domingo, 10 de julho de 2022

JOSÉ HENRIQUE FABRE ROLIM | Atemporalidade na obra de Maria Martins

 


O percurso da artista plástica Maria Martins (1894-1973) ultrapassa a linha surrealista, sua obra rompe conceitos, inova e se envolve numa linguagem arrojada e essencialmente poética. A complexidade de suas incursões plásticas denota profundidade, alicerçada numa cultura densamente humanista envolta em reflexões filosóficas oportunas.

Tendo uma vida social bem dinâmica, casou-se pela primeira vez em 1915 com o jurista e historiador Octávio Tarquínio de Sousa, mas em 1924 se separa e parte para Paris com suas duas filhas. Na Cidade Luz se casa, em 1926, pela segunda vez, com o diplomata Carlos Martins Pereira e Sousa (1884-1965), que se tornará embaixador do Brasil em Washington, no agitado ano de 1939. Maria Martins montou ateliê na própria Embaixada, desenvolvendo sua obra com extrema tenacidade. Transitava por altas esferas, alcançando prestígio internacional pela sua excepcional escultura, apreciada por vários surrealistas e frequentadores do circuito diplomático.

Viveu em diversos lugares como Dinamarca, Bélgica, França, Estados Unidos e Japão, tendo viajado para a Índia e China. Um dos seus mais famosos relacionamentos emocionais foi com o famoso Marcel Duchamp, que a admirava intensamente.

Em 1942, Maria monta um estúdio na Park Avenue em Nova York, faz amizade com a escultora Mary Callery que lhe introduz no cenário artístico da cidade. Conhece grandes personalidades como os arquitetos Philip Johnson e Mies van der Rohe.

Nesse período nova-iorquino conheceu também André Breton e Rufino Tamayo, tendo se aproximado dos artistas que frequentavam o badalado apartamento de Peggy Guggenheim como Max Ernst, Marc Chagall, Yves Tanguy, Marcel Duchamp e Piet Mondrian além de Fernand Léger, que se tornou um amigo bem próximo.

A projeção de sua obra se deve primeiramente aos elogios de André Breton, um dos mentores do surrealismo, tendo se integrado ao movimento pela sua linha vanguardista. Na realidade Maria foi introduzida no campo surrealista com a sua terceira individual “Maria: New Sculptures” apresentada, em 1943, na Valentine Gallery, em Nova York, um ponto crucial na carreira da artista, ocasião em que sua obra “St. Francis” é comprada pelo Metropolitan Museum of Art e a peça “Yara” é adquirida pelo Philadephia Museum of Art.

Em 1947, realiza uma individual na Julien Levy Gallery, em Nova York, tendo no catálogo texto de apresentação de André Breton. Participou da famosa exposição “Le Surrealisme” (Exposition Internationale du Surréalisme), no verão de 1947, na Galerie Maeght, em Paris, que foi antológica, ocasião em que Breton dedicou o evento aos grandes seres invisíveis ou envoltos à vida mítica. A montagem foi conduzida por Marcel Duchamp (1887-1968) e Frederic Kieller (1890-1965). Martins apresentou na mostra obras que nutriam espiritualmente os visitantes, promovendo o lado estético e harmonioso das peças com o intuito de afastar os temores que o tema poderia ensejar; foram expostas duas esculturas em bronze: “The Road; The Shadow; Too Long; Too Narrow” (O Caminho; A Sombra; Longos Demais; Estreitos Demais) (1946) e “O Impossível” (1945).


Retornando ao Brasil, em 1950, realiza suas primeiras individuais no país, no MAM de São Paulo e na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no Rio de Janeiro, mas recebeu críticas devastadoras. No ano seguinte, participa da I Bienal de São Paulo e sucessivamente da segunda, mas na terceira edição recebe o Prêmio de Escultura Nacional com “A soma de nossos dias”.

