Ainsi, dans le temps des fables, après
les inondations et les déluges, il
sortit de la terre des hommes armés, qui s’exterminèrent.
Montesquieu, L’esprit des lois (livro XXIII, cap. XXIII)
Castelos aéreos dos Cárpatos
A Romênia,
esse pequeno país situado no centro da Europa – ao norte dos Balcãs, que escapa
do completo isolamento continental graças a uma pequena faixa de terra banhada
pelo Mar Negro – talvez represente com a clareza mais absoluta e feroz as
marchas e contramarchas daquilo que os discursos otimistas/progressistas
costumam denominar “progresso”, as equívocas relações entre Civilização e
Barbárie. Acossada por nações mais poderosas e potencialmente inimigas em suas
fronteiras (a Hungria, a Turquia, por um bom tempo a Rússia Soviética),
falantes de um idioma que mescla o latim com as múltiplas influências eslavas e
orientais, os romenos também prestam sua homenagem à língua e à cultura
francesa, transformando a capital, Bucareste, na “Paris do Leste” ou “Pequena
Paris” (Micul Paris).
O romeno mundialmente
reconhecido, a personalidade de projeção internacional do país não é nenhum atleta, político
defensor de causas urgentes ou cantor/ator a mobilizar massas de fãs, mas o
príncipe da Valáquia, Vlad Țepeș ou Vlad III, denominado “o empalador” –
prática de tortura que o nobre romeno apreciava sobremaneira, embora seu
apetite por sangue e por refinadas, brutais formas de tortura não excluísse
outros métodos. Não deixa de ser curioso, contudo, que a fama do rei da
Valáquia não surgiu devido à construção de um imenso império, mas exatamente
devido à violência extrema que caracterizava as ações defensivas desse
nobre, que buscava manter as fronteiras de seu minúsculo reinado. Tal
violência, aliás, não foi sequer recriada dentro de uma perspectiva histórica
rigorosa, mas evocada e resgatada pelo imaginário por um autor estrangeiro
(Bram Stoker, um britânico/irlandês) que transformou o velho monarca em monstro
sobrenatural. Os sucessivos resgates desse mito moderno – sendo que podemos
destacar entre os exemplos mais recentes as elegantes e equilibradas abordagens
que vemos em The Historian de Elizabeth Kostova e The Dracula Papers,
Book I: The Scholar’s Tale de Reggie Oliver –, a um só tempo moderno e
ancestral, nacional (muitas vezes quase nacionalista) e mundial, imaginário e
histórico, oculto (ou enigmático) e massificado, sumarizam o fascínio imenso
que o obscuro território balcânico dos romenos exerceu e exerce na imaginação e
no sonho humanos.
Mas esse é apenas um lado da
equação, exótico, pitoresco, talvez mesmo frívolo. A tensão entre barbárie e
esforço civilizacional também se projeta na história do país, em seus pogroms,
na adesão eufórica ao nacionalismo fascista que incluía envio de tropas a
territórios vizinhos para combater os inimigos ideológicos e raciais do Reich
simbolizada pela feroz Guarda de Ferro, na imposição de um regime
comunista de brutal perseguição a oposicionistas simbolizada pela sinistra
polícia política, a Secutitate. Esses cenários de crueldade e loucura
foram muito bem evocadas por Curzio Malaparte em seu estranho memorial da
Segunda Guerra Mundial, ao recordar as cenas de horror e morte que testemunhou
na Romênia. Era o período em que os romenos contaram com a sua versão nacional
do Führer,
o Conducător Marechal Ion Antonescu, um aliado tão diligente de Hitler
que colocou as tropas romenas em confronto direto com a URSS, de modo que tal
força auxiliar chegou a acumular algumas vitórias compartilhadas com seus
poderosos companheiros germânicos até o princípio da derrocada na Batalha de
Stalingrado, na qual o grosso da força militar romena foi aniquilada. Malaparte
– um pseudônimo carregado de ironia, afinal “mala parte” é a parte má, que o
autor Kurt Erich Suckert utilizava para eludir seu imponente nome alemão – era, ele
próprio, uma figura equívoca e ambígua, do tipo que abundava no período que vai
dos anos 1930 ao final da Segunda Guerra Mundial, [1] alguém que atacava as lideranças centrais nazistas e fascistas,
embora mantivesse relações amistosas com grupos e líderes ligados ao regime
fascista antes de uma tardia conversão ao socialismo de feição
soviética. Seu segundo livro, Tecnica del colpo di Stato (1931), fez sucesso
considerável dentro e fora da Itália. Com o início da Segunda Guerra, em 1939,
logo tornou-se correspondente de guerra, acompanhando os exércitos alemães como
capitão do exército italiano.
