Disse
Marcel Schwob que "o livro que descrevesse um homem em todas as suas
anomalias seria uma obra de arte". Decerto tinha em mente uma outra ideia
que defendia o dramaturgo Henrik Ibsen, a de que "viver é combater contra
os seres fantásticos que nascem nas câmaras secretas de nosso coração e de
nosso cérebro". Schwob buscou com todas as suas forças a revelação
assombrosa do que ele próprio chamara de "um caos de traços humanos".
Livros
como Vidas imaginárias e A cruzada das crianças –
ambos publicados em 1896 –, importam sobremaneira pela confirmação de uma
estética que estabelecia um diálogo vital entre arte e imaginação. Schwob
repudiava todo instinto de imitação. Sua aventura exaltava o abismo, o profundo
mergulho no desconhecido para dali retornar o homem, senão curado de si mesmo
ao menos fortalecido pelo reconhecimento de sua perversão intrínseca.
Nascido
em Chaville em 1867, o francês Marcel Schwob foi um dos mais consistentes
autores vinculados ao Simbolismo. Desde cedo, na infância transcorrida em
Nantes, conviveu com dois outros idiomas: o inglês e o alemão. Tinha por tio um
bibliotecário e orientalista bastante prestigiado, Léon Cahun, que lhe auxiliou
em muitas de suas traduções de Catulo, Petrônio e Anacreonte. O convívio com o
tio e os milhares de livros, aliado à sua contagiante inquietude, invocaram os
impulsos da imaginação, levando-o a escrever desde cedo e já de maneira
singular.
Leitor
voraz e austero, logo trata de aprender outros idiomas, entre eles o grego e o
sânscrito. Escrevendo, sem distinção hierárquica, poemas, contos, crônicas,
ensaios e a eles acrescentando suas inúmeras traduções, Schwob vai despontando
rapidamente como grande expressão de um período dado como decadentista. Sua
residência em Paris revela fortes amizades e uma trilha favorável de ações.
Tornam-se regulares suas colaborações para dois destacados órgãos da imprensa
parisiense: L’Evénément e L’Echo de Paris. Neste
último, chega a promover escritores mais jovens, a exemplo de Jules Renard e
Paul Verlaine.
Em
1892 publica seu primeiro livro de contos, Couer double, que traz
uma significativa dedicatória a Robert Louis Stevenson. Logo em seguida
surgem O rei da máscara de ouro (1893) e Le livre de
Monelle – livro que será reeditado em 1903 sob o título La
lampe de Psyché –, publicações que são recebidas pela crítica como
obra de um escritor já maduro, apesar de seus incompletos 30 anos. A edição
de Mimes (poemas) é considerada uma pequena obra-prima. Passa
então a colaborar com o Mercure de France, o mais importante
veículo de imprensa naquele momento. E casa-se com a atriz Marguerite Moreno.
A
partir daí Marcel Schwob começa a influir em todas as instâncias em que se
locomove. A afinidade com o Simbolismo propicia o desenho sugestivo de uma
palavra secreta, vinculando-o aos estudos do Ocultismo e às consequentes seções
dos salões da Rosa Cruz na Paris finissecular. Era considerado o poeta do
maravilhoso, e foi de importância reconhecida para a firmação estética de
autores como Oscar Wilde e Alfred Jarry. Mantém correspondência com George
Meredith e Paul Valéry. A todo momento ressalta seu interesse maior: escrever
um grande livro sobre François Villon. Publica então Spicilège (1896),
série de ensaios já difundidos na imprensa. Contrai uma infecção pulmonar que o
levará à morte em 1905, não sem antes empreender algumas estimulantes viagens
de navio pela península ibérica.
Revendo
a obra de Marcel Schwob vamos encontrar alguns aspectos igualmente fundamentais
e abandonados. Foi um dos mais relevantes tecedores do poema em prosa. A partir
daí mesclou os gêneros, somando à imaginação a reflexão crítica e o sentido de
uma iluminação ascética. Vidas imaginárias e A cruzada das
crianças não fazem senão confirmar o que digo. Le livre de
Monelle acrescenta um componente sensual, que dá à poética de Schwob
uma consciência plena dos principais obstáculos que sua época impunha a toda
manifestação artística.
No
Brasil conhecemos unicamente o Marcel Schwob de A cruzada das crianças,
publicado na década passada pela Iluminuras. Segundo Rémy de Goncourt, trata-se
de um "livrinho milagroso". Schwob acentuou uma característica
baudelairiana dos tableaux-vivants (quadros-vivos),
apreendendo lições do mergulho na história, neste caso com destaque para uma
passagem da Idade Média, redimensionando-as a partir dos poderes da imaginação,
logo em seguida, segundo Jorge Luis Borges, ao prologar uma edição deste livro,
entregando-se "aos exercícios de imaginar e escrever".
Marcel
Schwob não escreveu o "grande livro" que pretendia em relação a
François Villon, mas sim o mais intenso, minucioso e revelador ensaio acerca do
poeta francês do século XV. Fascinava-lhe o que Sérgio Lima situa como
"exaltação do momento", aspecto que iria compor o sentido da
"beleza convulsiva" essencial ao Surrealismo. Villon, neste sentido,
emblemava a ideia de uma negação absoluta da história, semelhante ao
"Lâchez tout" de André Breton ou ao "Larga tudo" de Almada
Negreiros.
A obra
e a vida de Marcel Schwob confunde-se com um momento vertiginoso vivido por
nós. Não exatamente pelo estigma finissecular, mas sobretudo por um acesso de
repetição provocado por um século que não soube lidar consigo mesmo. O século
XX é grosseiramente contraditório. Produziu compreensões fundamentais, ao mesmo
tempo em que não conseguiu aplicá-las. Schwob não cabe aqui senão como uma
sugestão para o indispensável diálogo com o passado.
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Agulha
Revista de Cultura
# 07. Outubro de 2000. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil),
artista convidado desta edição especial de ARC.
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Organização a cargo de
Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado |
Sérgio Lucena
Agradecimentos a Isa
Fonseca
Imagens © Acervo Resto
do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de
Cultura, assim estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO
SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação
editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal
Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de
língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial
apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez
sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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