimigos (categoria que incluía ex-amigos) discordariam do Reichminister. Percebiam-se isolados, nas bordas do Ocidente, lutadores sem esperança, marginalizados e excluídos (por serem intelectuais, por serem independentes e por serem, em grande parte, judeus). Aderem ao surrealismo e (metodologicamente) ao dadaísmo por conveniência, embora a “pobre” teorização de grupo radicalmente minoritário que desenvolveram ultrapassasse os limites do surrealismo antecipando as concepções de filósofos como Gilles Deleuze e Félix Guattari. Críticos da velha sociedade e dos pretensos arautos de uma nova sociedade igualitária – fascista ou comunista – não encontraram lugar nem em seu país nem fora dele, vivendo formas ativas e perpétuas de exílio. Adeptos de uma cultura que se coloca deliberadamente proscrita, criminosa e/ou marginal, situacionistas radicais anos antes do situacionismo, optaram pela negação essencial de todo sistema e de todo e qualquer instinto de conservação, ignoraram a memória e honraram a “saída” rimbaudiana. Trost é o que mais chega perto de um “filósofo” desse estranho grupo, um autor cuja coerência se coloca como um perigo de esquecimento definitivo e injusto de uma obra fulgurante e original. Esquecimento que pretendemos, dentro do possível, começar a reverter.
Diante de escassas possibilidades de liberdade política e da repressão que se materializa no horizonte futuro e/ou no passado imediato, certos períodos em que exista livre debate de ideias e imprensa relativamente livre podem ser encarados como verdadeiras utopias. Algo assim aconteceu na Romênia, entre 1945 e 1947; foi um período intermediário, em que a derrocada do regime fascista não significou a imediata constituição de um regime comunista fechado, sufocante, repressor. Afinal, o processo de troca de lados efetuado pela Romênia foi resultado de um golpe de estado, realizado pelo Rei Mihai I como forma de evitar uma revolta da população insatisfeita devido às imposições de mediadas draconianas em uma guerra de potências devastadoras e distantes. De fato, desde o final de 1942 a pressão sobre os romenos aumentava, vinda tanto dos soviéticos, que avançavam sem cessar desde a vitória na Batalha de Stalingrado, terminada em 2 de fevereiro de 1943, quanto dos Aliados, que visavam as refinarias de petróleo romenas, como as nove localizadas em Ploiești, atingida por incessantes bombardeios. Os debates políticos a respeito dos destinos do país após a derrota para a URSS e os Aliados ainda estavam na ordem do dia e a liberdade parecia uma possibilidade bastante encorajadora. Assim, Trost – que optou por não utilizar seu pré-nome, Dolfi, ao assinar seus textos pela semelhança fonética com o de Hitler, “Adolf” – em conjunto com Gherasim Luca, Paul Paün, Gellu Naum e Virgil Teodorescu aproveitaram esse curto, breve momento de liberdade para produzir furiosamente, publicar sistematicamente. Não que fossem principiantes, o último e mais recente grito das vanguardas: nascidos entre 1910 e 1916, os amigos colaboraram, já nos anos 1930, na revista de vanguarda Alge (“algas”), rival de um dos veículos mais importantes da primeira onda modernista e vanguardista na Romênia, Unu. Ao final dos anos 1930, Luca e Naum se lançaram em aventuras na própria capital das vanguardas Paris, mantendo contato com o artista romeno de vanguarda já radicado na "Cidade-Luz", Victor Brauner.
Mas esse período inicial de descobertas e desbravamentos, a fase heroica do grupo Infra-noir foi logo truncado pela guerra: a brutalidade da Guarda de Ferro, a tropa de choque do fascismo local, e a vaga irresistível de militarismo que varria o país obrigou os cinco companheiros (e não apenas eles) à clandestinidade. Segundo a pesquisadora Monique Yaari, Trost, entre 1941 e 1944, chegou a trabalhar como professor de francês no liceu Cultura, ensinando alunos judeus que perderam o direito de frequentar escolas locais. Luca chegou a ser levado para um campo de trabalhos forçados e evoca, vagamente, a atmosfera de Bucareste antes de um avassalador pogrom ocorrido em janeiro de 1941 em sua primeira obra-prima, Le Vampire passif. Toda essa brutalidade obrigou os cinco colegas ao desenvolvimento de procedimentos complexos para ocultar suas atividades artísticas e pensamentos subversivos. Esses procedimentos seriam a base para a fundação do grupo Infra-noir, que nunca abandonou a atmosfera de clandestinidade equívoca, na qual não se sabe onde começa a autoria e onde termina a pseudonímia, onde começa a provocação e termina a criação, como separar o real (mas destruído), o falso e o imaginado. Tais procedimentos jamais seriam abandonados e marcaram até mesmo as cisões do grupo e um posterior e definitivo mergulho/dissolução no anonimato da clandestinidade, desta vez diante do comunismo stalinista. Daí, talvez, a relevância do nome que escolheram para auto-denominação: “infra-noir”, abaixo do negro, no campo das cores, da mesma forma que o infravermelho está além do espectro da luz visível. Trata-se de uma opacidade nova, que está além da obscuridade conhecida – uma forma ainda mais sombria e difícil de se definir, a escuridão da escuridão, única forma de nomear um grupo que defendia a “dialética da dialética”, o avesso do avesso, a instabilidade de sentido que se estabelece perpétua por nunca aceitar um ponto possível de equilíbrio.
