sábado, 9 de abril de 2022

FLORIANO MARTINS | Max Harris e os pinguins mais irados da terra

 


Ivor Francis foi um pintor australiano nascido na Inglaterra em 1906. Tendo vivido a maior parte de sua vida na Austrália, ali conheceu, às vésperas de 1940, o jovem poeta Max Harris, atraído por seu envolvente ânimo surrealista. A amizade de ambos foi bastante frutífera. Francis é considerado o primeiro artista surrealista australiano. Max Harris, em 1941, cria a revista Angry Penguins, de capital importância para a entrada da Austrália na modernidade e consequente difusão do Surrealismo na Oceania. Em 1942, ao lado de alguns pintores amigos, Ivor Francis realizou a primeira grande exposição de arte modernista do país. É possível mencionar que a importância de ambos, sobretudo de Max Harris, seria algo equivalente à contribuição de Roland Penrose (1900-1984), este último no tocante ao surrealismo na Inglaterra. No entanto, não houve nunca um encontro entre Roland e qualquer um dos dois australianos. Mesmo em um livro tão criterioso e revelador quanto 80 anos de surrealismo 1900-1981, de Penrose, não há referência à presença australiana. Mesmo nomes essenciais nas artes plásticas, como Sidney Nolan (1917-1992) e James Gleeson (1915-2008), não encontraram ambiente relevante fora de seu país para a circulação de suas obras. Absurdo ainda maior é que mesmo na Austrália seja insuficiente, para dizer o mínimo, e em alguns casos, como o de Max Harris, seja mesmo inencontrável qualquer menção àquela geração.

Outro expressivo pintor surrealista foi Eric Thake (1904-1982), cuja tela Archaeopteryx compartilha, em 1941, com James Gleeson, o prêmio principal da Sociedade de Arte Contemporânea de Melbourne. Homenagem a Magritte, esta obra de Thake trazia já a marca de um surrealismo engenhoso. Thake, também era gráfico e fotógrafo, e posteriormente se aproximou do letrismo e do mundo pop. Os dois artistas, Thake em Melbourne e Gleeson em Sidney, foram os grandes semeadores de uma expansão de horizontes na criação artística de seu país. E a base dessa expansão era justamente dada pelo Surrealismo, pela leitura de uma paisagem inóspita e misteriosa como parte de um sonho que representa a própria vida. Essa fecundação de estranhezas, que encontramos, por exemplo, em Yves Tanguy ou Salvador Dalí, era o fluxo germinativo do que havia de mais profundo em termos de arte na Austrália naquele momento. E me inclino por dizê-lo que aí se localiza o que de mais importante até hoje se produz na região.

Recordemos ainda dois momentos inestimáveis da presença sempre conturbada do Surrealismo na Austrália. Em 1949 o artista Bernard Boles (1912-2001), ao ser rejeitado pela Sociedade Artística Vitoriana, em Melbourne, que considerava irrelevante a sua comunhão, através da pintura, de imagens biomórficas marinhas tão características do Surrealismo, amarrou duas de suas telas na cerca externa da mostra e passava horas externando suas ideias surrealistas aos passantes. Anos depois, é publicado o livro The art of Rosaleen Norton (1952), de imediato tendo sido seu editor acusado de obsceno. Sobre Rosaleen Norton (1917-1979) também recairia posteriormente a acusação de realizar missas negras e envolver-se em atos sexuais antinaturais. Graças à intensa criatividade pagã que marca a sua obra plástica, Norton descrevia parte de sua criação como originada de transes auto-hipnóticos, o que marcava sua afinidade com o Surrealismo. O conservadorismo na Austrália acabou por vincular qualquer atividade surrealista à prática de obscenidade ou profanação.

As trilhas históricas desse surrealismo foram casual ou sistematicamente apagadas? Talvez uma leitura da cronologia de vida e obra de Max Harris nos ajude a compreender melhor. Ainda é possível encontrar em livrarias australianas livros de arte em que há capítulos dedicados à pintura de Sidney Nolan ou James Gleeson, porém sem que o texto se detenha demasiado em sua íntima relação com o surrealismo. O caso de Max Harris é o que, no entanto, mais me preocupa. Exceto por uma edição em pdf (www.nla.gov.au/sites/default/files/theangrypenguin.pdf) que circula na Internet, uma antologia de sua poesia, não encontrei livros seus nas livrarias de Sidney, nem mesmo sua obra se inclui em destacadas antologias panorâmicas da lírica australiana do século XX.

