segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | A situação espiritual da poesia de Manuel de Castro [sobre uma passagem das cartas de Manuel de Castro a Helder Macedo]



Na leitura dum texto inclinamo-nos em deixar de lado os passos obscuros. Esses passos merecem porém segunda leitura. É preciso voltar atrás e concentrar sobre eles um esforço de atenção. São verdadeiros nós hermenêuticos. Lembram certos pormenores dum sonho, incompreensíveis, insignificantes, que a nossa memória tende a deixar de lado, mas que observados de perto constituem o verdadeiro núcleo organizador do seu sentido. Nas cartas de Manuel de Castro a Helder Macedo existe um passo obscuro. Encontra-se na quarta e última carta do conjunto, datada de 17 de Maio de 1960, no segundo parágrafo. Aí se declara o remetente não budista. Diz (A Ideia, n.º 73/74, 2014, p. 12): Perguntaste se era budista. Não. Mas creio que no livro encontrarás uma resposta aproximada duma situação espiritual minha, que, mais do que poderias adivinhar, demonstra a involuntária pertinência da tua pergunta. Digo “involuntária” porque o texto KWY não era significativo sob esse aspecto.

O que propomos neste texto é um regresso à passagem, concentrando nela o melhor da nossa atenção e desfiando até às últimas consequências as associações interpretativas. Em primeiro lugar porquê a profissão de fé sobre o budismo. As cartas de Helder Macedo a Manuel de Castro extraviaram-se. Manuel de Castro entre 1960, altura em que tem lugar o diálogo com Helder Macedo, e o momento da sua morte, em Setembro de 1971, mudou várias de casa e viveu perto de quatro anos na Alemanha. O espólio que dele se conserva desse período é muito pouco. A correspondência de Helder Macedo perdeu-se. Ainda assim é possível afirmar, com absoluta certeza, que na origem do passo de Manuel de Castro está uma interpelação de Macedo, perguntando ao amigo se ele era budista. Na resposta conhecida, na carta de 17 de Maio, Manuel de Castro é peremptório sobre a questão: perguntaste se era budista. Por que razão terá feito Helder Macedo tal pergunta? Não se pergunta a ninguém sem mais nem menos se ele é cristão, islamita ou budista. É preciso um lastro anterior forte, que funcione como um incentivo à pergunta. Que pretexto foi esse? Já se sabe que a correspondência se perdeu e que é necessária uma reconstituição. Não parece porém difícil, com os elementos disponíveis, uma reconstrução fidedigna da questão.

Recorde-se que as cartas que hoje temos de Manuel de Castro a Helder Macedo têm como ponto de partida a separata do número 5 da revista KWY, que apareceu em Dezembro de 1959 e teve coordenação de Manuel de Castro (e de João Vieira). Foi esse caderno, com colaboração poética de Manuel de Castro, José Manuel Simões, Mário Cesariny e António Ramos Rosa, que provocou a branda ira de Helder Macedo, não por causa da separata, feita por dois amigos próximos, mas devido aos poemas de Luiz de Macedo, então subdirector da Casa de Portugal em Paris, publicados em extra-texto. A reacção levou ao “contra-ataque” – é essa a expressão de Helder Macedo na nota de apresentação das cartas (v. A Ideia, n.º 73/74, 2014, p.9) – de Manuel de Castro no primeiro envio conhecido, de 8 ou 9 de Fevereiro de 1960. É na colaboração de Manuel de Castro na separata do número cinco de KWY que está o pretexto da pergunta de Helder Macedo – como de resto é nela que está também o pretexto geral desta correspondência. Manuel de Castro, além de coordenar a feitura desse caderno, publicou aí um longo poema chamado “Varouna” [republicado depois na obra Bonsoir, Madame com o título “Varuna” (2013, pp. 216-217)]. É esse poema que está a nosso ver na origem da pergunta de Helder Macedo. Não é apenas Varuna, como personagem, que encaixa com a pergunta – o que seria já bastante para fazer prova; é também o autor da carta que remete no final do parágrafo em causa de 17 de Maio de 1960 para “o texto de KWY”. Esse texto não pode ser outro senão o poema “Varuna”.

Eis que o passo nos leva até a um poema de Manuel de Castro, “Varuna”, poema datado de Junho de 1959 e publicado em Dezembro do mesmo ano em Paris, numa separata da revista KWY. Esse poema tem um lugar crucial na obra geral do poeta e ajuda-nos a entender, ainda que de forma “involuntária” para usar a expressão do autor da carta, aspectos essenciais da sua criação, que devem ser complementados, como ele indica no mesmo parágrafo, com o livro então dado a lume, A Estrela Rutilante, surgido em Abril de 1960.

 

O POEMA “VARUNA”

Quem é Varuna? Deus védico do céu nocturno, que conhece e julga todas as acções da humanidade. Retenhamos para já a ideia dum deus nocturno, um deus do mundo dos mortos, como Osíris o pode ser. Varuna remonta pois à mitologia pré-hinduísta, vários milénios antes da nossa era. Uma tal situação pode ajudar desde já a explicar a pergunta de Helder Macedo (és budista?), pois foi no seio dessa tradição que o budismo nasceu e se desenvolveu. Releia-se o poema de 1959 (que o leitor encontra em anexo). O primeiro ponto que se nos afigura dizer sobre ele, é que se trata dum poema que cria no leitor forte impressão de estranheza. A pergunta de Helder Macedo, um dos primeiros a ler o poema, parece resultar dessa estranheza, que se traduziu então na pergunta: és budista? Ao que Manuel de Castro respondeu: não! A nossa estranheza pode traduzir-se noutra pergunta: qual a situação espiritual da poesia de Manuel de Castro a partir deste poema?

O poema representa na obra geral de Manuel de Castro um passo obscuro. O seu mecanismo de composição é automático. Este processo, o automatismo psíquico, desenvolveu-se na poesia do autor com o seu segundo livro, atingindo no início da década de 60 o seu pico. O primeiro livro, Paralelo W (1958), é mais comedido no uso do recurso, que apenas aflora por entre formas mais seguras e tradicionais de composição. Tomem-se de “Varuna” as seguintes expressões, todas sem sentido convencional: capacidade de voar num cachimbo recurvo – possuir quarenta mulheres através de um voo helicoidal em direcção ao Planeta Saturno – encontrar no Arquivo da 3.ª Repartição dos Asilados a Pedra Esmeralda – a tentativa de agregação cósmica dos ratos – pequeno homem, sê fagocita – instala-te nos vermes, bêbado de ti – as banheiras servem de catapulta às guerras florestais – o quebra-nozes eléctrico do Ocidente e o Yogui sem noite do Oriente.