Registrou essas andanças em um livro inclassificável,
rememoração autobiográfica e conto cruel, que é Kaputt (1944). No capítulo “Os ratos de Jassy” – o livro é dividido em
“ciclos” nos quais as narrativas são unificadas na figura de animais
“totêmicos” como cavalos, cães, ratos ou moscas – as atrocidades cometidas pelo
exército fascista romeno parecem não conhecer limites. Em certos momentos, como
no estupro coletivo de prisioneiras de guerra russas que pilotavam um
bombardeiro, a soldadesca romena perde toda e qualquer característica humana, transformando-se
pura e simplesmente em monstros, fantásticos seres de rapina com feições
vagamente humanas que poderiam figurar em gravuras de Goya, Alfred Kubin ou
Otto Dix. Essa impressão torna-se mais patente pelo uso constante que Malaparte
faz da expressão romena “La dracu” – literalmente “para o diabo” – que logo se
transforma em um refrão hipnótico, uma evocação do próprio demônio, em
uma língua ancestral e bárbara. Na narrativa, os caminhos do sonho, do delírio,
da lembrança e da realidade se confundem nas observações tecidas pelo autor
sobre uma guerra estranha e desesperada, na qual, contudo, sobra espaço para um
elogio irônico – “na Moldávia, todos conhecem Proust de cor e salteado”. O
momento culminante, o clímax do horror ocorre durante um pogrom
simultâneo a um ataque de paraquedistas soviéticos. O assalto aos judeus é
descrito meticulosamente, uma mescla de visão alucinante mas verdadeira que
temos nas “danças da morte” de Brueghel com o distanciamento estetizante das
cenas de guerra em Ernst Jünger. Ao final, os corpos, deformados pelos golpes,
pelas balas, pelas granadas, são preservados da devoração pelos cães mas
atacados novamente pelos homens, que saqueiam os cadáveres impiedosamente,
retirando cada roupa, cada brinco e cada sapato, deixando os mortos nus
empilhados em sarjetas para não atrapalhar o trânsito. Em um capítulo
posterior, “Críquete na Polônia” uma
cena ainda mais dantesca surge dos remotos rincões romenos: trata-se de uma
descrição da prática local de exterminar judeus jogando-os em vagões de gado
até a lotação máxima possível – “duzentos em cada vagão” –, trancados,
lacrados, em uma lenta viagem que levava a lugar algum. Ou melhor, que levava a
um único e remoto destino, a estação morte lenta. Esse é o resultado final do pogrom
de Jassy: uma segunda e ainda maior, mais tenebrosa pilha de cadáveres. O
leitor pode ser tentado a concordar com o Reichminister e protetor da
Polônia, Hans Frank, [2] que
estabelece conversas amistosas com um aparentemente irônico Malaparte ao longo
de todos os capítulos da sessão “ratos” de Kaputt: “Os romenos não são
um povo civilizado”.
Dificilmente Trost e
seus amigos, aliados e eventuais inimigos (categoria que incluía ex-amigos) discordariam do Reichminister.
Percebiam-se isolados, nas bordas do Ocidente, lutadores sem esperança,
marginalizados e excluídos (por serem intelectuais, por serem independentes e
por serem, em grande parte, judeus). Aderem ao surrealismo e
(metodologicamente) ao dadaísmo por conveniência, embora a “pobre” teorização
de grupo radicalmente minoritário que desenvolveram ultrapassasse os limites do
surrealismo antecipando as concepções de filósofos como Gilles Deleuze e Félix
Guattari. Críticos da velha sociedade e dos pretensos arautos de uma nova
sociedade igualitária – fascista ou comunista – não encontraram lugar nem
em seu país nem fora dele, vivendo formas ativas e perpétuas de exílio. Adeptos
de uma cultura que se coloca deliberadamente proscrita, criminosa e/ou
marginal, situacionistas radicais anos antes do situacionismo, optaram
pela negação essencial de todo sistema e de todo e qualquer instinto de
conservação, ignoraram a memória e honraram a “saída” rimbaudiana. Trost é o
que mais chega perto de um “filósofo” desse estranho grupo, um autor cuja
coerência se coloca como um perigo de esquecimento definitivo e injusto de uma
obra fulgurante e original. Esquecimento que pretendemos, dentro do possível, começar a reverter.