Em 1941 se reúnem Geoffrey Dutton (1922-1998), Donald Kerr (1919-1942), Paul Pfeiffer (1916-1945) e Max Harris (1921-1995), sob a batuta deste último, em torno da criação da revista Angry Penguins, cuja associação clara, se a encontrávamos afim de movimentos como o simbolismo e o surrealismo, também era possível perceber o intuito de superação, graças a uma irreverência que navegava pelas águas de uma turbulenta insularidade. Geoffrey Dutton possui uma poética marcada pela versatilidade que o levou a escrever poemas, romances, ensaios, críticas de arte e biografias, destacando-se ainda pela publicação de um revelador volume de sua correspondência com Max Harris, The Vital Decade: Ten Years of Australian Art and Letters (1968). A passagem de Donald Kerr e Paul Pfeiffer pela experiência editorial e artística dos angry penguins foi bastante curta, pois ambos foram mortos em combate ao defender a Austrália durante a Segunda Guerra Mundial.


Max Harris nasceu em Adelaide em 1921. Entre Adelaide e Melbourne fez sua residência de vida inteira, sendo impressionante seu conhecimento sempre atualizado de tudo o que se passava na Europa naquele momento. Essencialmente poeta, tinha 19 anos quando funda a revista Angry Penguins, que reuniu em suas páginas autores como Dylan Thomas e Gabriel García Márquez, James Dickey e Harry Roskolenko, ao lado de notáveis revelações australianas. Os três primeiros números de Angry Penguins foram patrocinados pela mãe do poeta. A publicação da primeira edição causou certa agitação no meio local, o que despertou a atenção de John Reed (1901-1981), um dos mais meritórios editores de arte da Austrália. Reed foi a Adelaide conhecer Harris e lhe propôs ir morar em Melbourne. Os dois passaram a editar conjuntamente a revista. Reed & Harris tornou-se expansiva companhia editorial, tratando não apenas de difundir a arte local como também de cumprir a necessária missão de levar nomes destacados da Inglaterra e da América para o país. Logo a revista se envolve no escândalo em torno dos poemas de Ern Malley – como veremos adiante. Max Harris retorna a Adelaide, aceitando a oferta de uma velha amiga, Mary Martin (1915-1973), para que ambos cuidassem de uma livraria que levava seu nome. Max aceitou a proposta da amiga e pouco depois compraria a participação dela no negócio, vindo a se tornar um livreiro de destaque. Como recorda sua biógrafa, Betty Snowden,

 

ele foi pioneiro na venda de livros remanescentes, organizou descontos regulares em livros, dirigiu um serviço de pedidos pelo correio de grande sucesso e produziu uma revista mensal, Mary’s Own Paper (1950-61), que divulgou seu estoque e comentou questões sociais e culturais locais. À medida que o negócio crescia, ele montou mais livrarias em Melbourne, Sidney e Brisbane. Significativa também foi sua campanha determinada a quebrar o domínio britânico e americano sobre as editoras sob o Acordo de Mercado Tradicional. Com o fim do acordo, em 1976, ele conseguiu comprar e lançar livros americanos e britânicos na Austrália a preços mais baixos.

 

O poeta, com o passar do tempo, recolheu-se em um retiro rural. Morreu em 1995 por conta de um câncer na próstata. Há menções de que seja um dos maiores poetas líricos da Austrália, assim como também momentaneamente ficou conhecido como o pai do modernismo nas artes deste país. No entanto, a realidade é bem outra, e seu nome caiu hoje em um complexo e injusto esquecimento. Sua bibliografia inclui os seguintes títulos: The Gift of Blood: Poetry (1940), Dramas From the Sky (1942), The Coorong and Other Poems (1955), The Circus and Other Poems (1961), A Window at Night (1967), Poetic Gems (1979) e a antologia The Angry Penguins – Selected poems (1996). Também é autor de um romance: The Vegetative Eye (1943), além dos estudos críticos: The Angry Eye (1973), Ockers: essays on the bad old new Australia (1974), The Unknown Great Australian and Other Psychobiographical Portraits (1983) e The Best of Max Harris – 21 Years of Browsing (1986).