Das expressões retenham-se duas, que permitem curiosas associações: pequeno homem, sê fagocita. / Instala-te nos vermes, bêbado de ti. O dicionário Houaiss dá a seguinte explicação para “fagócito”, substantivo masculino: célula amebóide que engloba e digere microrganismos, outras células ou qualquer material estranho. E a seguinte para fagocitose: processo de ingestão e destruição de partículas sólidas, como bactérias ou pedaços de tecido necrosado, por células amebóides chamadas de fagócitos. O adjectivo “fagocita” é então um neologismo, criado pelo poeta. Porquê fagocita? A fagocitose parece ser, no seu devorismo, a substância íntima da vida, o processo dinâmico do seu desenvolvimento, o equilíbrio da sua permanência. Daí a importância que o passo tem no poema. Ora o que constitui o fundo mais antigo, pré-ariano, dos textos védicos é a ideia de que a essência da vida consiste em comer e em ser comido. Viver é devorar a vida e ser devorado por ela. No centro da primeira religião védica estão ritos sacrificiais, que incluíam sacrifícios vegetais, animais, humanos, que foram extensivos à religião iraniana anterior à reforma de Zoroastro.


O budismo, assim como o jainismo, criados em fase já adiantada, recente até, são uma tentativa de dar resposta ao drama cósmico da fagocitose, que está no centro da visão arcaica indo-iraniana. Se a vida é um ciclo de acções infernais, como lhe encontrar saída? É o momento em que a visão primitiva védica se moraliza com a lei suprema do jainismo – proibição de causar qualquer sofrimento e de atentar contra qualquer forma de existência. Esta lei pode ter um paralelo na terceira nobre verdade do budismo – a abolição do desejo conduz à abolição do sofrimento. O resultado nos dois casos é uma atenção extrema a todas as formas de vida, que pode chegar ao ponto do monge transportar consigo uma pequena e delicada vassoura para varrer o caminho de modo a não incorrer no risco de esmagar formigas e insectos. Do mesmo modo usa um véu de gaze na boca, de modo a não atrair com o bafo qualquer insecto. Daí ainda o vegetarianismo, que nalguns casos é tão extremo, que chega a proibir o consumo de frutas, por via dos vermes que lá vivem. Nestes casos o único alimento permitido é o arroz, a substância com que Gautama quebrou as mortificações e os jejuns do seu período ascético.

Percebe-se agora o “não” peremptório, sem hesitações, de Manuel de Castro à pergunta de Helder Macedo. Quem subscreve os versos antes transcritos (pequeno homem, sê fagocita. / Instala-te nos vermes, bêbado de ti), não pode ser budista nem seguir as duas últimas nobres verdades. A fagocitose, como expressão do universo físico, é produto da ignorância. Trata-se do outro nome do sofrimento, único actor universal. A fagocitose é o ciclo das reencarnações, a vida perpetuando-se sem fim através da dor do eterno devorismo. Logo a mensagem budista só pode ser contrária àquela que Manuel de Castro passa (sê fagocita).

Como esclarecer a situação espiritual de Manuel de Castro a partir daqui? A visão do poema parece, ao menos num primeiro nível de sentido, coincidir com a espiritualidade do período arcaico indo-iraniano. Aceita o drama cósmico que está no centro da visão védica e pretende até ritualizá-lo. O apelo à fagocitose e aos vermes não é outro senão o aspecto sacrificial dos Vedas. O poema não fica porém por aí, pois o fecho do texto, da maior importância, parece supor um retorno de tudo a uma origem anterior ao princípio da vida material. A minha esperança vive para além dos séculos na recuperação mágica do corpo fora do tempo, diz ele. É pela necessidade de afirmar a recuperação mágica do corpo fora do tempo que a via espiritual do poeta se afasta da cultura védica original e da solução encontrada pelo budismo. Budismo e jainismo foram a resposta que o hinduísmo encontrou em fase já adiantada para as grandes perplexidades iniciais da cultura indo-iraniana arcaica. Não foram todavia as únicas. Houve no lado iraniano uma outra resposta ao horror cósmico da primitiva visão védica. Foi a reforma de Zoroastro, que coincidiu no outro lado do Indo com o desenvolvimento do hinduísmo e se consolidou depois em período vizinho ao budismo e ao jainismo.

Qual é a via zoroastrista? A divisão do mal e do bem, da luz e das trevas, em dois princípios distintos irredutíveis. Ora no princípio do bem e da luz a fagocitose não existe. Foi esta a resposta persa ao horror dum universo físico que tinha por expressão o devorismo sem trégua. Percebe-se como o caminho zoroastrista se afasta do budismo. Este, para se libertar da ordem infernal dos sentidos físicos, do ciclo do devorismo e das infinitas reencarnações da matéria, optou por não atribuir realidade ao plano sensível, libertando-se assim dele. No budismo, em última visão, não há sequer problemas; há só a ilusão desses problemas – por mais inextricáveis que estes possam ser, como é o caso da fagocitose. O zoroastrismo, com o mesmo objectivo de se libertar do aspecto mais terrível da ordem física detectada pela velha cultura védica, considera, ao contrário do budismo, o plano sensível como real, mas um real que pode ser maléfico e a que se contrapõe um outro plano incorruptível e luminoso, onde a fagocitose como essência íntima da vida não existe.

Como falar de recuperação mágica e de corpo fora do tempo sem pressupor o plano supra-cósmico?! Estas ideias parecem as que melhor dão conta da situação geral do problema “espiritual” da poesia de Manuel de Castro e até da sua geração, tão repulsiva em relação ao real sensível como atraída por um real supra-sensível. Trata-se em quase todos eles duma espiritualidade sem Deus, em que se visa um plano incorruptível. Esta vivência não precisa da existência dum Deus; necessita só deste plano supra-sensível, que desconhece a lei do sacrifício. Sem atender a este plano, não se compreende o refrão do poema “Comunicação”, de 1964, que, como poema final de despedida, merecia só por si, no indirecto catarismo que revela, uma demorada exegese: Aproxima-te, morte, com o teu sorriso pétreo, claro e atraente – Aproxima-te, morte, geométrica, mineral e afável – Aproxima-te, morte, inteligente, delicada e pacífica. Bonsoir, madame.