Transformações marcantes surgiram nessa época com figuras humanas metamorfoseadas em plantas e árvores enaltecendo personagens místicos de uma tradição bem brasileira como Cobra Grande, Yara, Yemanjá, Boto e Boiuna. Resgatando os mitos amazônicos com formas que primam pela maestria nos resultados plásticos.

A sua obra abrange, além das esculturas, objetos cerâmicos, desenhos e inúmeros textos, pois adorava escrever. Publicou, inclusive alguns livros pela Civilização Brasileira como Ásia Maior: o planeta Terra (1958), Ásia Maior: Brama, Gandhi e Nehru (1961) e Deuses Malditos I – Nietzsche (1965). As suas intensas pesquisas resultaram na transformação de figuras humanas em expressões enaltecedoras da natureza na sua essência.

As suas formas escultóricas impressionam, a sua obra é reconhecida internacionalmente com uma das grandes escultoras brasileiras, justamente no ano de 2012, quatro décadas após sua morte, a Documenta de Kassel, na Alemanha, deu um grande destaque na sua incursão plástica. Em 2013, algumas de suas obras foram expostas no Museu Astrup Fearnley, em Oslo, na Noruega, confirmando a sua importância e atraindo a atenção de instituições culturais dos quatro cantos do mundo. Nesse mesmo ano, uma grande mostra “Maria Martins: Metamorfoses” ocupava o Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, reunindo peças notáveis, num total de 38 esculturas, demonstrando o vigor de uma expressividade atemporal. Deve-se frisar que a escultura “Impossível” (década de 40), em uma de suas versões, pertencente ao acervo do Banco Itaú, se destacou como uma das peças mais icônicas da sua carreira.

Após a publicação do antológico livro Maria, editado pela Cosac Naify, em 2010, que reune as imagens de todas as obras catalogadas, o interesse pelas suas esculturas tem atraído a atenção tanto de especialistas como de colecionadores, justamente pelo arrojo das propostas que criam impactos e confrontos estéticos.

Recentemente, o Museu de Arte de São Paulo realizou uma grande mostra da revolucionária artista, aberta em agosto de 2021 e posteriormente em março de 2022 na Casa Roberto Marinho no Rio de Janeiro, situada no pitoresco bairro do Cosme Velho.

Sua obra se inspira nos mitos e rituais dos povos indígenas e afro-brasileiros tendo forte atração por parte dos surrealistas. André Breton, foi um dos maiores apreciadores das obras da artista. O mentor do surrealismo era próximo de Benjamin Péret (1899-1959), estudioso e pesquisador que viveu no Brasil entre 1929 e 1931, tendo publicado uma série de artigos sobre os rituais afro-brasileiros do candomblé e da macumba, enfatizando a marginalização desse grupo. Devido às suas publicações e atividades políticas, Péret, foi preso e expulso do país, conforme decreto assinado por Getúlio Vargas.

No rol dos amigos de Breton, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), importante antropólogo foi uma preciosa fonte de informações sobre o Brasil tendo se impressionado com a obra de Maria Martins, especialmente a escultura “Macumba” (1943-44), que foi exibida na Valentine Gallery, em 1944, aliás, uma foto da peça foi publicada na badalada revista surrealista VVV de número 4, uma cena ritual de raiz afro-brasileira com figuras em estado de transe. André Breton, assim, analisou a escultura Macumba: “Um hino ao próprio Deus do espasmo, onde a carne, abrindo-se como um botão de flor, se ramifica de todas as singularidades de estrutura do metal nativo”.