Ao menos três desses criadores – Trost, Gherasim Luca, Paul Paün – eram não apenas poetas, mas teóricos e artistas plásticos/gráficos. Polígrafos do desespero que pretendiam restabelecer as coordenadas da Arte Contemporânea, se possível. Assim, a fúria criadora do grupo Infra-noir ultrapassava os limites do texto poético, do manifesto estético, do ensaio filosófico, da obra de arte plástica, da obra de arte cinematográfica, da criação interativa – de fato, frequentemente a proposta do grupo era de confusão/reordenação de todos esses campos, não raro em contradição entre postulados estabelecidos ou mesmo previamente defendidos por eles mesmos. Brigas entre a “direita” (Gellu Naum e Virgil Teodorescu, tendo Paul Paün como uma espécie de membro intermediário) e a “esquerda” do grupo (Trost e Luca) ocorriam com certa frequência e as tensões somadas acabariam por selar o destino do grupo, separado pelo exílio (opção escolhida por Luca, Trost e Paün) e depois por afastamentos e confrontamentos diversos.
Mas a utopia de Infra-noir ocorreu entre 1945 e 1947 – momento em que conseguiram publicar uma coleção de opúsculos, inúmeros ensaios/manifestos coletivos, articularam exposições locais e internacionais. A série de opúsculos – eram duas obras breves para cada um dos autores, com exceção de Gellu Naum – foi publicada pela Impremerie Socec, no ano de 1947, em tiragens pequenas e limitadas. É bem verdade que as edições originais completas são negociadas, nos dias de hoje, pela casa de leilões Christie’s, com preços que chegam na casa dos milhares de Euros. Mas, no momento da publicação, tratava-se de uma estratégia de clandestinidade que reproduziam continuamente: livros de poucas páginas, em pequenas tiragens, poderiam facilmente desaparecer entre os leitores visados sem grande alarde de qualquer órgão repressivo disponível. As publicações do grupo tendiam a mesclar estilos discursivos estáveis, de modo que a poesia surgia repentinamente no meio de um texto programático ou de um ensaio, a narrativa onírica se confundia com o fluxo descritivo de um panfleto de exposição, reforçando a natureza enigmática e obscura tão valorizada por esses surrealistas romenos. São obras breves, mas de uma extraordinária densidade e originalidade estilística mesmo tendo em vista o efervescente universo vanguardista das primeiras décadas do século XX.