Neste desejo de abraçar a morte entende-se o papel daquele deus da noite, Varuna, que à imagem de Osíris conduz as almas até à imortalidade, que não é senão, nas visões dualistas, o contraponto luminoso da natureza sujeita à fagocitose. Percebe-se também como esta via, ao invés do que sucedeu ao budismo e ao jainismo, foi obrigada a guardar e até a desenvolver o carácter iniciático das confrarias orgiásticas do período arcaico indo-iraniano, não agora para executar ou cifrar sacrifícios de sangue mas para transitar, com nova consciência, do plano da realidade sensível para o plano da realidade incorruptível. Sobre o poema publicado em KWY diga-se ainda o seguinte. Este texto de 1959 deixou definitivamente para trás o que podia haver de conforme a uma via espiritual linear, reconhecível, na confissão dum poema como “Confiteor” – este de Agosto de 1957 e publicado sob pseudónimo (Pedro Ângelo de Sousa) e em que se pode sentir a formação católica do autor, de todo ausente no poema “Varuna” e nos que se lhe seguiram no livro de Abril de 1960 e que apuraram um nova situação espiritual nesta poesia, que procuraremos continuar a esclarecer.

 

OS POEMAS DE A ESTRELA RUTILANTE

No passo da carta de 17 de Maio de 1960, Manuel de Castro dá como se sabe indicação de que a sua situação espiritual só poderá ser esclarecida pelo amigo de forma aproximada, que aqui vale por definitiva, nos poemas do livro que então acabava de publicar, A Estrela Rutilante. Curioso que nesse mesmo passo indique, por contraste com o livro, “Varuna”, de resto contemporâneo da elaboração de boa parte dos textos do livro de 1960, como pouco expressivo da sua situação espiritual. Já se viu que é possível tirar dele uma problemática religiosa que remonta às raízes da cultura védica. É inegável que o problema das fontes religiosas, em especial das orientais, constitui uma das questões mais curiosas do poema “Varuna”. Pergunta-se: como é que em Junho de 1959, em época de absoluta ocidentalização das fontes filosóficas portuguesas, Manuel de Castro tinha acesso a toda a textura religiosa do oriente, a ponto de recusar o budismo, sem para isso deixar de tomar a cultura védica como fonte de inspiração? São impossíveis hoje de reconstituir as suas leituras dessa época, já que a sua biblioteca de então se perdeu e só memória incerta dela ficou. Uma coisa é segura: não parece haver até este poema na poesia portuguesa uma tão funda consciência da trama religiosa e cultural da Índia, e das suas implicações filosóficas e especulativas, como a que nele se tece. Qualquer interesse pela situação do oriente na poesia portuguesa tem nesse poema uma referência que não se pode dispensar, embora a situação final do poema acabe por fazer uma escolha que supõe, através do espaço persa, a sua re-ocidentalização.

Siga-se de imediato a indicação do poeta dada nessa carta. Leiam-se os poemas de A Estrela Rutilante à procura da sua “situação espiritual”. O primeiro poema que se mostra significativo desse ponto de vista é “Situação de Terceiro Grau”, o quarto poema do livro, onde surge a estrela rutilante que dá o nome ao livro. É um poema tocado pelo automatismo psíquico, cuja importância no livro de 1960 já atrás se apontou. Esta forma de expressão não é novidade pois o processo de composição de “Varuna” é do mesmo género. São sequências que se vão acumulando sem sentido convencional e que parecem pescadas de forma inadvertida no lado sombra do pensamento. Essas expressões nunca são porém insignificantes, como se viu no poema “Varuna”, cuja fagocitose abre as mais ricas aproximações. O automatismo como processo expressivo não é apenas uma questão de forma ou de significante; ele magnetiza a área do significado, abrindo dinâmicas transposições de sentido. Vejam-se os seguintes versos: apenas a integridade dum corpo exausto/ estabelece o último exemplar de ligação eléctrica/ entre o mago e o escravo// a perfeição solar do encantamento/ atinge as vísceras da floresta mágica. Três segmentos parecem cruciais para aquilo que procuramos: mago, encantamento, floresta mágica. O que faltou dizer antes, em “Varuna”, e que justifica as cautelas que ele tem com o poema na carta a Helder Macedo, expressa-se aqui de forma aberta e explícita. A recusa das religiões reveladas, que no poema de 59 é também uma recusa de sair da tradição védica mais arcaica, indo-iraniana, ganha aqui um rosto e um nome: magia. Ligação eléctrica entre o mago e o escravo – diz o poeta. Esta electricidade não é a usual; é uma metáfora de magia. Ela evoca a “electricidade feminina” que Michelet usou em 1862 a propósito da figura da bruxa. Já em “Varuna” se falava na recuperação mágica do corpo, o que permitiu à luz da visão zoroastrista falar dum plano supra-cósmico. Nunca porém o zoroastrismo nos satisfará com vistas a uma caracterização plena da situação espiritual da poesia de Manuel de Castro. A via zoroastrista, por muito que se afaste da solução budista para o drama aviltante da fagocitose, é uma religião hierarquizada num espaço histórico determinado, que não coincide com o caso de Manuel de Castro, muito mais pessoal e solto de referências.


O zoroastrismo interessa-nos como fundo arcaico das especulações dualistas, antes de mais o gnosticismo, que evoluiu já na nossa Era em paralelo ao cristianismo primitivo, acabando por desaparecer, ao menos de forma organizada, com a vitória histórica e temporal deste no tempo de Constantino. Em época recente este fundo gnóstico acabou por se plasmar naquilo que hoje chamamos ocultismo, forma neo-gnóstica de espiritualidade. A magia, via de superação do real sensível e reconquista dum plano dito superior onde a lei do sacrifício não existe, constitui o centro deste neo-gnosticismo. É por certo aqui, na magia, que encontramos o núcleo singular da condição espiritual da poesia de Manuel de Castro, aliás afim, posto que de modo pessoalíssimo, com aquela parcela mais criativa da poesia surrealista sua contemporânea ou imediatamente anterior, também ela muito marcada pelo neo-gnosticismo, que André Breton bebeu na década de 40 do século XX numa das fontes originais, Alphonse-Louis Constant (1818-1875), autor de Dogma e Ritual de Alta Magia, crucial ainda para António Maria Lisboa.

