Ao fundo de todas as coisas, o que melhor se escuta
é o silêncio? Por mais que se creia nisto, o mais provável é que não se perceba
tão bem a sua extensão ou significado essencial. Nosso tempo, por exemplo, está
tomado por uma forma frenética de ruído que se propaga e desdobra de maneira
vertiginosa, absorvendo atributos existenciais que costumam ser imprescindíveis
à compreensão do ser: intimidade e estética. Tais conceitos é que nos permitem
a criação de um estilo de vida, uma maneira singular de estar no mundo. Sem
eles, talvez o melhor a fazer seja cair fora do mundo. Diz o poeta português
Manuel António Pina (1943-2012), em algum poema: “Às vezes, como num sonho, /
vejo formas como um rosto / e pergunto: ‘De quem é este rosto?’ / E ainda:
‘Quem pergunta isto?’” Há duas coisas básicas que um poeta deve fazer em nome
do silêncio: questionar-se e expor a resultante desse embate de forma elegante.
Assim um poeta constrói sua razão de ser, e todo o mundo à sua volta.
Dentro dessa perspectiva do poeta que se envolve consigo e aí percebe o
quanto está arraigado a seu entorno, temos em Manuel António Pina um poeta que
trafega, com notável senso de humor, por entre as vértebras do tempo, captando
as singularidades da sociedade portuguesa, acentuando-lhe pequenos vícios,
provocando prodígios existenciais e discretos entusiasmos. Ele próprio diz que
a poesia age hoje no território de um “sem-tempo”, decerto uma maneira sua de
entender o abismo em que nos encontramos. Melhor que fale o poeta:
“Independente de à poesia pouco mais ser dado dizer do que o silêncio do mundo
(silêncio que é, na língua, abertura ao sentido e sentido aberto), ela pode
constituir uma espécie de epifania sem revelação daquilo que talvez saibamos
sem sabermos que o sabemos”.
A trajetória deste notável poeta envolve algumas dezenas de livros,
tanto de poemas quanto de literatura infantil. De um lado ou outro, os títulos
são bastante sugestivos: O país das pessoas de pernas para o ar (1973), Aquele
que quer morrer (1978), O pássaro da cabeça (1983), Um
sítio onde pousar a cabeça (1991), A guerra do tabuleiro de
xadrez (1985) e Cuidados intensivos (1994), dentre
outros. Em 2003, além das reedições de Os Piratas (novela)
e O Inventão (teatro) – ambos pela Editora Asa -, acaba de
sair a novela Os papéis de K., pela Assírio & Alvim, mesma
editora que publicará Os livros (poesia). No Brasil, está
prevista ainda para este mês a estréia de António Pina, com Nenhuma
palavra e nenhuma lembrança (poesia), pela Cosac & Naify.
Manuel António Pina é um poeta das sutilezas, de uma voragem existencial
que segue um preceito surrealista defendido pelo argentino Aldo Pellegrini, o
de aproveitar a incidência do acaso “para fazer surgir imagens que existiam
latentes em seu próprio espírito”. Consciente de que o homem hoje não pode
invocar senão a si mesmo, arrisca-se a toda forma de diálogo com os excessos da
contemporaneidade. Sua relação paródica com a memória deve ser entendida
juntamente com sua percepção do instante seguinte: “o poeta vê-se cegamente
também como vidente (leitor) de si mesmo, como uma sombra”.
Sendo poeta inteiramente desconhecido do leitor brasileiro, melhor que
comecemos por sua poesia. Depois traçamos a rota de singularidades que tornam
quando menos incompreensível o fato de que as culturas brasileira e portuguesa,
unidas por um mesmo idioma e separadas apenas pelo Atlântico (nosso riachão),
tenham levado a vida a dar as costas uma para a outra.
