FM Há uma passagem em texto recente de Vilma Tapia em que lemos: “Hay
el amor y la bondad y la inteligencia sobreabundantes, en este mundo, la poesía
los resguarda, los rescata, los trae, los devela.” Eu diria que o erotismo de sua poética tem uma profunda relação com este
sentido mais amplo de doação do humano em nós. É antes um erotismo enraizado na
busca de um diálogo fraterno entre os seres. Talvez espante o fato dessa
entrega – que em muitos casos se dá com a força de imagens mais excitantes –
vir de uma mulher, porém isto apenas acusa o fracasso de uma época que não há se
desfeito de seus preconceitos medievais. Vilma utiliza o próprio corpo como uma
caixa de ressonâncias de suas evocações míticas, místicas e eróticas, o que lhe
confere uma intensa singularidade poética.
IA A poesia de Tapia, segundo ela mesma, é uma constante
busca de si mesma, através do corpo que serve de veículo para obter esse
conhecimento. Acredita que somente na busca do corpo podemos ter a completude
que Vilma busca incessantemente em seus poemas?
FM Observa o que disse certa vez Blanca Wiethüchter: “La ruptura que representa su poesía parece
ser que se convirtiera en el camino para abrirse y desarrollar una interioridad
activa en la que ella, mujer, libre del señorío masculino, puede crear a partir
de su experiencia femenina.” Eu creio que
a busca do corpo a que se refere Vilma tem uma conotação maior do que a
meramente carnal. Visto neste espectro mais amplo, o corpo e seus sentidos,
implica justamente na completude do diálogo com o outro. Evidente que a mulher
tem – penso que terá sempre, porque simplesmente não creio que o século XXI
venha a constituir-se em palco de alguma mudança fundamental nos aspectos
comportamentais de nossas sociedades – um obstáculo a mais, e inicial, em sua
busca de uma revelação interior. Mas é ela também – genericamente falando, em
tese, porque na prática podemos nos deparar com homens sensíveis e com mulheres
que atuam como verdadeiros brutos – a dispor de um componente decisivo, que é
uma percepção para a completude do mundo, este cenário de atuação conjunta de seres
que independe de gênero. Vilma compreende isto muito bem e – este é o ponto
principal – sabe converter de maneira consistente sua visão de mundo em grande
poesia.
IA O que chama atenção nos poemas de Tapia é a
sonoridade e as imagens sensoriais. As pessoas dizem que sentem as palavras; é
como se elas tocassem no corpo de quem as ouve. Como você, conhecedor do estilo
dessa poetisa boliviana, explica isso?
FM É sua riqueza estilística, não há dúvida.
Porém esta sonoridade não atua em isolado, e sim em conjunto com a força
expressiva do que lhe importa revelar e também com os demais recursos de
linguagem com que trabalha impecavelmente. Claro que ouvimos uma palavra lida
em silêncio, e que a mesma pode tocar nosso corpo. Tu aqui também estás a fazer
bom uso da poesia. Vamos falar mais dessa multiplicidade de recursos que
utiliza Vilma como pontos sensuais de provocação, como quem refinou a linguagem
para que esta atue internamente, em seu ambiente de leitura – porque é este o
mecanismo essencial da linguagem poética –, tratando de despertar as
circunstâncias em sua essência, não importando concordância ou discordância,
mas sim, antes de tudo, a revelação de um segredo, a configuração de um tempo,
o mapa de uma época. Há um poema em prosa, intitulado “Estrellas mayores”, cujo
parágrafo aqui pinçado em separado nos dá a impressão de um erotismo
lésbico. Vejamos: “Desperté en proximidad con esa mujer. Sobre
la almohada, mi cabello se enredaba con el suyo. El recuerdo de ella y de su
cuarto hacía el mío más mío. Sentí que debía agradecer e, inmediatamente, me
avergoncé por haber sentido que debía ser yo la que agradeciera.” E um cenário
bastante carnal. No entanto, a leitura integral do poema nos leva a compreender
tratar-se de um jogo de espelhos entre figuras oníricas e carnais, como fonte
de inquietude de uma mulher, aí sim, em busca de conhecimento do próprio corpo,
que não elude a intensa relação com seus anseios e sua memória, com a
imaginação e sua consequência física. Mesmo assim, ao conversar com a poeta
boliviana a este respeito ela me esclareceu de forma fascinante: “El poema
‘Estrellas mayores’ es en verdad más simple. He trabajado mucho en el campo, en zonas rurales
muy pobres. Escribí ese texto después de haber visitado una comunidad quechua
que está vaciándose por la migración hacia Europa. En el camino de regreso no
paraba de llorar, tomé una ducha y me dormí triste, impotente. Cuando desperté,
esa mujer, que era una campesina, seguía conmigo, doliéndome.” Para mim, o aspecto principal da poética de Vilma Tapia é exatamente
este mecanismo de provocação que busca acentuar o desgaste na polarização de
aspectos constitutivos da natureza humana.