Le plaisir de flotter apresenta-se ao leitor como um texto essencialmente enigmático. Tudo, nele, parece elidido, do(s) protagonista(s) à estrutura mesma de algo que se possa chamar de narrativa, dentro do quadro de uma linearidade mínima. O título e o subtítulo parecem indicar algo incerto, flutuante e não definido por uma aproximação usual, determinada por nossa razão analítica. Percebemos que há personagens centrais – a jovem mulher, a moça, um homem – e algo parecido com uma ação que ocorre em ambientes variados ou que mudam ao sabor das oscilações do desejo ou das mutações oníricas, que parece impulsionar esses três personagens centrais. Também percebemos que há uma platéia interna ao texto, um grupo que participa do jogo do trio de protagonistas. Mas todas essas determinações e pontos de apoio iniciais soçobram, pois são incapazes de determinar o reconhecimento seguro, para o leitor, do território inóspito e pantanoso em que  está se deslocando. Um nítido processo de colagem parece dominar a linguagem de Le plaisir de flotter, mas uma colagem que não se limita ao cut up utilizado por William S. Burroughs décadas depois: Trost vai mais longe e realiza o processo de combinação “super-automático” (utilizando um processo/técnica visual que o autor desenvolvera em suas obras visuais) de pedaços justapostos na própria estrutura discursiva. Um fraseado científico – como a última sentença do texto – se alterna com descrições oníricas e fragmentos poéticos nos quais imagens obscuras emergem, possuidoras de significados ao mesmo tempo “seguros” (o bastão, os sapatos) e enigmáticos. Tal estruturação permite a recorrência de situações, concentradas nas sete páginas de relato, um processo que lembra os romances de Alain Robbe-Grillet sem as restrições do imaginário obsessivamente sadomasoquista do romancistas francês. Diante disso, ainda resta a questão: do que trataria Le plaisir de flotter? Sem dúvida, existem diversas indicações eróticas e até mesmo sadomasoquistas na “trama”, mas a opção pela fragmentação e pela colagem, situadas na tessitura do texto, faz com que as imagens eróticas evocadas pelo texto tenham algo de equívocas, como as estranhas e excitantes visões que temos nos sonhos. Esse erotismo clivado, que Trost e seus amigos desdobravam em jogos como “Le sable nocturne”, em que a escuridão aguçaria o tato, que se desdobraria em identificar diversos objetos (eróticos e/ou potencialmente eróticos) espalhados no ambiente. A tática de Trost, diante da erotomania de consumo atual – best-sellers e blockbusters tematizando milionários que adotam um seguro modo de vida sadomasoquista almejando constituir família feliz, adolescentes e jovens aderindo em massa a califados genocidas pela possibilidade de matar ou escravizar livremente homens e mulheres –, mostra-se honesta, razoável e positiva sem perder certo sabor de perversidade original. A pesquisadora Françoise Nicol, no artigo “Trost ou le ‘plaisir de flotter’”, está correta ao dizer que Trost, em Le plaisir de flotter concretiza a afirmação de André Breton no Manifesto do surrealismo, de que “atravessa-se, em sobressalto, aquilo que os ocultistas chamam de paisagens perigosas”.
Já Le même du même é um ensaio de feição programática: Trost nele se dedica a defender o sonho como um capo de realização que subverte a realidade diurna pois trata-se de uma vivência “erótica em si mesma”, que prescinde de interpretações por mais elaboradas que sejam. O título remete a outra obra, o ensaio/manifesto fundamental (publicado em 1945) Dialectique de la dialectique, mais uma parceria entre Trost e Luca. A ideia aqui é bizantina mas eficaz: como obter o avesso do avesso, a negatividade em estado bruto? A resposta: evitando um eixo conceitual correto e estabilizador ao adotar uma perspectiva em fuga constante, a perspectiva do exilado, da clandestinidade, daquele que precisa ocultar e mesmo esquecer sua identidade original. Assim, Trost estabelece uma discussão sobre os sonhos mediando sua posição crítica entre Freud e Breton, mas ataca qualquer forma de redução do sonho à figuração, buscando uma transcendência que parece se localizar menos na Cultura e mais na própria Natureza. Há algo de abstrato, amorfo, informe – mas também pululante como uma coisa biológica – no sonho imaginado por Trost, como as formas geométricas e imprevistas de um cristal produzido por nossa mente contra tudo o que foi determinado, repressivamente, por todas as instâncias culturais. Essa buscas por uma nova e mais perversa abstração impulsiona, da mesma forma, a criação artística (hoje, perdida, invisível) de Trost, que ele teorizava constantemente, como vemos no breve texto do catálogo Presentation de graphies colorees, de cubomanies et d’objets. Nele, o autor apresenta detalhadamente as estranhas técnicas de criação que inventara a partir dos pressupostos surrealistas lançados por Breton – super-automatismo em linhas e superfícies, movimentos hipnagógicos, manchas indecifráveis e as bizarras vaporizações, obtidas pelos movimentos e reações do aparelho respiratório. A lista com o respeitável número de 100 criações visuais – das quais restam, hoje, pouquíssimas reproduções – possui por si mesma uma estranha ressonância, sintetizando as linhas gerais de pensamento de Trost e do grupo Infra-noir em slogans breves cuja justaposição não deixa de trazer à mente a sequência do “belo como” em Cantos de Maldoror, de Lautréamont. De certa forma, Trost e os surrealistas romenos tinham muito em comum com um autor como Lautréamont do que com seus companheiros surrealistas franceses – ignorado, desconhecido, perdido, imune a biografias e celebrações ou estabelecimento de cânones, em seu tempo e nos dias de hoje.