Deve-se notar que as religiões e os rituais afro-brasileiros foram proibidos na época do Estado Novo (1937-1945). Macumba reflete justamente a defesa da herança africana no Brasil, combatida pelo regime governamental, mas por outro lado se alinhava aos valores culturais do pan-americanismo, apoiado por políticos e instituições culturais dos Estados Unidos. Existia de uma certa forma um paralelismo entre a linha de Portinari, que desenvolvia um estilo realista, espelhando uma América Latina de trabalhadores da cidade e do campo com cores fortes e a arte de Maria Martins com uma incursão visceral envolta num surrealismo marcante, mas que no fundo enfatizava suas ambições sociopolíticas. Interessante observar que anos mais tarde, em 1957, por ocasião da doação dos painéis Guerra e Paz de Portinari à ONU, as autoridades estadunidenses não participaram do evento, em virtude do envolvimento do artista com o Partido Comunista. Nem o próprio Portinari foi convidado a comparecer à cerimônia de doação, tendo sido representado pelo embaixador Cyro de Freitas-Valle. Maria Martins, por ventura, retornou ao Brasil no início dos anos 1950, escapando assim desse pesadelo que se abatia nos Estados Unidos contra a classe intelectual e artística que era vista como ameaça à segurança pelo extremo interesse social, visto na época como simpatia pelo comunismo.

Em discurso intitulado “Arte, Liberdade e Paz” entregue ao Washington Art Committee e lido pelo congressista de Nova York, Jacob Javits (1904-1986) no Boletim do Congresso dos Estados Unidos, em 18 de junho de 1947, Martins destacou a inseparabilidade da arte e da política. Realçou a importância de ser adotada a paz e a reconstrução do pós-guerra por meio da educação e da arte.

Em 1949, Maria Martins disse à imprensa em Washington que estava em “uma cruzada artística e pessoal pela liberdade, por você, por mim, por todos nós…, não devemos ser escravizados, reprimidos, como direi despersonalizados.

O poeta surrealista Benjamin Péret escreveu em 1956: “Maria encarna o Brasil, ela não poderia ter vindo de nenhum outro lugar do mundo, pois parece que nenhum outro espaço sugere no mesmo grau esta imagem tão inconclusa, que desejava ser imobilizada”.

A obra de Maria Martins é aberta a inúmeras considerações, a sua poética atinge a alma humana na universalidade de sua expressão, rompe as fronteiras artificiais das culturas regionais para abarcar uma conexão vital de integração e atemporalidade.

Maria Martins sentia uma grande preocupação com a sociedade contemporânea que exige que todos os povos se encaixem numa única imagem global, a universalização devastadora das culturas, impondo uma forma de vida igual a todos, negando o passado histórico dos povos.

Num trecho do livro Ásia Maior: Brama, Ghandi e Nehru (1961), Maria Martins afirma:

 

O futuro mostra-se ameaçadoramente nublado para a Ásia, sobretudo para a Índia, tanto quanto para a América do Sul e, sobretudo, talvez mais para o Brasil. A política internacional encontra-se cada dia mais obnubilada. Cada dia perversamente as Grandes Potências dominadas por ilimitada vaidade arrastam sem hesitar o mundo à beira da catástrofe, a fim de medir o poder de que dispõem e a faculdade cada qual de hipocritamente melhor explicar sua boa vontade e seu desejo de paz e concórdia.

 

A unificação do pensamento para Maria é uma lástima, representa um ataque contra a vida dos povos, a diversidade do destino das nações, das raças, das religiões, dos costumes e das civilizações que são essenciais para o aprimoramento da sociedade na sua concepção transparente.

Concomitantemente aos seus pensamentos, iam surgindo transformações em sua escultura que se alinhava na força da natureza, na exuberância de uma Amazônia onírica acoplada a uma tradição dos mitos e dos devaneios advindos do processo criativo. A sua obra, apesar de estar vinculada ao surreal, é uma consequência da antropofagia de Tarsila, mas redimensionada nas metamorfoses corporais alcançando uma sensualidade feminina mitológica, a ser decifrada a cada ângulo de observação. Uma obra desafiadora que espelha os conflitos do ser humano, alia a deformidade comportamental da violência com as mutações da realidade, uma infinidade de fatores que dinamizam a cultura e a própria sensibilidade.

A obra de Maria Martins permite confrontos e reflexões, aprimorando o olhar, cada detalhe se amolda a uma linguagem que perscruta as raízes da natureza tanto na intensidade mística das florestas como na sutileza dos universos humanos.