FM – Em 1992, preparas tua primeira versão de uma poesia reunida,
sob o título: Algo parecido com isto da mesma substância. Tem-se aí
um indicativo da ironia que pontua tua poética. Em 2001, já em uma segunda
versão, suprimes o título, dando ao livro apenas o título: Poesia
reunida. Considerando o título de um livro de 1999: Nenhuma palavra
e nenhuma lembrança, percebe-se um acentuado reforço da ironia. A qual
substância te referes e de que maneira ela propicia a ti um reencontro com a
inocência original?
MAP – Tenho sempre muita dificuldade em falar sobre a minha poesia. E,
por maioria de razão, em responder sobre a substância (o que quer que isso
seja) dela. Provavelmente escrevo poesia para procurar saber disso mesmo. O
título Algo parecido com isto da mesma substância chegou-me,
se me lembro bem, de Nicolau de Cusa. A minha ideia era a de que tudo aquilo,
os poemas que até então tinha escrito, e os que continuo a escrever, eram só
aproximações, tentativas de tocar algo irremediavelmente distante, talvez de
tão elementar e de tão perto, imagens de qualquer coisa inominável tentando
falar no meio de tanta memória. Porque (escrevi-o uma vez num poema), é o infalável que
fala, ou tenta desesperadamente falar, na poesia; pelo menos na minha. A
“inocência original”, dizes tu. Sim. E o silêncio original. Porque temos (eu
tenho) a cabeça e o coração cheios de vozes. Escrevemos decerto com a memória,
mas também contra ela. Em busca de uma improvável voz inicial. Mas como
esquecer? E como nos calaremos? Sem que palavras? Há, dir-me-ás, em tudo isto
uma grande e melancólica ansiedade da influência. Há sim, até onde posso
sabê-lo. Daí a ironia. Mas não passamos a vida (e a literatura) à procura do
nosso rosto, ou de algo parecido com ele? No meu próximo livro, que deverá sair
em Outubro, incluí uma espécie de “arte poética” que talvez responda melhor do
que eu à tua questão: “(Arte poética) Vai, poema, procura / a voz
literal / que desoculta fala / sob tanta literatura. // Se a escutares, porém,
tapa os ouvidos, / porque pela primeira vez estás sozinho. / Regressa então, se
puderes, pelo caminho / das interpretações e dos sentidos. // Mas não olhes
para trás, não olhes para trás, / ou jamais te perderás; / e teu canto,
insensato, será feito / só de melancolia e de despeito. // E de discórdia.
E todavia / sob tanto passado insepulto / o que encontraste senão tumulto, /
senão de novo ressentimento e ironia?”
E ainda as duas primeiras estrofes de outro poema do mesmo livro,
intitulado “Os mortos”: “(Os mortoS) Eu
sei, é preciso esquecer, / desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,
/ os nossos mortos anseiam por morrer / e só a nossa dor pode matá-los. //
Tanta memória! O frenesim / escuro das suas palavras comendo-me a boca, / a
minha voz numerosa e rouca / de todos eles desprendendo-se de mim! / (…)”
Como vês, muito do que escrevo tenta justamente responder a coisas como
as que perguntas…
FM – René Daumal considerava o conhecimento como uma experiência total
do ser. De que maneira se tocam esses aparentemente dois extremos que são a
inocência e o conhecimento? O que isto teria a ver com aquela ideia do Mauricio
Blanchot que entrelaça literatura e ilusão?
MAP – Esses extremos tocam-se, diria Heidegger,
como os cumes das montanhas distantes, isto é, digo eu, no fundo da terra e do
ser. “Saber é esquecer/ e esta é a sabedoria/ e o esquecimento”, escrevi eu uma
vez. A literatura é a ilusão de que esquecer é possível. Mas estamos condenados
à memória, não é? Porque, se calhar, é isso o que somos: memória.
FM – Mas de que maneira, em tua poesia, lidas com a ideia de um mundo
possível?