O texto coletivo (assinado por Gherasim Luca, Gellu Naum, Paul Paün, Virgil Teodoresco, Trost) Eloge de Malombra é um dos últimos do grupo Infra-noir e uma peça de fato enigmática. Relaciona-se com Presentation pelo gosto das sequências de expressões conceituais/imagéticas mas se distingue por dotar essas sequências de uma linearidade próxima da linguagem cinematográfica, simultaneamente elíptica e uniforme, na qual mesmo o processo de livre associação pode ser recuperado por leituras complexas, simbólicas. Originalmente, Malombra foi o título de um romance gótico “de estilo inglês” escrito por um italiano, Antonio Fogazzaro, em 1881. O romance, ambientado em um castelo às margens do lago Como, trata de uma mulher que acredita ser o espírito reencarnado de uma outra mulher que já vivera no mesmo castelo. Tal trama de nítida inspiração no gótico inglês de Horace Walpole, de Ann Radcliffe e mesmo de Charlotte Bronte gerou diversas adaptações cinematográficas – as mais antigas, vistas pelo grupo de Trost e Luca e base de Eloge, foram as de Carmine Gallone (em 1917) e especialmente a de Mario Soldati (em 1942, com Isa Miranda como protagonista). Assim, o texto Eloge de Malombra é um exemplar único: não se trata de um manifesto estético e/ou técnico sobre cinema nem de um ensaio/diatribe, mas de uma releitura simultaneamente fiel e delirante de um filme “involuntariamente surrealista”, como Trost e seus companheiros o denominavam, que não passaria de nota de rodapé na história do cinema italiano (realizado já durante o fascismo) se não fosse essa recuperação ao estilo Infra-noir. Em Eloge de Malombra, o filme é atacado por uma leitura obsessiva realizada pelo grupo que o colocava como exemplificação do conceito de “amor louco” esboçado por André Breton em Nadja. A prioridade do texto são as imagens, evocadas por sentenças curtas em enumerações simples, separadas por vírgulas, em um processo livre associação que não deixa, por outro lado, a base referencial do filme de lado. Temos fotogramas verbais separados por elipses que concretizam imagens das memórias dos autores, uma remontagem inquietante que traduz para a atualidade surrealista o romance gótico sem seus clichês, uma vertiginosa e breve alucinação.

A breve utopia do grupo Infra-noir ainda teve uma breve continuidade entre 1947 e 1951: com o processo de endurecimento do regime comunista romeno ganhando velocidade e peso, os membros do grupo buscaram se reorganizar no exílio. Era um segundo mergulho na clandestinidade, que representava perdas incalculáveis. Uma delas, lembrada por Andrew Condous, seria um ensaio que desenvolveria diversos pontos filosóficos do grupo que surge anunciado em diversas publicações e que ganharia edição pela Les Éditions de L’Oubli: La loi de gravitation, mais uma parceria Trost/Luca, inevitavelmente “perdido” pois sequer é possível determinar se chegou a ser escrito. Nesse ponto, a divisão do grupo parecia inevitável justamente situado em torno do exílio. Gellu Naum e Virgil Teodorescu declinaram dessa opção e permaneceram na Romênia. Submetido aos ditames do realismo socialista, Naum trabalhou como professor, tradutor e autor de livros infantis até 1968, quando a política relativamente liberalizante do governo comunista – sob o comando, ironicamente, de Nicolae Ceauşescu – ganhou a chance de retomar sua carreira como poeta. Já Teodorescu teve uma trajetória mais tranquila ao adotar um estilo proletkult para seus poemas já nos anos 1950, o que o alçou a um posto relevante na produção cultural comunista. Chegou a ser presidente da União dos Escritores da Romênia entre 1974 e 1978. Consta que – como o personagem Höfgen de Klaus Mann no romance Mephisto – auxiliou alguns antigos colegas vanguardistas que, diferente dele, caíram em desgraça com o regime.