O casal John e Sunday Reed – ele era advogado e ela uma patrona das artes –, em 1935, adquire uma velha fazenda em ruínas nas planícies do rio Yarra, logo reformada e batizada como Heide, espécie de homenagem à Escola de Heidelberg de artistas relevantes na Melbourne de finais do século XIX. O casal abriu as portas para um grande centro boêmio e artístico, compartilhado por escritores e artistas que para ali afluíram movidos pelo cultivo de uma educação ante-burguesa e influenciados por ideias anarquistas. Dentre eles se encontravam Arthur Boyd, Albert Tucker, John Perceval, Sidney Nolan e Danila Vassilieff, este último de origem russa, pintor e escultor cuja obra rompia com os estudos preparatórios clássicos ao ser criada em seu cavalete instalado pelas ruas expressando a vitalidade urbana em seu fluxo natural.

Ao Círculo Heide – como aquele momento ficou conhecido – logo se integrariam músicos e outros artistas, dentre eles a única mulher a compartilhar as ideias do grupo, Joy Hester (1920-1960), uma das mais irreverentes criadoras australianas, em especial graças a seus retratos psicológicos expressos em um estilo ousado e provocativo, abordando temas como sexo e morte. Hester alcançou um equilíbrio entre a simplicidade do traço e a complexidade sutil de seu testemunho. Ela mesma diria, em 1947: Tenho pensado muito ultimamente em quantos mundos existem em espaços muito pequenos e como cada pessoa é realmente um mundo para si mesma, desconectado de qualquer pessoa ou coisa. Hester explorava a sexualidade feminina com uma intensidade visual que nos leva a viajar pela emoção corporal em sua mais íntima vertente física, com forte influência do expressionismo e do surrealismo, porém com um acento singular que a qualificava como uma das mais altas representantes da vanguarda em seu país. Igual intensidade, que chegava a requintados traços perturbadores, encontramos em seus poemas, que ela em muitos momentos os apresentava ao lado dos desenhos, como uma cumplicidade impressionante e sensual.

Sua obra, no entanto, foi bastante marginalizada, e curiosamente lemos, em 2001, em artigo assinado por Michael Fitzgerald, onde destaca que

 

o que marginalizou Hester foi em grande parte sua escolha de meio. Como aluna da National Gallery School, ela rapidamente descobriu que a pintura matava os impulsos nervosos que eletrificavam sua arte. Pelo resto da vida, dedicou-se quase exclusivamente ao desenho - com pincel e tinta no papel. Foi uma escolha que selaria seu destino imediato: suicídio artístico. E uma situação bem resumida em Fun Fair, c. 1946, em que a figura de uma mulher desmaia diante de uma máscara nolanesca de Ned Kelly. A arte australiana favoreceu homens como Nolan, que fizeram grandes declarações sobre a identidade nacional na tela em tinta.

 


Por mais inaceitável que pareça, é um reflexo real da sociedade australiana, o que foi reiterado por vários críticos. Porém Joy era de todo consciente de sua escolha. Veja como Fitzgerald finaliza seu artigo: Quarenta e um anos após sua morte, os desenhos de Hester ainda sugam o oxigênio do ar, fornecendo algumas das imagens mais claras da arte australiana. O tempo todo permanece, para mim, parado, escreveu ela ao poeta Barrett Reid. Para cima e para baixo como um grande lençol branco. Através dela seu pincel dançava mordaz, às vezes com ternura, sempre sombriamente.

Mencionei o escândalo em torno do poeta Ern Malley e aqui reproduzo uma síntese do ocorrido segundo relatado pelos críticos Rex Butler e A. D. S. Donaldson, em seu ensaio O Surrealismo e a Austrália: a caminho de uma história mundial do surrealismo, que publicamos na Agulha Revista de Cultura # 129, março de 2019:

 

Os falsos poemas concebidos pelos ante-modernistas Harold Stewart e James McAuley eram, claro, imitações de colagens surrealistas voltadas contra Max Harris e sua revista Angry Penguins, àquela altura sediada em Heide. O episódio é tão conhecido porque foi usado por historiadores da arte para demonstrar a inevitabilidade dos Antipodeans, ou seja, o surrealismo é visto como mero precursor da rebelião realista. O caso também é relatado como para sugerir cautela por polemistas como Bernard Smith, que o trata como exemplo do que não fazer, um desvio incorreto do desenvolvimento da arte australiana. Mas o sucesso artístico e a duradoura influência dos poemas em si – por mais que tenham sido escritos de má-fé – revelam sem querer aquilo que os australianistas jamais conseguiram. Ironicamente, foram as melhores coisas que Stewart e McAuley jamais escreveram e foi demonstrado, contra o que declaravam os próprios autores, que são obras de arte cuidadosa e deliberadamente construídas.