O poema seguinte, o quinto do livro, “Criptograma”, tem passo também ele curioso para o que nos interessa. Diz: é o momento portanto de quebrar as estátuas/ de rasgar todas as bandeiras/ de eliminar as palavras por excesso/ de destruir as máquinas/ e renovar o espírito antes que se dissolva no excremento. Já sabemos que este último é o sinal da matéria e do devorismo vil a que ela está sujeita pela lei do sacrifício do mais fraco ao mais forte. A resposta de jainismo e budismo pretendeu inverter esta lei, propondo o sacrifício do mais forte ao mais fraco. O elo decisivo é assim o monge (o mais forte) que se recusa a comer uma peça de fruta para não sacrificar o verme (o mais fraco) que nela vive. O sujeito da poesia de Manuel de Castro não perfilha esta ascese; segue antes por um dualismo, em que só um dos planos está sujeito à vileza da fagocitose. No plano hiper-cósmico essa tragédia não existe. É o que neste passo o poeta chama de espírito por oposição radical ao excremento. Na dinâmica dos versos citados o espírito pode ainda assim ser sufocado pela matéria, a ponto de se apagar. O perigo iminente deste solve evoca a cosmologia de Valentim e o drama cósmico de Sophia, em que este éon perde inadvertidamente o coágulo do Pleroma e cria por um infeliz acaso de dissolução o mundo material.

O poema mais importante para o que aqui indagamos, a situação espiritual do poeta, é porém o poema “ Regresso ao Oriente”, que constitui por si só uma das partes do livro. Trata-se dum curto poema de 28 versos e oito estrofes, o que dá, em termos de versificação, dois sonetos. Citem-se os versos (transcreve-se o poema em anexo): Devotemo-nos à construção da guerra/ reintegrando o uso tradicional e correcto/ da crueldade. // Vou descer em busca da Kabala/ e reaparecer demóniorritmo entre campas/ no cemitério dos animais inferiores. Mais uma vez o automatismo não quer dizer não sentido; a dinâmica do significado é, ao invés, imensa. A problemática que se joga é afinal a mesma que se encontra em “Varuna”, quando o sujeito deste pede, pequeno homem, sê fagocita/ instala-te nos vermes, bêbado de ti. Agora, tanto a construção da guerra como o uso tradicional correcto da crueldade têm a ver com esta aceitação do drama cósmico que está no centro da visão védica. Foi essa aceitação, junto à pretensão ritualizante, que nos permitiu afirmar que o autor não é budista. O apelo à fagocitose é o aspecto sacrificial da primitiva cultura védica indo-iraniana – ainda sem a solução moral do budismo e do jainismo. Nestes versos encontra-se idêntica linha de conduta. O cemitério dos animais inferiores é o universo material da fagocitose, que tem por lógica o aniquilamento do mais fraco pelo mais forte. Os dois poemas parecem pois coincidir. Não é por acaso que os seus títulos se traduzem um ao outro. Varuna é o oriente como o “regresso ao oriente” é Varuna.

Sobre o título do poema vale a pena acrescentar algo. Já se percebeu que a cultura indo-iraniana tem papel crucial junto deste poeta, Em Dezembro de 1959 publica um poema chamado “Varuna”, que não pode ser entendido sem a cultura védica. No livro dado a lume quatro meses depois, em Abril de 1960, surge um poema intitulado “Regresso ao Oriente”. Regresso, porquê? No poema de 1959 percebeu-se que, embora o pano de fundo original seja o espaço da cultura védica oriental, o poema pressupõe, através do zoroastrismo ou das consequências maniqueístas deste, uma re-ocidentalização. Apontam-se em geral as fontes cristãs do maniqueísmo, em primeiro lugar o Hino da Pérola, presente no evangelho gnóstico apócrifo de Tomé, o apóstolo que evangelizou a zona indo-iraniana. A questão está em saber em que medida o primitivo apóstolo das zonas orientais evangelizou ou foi evangelizado, dando assim lugar a uma nova síntese que tem por envolvimento a gnose. O que queremos dizer é que não pode haver em Manuel de Castro re-ocidentalização da situação espiritual sem movimento simétrico e compensatório de regresso ao oriente, se bem que este não seja o do budismo mas o do dualismo, isto é, o oriente que mais abertamente, desde Tomé, se deslocou, através dos Magos zoroastristas, para o ocidente. No passo transcrito desenha-se por isso mais viva do que nunca a electricidade que liga o mago ao seu prodígio. Está lá indicada a tradição espiritual que o poeta reivindica para si, a cabala, cuja cosmogonia, já do século XVI, com o processo de contracção a que a criação dá lugar (tsimtsum) e a ruptura dos vasos, confirma e desenvolve até as intuições da gnose mágica primitiva, instituindo-se assim em elo privilegiado entre esta e o neo-gnosticismo moderno, tão visível já no poeta das núpcias do céu e do inferno (1790), William Blake.

Curiosíssimo é que este poeta, Manuel de Castro, que no seu primeiro livro nunca cita o nome Deus e no segundo e derradeiro só o cita, de raspão, de forma indirecta, num discurso que não lhe pertence, uma única vez, isto no segundo poema do livro, “Pêndulo”, acabe por citar de forma tão evidente e tão pessoal, num passo tão crucial, o do demónio – esse demóniorritmo, em que o poeta aparece transfigurado depois da ritualização da fagocitose. Com este neologismo, que é legítimo tomar por decisivo, uma coisa parece segura: a situação espiritual desta poesia precisa de entrar em linha de conta com a demonologia para ser entendida. O demónio que aqui nos surge parece-nos ter mais a ver com o daimon grego, socrático, funcionando como um génio pessoal inspirador, do que com o Satã bíblico, ou mesmo o Lúcifer cristão, em revolta essencial contra o princípio divino. Este demónio que aqui surge é um intermediário entre o homem e o plano divino – para sermos mais fiéis ao poeta, que se recusa a falar em Deus, diga-se plano supra-cósmico sem a tragédia sinistra da fagocitose – e não aquele que divide, acusa, calunia. Nem adversário, nem inimigo, nem divisor; apenas inspirador. Estamos talvez ante uma demonologia positiva, que se distingue duma diabologia, como teologia invertida. No seu centro está o agente universal, fogo eterno, vivo, activo, a que toda a tradição mágica está desde sempre obrigada. Talvez agora se façam cristalinas as palavras terríveis que Herberto Helder escreveu à boca da morte do grande poeta (Notícia, 18-9-1971): Manuel de Castro tinha a lucidez do demónio.