Diante de escassas
possibilidades de liberdade política
e da repressão que se materializa no horizonte futuro e/ou no passado imediato,
certos períodos em que exista livre debate de ideias e imprensa relativamente
livre podem ser encarados como verdadeiras utopias. Algo assim aconteceu na
Romênia, entre 1945 e 1947; foi um período intermediário, em que a derrocada do
regime fascista não significou a imediata constituição de um regime comunista
fechado, sufocante, repressor. Afinal, o processo de troca de lados efetuado
pela Romênia foi resultado de um golpe de estado, realizado pelo Rei Mihai I
como forma de evitar uma revolta da população insatisfeita devido às imposições
de mediadas draconianas em uma guerra de potências devastadoras e distantes. De
fato, desde o final de 1942 a pressão sobre os romenos aumentava, vinda tanto
dos soviéticos, que avançavam sem cessar desde a vitória na Batalha de
Stalingrado, terminada em 2 de fevereiro de 1943, quanto dos Aliados, que
visavam as refinarias de petróleo romenas, como as nove localizadas em Ploiești, atingida por incessantes
bombardeios. Os debates políticos a respeito dos destinos do país após a
derrota para a URSS e os Aliados ainda estavam na ordem do dia e a liberdade
parecia uma possibilidade bastante encorajadora. Assim, Trost – que optou por
não utilizar seu pré-nome, Dolfi, ao assinar seus textos pela semelhança
fonética com o de Hitler, “Adolf” – em conjunto com Gherasim Luca, Paul Paün, Gellu Naum e Virgil
Teodorescu aproveitaram esse curto, breve momento de liberdade para produzir
furiosamente, publicar sistematicamente. Não que fossem principiantes, o último
e mais recente grito das vanguardas: nascidos entre 1910 e 1916, os amigos
colaboraram, já nos anos 1930, na revista de vanguarda Alge (“algas”),
rival de um dos veículos mais importantes da primeira onda modernista e
vanguardista na Romênia, Unu. Ao final dos anos 1930, Luca e Naum se
lançaram em aventuras na própria capital das vanguardas Paris, mantendo contato
com o artista romeno de vanguarda já radicado na "Cidade-Luz", Victor Brauner.
Mas esse período inicial de descobertas e
desbravamentos, a fase heroica do grupo Infra-noir foi logo truncado
pela guerra: a brutalidade da Guarda de Ferro, a tropa de choque do
fascismo local, e a vaga irresistível de militarismo que varria o país obrigou
os cinco companheiros (e não apenas eles) à clandestinidade. Segundo a
pesquisadora Monique Yaari, Trost, entre 1941 e 1944, chegou a trabalhar como
professor de francês no liceu Cultura, ensinando alunos judeus que perderam o
direito de frequentar escolas locais. Luca chegou a ser levado para um campo de
trabalhos forçados e evoca, vagamente, a atmosfera de Bucareste antes de um
avassalador pogrom ocorrido em janeiro de 1941 em sua primeira
obra-prima, Le Vampire passif. Toda essa brutalidade obrigou os cinco colegas
ao desenvolvimento de procedimentos complexos para ocultar suas atividades
artísticas e pensamentos subversivos. Esses procedimentos seriam a base para a
fundação do grupo Infra-noir, que nunca abandonou a atmosfera de
clandestinidade equívoca, na qual não se sabe onde começa a autoria e onde
termina a pseudonímia, onde começa a provocação e termina a criação, como
separar o real (mas destruído), o falso e o imaginado. Tais procedimentos
jamais seriam abandonados e marcaram até mesmo as cisões do grupo e um
posterior e definitivo mergulho/dissolução no anonimato da clandestinidade,
desta vez diante do comunismo stalinista. Daí, talvez, a relevância do nome que
escolheram para auto-denominação: “infra-noir”, abaixo do negro, no campo das
cores, da mesma forma que o infravermelho está além do espectro da luz
visível. Trata-se de uma opacidade nova, que está além da obscuridade conhecida
– uma forma ainda mais sombria e difícil de se definir, a escuridão da
escuridão, única forma de nomear um grupo que defendia a “dialética da
dialética”, o avesso do avesso, a instabilidade de sentido que se estabelece
perpétua por nunca aceitar um ponto possível de equilíbrio.