IA As imagens aquáticas e lunares são presença
constante nos poemas de Tapia. Essas comparações metafóricas dialogam com as
imagens corpóreas femininas. Qual é seu ponto de vista a respeito dessas
associações?
FM Olha só que bonito o início deste poema: “Mi madre no se atreve / a pronunciar / los
nombres de las cosas / y yo no sé qué hacer / con estas luces / sin nombre /
que despiertan / en mis manos”. É uma passagem que poderíamos muito bem encontrar
em um livro da brasileira Clarice Lispector. As duas mulheres transcenderam os
limites que se comprazem com cicatrizar a aventura humana como se esta fosse
apenas um corte, uma ferida, um acidente orgânico. Não é. É toda uma riqueza
humana que alguém aplica ao tocar o abismo em busca de si mesmo. A mulher Vilma
Tapia traz em seu corpo – o único que aqui nos interessa: o corpo de sua poesia
– a presença vibrante de uma experiência que soma amores, recordações
familiares, desejos, leituras, esta cuia sem fundo em que vamos preparando
nossa visão de mundo. Lua, água, mulher – isto mais me parece uma interpretação
astrológica forçada de sua poesia, sinceramente. Não são elementos relevantes
na constituição de um léxico de sua poesia.
IA Percebo na poesia de Tapia, uma forte relação
com a poesia de Florbela Espanca. A busca interior feminina, o narcisismo, as
imagens do espelho como reflexo da alma, a forte sensibilidade são uns dos
aspectos que interligam a poética dessas duas grandes poetisas. Comente essa
minha percepção.
FM Podemos aqui pensar melhor em Peter Brueghel,
cuja cosmogonia levada a termo em sua pintura, em muito se aproxima com a
maneira com que observamos, desde um distanciamento panorâmico, a construção de
um mito na poética de Vilma Tapia. À sua maneira, ela também está traçando a
cartografia poética de uma aldeia, projetando toda a mítica de seu lar
essencial, comunidade idealizada no seio de sua visão de mundo. Os aspectos que
mencionas não se dão em isolado – eu inclusive não chegaria a falar em
narcisismo, por exemplo –, funcionando como elementos constitutivos de uma
poética que é muito mais abrangente. Eu vejo os poemas da Vilma como um
conjunto de personagens envolvidos intensamente com a realidade de um contexto
cosmogônico que ela vem empreendendo com sua obra. Ou seja, em seu caso podemos
verdadeiramente falar em poética e não simplesmente na escritura de poemas
isolados.
IA As influências de Rimbaud, Mallarmé, Rilke,
entre outros contribuíram para dar um aspecto sugestivo, intuitivo e de
introspecção aos poemas de Tapia Anaya. Desse modo, a sua poesia pode ser
enquadrada numa espécie de neo-simbolismo. Concorda? Por quê?
FM Acho curiosa a insistência nessa condição
influente de Rimbaud, exceto que se pense no personagem e não na obra. Tampouco
me atrai essa ansiedade da classificação que nos leva ao “neo” que pretendes.
Não, não há neo-simbolismo algum. Ainda que Vilma fosse um poeta essencialmente
simbolista, jamais caberia evocar um neo-simbolismo. O Rilke em que
eventualmente ela bebe é uma fonte que se mescla a muitas outras e que reflete,
justamente por essa alquimia composta de muitos elementos, a singularidade
poética de uma poeta boliviana na passagem do século XX para o XXI. Não se
trata de neo-nada.
IA O erotismo em Vilma Tapia é velado sem pender
para o pornográfico. Porém, em certos momentos, os instintos sexuais atingem um
grau elevado, mas é equilibrado por jogos metafóricos. A que você atribui essa
atenuação na linguagem erótica em Tapia?