 

Angry Penguins foi o notável porta-voz das ideias que fervilhavam no Círculo Heide e marcou toda uma época, repleta da mais intensa iconoclastia, onde claramente se encontravam a influência da guerra e algum fervor comunista, embora a afinidade maior viesse da filosofia anarquista do crítico inglês Herbert Read. O cineasta Len Lye (1901-1980), de origem neozelandesa, ao passar uma época em Sidney, em especial interessado na arte dos maoris, aborígenes australianos, copia à mão o livro Totem & Tabu, de Freud, em uma livraria dessa cidade. As fontes essenciais do Surrealismo foram sendo tecidas de muitas formas. Graças a esse entranhado de fios a Austrália foi descobrindo uma visão singular e profunda do movimento. Ainda segundo a dupla Rex Butler e A. D. S. Donaldson, no mesmo estudo, há que destacar a realização de algumas exposições, pois

 

foi por meio das primeiras exposições da Contemporary Art Society (CAS) que o público australiano teve seu primeiro envolvimento prolongado com o surrealismo. Formada por artistas de Melbourne e, depois, de Sidney em resposta à fundação da Australian Academy of Art, financiada por Robert Menzies, as primeiras exposições anuais da CAS foram dominadas pelo surrealismo. A mostra inaugural de 1939 na National Gallery of Victoria exibiu obras de Eric Thake, Sidney Nolan, Albert Tucker e James Gleeson. A segunda, em 1940, realizada tanto em Melbourne quanto em Sydney, apresentou Thake, Nolan, Gleeson, Max Ebert (pseudônimo do artista Herbert McClintock) e Joseph Tierney (pseudônimo do artista e crítico Bernard Smith). E a terceira, de 1941, manteve a proeminência do surrealismo. Muitos dos mesmos artistas nela estavam (Cant, Nolan, Graham, McClintock, Oswald Hall), agora acompanhados de Geoff e Dahl Collings, Loudon Sainthill, o pintor desconhecido Benezra Robert e a escultora desconhecida Lyalla Benezra – imaginamos que talvez sejam, também, pseudônimos. A terceira mostra ganharia a chamada “As imagens que chocaram Sidney” no Sunday Telegraph –, mas na verdade já o vinham fazendo há anos. O que importa é que, na falta de possibilidades de exposição de arte avançada na Austrália, essa repetição de nomes deixa claro que as Anuais da CAS permitiram o estabelecimento de carreiras artísticas duradouras.

 

Essa crescente expansão de horizontes dada pelo Surrealismo e a consequente aceitação de todo um ambiente de vanguarda na Austrália acabou propiciando uma reação desleal da parte de dois personagens inexpressivos, Harold Stewart e James McAuley, o conhecido caso Ern Malley. Um dia em 1944 Max Harris é surpreendido na redação de Angry Penguins com uma carta de Ethel Malley em que descrevia o falecimento de seu irmão, Ern, no ano anterior, e comentava acerca de poemas por ela encontrados, dos quais anexava alguns para avaliação. Segundo a irmã, Ern sofria de uma síndrome de Graves, provocada pelo mal funcionamento da tireoide, o que o teria levado à morte. Max ficou fascinado pelos poemas e os mostrou a seu sócio, John Reed, e logo a algumas outras pessoas, todas elas compartilhando a mesma opinião, o que lhe fez escrever a Ethel solicitando a íntegra dos originais e manifestando seu interesse em publicá-los na revista. A biografia suscinta de Ern Malley informava de seu nascimento em Liverpool em 1918 e que seu nome completo era Ernest Lalor Malley. Com a morte em 1943 o corpo de Ern foi cremado. Max Harris estava mesmo interessado em sua poética, cujo tom vanguardista vinha acompanhado de forte expressão existencial. Na edição de Angry Penguins em que são publicados os poemas, há uma apresentação de seu editor, de onde recorto a passagem:

 


Quando o pensamento em certo nível e com certa intenção se descobre poesia, descobre também que o dever, afinal, existe: o dever de um ato público. Esse dever é totalmente cumprido colocando a caneta no papel. Ler o que assim foi feito é outra coisa e implica outra ordem de lealdade. O dever do poeta, acredita Malley, é a comunicação da poesia. O ato de criação é o ato social do poeta e identifica poesia com comunicação. Além disso, o dever pode existir para o homem, mas não para o poeta. A poesia não deve nada além de sua própria existência à sociedade.