Ao menos três desses criadores – Trost,
Gherasim Luca, Paul Paün – eram não apenas poetas, mas teóricos e artistas
plásticos/gráficos. Polígrafos do desespero que pretendiam restabelecer as
coordenadas da Arte Contemporânea, se possível. Assim, a fúria criadora
do grupo Infra-noir ultrapassava os limites do texto poético, do
manifesto estético, do ensaio filosófico, da obra de arte plástica, da obra de
arte cinematográfica, da criação interativa – de fato, frequentemente a
proposta do grupo era de confusão/reordenação de todos esses campos, não raro
em contradição entre postulados estabelecidos ou mesmo previamente defendidos
por eles mesmos. Brigas entre a “direita” (Gellu Naum e Virgil Teodorescu,
tendo Paul Paün como uma espécie de membro intermediário) e a “esquerda” do
grupo (Trost e Luca) ocorriam com certa frequência e as tensões somadas
acabariam por selar o destino do grupo, separado pelo exílio (opção escolhida
por Luca, Trost e Paün) e depois por afastamentos e confrontamentos diversos.
Mas a utopia de Infra-noir ocorreu entre 1945 e 1947 –
momento em que conseguiram publicar uma coleção de opúsculos, inúmeros
ensaios/manifestos coletivos, articularam exposições locais e internacionais. A
série de opúsculos – eram duas obras breves para cada um dos autores, com
exceção de Gellu Naum – foi publicada pela Impremerie Socec, no ano de
1947, em tiragens pequenas e limitadas. É bem verdade que as edições originais
completas são negociadas, nos dias de hoje, pela casa de leilões Christie’s,
com preços que chegam na casa dos milhares de Euros. Mas, no momento da
publicação, tratava-se de uma estratégia de clandestinidade que reproduziam
continuamente: livros de poucas páginas, em pequenas tiragens, poderiam
facilmente desaparecer entre os leitores visados sem grande alarde de
qualquer órgão repressivo disponível. As publicações do grupo tendiam a mesclar
estilos discursivos estáveis, de modo que a poesia surgia repentinamente no
meio de um texto programático ou de um ensaio, a narrativa onírica se confundia
com o fluxo descritivo de um panfleto de exposição, reforçando a natureza
enigmática e obscura tão valorizada por esses surrealistas romenos. São obras breves,
mas de uma extraordinária densidade e originalidade estilística mesmo tendo em
vista o efervescente universo vanguardista das primeiras décadas do século XX.
Le
plaisir de flotter
apresenta-se ao leitor como um texto essencialmente enigmático. Tudo, nele,
parece elidido, do(s) protagonista(s) à estrutura mesma de algo que se possa
chamar de narrativa, dentro do quadro de uma linearidade mínima. O título e o
subtítulo parecem indicar algo incerto, flutuante e não definido por uma
aproximação usual, determinada por nossa razão analítica. Percebemos que há
personagens centrais – a jovem mulher, a moça, um homem – e algo parecido com
uma ação que ocorre em ambientes variados ou que mudam ao sabor das oscilações
do desejo ou das mutações oníricas, que parece impulsionar esses três personagens
centrais. Também percebemos que há uma platéia interna ao texto, um
grupo que participa do jogo do trio de protagonistas. Mas todas essas
determinações e pontos de apoio iniciais soçobram, pois são incapazes de
determinar o reconhecimento seguro, para o leitor, do território inóspito e
pantanoso em que está se deslocando. Um
nítido processo de colagem parece dominar a linguagem de Le plaisir de
flotter, mas uma colagem que não se limita ao cut up utilizado por
William S. Burroughs décadas depois: Trost vai mais longe e realiza o processo
de combinação “super-automático” (utilizando um processo/técnica visual que o
autor desenvolvera em suas obras visuais) de pedaços justapostos na própria
estrutura discursiva. Um fraseado científico – como a última sentença do texto
– se alterna com descrições oníricas e fragmentos poéticos nos quais imagens
obscuras emergem, possuidoras de significados ao mesmo tempo “seguros” (o
bastão, os sapatos) e enigmáticos. Tal estruturação permite a recorrência de
situações, concentradas nas sete páginas de relato, um processo que lembra os
romances de Alain Robbe-Grillet sem as restrições do imaginário obsessivamente
sadomasoquista do romancistas francês. Diante disso, ainda resta a questão: do
que trataria Le plaisir de flotter? Sem dúvida, existem diversas
indicações eróticas e até mesmo sadomasoquistas na “trama”, mas a opção pela
fragmentação e pela colagem, situadas na tessitura do texto, faz com que as
imagens eróticas evocadas pelo texto tenham algo de equívocas, como as estranhas
e excitantes visões que temos nos sonhos. Esse erotismo clivado, que Trost e
seus amigos desdobravam em jogos como “Le sable nocturne”, em que a escuridão
aguçaria o tato, que se desdobraria em identificar diversos objetos (eróticos
e/ou potencialmente eróticos) espalhados no ambiente. A tática de Trost, diante
da erotomania de consumo atual – best-sellers e blockbusters
tematizando milionários que adotam um seguro modo de vida sadomasoquista
almejando constituir família feliz, adolescentes e jovens aderindo em massa a
califados genocidas pela possibilidade de matar ou escravizar livremente homens
e mulheres –, mostra-se honesta, razoável e positiva sem perder certo sabor de
perversidade original. A pesquisadora Françoise Nicol, no artigo “Trost ou le
‘plaisir de flotter’”, está correta ao dizer que Trost, em Le plaisir de
flotter concretiza a afirmação de André Breton no Manifesto do
surrealismo, de que “atravessa-se, em sobressalto, aquilo que os ocultistas
chamam de paisagens perigosas”.