Trost, Luca e Paün, todos de ascendência judaica e posição crítica em relação ao comunismo, optaram pelo exílio. A primeira parada foi na Palestina, onde o Estado de Israel surgia – a luta dos judeus pelo estabelecimento de seu país foi inicialmente apoiada pelos governos comunistas da URSS e de seus satélites, o que facilitava a imigração e constitui, hoje em dia, uma espécie de sarcasmo da história. Da Palestina, o destino imaginado seria a França, mas uma nova cisão – reflexo dos muitos conflitos que existiam no seio de um grupo tão original e complexo – impediria tal meta. Luca, de fato, migrou e se estabeleceu definitivamente em Paris, onde continuou a escrever livros de poesia enigmáticos e belos e criar colagens complexas, lançando seus trabalhos em belas edições por editoras como a José Corti e a Gallimard. Em 1994, aos 80 anos, foi expulso de seu apartamento em Paris por “motivos de higiene”. Sem condições de alugar um novo apartamento, pois passara quarenta anos na França como um “ilegal” sem documentação formalizada, cometeu suicídio a 9 de fevereiro de 1994, se atirando no Sena. Já Paul Paün – que demorou mais tempo para conseguir migrar uma vez que era médico, profissão considerada essencial na Romênia – não permaneceu na França, retornando para Israel onde tornou-se um reconhecido urologista e poeta/artista plástico. Dedicou noa parte de sua vida após o estabelecimento em Israel à sua opus magnus, o longo poema La Rose parallèle (1975) no qual retomou vários temas e motivos de sua fase Infra-noir, reconfigurados e reimaginados.
Trost seguiu, como Luca, para Paris, onde retomou sua carreira como ensaísta publicando novas reflexões sobre arte, o automatismo e o sonho: Visible et invisible (1953) pela editora Arcanes de Erci Losfeld e Librement mécanique (1955), sem menção à editora mas registrado pela Minotaure, célebre livraria à época. Os textos foram aparentemente escritos durante a primeira etapa do exílio de Trost, em Israel – como bem afirma Monique Yaari – o que fica fácil verificar por certas indicações de cenas descritas que parecem aludir à cidade de Jaffa. Em 1956, embarca com a esposa para os EUA, local onde morreria prematuramente, em 1966. Nesses onze anos, guardou silêncio obstinado e nada mais publicou ou criou em seu último exílio. Mais que isso: registros indicam que quase toda a obra pictórica, suas “vaporizações” e “manchas indecifráveis” desenvolvidas com afinco e paixão, foram destruídas pelo próprio Trost ainda em Bucareste (as duras necessidades do exílio) e antes de se mudar definitivamente para os EUA (as necessidades impostas ao se abjurar o passado). Yaari aventa a hipótese de que Trost se convertera nos anos 1950 ao catolicismo e optara por abandonar os excessos e posições extremas de seu passado vanguardista. Trata-se da explicação mais razoável e melhor documentada, embora ainda obscura pois a conversão de Trost conduziu ao extremo oposto das seguras “conversões” de Teodorescu e Naum. Trost seguiu o caminho de Huysmans – que continuou escrevendo após uma crise religiosa e posterior conversão ao catolicismo – mas adotando a metodologia de Rimbaud. Negou seu passado, destruiu sua Arte e optou pelo esquecimento no limite do apagamento da memória – um católico que se realizou em êxtase de aniquilação que faria inveja a filósofos budistas como Nagarjuna, o Niilista. Desse processo de extinção planejado que o irmanou, de certa forma, ao amigo Gherasim Luca, restaram livros imaginados, perdidos e alguns reais, embora todos pareçam pertencer às províncias do sonho e da alucinação, território de liberdade obscura e destino final de Trost e seus companheiros.

Destacamos e comentamos, a seguir, material de referência a respeito do grupo Infra-noir. Há muito mais disponível uma vez que diversos artistas romenos tiveram papel fundamental na constituição das vanguardas no século XX, notadamente do dadaísmo e do surrealismo. Mas optamos, aqui, por destacar e comentar fontes essenciais: textos, traduções e comentários de/sobre Trost e seus companheiros de Infra-noir.

- Livros
CONDOUS, Andrew. Letters from Oblivion. Bucharest/Düsseldorf: Les Éditions de L’Oubli/Zagava, 2014. (Trata-se de um interessante estudo que recupera a história da editora original Les Éditions de L’Oubli, que publicou livros de Trost, Ghérasim Luca e Virgil Teodorescu. O trabalho de Condous absorve algo do surrealismo que evoca ao descrever livros quase invisíveis, quase extintos, o que torna tal trabalho duplamente essencial – do ponto de vista histórico e do ponto de vista poético).
FINKENTHAL, Michael.  D. Trost între realitatea visului și visul ca realitate. Bucharest: Tracus Arte, 2014. (Provavelmente a primeira monografia exclusivamente focada na obra de Trost. O pesquisador Michael Finkenthal se desvia argutamente da problemática biografia de seu objeto de estudo, trabalhando aspectos obscuros e raros da obra de Trost, inclusive os primeiros textos em romeno na imprensa cultural de Bucareste nos anos 1930. Ainda que o idioma do estudo, o romeno, limite um pouco as possibilidades de acesso e leitura, trata-se de um livro fundamental para pesquisadores que pretendam se aprofundar na obra de Trost).