 

A recepção da poesia do fictício personagem Ern Malley – uma mostra de 16 poemas surrealistas acidentalmente valiosos – foi surpreendente, o que confirmava a revelação de um grande poeta. Tudo parecia dar os melhores frutos, quando uma jovem jornalista do Sunday Sun, em Sidney, relata a seus editores uma conversa que teve com Harold Stewart em que este confessa haver escrito os poemas, juntamente com seu amigo, James McAuley, segundo ele uma farsa empenhada em lançar suspeita sobre a credibilidade de Max Harris. Tess van Sommers, a jornalista, tinha em mãos alguns rascunhos a lápis dos poemas e o jornal acabou interpretando o fato como uma fraude do próprio Max Harris, acusado de forjar um poeta, e o escândalo assim tomou grande proporção, um festim de mídia e tribunais – também a Igreja Católica aproveitou-se do tema para denegrir a imagem de editor de Angry Penguins –, Max sendo acusado de desonestidade e obscenidade, havendo inclusive um julgamento cuja sentença que previa prisão acabou se convertendo no estabelecimento de uma multa.

A ironia do caso é que os autores da farsa, dois poetas medíocres, ao escreverem movidos por certo automatismo, empregando técnicas de colagem, nonsense, livre associação e, como eles mesmos observaram, a presença inúmera de versos intencionalmente ruins, totalmente desprovidos de mérito literário, acabaram por criar um conjunto de poemas com excepcional coesão poética, que chegaram a ser elogiados por Herbert Read e T. S. Eliot. De qualquer modo, o escândalo foi a grande oportunidade que a sociedade australiana, no fervor de seu conservadorismo, encontrou comprometer aquele momento da vanguarda.

Em 2012 Tijana Parezanović publicou um extenso artigo na revista SIC, Croácia, onde relatava o caso:

 

Uma farsa literária não é uma prática desconhecida, e a perpetrada por McAuley e Stewart não parecia tão assustadora, embora tenha recebido bastante atenção internacional. The New York Times, The New Yorker, Spectator e Times, por exemplo, informaram seus leitores sobre o evento, e a imprensa australiana estava decididamente do lado dos fraudadores enquanto publicava extensivamente sobre o andamento da farsa. Duas coisas se seguiram, no entanto, que parecem mais chocantes do que a própria farsa. Primeiro, apesar da admissão de McAuley e Stewart de que seus poemas eram sem sentido, um grupo de artistas e críticos reunidos em torno de Max Harris insistiu em afirmar que eles realmente tinham um valor literário distinto. O mais persistente foi Sir Herbert Reed, cujo apoio chegou em uma carta da Inglaterra: todo o fenômeno da paródia é relevante [...] o parodista tem uma liberdade excepcional, e por causa dessa liberdade pode acabar enganando a si mesmo. E segundo, a publicação de O Darkening Ecliptic resultou nas acusações de obscenidade levantadas contra Angry Penguins e seus editores pela Polícia do Sul da Austrália.

 

Levado à justiça, o próprio julgamento foi uma farsa, onde um debate literário ocupou o lugar de qualquer discussão sobre e ilegalidade do caso. E debate literário regido pelas mais abomináveis formas de preconceito, e com a mal disfarçada intenção de comprometer o Surrealismo. Como recorda a filha do poeta, Samela Harris, Max Harris

 

foi ridicularizado pelos superconservadores de Adelaide. Ele havia sido enganado por dois soldados sarcásticos tentando zombar da literatura modernista, como Dylan Thomas, que estava sendo publicado em  Angry Penguins , o periódico literário produzido por Max e seus colegas modernistas originários da Universidade de Adelaide. Eles representavam tudo o que era temido e desprezado pela velha escola.