Já Le même du même é um
ensaio de feição programática: Trost nele se dedica a defender o sonho como um
capo de realização que subverte a realidade diurna pois trata-se de uma
vivência “erótica em si mesma”, que prescinde de interpretações por mais
elaboradas que sejam. O título remete a outra obra, o ensaio/manifesto
fundamental (publicado em 1945) Dialectique de la dialectique, mais uma
parceria entre Trost e Luca. A ideia aqui é bizantina mas eficaz: como obter o
avesso do avesso, a negatividade em estado bruto? A resposta: evitando um eixo
conceitual correto e estabilizador ao adotar uma perspectiva em fuga constante,
a perspectiva do exilado, da clandestinidade, daquele que precisa ocultar e
mesmo esquecer sua identidade original. Assim, Trost estabelece uma discussão
sobre os sonhos mediando sua posição crítica entre Freud e Breton, mas ataca
qualquer forma de redução do sonho à figuração, buscando uma transcendência que
parece se localizar menos na Cultura e mais na própria Natureza. Há algo de
abstrato, amorfo, informe – mas também pululante como uma coisa
biológica – no sonho imaginado por Trost, como as formas geométricas e
imprevistas de um cristal produzido por nossa mente contra tudo o que foi
determinado, repressivamente, por todas as instâncias culturais. Essa buscas
por uma nova e mais perversa abstração impulsiona, da mesma forma, a criação
artística (hoje, perdida, invisível) de Trost, que ele teorizava
constantemente, como vemos no breve texto do catálogo Presentation de
graphies colorees, de cubomanies et d’objets. Nele, o autor apresenta
detalhadamente as estranhas técnicas de criação que inventara a partir dos
pressupostos surrealistas lançados por Breton – super-automatismo em
linhas e superfícies,
movimentos hipnagógicos,
manchas
indecifráveis e as bizarras vaporizações, obtidas pelos movimentos e
reações do aparelho respiratório. A lista com o respeitável número de 100
criações visuais – das quais restam, hoje, pouquíssimas reproduções – possui
por si mesma uma estranha ressonância, sintetizando as linhas gerais de
pensamento de Trost e do grupo Infra-noir em slogans breves cuja
justaposição não deixa de trazer à mente a sequência do “belo como” em Cantos
de Maldoror, de Lautréamont. De certa forma, Trost e os surrealistas
romenos tinham muito em comum com um autor como Lautréamont do que com seus
companheiros surrealistas franceses – ignorado, desconhecido, perdido,
imune a biografias e celebrações ou estabelecimento de cânones, em seu tempo e
nos dias de hoje.
O texto coletivo
(assinado por Gherasim
Luca, Gellu Naum, Paul Paün, Virgil Teodoresco, Trost) Eloge de Malombra é um
dos últimos do grupo Infra-noir e uma peça de fato enigmática.