Este poema do livro A Estrela Rutilante, que só de forma superficial comentamos, ficando por tocar tópicos tão ricos como o papel do amor na acção mágica, constitui talvez o mais importante elemento à nossa disposição para determinar a condição espiritual e filosófica desta obra. Não surpreende se fosse nele que o poeta pensava quando indicou a Helder Macedo o livro de 1960 como dando resposta para a sua situação espiritual. É verdade que esse poema, tomando em mãos de forma explícita uma tradição espiritual e filosófica, a cabala, ao mesmo tempo que coloca em jogo a necessidade do diálogo com o daimon, só alcança toda a sua dimensão no quadro de outros poemas do mesmo livro, como “O Rosto de Ísis”, que se segue a “Regresso ao Oriente”, em que confluem propósitos espirituais decisivos – da força agente do amor ao poder de dar vida aos mortos – e se estabelece um itinerário geográfico para Ísis (Himalaia, norte da Índia, Pérsia, Egipto), que confirma aquele movimento que deslocou para ocidente, por meio dos reis magos e do apóstolo Tomé, o dualismo. O rosto de Ísis não é afinal senão o da gnose – como poder pneumático incorruptível.

Considere-se por fim um dos poemas finais do livro de 1960, “Scorpius”. É uma criação sibilina, com expressões obscuras, típicas da composição automática, mas que carreia um núcleo altamente significativo, antes de mais a imagem do escorpião, símbolo poderoso, que funciona como um íman de sentido. Leia-se o seguinte: eu sou o animal que perfura a terra até ao seu centro de gravidade/ o animal resistente por excelência/ o meu sangue saturnal devora, queima e envenena/ a própria origem. Manuel de Castro nasceu a 17 Novembro de 1934, sendo nativo do signo do escorpião. Não admira pois que aqui fale em nome dele – eu sou o animal que perfura a terra. Este escorpião, que a arte megalítica já representava sob forma sexual, tanto é a morte como a vida, tanto é aquele que perfura para fecundar como para envenenar. Corresponde ao mês de Novembro, à estação do Outono, em que se dá a morte da natureza e surge o embrião do seu renascimento. É de novo o drama cósmico da matéria, com sucessivas mortes e sacrifícios, que aqui surge, desta vez sob a tutela de Saturno, o deus faminto, que devora a vida e consome todas as suas criações. A assumpção explícita de Saturno (o meu sangue saturnal) não choca em sujeito que recusou a resposta do budismo e das restantes religiões reveladas, todas empenhadas por idêntica via normativa em moralizar a absurda violência da vida. A ritualização da tragédia cósmica, por meio do drama poético, em que o poeta surge como imagem do demiurgo inferior, não é nova em Manuel de Castro. A saturnália carnavalesca e dionisíaca que transparece em “Scorpius” não é senão o imperativo histriónico que se topa em “Varuna” e em “Regresso ao Oriente”. O demóniorritmo é afinal o rei louco das saturnálias que baila em cima dos vermes como o quebra-nozes eléctrico e bêbado que aparece no cemitério é o mago, o clown, o trickster, o mágico Manuel do poema “Câmara”. Fala-se aqui duma via espiritual que dialoga com o daimon e não recusa a tradição da demonologia. O escorpião pode assim ser uma imagem da serpente, a mais caluniada das criaturas e ao mesmo tempo a mais abissal e primordial delas. Expressão de Hermes e do saber, expressão até da cura de Esculápio, a serpente que ondula e eternamente ressuscita das suas peles é a força vital que habita o fogo eterno, agente amoroso universal e regenerador espiritual.

 

OS POEMAS POSTERIORES A ESTRELA RUTILANTE

Vale a pena tentar agora idêntico itinerário pelos poemas de Manuel de Castro ulteriores aos dois livros publicados e recolhidos em Bonsoir, Madame – até porque esse conjunto não é assim tão extenso como se poderia esperar em poeta que só veio a falecer mais de onze anos depois da publicação de A Estrela Rutilante. O que nos continua a motivar é a situação espiritual do poeta, ponto de partida que a passagem da carta de 17 de Maio de 1960 nos proporcionou.

Um poema valioso do ponto de vista que aqui nos interessa parece-nos ser “Poema para Milarepa”, escrito em Setembro de 1960, no rescaldo da colaboração com a revista KWY e da edição do segundo livro do autor. Cite-se (poema transcrito em anexo): Necrófagos/ jogamos o espírito pela janela. O horror da visão necrófaga da vida está de regresso. O poema é escrito numa altura em que as fontes orientais que tinham inspirado o poema de Junho de 1959 estão muito actuantes. Ao que se sabe o poema ficou inédito até 2013, momento em que foi incluído em Bonsoir, Madame, em conjunto intitulado “Chuva em Dia de Finados”, que se sabe ter sido um dos projectos de livro do poeta nunca concretizado. Revela a sólida construção formal que encontrámos no poema de KWY e a mesma habilidade em nela deixar uma apertada malha de sentidos vitais que só se entendem através de associações que levam às raízes do dualismo.


O poema é um preito a um dos mestres fundadores do budismo tibetano, Milarepa (1040-1123). Não nos deixemos porém enganar por esse dado imediato. O Milarepa deste poema, como aliás o da vida real, é menos o discípulo de Marpa, o Tradutor, que trouxe da Índia os livros raros da via tântrica do vajrayana, que o vidyadhara, o mágico, o descendente do bon, a primitiva espiritualidade tibetana, de origem persa, ou mesmo pré-zoroastrista, que em muitos momentos da vida recorre à taumaturgia dos imortais para alterar a realidade sensível. Milarepa, de quem temos a felicidade de possuir uma pormenorizada biografia do século XII, é o mago, o louco (smyon-pa), o poeta saltimbanco que deixou uma vasta obra em verso, as cem mil baladas (Gur-Bum), logo adoptado como patrono dos cantores e dos poetas de rua. A via poética de Milarepa, dita kagyupa, é crítica das igrejas, das teorias, dos sistemas; propõe antes uma activa experiência psíquica interior, que leva à criação poética e à encenação teatral da pantomina, burlesca e excessiva, como ritualização sublime da vida.