MAP – Permite-me que te responda, de novo, com
um poema do meu próximo livro (as tuas perguntas arriscam-se a esgotá-lo…):
“Real, real, porque me abandonaste? / E, no entanto, às vezes bem preciso / de
entregar nas tuas mãos o meu espírito / e que, por um momento, baste
// que seja feita a tua vontade / para tudo de novo ter sentido, / não
digo a vida, mas ao menos o vivido, / nomes e coisas, livre arbítrio,
causalidade. // Oh, juntar os pedaços de todos os livros / e desimaginar o
mundo, descriá-lo, / amarrando-me ao mastro mais altivo / do passado. Mas onde
encontrar um passado?”
FM – Há uma edição de tua poesia prevista para este ano por uma editora
brasileira. Dois outros poetas portugueses estão fazendo sua estreia no Brasil
este ano: António Osório e Ana Marques Gastão. Como a poesia brasileira é
percebida em Portugal?
MAP – Acho que foi Bernard Shaw (ou foi Oscar
Wilde?) quem comentou que a Inglaterra e a América vivem separadas por uma
língua comum. Com o Brasil e Portugal sucede o mesmo. Alguma da poesia
brasileira é relativamente conhecida em Portugal (pelo menos tão bem como
alguma da própria poesia portuguesa): Drummond, João Cabral, Bandeira, Jorge de
Lima, Murilo, os concretistas (divulgados sobretudo pelos congéneres
portugueses); Haroldo e Augusto de Campos, principalmente pelas suas traduções
de poesia; ou Carlos Nejar, que nos anos 60 foi presença assídua em Lisboa e no
Porto. Alguma outra começa lentamente a sê-lo, mesmo que só em círculos limitados:
Ferreira Gullar, Adélia Prado, Affonso Romano de Sant’Anna. Recentemente saíram
livros de Carlito Azevedo, de Eucanãa Ferraz, de Maria Ângela Alvim, e julgo
que está para sair um de Duda Machado. A revista Inimigo Rumor,
agora em edição luso-brasileira, começa a ser um agente importante do
conhecimento da poesia do Brasil em Portugal (e espero que também da poesia
portuguesa no Brasil). E há ainda a Net (a Agulha Revista de Cultura é
um bom exemplo). Mas os leitores de poesia brasileira são, como os da
portuguesa, sobretudo outros poetas. Como escreveu Alexandre O’Neil: “Quem vos
lê a vós? Somos nós/ E quem nos lê a nós? Sois vós./ Tudo fica, pois,/ entre
nós, entre nós”. E quem, como eu, procura poesia do Brasil, sempre a pode ir
encontrando numa livraria especializada em literatura brasileira e em importar
livros do Brasil: a Nova Fronteira. Mas a sensação que existe (falo por mim,
mas a situação há-de ser semelhante para a grande maioria dos leitores
portugueses de poesia) é que o Brasil, no que respeita à poesia, continua a ser
um imenso território ainda por descobrir.
FM – Dentro dessa perspectiva há ainda as
dificuldades internas, em cada país, de fazer circular a produção mais
expressiva de sua poesia. Aqui conseguimos identificar os nossos dilemas,
percebendo o quanto há de equívoco em alguma poesia brasileira que se difunde
em Portugal. Decerto o mesmo se passa com os portugueses. Mas o que me dirias
tu desses dilemas editoriais em teu país?