Relaciona-se com Presentation pelo gosto das sequências de expressões
conceituais/imagéticas mas se distingue por dotar essas sequências de uma linearidade
próxima da linguagem cinematográfica, simultaneamente elíptica e uniforme, na
qual mesmo o processo de livre associação pode ser recuperado por leituras
complexas, simbólicas. Originalmente, Malombra foi o título de um
romance gótico “de estilo inglês” escrito por um italiano, Antonio Fogazzaro, em 1881. O romance,
ambientado em um castelo às margens do lago Como, trata de uma mulher que
acredita ser o espírito reencarnado de uma outra mulher que já vivera no mesmo
castelo. Tal trama de nítida inspiração no gótico inglês de Horace Walpole, de
Ann Radcliffe e mesmo de Charlotte Bronte gerou diversas adaptações
cinematográficas – as mais antigas, vistas pelo grupo de Trost e Luca e base de
Eloge, foram as de Carmine Gallone (em 1917) e especialmente a de Mario
Soldati (em 1942, com Isa Miranda como protagonista). Assim, o texto Eloge
de Malombra é um exemplar único: não se trata de um manifesto estético e/ou
técnico sobre cinema nem de um ensaio/diatribe, mas de uma releitura
simultaneamente fiel e delirante de um filme “involuntariamente surrealista”,
como Trost e seus companheiros o denominavam, que não passaria de nota de
rodapé na história do cinema italiano (realizado já durante o fascismo) se não
fosse essa recuperação ao estilo Infra-noir. Em Eloge de Malombra,
o filme é atacado por uma leitura obsessiva realizada pelo grupo que o colocava
como exemplificação do conceito de “amor louco” esboçado por André Breton em Nadja.
A prioridade do texto são as imagens, evocadas por sentenças curtas em
enumerações simples, separadas por vírgulas, em um processo livre associação
que não deixa, por outro lado, a base referencial do filme de lado. Temos
fotogramas verbais separados por elipses que concretizam imagens das memórias
dos autores, uma remontagem inquietante que traduz para a atualidade
surrealista o romance gótico sem seus clichês, uma vertiginosa e breve
alucinação.
A breve utopia do
grupo Infra-noir ainda teve uma breve
continuidade entre 1947 e 1951: com o processo de endurecimento do regime
comunista romeno ganhando velocidade e peso, os membros do grupo buscaram se
reorganizar no exílio. Era um segundo mergulho na clandestinidade, que
representava perdas incalculáveis. Uma delas, lembrada por Andrew Condous,
seria um ensaio que desenvolveria diversos pontos filosóficos do grupo que
surge anunciado em diversas publicações e que ganharia edição pela Les Éditions
de L’Oubli: La loi de gravitation, mais uma parceria Trost/Luca,
inevitavelmente “perdido” pois sequer é possível determinar se chegou a ser
escrito. Nesse ponto, a divisão do grupo parecia inevitável justamente situado
em torno do exílio. Gellu Naum e Virgil Teodorescu declinaram dessa opção e
permaneceram na Romênia. Submetido aos ditames do realismo socialista, Naum
trabalhou como professor, tradutor e autor de livros infantis até 1968, quando
a política relativamente liberalizante do governo comunista – sob o comando,
ironicamente, de Nicolae Ceauşescu
– ganhou a chance de retomar sua carreira como poeta. Já Teodorescu teve uma
trajetória mais tranquila ao adotar um estilo proletkult para seus
poemas já nos anos 1950, o que o alçou a um posto relevante na produção cultural
comunista. Chegou a ser presidente da União dos Escritores da Romênia entre
1974 e 1978. Consta que – como o personagem Höfgen de Klaus Mann no romance Mephisto
– auxiliou alguns antigos colegas vanguardistas que, diferente dele, caíram em
desgraça com o regime.
Trost, Luca e Paün, todos de ascendência
judaica e posição crítica em relação ao comunismo, optaram pelo exílio. A
primeira parada foi na Palestina, onde o Estado de Israel surgia – a luta dos
judeus pelo estabelecimento de seu país foi inicialmente apoiada pelos governos
comunistas da URSS e de seus satélites, o que facilitava a imigração e
constitui, hoje em dia, uma espécie de sarcasmo da história. Da Palestina, o
destino imaginado seria a França, mas uma nova cisão – reflexo dos muitos conflitos
que existiam no seio de um grupo tão original e complexo – impediria tal meta.