O núcleo central da sua linguagem escultórica reflete a potencialidade do surrealismo sobretudo no período de reconstrução que se sucedeu ao segundo conflito bélico com implicações sociais e políticas.


A força mitológica de suas obras envolve a fusão dos opostos, o mítico e o feminismo se alinham em seres sobrenaturais propondo um rompimento com a sistemática do ocidente, rituais intrínsecos com a finalidade de alcançar o conhecimento espiritual.

Ao integrar lendas suas esculturas ganham dimensões telúricas, proporcionando novas perspectivas de seu percurso que sempre se posicionou de forma enigmática.

A Amazônia sempre a impressionou, notadamente por ocasião de um sobrevoo pela floresta em viagem ao Brasil, cuja visão privilegiada foi inesquecível, mas o conhecimento sobre os mitos e as lendas da decantada floresta se deve mais a pesquisa dos livros como o famoso Na planície amazônica, de Raymundo Moraes (1872-1941), publicado originalmente em 1926, do que o contato direto com a exuberância da região. Gostava também de realçar, especialmente no período que permaneceu no exterior, sua origem, o Brasil com suas características tropicais.

Ao retornar com seu marido Carlos Martins ao Brasil, em 1950, trouxe uma belíssima coleção de objetos africanos e de indígenas americanos, referência para suas incursões artísticas com profundas reflexões. A sua vivência no exterior contribuiu muito para ampliar a percepção das fundamentais conquistas sociais que surgiam com mais intensidade, transformando o panorama do mundo frente às inúmeras necessidades que afligiam grande parte da humanidade. Vale notar que nos anos 1940, suas esculturas tiveram forte impacto nos surrealistas, tendo influenciado o próprio movimento.

A complexidade da sua obra possibilita sempre novas leituras, não se esgota em delineamentos superficiais, acopla densas camadas de culturas ancestrais com perspectivas arrojadas, unindo dimensões diversas na desconstrução de tempos impostos com atitudes que promovem a individualidade como premissa para alcançar o universal. 

 

 


JOSÉ HENRIQUE FABRE ROLIM | Jornalista, crítico de arte, curador e pesquisador, formado em Direito, colaborou em diversos jornais e revistas como A Tribuna de Santos, Folha de S. Paulo, Arte em São Paulo, Dasartes, Cadernos de Crítica, Módulo e Arte Vetrina da Itália. Ele teve nos anos 2000 uma coluna no jornal DCI-Shopping News de São Paulo e atualmente escreve sobre arte no site Arteref. Foi jurado do Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), além de presidir esta entidade no período 2013-2017.

 

 


TRAVIS SMITH (Estados Unidos, 1970) | Artista gráfico conocido por diseñar carátulas de álbumes para bandas de heavy metal. El periódico Chronicles of Chaos lo considera sin duda uno de los artistas gráficos más talentosos del heavy metal actual. Entre 1998 y 2022 ha realizado más de 100 proyectos gráficos completos (no solo las portadas) para varias bandas de heavy metal, incluyendo Devin Townsend, Katatonia, Nevermore, Opeth, Anathema, Black Crown Initiate, Soilwork, King Diamond, Novembre, Avenged Sevenfold, Strapping. Young Lad, Perséfone, Riverside y Overkill. La base de su trabajo consiste principalmente en la creación completa del arte de cada álbum. Es conocido por un estilo oscuro e introspectivo que se basa en gran medida en la fotografía, compuesta digitalmente con varios otros medios. También se utilizan texturas acrílicas, así como acuarelas, pasando por un proceso de digitalización y posterior superposición sobre matrices fotográficas. Tenerlo con nosotros como artista invitado es una forma de reconocer la belleza de su creación. En una breve conversación, nos autorizó a utilizar todo este material.

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 13

Número 212 | julho de 2022

Artista convidado: Travis Smith (Estados Unidos, 1970)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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