 

E tudo isto motivado pelo que tão bem observou Betty Snowden, ou seja, o papel proeminente de Harris na defesa do modernismo fez dele um alvo para aqueles que não gostavam dos novos rumos da literatura. O caso marcou a época, porém não logrou de todo a mácula que seus autores buscavam. Max Harris deixou seu nome como o ousado artífice da modernidade, a vanguarda audaciosa das artes na Austrália. Isto lhe é impossível apagar. Foi notável poeta, livreiro e editor. Além de Angry penguins, dirigiu o periódico Ern Malley’s Journal, 1952, ao lado de John Reed e Barrett Reid, e em 1961 funda a Australian Book Review. Em 1973, o empresário Rupert Murdoch, proprietário do jornal The Australian, onde Max Harris manteve por mais de uma década uma coluna polêmica, disse que toda sociedade precisa de um Max, para identificar seus sucessos, bem como seus fracassos, suas esperanças perdidas e suas causas perdidas. E também para tirá-lo de sua presunção e hipocrisia, para agir como um catalisador e irritante.  Em todas as áreas o poeta foi um dínamo e exemplar, pois graças a ele o Surrealismo ganhou importância visceral na cultura e nas artes na Austrália.

Na tradução de Allan Vidigal, concluo essas notas reproduzindo três poemas de Max Harris.

 

R.S.V.P.

 

Para Paul Éluard

 

Poderei te conhecer, irmã distante do tempo,

vestida de verde,

olhando o canto esvaziado dos trens

a lançar fúria e lixo contra as luas?

Estive

prendendo entre os dedos a transição

da fumaça, lançando aos teus pés o pedido

de clemência, o desejo cortesão

de servir a tua mesa

e levar teus pratos até os lábios negros de Júpiter, grávido

e escaldado de excremento.

Que belos dias, estes, em que o amor lambe as areias da manhã.

Ama a garçonete dançarina que fuma e fuma

para que eu esconda a chama do passado

dentro da manga

e pareça um grande mago

arrastando esperanças por aí

numa longa fieira de pérolas particulares.

 

 

O PÁSSARO

 

O pássaro empoleirado no ramo do meu olho

é chamado de amigo da árvore

e seus pés delicados dão forças ao tronco

 

enquanto ele canta, perverso.

O pássaro que cantarola para a seiva

e as grutas de vermes escondidos

é o desejo que faz troça da terra cínica

e dos corações lacrados.

 

O pássaro empoleirado no ramo do meu olho

bicou o nervo da retina

trouxe o tormento da chuva e o frescor do sangue

ao longo da curva do coração.

 

 

NECROMANCIA

 

Sete são as tentações,

Nove as horas do dia,

Dois a distância entre nós

E uma só a via.

 

Verde a ideia em que há amor,

Branca a ideia que divide,

Negra a sombra que nos julga

Pela destruição da nossa lide.

 

Um sinal nos basta para viver,

Uma forma traçada no ar;

Longa a linha de tempo que seguimos.

Levará a algum lugar?

 

 


FLORIANO MARTINS | Poeta, editor, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo), e dirigiu a coleção “O amor pelas palavras” (2017-2021), parceria, de circulação exclusiva pela Amazon, entre ARC Edições e Editora Cintra. A partir de 2022 a coleção, embora mantendo seu nome, passa a ser coproduzida por ARC Edições e a revista Acrobata, destinada então à veiculação gratuita de livros em formato pdf. Curador dos projetos Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata, e Conexão Hispânica, da Agulha Revista de Cultura.

 


JOE HESTER | (Austrália, 1920-1960). Foi uma intrigante artista do desenho, cujo traço automático acentuava a expressão dos rostos por ela revelados. Parte considerável da crítica entende que sua melhor fase data de 1948-9 quando fez inúmeros desenhos de seu amante. Contudo, a impulsão selvagem de sua mão trouxe à luz imagens tanto assombrosas, quanto as delirantes figuras da série “Getsêmani” (1946-47), quanto fascinante, no caso da luxúria encontrada na série “Os Amantes” (1956-58), ou mesmo cativante como os desenhos maiores de sua fase final, em que vemos crianças com os olhos esbugalhados ao lado de seus cães. Ao lado de James Gleeson, Sidney Nolan, Arthur Boyd e outros, Joe Hester se encuentra entre os grandes artistas australianos do século passado.

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 07

Número 206 | abril de 2022

Artista convidada: Joy Hester (Austrália, 1920-1960)

Tradução: Allan Vidigal

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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