Luca, de fato, migrou e se estabeleceu definitivamente em Paris, onde continuou
a escrever livros de poesia enigmáticos e belos e criar colagens complexas,
lançando seus trabalhos em belas edições por editoras como a José Corti e a
Gallimard. Em 1994, aos 80 anos, foi expulso de seu apartamento em Paris por
“motivos de higiene”. Sem condições de alugar um novo apartamento, pois passara
quarenta anos na França como um “ilegal” sem documentação formalizada, cometeu
suicídio a 9 de fevereiro de 1994, se atirando no Sena. Já Paul Paün – que
demorou mais tempo para conseguir migrar uma vez que era médico, profissão
considerada essencial na Romênia – não permaneceu na França, retornando para
Israel onde tornou-se um reconhecido urologista e poeta/artista plástico.
Dedicou noa parte de sua vida após o estabelecimento em Israel à sua opus
magnus, o longo poema La Rose parallèle (1975) no qual retomou vários
temas e motivos de sua fase Infra-noir, reconfigurados e reimaginados.
Trost seguiu, como Luca, para Paris, onde
retomou sua carreira como ensaísta
publicando novas reflexões sobre arte, o automatismo e o sonho: Visible et invisible
(1953) pela editora Arcanes de Erci Losfeld e Librement mécanique
(1955), sem menção à editora mas registrado pela Minotaure, célebre livraria à
época. Os textos foram aparentemente escritos durante a primeira etapa do
exílio de Trost, em Israel – como bem afirma Monique Yaari – o que fica fácil
verificar por certas indicações de cenas descritas que parecem aludir à cidade
de Jaffa. Em 1956, embarca com a esposa para os EUA, local onde morreria
prematuramente, em 1966. Nesses onze anos, guardou silêncio obstinado e nada
mais publicou ou criou em seu último exílio. Mais que isso: registros indicam
que quase toda a obra pictórica, suas “vaporizações” e “manchas indecifráveis”
desenvolvidas com afinco e paixão, foram destruídas pelo próprio Trost ainda em
Bucareste (as duras necessidades do exílio) e antes de se mudar definitivamente
para os EUA (as necessidades impostas ao se abjurar o passado). Yaari aventa a
hipótese de que Trost se convertera nos anos 1950 ao catolicismo e optara por
abandonar os excessos e posições extremas de seu passado vanguardista. Trata-se
da explicação mais razoável e melhor documentada, embora ainda obscura pois a conversão
de Trost conduziu ao extremo oposto das seguras “conversões” de Teodorescu e
Naum. Trost seguiu o caminho de Huysmans – que continuou escrevendo após uma
crise religiosa e posterior conversão ao catolicismo – mas adotando a metodologia
de Rimbaud. Negou seu passado, destruiu sua Arte e optou pelo esquecimento no
limite do apagamento da memória – um católico que se realizou em êxtase de
aniquilação que faria inveja a filósofos budistas como Nagarjuna, o Niilista.
Desse processo de extinção planejado que o irmanou, de certa forma, ao amigo
Gherasim Luca, restaram livros imaginados, perdidos e alguns reais, embora
todos pareçam pertencer às províncias do sonho e da alucinação, território de
liberdade obscura e destino final de Trost e seus companheiros.
Destacamos e
comentamos, a seguir, material de referência a respeito do grupo Infra-noir. Há muito mais disponível uma vez que diversos artistas romenos tiveram papel fundamental na
constituição das vanguardas no século XX, notadamente do dadaísmo e do
surrealismo. Mas optamos, aqui, por destacar e comentar fontes essenciais:
textos, traduções e comentários de/sobre Trost e seus companheiros de Infra-noir.
-
Livros
CONDOUS, Andrew. Letters from Oblivion. Bucharest/Düsseldorf: Les
Éditions de L’Oubli/Zagava, 2014. (Trata-se de um interessante estudo que
recupera a história da editora original Les Éditions de L’Oubli, que publicou
livros de Trost, Ghérasim Luca e Virgil Teodorescu. O trabalho de Condous
absorve algo do surrealismo que evoca ao descrever livros quase invisíveis,
quase extintos, o que torna tal trabalho duplamente essencial – do ponto de
vista histórico e do ponto de vista poético).
FINKENTHAL,
Michael. D. Trost între realitatea
visului și visul ca realitate. Bucharest: Tracus Arte, 2014. (Provavelmente
a primeira monografia exclusivamente focada na obra de Trost. O pesquisador
Michael Finkenthal se desvia argutamente da problemática biografia de seu
objeto de estudo, trabalhando aspectos obscuros e raros da obra de Trost,
inclusive os primeiros textos em romeno na imprensa cultural de Bucareste nos
anos 1930. Ainda que o idioma do estudo, o romeno, limite um pouco as
possibilidades de acesso e leitura, trata-se de um livro fundamental para
pesquisadores que pretendam se aprofundar na obra de Trost).