MAP – Com a edição de poesia em Portugal
passa-se o que, em geral, se passa na Europa ocidental: as maiores editoras e
distribuidoras fogem-lhe como o diabo da cruz. A não ser que a editora seja
suficientemente grande para poder dar-se ao luxo da poesia, como a Gallimard em
França. Ou, em Portugal, e à nossa medida, como a Asa, a Caminho ou a Campo das
Letras. Editar poesia entra então nos custos da política de imagem, porque,
mesmo quando não dá danos emergentes, sempre implica os lucros cessantes da
ficção. Porque a poesia parece ter algum incompreensível prestígio, que leva
não só muita gente a escrever poesia como muita mais a ser incapaz de confessar
como a poesia a aborrece. Os políticos usam-na na lapela e nos discursos e a
citação de um verso dá sempre uma espécie de nobreza “exquise” e a imagem de
pertença a um aristocrático grupo de eleitos. O grosso da edição de poesia, a
dos poetas mais novos e a dos que não estão no panteão, fica, pois, ao cuidado
de pequenas editoras. No meio surgem algumas raras editoras de média dimensão
“especializadas”, digamos assim, em poesia. Em Portugal, o “caso” é, sem
dúvida, a Assírio & Alvim (ao lado, talvez, da Relógio d’Água): um catálogo
de grande qualidade, onde avultam nomes como os de Pessoa, Herberto Hélder,
Mário Cesariny, Alexandre O’Neil, Ruy Belo, Teixeira de Pascoaes e outros,
servido por uma identidade gráfica igualmente notável, fazem da Assírio &
Alvim o rosto da edição de poesia em Portugal. De qualquer modo, as tiragens
continuam a ser pequenas, salvas algumas poucas excepções, como Pessoa,
Herberto ou Eugénio de Andrade. Os meus livros, por exemplo (e vendem
relativamente bem), andam entre os 1000 e os 2000 exemplares. Por outro lado, a
edição de poesia portuguesa no estrangeiro vive de apoios específicos do IPLB,
que subsidia a tradução (assim aconteceu com as minhas traduções francesas e
búlgaras) ou de iniciativas individuais, como a edição da minha poesia no
Brasil, que devo à generosidade e à diligência de um poeta brasileiro que um
dia se interessou por ela, Carlito Azevedo.
FM – Tua geração vem logo a seguir aos
turbulentos anos do Surrealismo. Havia acaso um sentido de responsabilidade em
ir além do que haviam proposto poetas como Cesariny de Vasconcelos, António
Maria Lisboa, Herberto Helder e Cruzeiro Seixas, por exemplo? E como convives
com teus pares geracionais?
MAP – Como disse antes, escreve-se sempre com e
contra o passado, principalmente contra o passado recente. Julgo, no entanto,
que a minha poesia sempre conviveu mais saudavelmente com o passado recente
surrealista (e com o modernista) do que a da generalidade dos poetas da minha
geração. A minha poesia nunca teve vocação geracional; pelo contrário, procurou
mais a companhia dos mais velhos do que a dos poetas da minha idade. Não me
parece, por exemplo, que ela tenha alguma coisa que ver com a de Joaquim Manuel
Magalhães (cujo proselitismo, aliás, me incomoda), a de João Miguel Fernandes
Jorge ou a de António Franco Alexandre, que têm também pouco que ver uns com os
outros. Ou com a dos poetas de 60, responsáveis imediatos da ruptura com o
surrealismo e o neo-realismo.
FM – Além de extensa obra poética, tens uma
larga produção também no que diz respeito à literatura infantil. Como trafegas
entre essas duas categorias?
MAP – Uma coisa e outra, a poesia e a literatura
por assim dizer infantil, são, acho eu, nomes da mesma escrita, ou antes, da
mesma relação com a escrita. Muitas vezes principio um poema sem me aperceber
de que ele quer ser um poema “para” crianças. Por isso meto
entre aspas esse “para”. Porque não escrevo “para”, escrevo apenas. Há decerto
um leitor no horizonte de toda a escrita, quanto mais não seja pelo simples
facto da língua. A língua, diz Barthes, é a familiaridade social do poeta. Mas
é um leitor sem rosto. Do meu ponto de vista de escritor, a literatura “para”
crianças completa (ou tenta completar) a outra. Não sou uno (e quem é?) e a
minha escrita também não (tenho escrito igualmente teatro e crónica, até
crónica desportiva, e publicado um ou outro ensaio).
*****
Agulha
Revista de Cultura
# 36. Outubro de 2003. Página ilustrada com obras de Sérgio Lucena (Brasil),
artista convidado desta edição especial de ARC.
Organização a cargo de
Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado |
Sérgio Lucena
Agradecimentos a Isa
Fonseca
Imagens © Acervo Resto
do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de
Cultura, assim estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação
editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal
Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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