No poema de Manuel de Castro, Milarepa é tratado como poeta e mestre de alta e branca magia, o que se entende. Por sua vez o verso final do poema, tu esqueceste o medo de nascer e de morrer, que podia passar por uma consigna religiosa exotérica, um ensinamento doutrinário, não é mais do que a citação dum verso da “balada dos instrumentos” de Milarepa, em que também se avança que o sujeito, por via do despojamento poético, se esqueceu de pensar – de pensar no receio ou na esperança de pensar. Manuel de Castro no final da década de 50 do século XX terá lido com entusiasmo a obra de Milarepa, traduzida em inglês desde o final do século XIX, e soube dela tirar um sentido esclarecedor da sua própria situação espiritual. As faldas do Himalaia que surgem em “O Rosto de Ísis” são o ponto de partida dum percurso geográfico, e espiritual se pensarmos no bon, que fecha no coração da vida, depois de contornar a Índia e se lançar no Egipto, onde se reconhece o itinerário da gnose, que veio a ter enquanto tal a cidade de Alexandria, no século II, por berço.

Ao “Poema para Milarepa” se pode associar outro, “A Espinha do Peixe” (também transcrito em anexo), escrito pouco depois, em Maio de 1961, e que volta a pegar no alimento físico. O que o singulariza é levar a último patamar a vileza do princípio necrófago da fagocitose. O alimento sofre aí um tratamento abjeccionista, em tudo coincidente com o pessimismo da primitiva cultura védica. O poema funciona como um grande fresco satírico da situação e do destino da matéria. Não se pretende nele indicar uma saída para a fatalidade da entropia mas tão-só retratar com sentido cirúrgico o nigredo da decomposição. O poema deixa a pairar a possibilidade do mal ser exclusivo, colocando o universo material fora da esfera da influência benéfica da magia, aqui ausente. Tal como ficou, o texto remete, em termos espirituais, para um materialismo negativo, sem vislumbre de hedonismo, marcado por um pessimismo de fundo sobre o destino da vida. Sabemos porém por poemas como “Regresso ao Oriente”, “O Rosto de Ísis” e “Varuna” que este materialismo abjecto não é senão uma das partes da noção vital de Castro, a inferior, que contém também um plano sublime, em que a tragédia da abjecção necrófaga não tem lugar.

O mesmo se passa no poema “Campânula” (também transcrito em anexo), de que se desconhece a data da composição mas que se sabe ter tido primeira publicação a 1 Outubro de 1961. Trata-se pois dum poema do mesmo período do poema anterior, composto este em Maio desse ano, que é no geral o tempo de quase todos os textos aqui tratados. Em cerca de ano e meio, temos o poema de KWY, os de A Estrela Rutilante, o texto para Milarepa, “A Espinha do Peixe” e o poema que agora se observa, “Campânula”. O mesmo propósito final que se encontra em “A Espinha do Peixe” – ser um retrato do destino da matéria – volta a surgir neste poema, talvez agora de forma radical, o que leva até à sua metamorfose. O texto de Maio de 1961 escolhe o itinerário a que um peixe terreno está destinado – sofrer a morte e o sacrifício do fogo, ser sorvido e mastigado como cadáver, ficar reduzido a uma insultuosa espinha, devorada ainda ela por um gato ou dissolvida por um esgoto. Daí o retrato abjecto do poema. A escolha recai agora sobre um verme, que não tem o realismo da escolha anterior. Este verme milenar, que se alimenta de si próprio, dando expressão a toda vida material, não é real, como o peixe do poema anterior era. Este verme é uma criação simbólica do poeta e que se destina a funcionar como grande metáfora da matéria. Também a campânula, como referência, é uma criação do poeta e nada tem a ver com o prato redondo, com filete doirado circular, que se encontra no poema “A Espinha do Peixe”. Aqui a campânula é uma criação do poeta que pretende com ela cristalizar uma imagem do universo material. Nesse sentido este poema é o talvez o mais simbólico e cruel retrato do estado ignorante da matéria que se conhece na poesia portuguesa. Nunca como nele a matéria, a vida do sangue, o ciclo da reprodução e da alimentação aparecem sujeitos a uma tal caricatura degradante. No poema do peixe ainda há o hedonismo burguês, o sangue a ferver daqueles que sorvem gulosamente o peixinho grelhado; agora há apenas o fogo gelado, a nua e mortiça escuridão, as secreções miseráveis, a vida que se perpetua como um eterno castigo e de que qualquer prazer está ausente. Em vez das contorções eróticas do peixe antes de ser fisgado, gozando a vida, temos apenas as ondulações repugnantes do verme, que só servem para fazer durar a pena dura a que está condenado.

O poema radicaliza assim o pessimismo que já se desenhava em “A Espinha do Peixe”. O mal é a única força agente do universo. A estrofe final tem porém passo que nos obriga a ceder algo. Citamos: Neste imperturbável universo/ só o limite, a campânula,/ lhe não pertence. O todo que o envolve – / – de si nasceu. Seu alimento,/ o expulsa e o digere novamente,/ num ciclo para o qual não foi princípio. Encontramos aqui muito do que atrás dissemos, com duas salvaguardas – primeiro, o absurdo do ciclo material não tem por ponto de partida a matéria, já que o ciclo do verme só é agente a partir do momento em que está em movimento, quer dizer, o verme não é princípio mas acidente; segundo, a campânula tem uma superfície de contacto que está fora do ciclo material do verme – a campânula não lhe pertence – e que de si não nasce. Que limite é este? O do pleroma gnóstico, a zona em que a realidade dos dois princípios distintos perde qualquer possibilidade de intersecção. Se esta leitura for aceitável, como parece ser, o poema aponta de forma indiscutível para o hiper-mundo, para o estado ígneo superior, que desconhece o fraco ruído de cinza, ciclo agónico e necrófago, o que não sucede com “A Espinha do Peixe”, talvez o mais realista e material dos poemas, se não o único, de Castro.