GHETU, Dan (ed.). Infra-Noir. Düsseldorf/Bucharest: Zagava/Ex Occidente Press, 2014. (Homenagem que o editor romeno Dan Ghetu – cujo trabalho editorial é herdeiro, até certo ponto, do universo de Trost e seus amigos – prestou aos manifestos lançados em 1945, quando o grupo de surrealistas romenos se articulou em torno do nome “Infra-noir” com autores ligados ao fantástico contemporâneo em produções narrativas e/ou poéticas – Mark Valentine, Thomas Strømsholt, John Howard, Dan Watt e Andrzej Welminski, Damian Murphy e Colin Insole. A contextualização e o conceito de Ghetu são bastante pessoais, inventivos, mas ainda assim evocando as pequenas editoras romenas quase clandestinas dos anos 1940).
LUCA, Ghérasim. The Passive Vampire. Prague: Twisted Spoon Press, 2008. (Luca foi um autor que se manteve ativo em seu exílio parisiense até a morte, por suicídio, em 1996. Isso possibilitou ao autor algo próximo de um “reconhecimento”, na forma das traduções de suas obras para outros idiomas – inclusive o português, em trabalho pioneiro realizado por Laura Erber e Manuel Tavares Teles. Mas a edição da Twisted Spoon, outra excelente casa editorial do Leste Europeu, é um trabalho primoroso em vários sentidos. Inclui introdução e notas escritas pelo tradutor, Krzystof Fijalkowski).
YAARI, Monique (org.). “Infra-noir”, un et multiple. Bern: Peter Lang, 2014. (Coletânea de artigos escritos por especialistas no surrealismo romeno, acompanhada de reproduções fac-similares das publicações e manifestos Infra-noir entre 1945 e 1947. Obra de dimensão acadêmica fundamental para qualquer pesquisador interessado no tema, traz reproduções de alguns dos textos utilizados em nossa tradução).


- Sites da Internet
Site André Breton (www.andrebreton.fr/): interessante acervo da Association Atelier André Breton, com as cartas e manuscritos originais que os surrealistas romenos – Trost, Paul Päun, Gherasim Luca, Gellu Naum e Virgil Teodorescu – enviavam para Breton.
Página de Dolfi Trost no site da Prodan Romanian Cultural Foundation (www.romanianculture.org/personalities/Dolfi_Trost.htm): há, nessa página, a possibilidade de se acessar versões digitalizadas – algumas incompletas – de alguns dos textos originais de Trost, inclusive Vision dans le cristal e Dialectique de la Dialectique (colaboração de Trost e Luca).
O blog Szürrealizmus (https://szurrealizmus.wordpress.com/): traz informações atualizadas e ensaios diversos a respeito do riquíssimo surrealismo do leste europeu.

NOTAS
Este estudo não seria possível sem a ativa colaboração e boa vontade do excepcional escritor, pesquisador, colecionador, historiador e connoisseur Andrew Condous, um dos mais brilhantes autores da Ex Occidente Press – casa editorial de Bucareste que recupera a tradição surrealista romena com novos elementos e matizes – que gentilmente nos forneceu versões digitalizadas de documentos importantíssimos e raros sobre Trost, além de estar sempre pronto a responder questões diversas a respeito do surrealismo peculiar praticado pelo grupo Infra-noir.
1. É Theador Adorno quem usa essa expressão, a “figura equívoca”, em um iluminador aforismo de seu Minima Moralia, no qual afirma que a descrição “por dentro” da sociedade nazi-fascistas feitas por figuras dúbias – Adorno cita como exemplo o escritor alemão Hans Fallada e nós poderíamos incluir o diretor de cinema Fritz Lang – seria mais interessante e verdadeira que as descrições de adesistas e também de críticos do regime que se colocassem em um espectro de crítica “saudável” ou “civilizada”.
2. Condenado durante os julgamentos de Nuremberg, foi considerado culpado por crimes contra a humanidade e enforcado.


***

Alcebiades Diniz Miguel. Doutor em História e Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente pesquisador em programa de pós-doutorado pela Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Contato: alcebiades.diniz@gmail.com. Página ilustrada com obras de Dolphi Trost (Romênia).







Nenhum comentário:

Postar um comentário