GHETU, Dan (ed.). Infra-Noir. Düsseldorf/Bucharest: Zagava/Ex Occidente
Press, 2014. (Homenagem que o editor romeno Dan Ghetu – cujo trabalho editorial
é herdeiro, até certo ponto, do universo de Trost e seus amigos – prestou aos
manifestos lançados em 1945, quando o grupo de surrealistas romenos se articulou
em torno do nome “Infra-noir” com autores ligados ao fantástico contemporâneo
em produções narrativas e/ou poéticas – Mark Valentine, Thomas Strømsholt, John Howard, Dan Watt e
Andrzej Welminski, Damian Murphy e Colin Insole. A contextualização e o conceito
de Ghetu são bastante pessoais, inventivos, mas ainda assim evocando as
pequenas editoras romenas quase clandestinas dos anos 1940).
LUCA, Ghérasim. The Passive Vampire.
Prague: Twisted Spoon Press, 2008. (Luca foi um autor que se manteve ativo em
seu exílio parisiense até a morte, por suicídio, em 1996. Isso possibilitou ao
autor algo próximo de um “reconhecimento”, na forma das traduções de suas obras
para outros idiomas – inclusive o português, em trabalho pioneiro realizado por
Laura Erber e Manuel Tavares Teles. Mas a edição da Twisted Spoon, outra
excelente casa editorial do Leste Europeu, é um trabalho primoroso em vários
sentidos. Inclui introdução e notas escritas pelo tradutor, Krzystof
Fijalkowski).
YAARI, Monique (org.).
“Infra-noir”,
un et multiple.
Bern: Peter Lang, 2014. (Coletânea de artigos escritos por especialistas no
surrealismo romeno, acompanhada de reproduções fac-similares das publicações e
manifestos Infra-noir entre 1945 e 1947. Obra de dimensão acadêmica
fundamental para qualquer pesquisador interessado no tema, traz reproduções de
alguns dos textos utilizados em nossa tradução).
- Sites
da Internet
Site André Breton (www.andrebreton.fr/):
interessante acervo da Association Atelier André Breton, com as cartas e
manuscritos originais que os surrealistas romenos – Trost, Paul Päun, Gherasim
Luca, Gellu Naum e Virgil Teodorescu – enviavam para Breton.
Página de Dolfi Trost no site da
Prodan Romanian Cultural Foundation (www.romanianculture.org/personalities/Dolfi_Trost.htm):
há, nessa página, a possibilidade de se acessar versões digitalizadas – algumas
incompletas – de alguns dos textos originais de Trost, inclusive Vision dans
le cristal e Dialectique de la Dialectique (colaboração de Trost e Luca).
O blog Szürrealizmus (https://szurrealizmus.wordpress.com/):
traz informações atualizadas e ensaios diversos a respeito do riquíssimo
surrealismo do leste europeu.
NOTAS
Este estudo não seria possível sem a ativa colaboração e boa vontade
do excepcional escritor, pesquisador, colecionador, historiador e connoisseur
Andrew Condous, um dos mais brilhantes autores da Ex Occidente Press
– casa editorial de Bucareste que recupera a tradição surrealista romena com
novos elementos e matizes – que gentilmente nos forneceu versões digitalizadas
de documentos importantíssimos e raros sobre Trost, além de estar sempre pronto
a responder questões diversas a respeito do surrealismo peculiar praticado pelo
grupo Infra-noir.
1. É Theador Adorno quem
usa essa expressão, a “figura equívoca”, em um iluminador aforismo de seu Minima
Moralia, no qual afirma que a descrição “por dentro” da sociedade
nazi-fascistas feitas por figuras dúbias – Adorno cita como exemplo o escritor
alemão Hans Fallada e nós poderíamos incluir o diretor de cinema Fritz Lang – seria
mais interessante e verdadeira que as descrições de adesistas e também de críticos
do regime que se colocassem em um espectro de crítica “saudável” ou “civilizada”.
2. Condenado durante os
julgamentos de Nuremberg, foi considerado culpado por crimes contra a
humanidade e enforcado.
***
Alcebiades
Diniz Miguel.
Doutor em História e Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas,
atualmente pesquisador em programa de pós-doutorado pela Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro. Contato: alcebiades.diniz@gmail.com. Página ilustrada
com obras de Dolphi Trost (Romênia).
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