 

O POEMA DA SERPENTE

Atente-se por fim em “Serpente Hibernal” (também reproduzido em anexo), escrito em Março de 1962 e publicado pouco depois no Diário Popular (9-8-1962). É poema deitado ao papel cinco meses depois de “Campânula”, pertencendo por isso ao vasto ciclo textual que aqui nos tem servido para indagar a situação espiritual da obra de Manuel de Castro. Numa linha própria, noética, que não estética, pois desta perspectiva “Varuna”, “Regresso ao Oriente”, “Campânula” são insuperáveis, acaba por fazer a vez duma coroa final, dum fecho de oiro da vasta cadeia de textos que começa no poema de KWY. Que queremos dizer com fecho de oiro? Assinalar tão-só o momento em que a situação espiritual desta poesia se desvela sem qualquer rebuço ou reserva.

A serpente não é uma novidade nesta poesia, pois já nos surgiu, posto que de forma indirecta, cifrada, n’ A Estrela Rutilante. O escorpião deste livro pode ser lido como imagem da cobra. A presença explícita agora da serpente neste poema de 1962 parece legitimar a leitura então feita. Que leitura? A que vinha da presença do demónio no poema “Regresso ao Oriente”. Foi isso que nos permitiu aproximar a poesia de Manuel de Castro duma tradição espiritual que supõe e estimula o diálogo com o daimon familiar. Pareceu-nos essa aproximação indiscutível nos passos então observados. A situação espiritual desta poesia convoca a tradição demonológica e não parece haver modo de lhe fugir no seu estudo. Não cremos que este novo poema acrescente muito ao que então se viu. É por isso que ele é menos uma proposição do que uma conclusão. Por um lado confirma a importância da demonofilia, já que a serpente é desde o Bereshit hebraico, o ‘Génesis’ bíblico, a mais antiga figuração do demónio; por outro, ajuda a iluminar a situação deste, através da sua personificação animal e ontológica, na poesia de Manuel de Castro.

Ensaie-se então este esclarecimento, tentando compreender a serpente que agora surge. Comece-se pelo título. Serpente hibernal significa a cobra que hiberna, que entorpece na estação fria; a serpente hibernal é pois a cobra durante o inverno. Porquê o inverno? O inverno é a retracção da vida; a hibernação o sinónimo de exílio. A serpente hibernal é pois a serpente exilada, que esconde ou perde alguns dos seus poderes essenciais. É possível que esta perda de poderes só possa ser entendida a partir do Bereshit. Neste primeiro livro do Pentateuco, onde se desfia a história da criação do mundo e da humanidade no Jardim do Éden, é conhecida a importância da intervenção da serpente e a ela voltaremos em breve. Para já o que nos interessa é o passo final (Gn. 3, 14) em que o demiurgo, o criador, o Iavé do Antigo Testamento, lança o veredicto sobre a serpente: Pois que fizeste isso sê maldito entre todos os animais selvagens e domésticos! Caminharás sobre o teu ventre e comerás pó todos os dias de tua vida! Isto quer dizer que a serpente antes do momento da maldição não estava obrigada às duras penas – comer pó e arrastar-se sobre o ventre – a que então é condenada. A serpente ulterior à maldição, a de hoje, é a serpente hibernal, cujo movimento de hibernação, a trajectória para a solidão, é magistralmente orquestrado na segunda estrofe do poema de Manuel de Castro.

De qualquer modo a queda hibernal até ao interior último da Terra é consequência dum acto anterior, do maior significado, a transgressão da primeira grande proibição a que vida estava obrigada pelo seu criador – não tocar na árvore do conhecimento. Não conhecemos hoje os poderes da serpente anteriores à maldição de Iavé mas podemos tirar quais eram pela maldição que sobre ela caiu. Se é obrigada a rastejar é porque antes não rastejava; se é obrigada a comer poeira é porque antes não a comia. A palavra hebraica para serpente, saraf, sortilégio, maravilha, é também a palavra que está na origem da palavra serafim, a ordem angélica primordial. Logo a serpente antes da maldição era um serafim de asas, o que de resto é concorde com a situação de satã na teologia hebraica – potência angélica que se rebela e abjura no momento da criação do homem.

O esplendor primitivo da serpente importa para se compreender o que significa a sua hibernação mas é também indispensável para se perceber o que se passou no momento da sua aparição ao primeiro casal. Uma coisa é segura: é na posse do seu primitivo esplendor, é segura de todos os seus primitivos poderes, que a serpente surge no Éden – alada pois como potência angélica que era. A condenação de Iavé, a hibernação no pó, é posterior ao episódio da árvore. Na explicação judaico-cristã o que está em jogo é da parte da serpente um crime de ciúme pela humanidade, ciúme que a leva à revolta apóstata, e da parte de Eva e de Adão um crime de desobediência. O Iavé do Antigo Testamento sai ileso da história. Todavia é ele que proíbe, é ele que ameaça, é ele que amaldiçoa, é ele que quezila e se enfurece, é ele que castiga. Tudo por causa duma árvore, a do conhecimento, a que ele não impede apenas o acesso mas associa um castigo – nada menos do que a morte, até então desconhecida, morte não só dos prevaricadores mas alargada a todos os seres inocentes do jardim. Convenhamos que este Deus é tudo menos bondoso e equitativo.

Um dos interesses do gnosticismo de Alexandria é a tentativa de encontrar ao criador do Antigo Testamento um lugar mais consentâneo com as suas acções, dando assim um contributo para a superação da letra rígida da primitiva religião revelada, sobre a qual a palavra de Lucrécio, tantum religio potuit suadere malorum (De rerum natura, livro I, 101), é tragicamente profética. Um Deus que começava por proibir e logo depois passava ao rigor do castigo último, introduzindo a morte na vida, só podia merecer a maior desconfiança. A visão que os gnósticos deixaram desse criador é a dum carrasco maldoso, cheio de caprichos e armadilhas, que se compraz no mal que faz, arranjando sempre novos e mais perversos motivos para o justificar. Proíbe, ameaça, amaldiçoa, ira-se, castiga, condena e, nódoa máxima, introduz a morte (a fagocitose) no seio do ciclo vital. Em contraponto com esta posição tenebrosa, a atitude da serpente original, a serpente emplumada, a serpente estival, alada e esplêndida, potência seráfica que pretende transgredir a proibição, merece atenção da parte dos gnósticos. O sentido dessa transgressão ficou reduzido nos textos que hoje temos à ideia do ciúme e da desobediência. Na verdade outro seria o seu sentido inicial, muito mais profundo. Daí a necessidade de recuperar esse momento primordial em que o serafim ofídico pretende ensinar à humanidade um segredo que reside na árvore do conhecimento e que depois se perde por causa do castigo. A relação da serpente com o homem torna-se assim a matriz de toda a iniciação e de todo o conhecimento essencial. Em vez duma encarnação do mal, a serpente aparece nesta visão como a portadora da revelação, o messias salvador. A sua luta contra as interdições e as ameaças de Iavé é indispensável, pois este ameaça, mesmo antes do pomo, aviltar a vida com a morte – esta, sim, o mal. Ora quem possui a morte e institui a fagacitose é o criador, não a serpente.