FM Mas os instintos sexuais são formidáveis e
sua entrada na matéria poética não constitui, por si só, um deslize. O dilema
na construção poética está no tratamento da linguagem e não no recurso a temas.
É preciso tomar cuidado com os preconceitos de toda ordem. Não entendo o que
chamas de “atenuação na linguagem erótica”. Equilíbrio, sim, mas equilíbrio em
seu sentido aberto, de saber dosar todos os elementos constitutivos de uma
poética. Se a Vilma é uma mulher recatada ou ansiosa ou tarada ou elegante ou
vulgar em seus instintos sexuais isto só vai interessar à poesia na medida em
que este personagem se traslada para o interior de uma poética e passa ali a
representar algo relevante. Fora disto, o mais pleno ideário da fofoca, ou
seja, é com a imprensa.
IA Vivemos numa sociedade em que ainda não se
encontra amadurecida suficientemente para receber uma poesia erótica escrita
por uma mulher. O erotismo em Tapia não está no corpo e sim, na pele. Ela vem
desmistificar o sentido de atração puramente carnal por uma atração sentimental
e o ato sexual se torna uma cerimônia. Desse modo, uma mulher que estuda um
tema polêmico e tão sedutor como o erotismo, é vista como uma conhecedora da
arte do sexo. Percebo isso no que se refere a mim. Acredita que essa cultura
discriminatória está mudando?
FM Não. Mas antes pergunto: qual sociedade?
Porque estamos falando de um poeta boliviano e aqui a sociedade que temos que
usar como referência é a de seu país. Não há uma sociedade universalizada. Este
é um dos equívocos da chamada globalização. Difícil falar em amadurecimento do
entendimento que tenha uma sociedade acerca do erotismo quando esta mesma
sociedade carece, dentre outras coisas, de planejamento familiar. O mundo
católico é ainda regido por uma insuficiência cardíaca em relação a este tema.
Além de sofrer variações, em suas diversas sociedades, do ponto de vista da
violência com que a mulher segue sendo tratada. Mas voltemos ao ponto em
questão: qual sociedade acaso rejeita ou se espanta diante da força erótica da
poesia de Vilma Tapia? Não estarias, acaso, transferindo para ti, mulher,
residente no interior de São Paulo, como quem intimamente busca um cúmplice
para seus próprios dilemas?
IA Você é um estudioso da literatura
hispano-americana. Por que, no Brasil, a literatura boliviana é praticamente
deixada de lado, como uma literatura subalterna? Por que esse desinteresse?
FM É preciso situar bem a fonte desse
desinteresse. Em primeiro lugar não deve ser particularizada em relação à
Bolívia e penso hoje que nem mesmo deve ser uma recusa à cultura de língua
espanhola em nosso continente. Penso que o vazio seja de ordem espiritual e
tenha seu principal motor em nossa casta intelectual. Claro que do ponto de
vista de mercado editorial a leitura é distinta, da mesma forma que no ambiente
midiático. A mídia costuma mesclar ambiente político e cultural e tem uma
leitura muito pífia da cultura hispano-americana. O mercado editorial tem as
suas próprias regras e não estabelece predileções por nada que não signifique
lucro imediato. Por trás de tudo isto está o que chamo de debilidade
espiritual, uma fraqueza anímica que faz com que nos sintamos eternamente aquém
de nós mesmos. É esta pobreza de espírito que impede a aventura sempre
prazerosa e positiva de sair de si em busca do outro. O que significa buscar
outras expressões que renovem e/ou reafirmem a ideia que temos de nós mesmos. O
intelectual brasileiro evita esse diálogo com o mundo, ou seja, vive a fugir de
si mesmo. Eu não sei que monstro tão insuportável imagina possa encontrar nesse
caminho, mas o fato é que acabamos ficando eternamente no meio do caminho, como
uma sociedade engasgada, uma bandeira a meio-pau, enfim, qualquer que seja a
metáfora para designar algo que não se completa, que não reconhece a própria
força, sempre oriunda do reconhecimento de vícios e virtudes, erros e
acertos, blá-blá-blá. Mas este é problema de um poeta brasileiro e
não de um poeta boliviano. Vilma Tapia é poeta de uma amplitude invejável. Que
seja muito bem vinda ao Brasil.
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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Graciela Rodo Boulanger (1935)
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista
de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
10 AGULHA HISPÂNICA (2010-2011)
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação
editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal
de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola,
sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano
Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial
de Floriano Martins e Márcio Simões.
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