A situação espiritual da poesia de Manuel de Castro supõe a relação e até a aliança do homem com a serpente, a serpente original e estival, a serpente voadora, que tem um segredo essencial à humanidade. Tanto a serpente como o homem sofreram duro castigo em momento decisivo do seu diálogo por intervenção dum demiurgo severo e intolerante; serpente e homem têm assim um destino comum e próximo. O homem sobreviveu à superfície, ignorante, cego, violento, homicida e necrófago. A serpente por sua vez obscureceu o seu antigo esplendor de serafim, perdeu o seu voo, arrefeceu o seu ígneo calor; não teve outro remédio senão esconder-se no interior vital, hibernar no frio do útero terreno, contorção ondulante que o poema de Manuel de Castro exara de forma magistral. Este grande poema de 1962 é assim o registo da história espiritual da serpente. A serpente hibernal não é senão a que foi despida do seu primitivo esplendor. Mas ao invés do que se passou com a humanidade, que fora do Éden esqueceu o estado glorioso que outrora conheceu, a serpente não perdeu a sabedoria primordial que possuía. No seu seio, mesmo degradado e rastejante, ficou inscrito o segredo original que conhecia no Éden – sinal este do supra-cosmos que desconhece o absurdo da fagocitose.

O poema de Manuel de Castro, porventura o mais perfeito que se escreveu em portuguesa língua sobre o ofídio, formula a ambivalência do valor da serpente. Despojada do seu primeiro esplendor, ela oculta-se no recôndito; aí, no lado oculto, faz-se guardiã do segredo essencial da vida, dessa que era anterior à violência da fagocitose. A serpente hibernal de Manuel de Castro é por isso a maga, reservada, escondida, sábia, envolta em si, qual cobra Ouroboros mordendo a cauda. A ocultação, tão crucial afinal no movimento do poema, é o preço que a serpente tem de pagar para preservar a chave do conhecimento original, memória viva do supra-cosmos que desconhece a tragédia da fagocitose. Mesmo no exílio gelado, mesmo sob forma rastejante, mesmo mordendo pó, a serpente continua a ter no seio a chave preciosa que desfaz a hecatombe do devorismo e da morte que um deus violento decidiu inscrever no mundo. É por isso que o poeta diz no fecho do poema que a serpente, que é breve, vagarosa, suave, guarda na sua mutação o gesto sem tempo/ isolado, perfeito, único.

A via espiritual de Manuel de Castro é exigentíssima e mostra uma cultura rara, difícil mesmo de conceber em rapaz sem qualquer formação académica, que em 59 tinha apenas 25 anos. Parece fora de dúvida, a partir deste conjunto de poemas, que encontram o seu hipotético fecho no poema de Março de 1962, que a sua via supõe a gnose ofita, de que se deixaram atrás breves considerações. Também as cosmologias ofídicas de Peráticos e Setianos alexandrinos são determinantes para a formação da sua visão. Pergunta-se: como acedeu Manuel de Castro no Portugal da década de 50 do século XX, com pouco mais de 20 anos, a tais obscuras cosmologias? A pergunta é a mesma que se faz para a cultura védica, para o bon tibetano, para a poesia de Milarepa, para o véu de Ísis.

A situação espiritual desta poesia está porém esclarecida. Não restam dúvidas que ela propõe a via do lado esquerdo, dita também da mão esquerda, via em que o diálogo com a serpente, e com o que ela significa, surge como indispensável ao destino e ao progresso espiritual da humanidade. Para iluminar esta via reputamos valioso o recurso à leitura de “Abak, Poema para a Mão Esquerda”, escrito já na Alemanha, em Março de 1965, e que pertence por desenvolvimento à linhagem que se inicia com “Varuna” e evolui com A Estrela Rutilante. Arte bruta e espontânea, obra automatista de expressiva perfeição – Abak humanitário/ vencedor das quatro lotarias divinas/ infatigável organizador de patronatos católicos/ escova de dentes hebdomadário e ao domicílio/ inigualável representante de salmão fumado –, o poema pratica uma activa experiência psíquica, que se institui como pantomina burlesca, teatralização da mão esquerda, que não é senão a via poética, ao modo de Milarepa, com a sua ritualização sublime da vida.

 

 


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.
 

 


LUIZ SÁ (Brasil, 1907-1979). Nosso artista convidado. Caricaturista brasileiro, criador dos personagens Reco-Reco, Bolão e Azeitona que, durante anos, apareceram na revista infantil O Tico-Tico. Foi também responsável pela criação de uma série de curtas de animação que ficou perdida por anos, As Aventuras de Virgulino. Seu desenho é caracterizado pelo uso quase exclusivo de linhas curvas, tendo quase todos os seus personagens os rostos bastante arredondados. Por volta de 1950 Luiz Sá muito contribuiu ilustrando panfletos educativos e relacionados com a saúde publicados pelo então Ministério de Educação e Saúde no Rio de Janeiro, como uma ilustração abaixo do texto “Quem come a galope, o intestino entope”. É um dos mais originais, significativos e emblemáticos artistas de toda a história do desenho de humor nacional, tendo sido o primeiro cartunista brasileiro com características de artista popular a conquistar visibilidade nacional. Desde os primeiros desenhos publicados ainda na imprensa cearense em 1927, passou pelos cartuns, ilustrações e histórias em quadrinhos produzidos para os mais diversos meios a partir de 1930.

 



Agulha Revista de Cultura

Número 219 | dezembro de 2022

Artista convidada: Luiz Sá (Brasil, 1907-1979) 

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022

 






                


 

∞ contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

 

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário