sexta-feira, 1 de julho de 2016

ISABEL DE ALMEIDA | Conversa com Floriano Martins sobre a poesia de Vilma Tapia Anaya


IA Qual é a sua visão sobre o erotismo e a fantasia que se intercalam na poesia de Vilma Tapia?

FM Há uma passagem em texto recente de Vilma Tapia em que lemos: “Hay el amor y la bondad y la inteligencia sobreabundantes, en este mundo, la poesía los resguarda, los rescata, los trae, los devela.” Eu diria que o erotismo de sua poética tem uma profunda relação com este sentido mais amplo de doação do humano em nós. É antes um erotismo enraizado na busca de um diálogo fraterno entre os seres. Talvez espante o fato dessa entrega – que em muitos casos se dá com a força de imagens mais excitantes – vir de uma mulher, porém isto apenas acusa o fracasso de uma época que não há se desfeito de seus preconceitos medievais. Vilma utiliza o próprio corpo como uma caixa de ressonâncias de suas evocações míticas, místicas e eróticas, o que lhe confere uma intensa singularidade poética.

IA A poesia de Tapia, segundo ela mesma, é uma constante busca de si mesma, através do corpo que serve de veículo para obter esse conhecimento. Acredita que somente na busca do corpo podemos ter a completude que Vilma busca incessantemente em seus poemas?

FM Observa o que disse certa vez Blanca Wiethüchter: “La ruptura que representa su poesía parece ser que se convirtiera en el camino para abrirse y desarrollar una interioridad activa en la que ella, mujer, libre del señorío masculino, puede crear a partir de su experiencia femenina.” Eu creio que a busca do corpo a que se refere Vilma tem uma conotação maior do que a meramente carnal. Visto neste espectro mais amplo, o corpo e seus sentidos, implica justamente na completude do diálogo com o outro. Evidente que a mulher tem – penso que terá sempre, porque simplesmente não creio que o século XXI venha a constituir-se em palco de alguma mudança fundamental nos aspectos comportamentais de nossas sociedades – um obstáculo a mais, e inicial, em sua busca de uma revelação interior. Mas é ela também – genericamente falando, em tese, porque na prática podemos nos deparar com homens sensíveis e com mulheres que atuam como verdadeiros brutos – a dispor de um componente decisivo, que é uma percepção para a completude do mundo, este cenário de atuação conjunta de seres que independe de gênero. Vilma compreende isto muito bem e – este é o ponto principal – sabe converter de maneira consistente sua visão de mundo em grande poesia.

IA O que chama atenção nos poemas de Tapia é a sonoridade e as imagens sensoriais. As pessoas dizem que sentem as palavras; é como se elas tocassem no corpo de quem as ouve. Como você, conhecedor do estilo dessa poetisa boliviana, explica isso?

FM É sua riqueza estilística, não há dúvida. Porém esta sonoridade não atua em isolado, e sim em conjunto com a força expressiva do que lhe importa revelar e também com os demais recursos de linguagem com que trabalha impecavelmente. Claro que ouvimos uma palavra lida em silêncio, e que a mesma pode tocar nosso corpo. Tu aqui também estás a fazer bom uso da poesia. Vamos falar mais dessa multiplicidade de recursos que utiliza Vilma como pontos sensuais de provocação, como quem refinou a linguagem para que esta atue internamente, em seu ambiente de leitura – porque é este o mecanismo essencial da linguagem poética –, tratando de despertar as circunstâncias em sua essência, não importando concordância ou discordância, mas sim, antes de tudo, a revelação de um segredo, a configuração de um tempo, o mapa de uma época. Há um poema em prosa, intitulado “Estrellas mayores”, cujo parágrafo aqui pinçado em separado nos dá a impressão de um erotismo lésbico. Vejamos: “Desperté en proximidad con esa mujer. Sobre la almohada, mi cabello se enredaba con el suyo. El recuerdo de ella y de su cuarto hacía el mío más mío. Sentí que debía agradecer e, inmediatamente, me avergoncé por haber sentido que debía ser yo la que agradeciera.” E um cenário bastante carnal. No entanto, a leitura integral do poema nos leva a compreender tratar-se de um jogo de espelhos entre figuras oníricas e carnais, como fonte de inquietude de uma mulher, aí sim, em busca de conhecimento do próprio corpo, que não elude a intensa relação com seus anseios e sua memória, com a imaginação e sua consequência física. Mesmo assim, ao conversar com a poeta boliviana a este respeito ela me esclareceu de forma fascinante: “El poema ‘Estrellas mayores’ es en verdad más simple. He trabajado mucho en el campo, en zonas rurales muy pobres. Escribí ese texto después de haber visitado una comunidad quechua que está vaciándose por la migración hacia Europa. En el camino de regreso no paraba de llorar, tomé una ducha y me dormí triste, impotente. Cuando desperté, esa mujer, que era una campesina, seguía conmigo, doliéndome.” Para mim, o aspecto principal da poética de Vilma Tapia é exatamente este mecanismo de provocação que busca acentuar o desgaste na polarização de aspectos constitutivos da natureza humana.

IA As imagens aquáticas e lunares são presença constante nos poemas de Tapia. Essas comparações metafóricas dialogam com as imagens corpóreas femininas. Qual é seu ponto de vista a respeito dessas associações?

FM Olha só que bonito o início deste poema: “Mi madre no se atreve / a pronunciar / los nombres de las cosas / y yo no sé qué hacer / con estas luces / sin nombre / que despiertan / en mis manos”. É uma passagem que poderíamos muito bem encontrar em um livro da brasileira Clarice Lispector. As duas mulheres transcenderam os limites que se comprazem com cicatrizar a aventura humana como se esta fosse apenas um corte, uma ferida, um acidente orgânico. Não é. É toda uma riqueza humana que alguém aplica ao tocar o abismo em busca de si mesmo. A mulher Vilma Tapia traz em seu corpo – o único que aqui nos interessa: o corpo de sua poesia – a presença vibrante de uma experiência que soma amores, recordações familiares, desejos, leituras, esta cuia sem fundo em que vamos preparando nossa visão de mundo. Lua, água, mulher – isto mais me parece uma interpretação astrológica forçada de sua poesia, sinceramente. Não são elementos relevantes na constituição de um léxico de sua poesia.

IA Percebo na poesia de Tapia, uma forte relação com a poesia de Florbela Espanca. A busca interior feminina, o narcisismo, as imagens do espelho como reflexo da alma, a forte sensibilidade são uns dos aspectos que interligam a poética dessas duas grandes poetisas. Comente essa minha percepção.

FM Podemos aqui pensar melhor em Peter Brueghel, cuja cosmogonia levada a termo em sua pintura, em muito se aproxima com a maneira com que observamos, desde um distanciamento panorâmico, a construção de um mito na poética de Vilma Tapia. À sua maneira, ela também está traçando a cartografia poética de uma aldeia, projetando toda a mítica de seu lar essencial, comunidade idealizada no seio de sua visão de mundo. Os aspectos que mencionas não se dão em isolado – eu inclusive não chegaria a falar em narcisismo, por exemplo –, funcionando como elementos constitutivos de uma poética que é muito mais abrangente. Eu vejo os poemas da Vilma como um conjunto de personagens envolvidos intensamente com a realidade de um contexto cosmogônico que ela vem empreendendo com sua obra. Ou seja, em seu caso podemos verdadeiramente falar em poética e não simplesmente na escritura de poemas isolados.

IA As influências de Rimbaud, Mallarmé, Rilke, entre outros contribuíram para dar um aspecto sugestivo, intuitivo e de introspecção aos poemas de Tapia Anaya. Desse modo, a sua poesia pode ser enquadrada numa espécie de neo-simbolismo. Concorda? Por quê?

FM Acho curiosa a insistência nessa condição influente de Rimbaud, exceto que se pense no personagem e não na obra. Tampouco me atrai essa ansiedade da classificação que nos leva ao “neo” que pretendes. Não, não há neo-simbolismo algum. Ainda que Vilma fosse um poeta essencialmente simbolista, jamais caberia evocar um neo-simbolismo. O Rilke em que eventualmente ela bebe é uma fonte que se mescla a muitas outras e que reflete, justamente por essa alquimia composta de muitos elementos, a singularidade poética de uma poeta boliviana na passagem do século XX para o XXI. Não se trata de neo-nada.

IA O erotismo em Vilma Tapia é velado sem pender para o pornográfico. Porém, em certos momentos, os instintos sexuais atingem um grau elevado, mas é equilibrado por jogos metafóricos. A que você atribui essa atenuação na linguagem erótica em Tapia?

FM Mas os instintos sexuais são formidáveis e sua entrada na matéria poética não constitui, por si só, um deslize. O dilema na construção poética está no tratamento da linguagem e não no recurso a temas. É preciso tomar cuidado com os preconceitos de toda ordem. Não entendo o que chamas de “atenuação na linguagem erótica”. Equilíbrio, sim, mas equilíbrio em seu sentido aberto, de saber dosar todos os elementos constitutivos de uma poética. Se a Vilma é uma mulher recatada ou ansiosa ou tarada ou elegante ou vulgar em seus instintos sexuais isto só vai interessar à poesia na medida em que este personagem se traslada para o interior de uma poética e passa ali a representar algo relevante. Fora disto, o mais pleno ideário da fofoca, ou seja, é com a imprensa.

IA Vivemos numa sociedade em que ainda não se encontra amadurecida suficientemente para receber uma poesia erótica escrita por uma mulher. O erotismo em Tapia não está no corpo e sim, na pele. Ela vem desmistificar o sentido de atração puramente carnal por uma atração sentimental e o ato sexual se torna uma cerimônia. Desse modo, uma mulher que estuda um tema polêmico e tão sedutor como o erotismo, é vista como uma conhecedora da arte do sexo. Percebo isso no que se refere a mim. Acredita que essa cultura discriminatória está mudando?





FM Não. Mas antes pergunto: qual sociedade? Porque estamos falando de um poeta boliviano e aqui a sociedade que temos que usar como referência é a de seu país. Não há uma sociedade universalizada. Este é um dos equívocos da chamada globalização. Difícil falar em amadurecimento do entendimento que tenha uma sociedade acerca do erotismo quando esta mesma sociedade carece, dentre outras coisas, de planejamento familiar. O mundo católico é ainda regido por uma insuficiência cardíaca em relação a este tema. Além de sofrer variações, em suas diversas sociedades, do ponto de vista da violência com que a mulher segue sendo tratada. Mas voltemos ao ponto em questão: qual sociedade acaso rejeita ou se espanta diante da força erótica da poesia de Vilma Tapia? Não estarias, acaso, transferindo para ti, mulher, residente no interior de São Paulo, como quem intimamente busca um cúmplice para seus próprios dilemas?

IA Você é um estudioso da literatura hispano-americana. Por que, no Brasil, a literatura boliviana é praticamente deixada de lado, como uma literatura subalterna? Por que esse desinteresse?

FM É preciso situar bem a fonte desse desinteresse. Em primeiro lugar não deve ser particularizada em relação à Bolívia e penso hoje que nem mesmo deve ser uma recusa à cultura de língua espanhola em nosso continente. Penso que o vazio seja de ordem espiritual e tenha seu principal motor em nossa casta intelectual. Claro que do ponto de vista de mercado editorial a leitura é distinta, da mesma forma que no ambiente midiático. A mídia costuma mesclar ambiente político e cultural e tem uma leitura muito pífia da cultura hispano-americana. O mercado editorial tem as suas próprias regras e não estabelece predileções por nada que não signifique lucro imediato. Por trás de tudo isto está o que chamo de debilidade espiritual, uma fraqueza anímica que faz com que nos sintamos eternamente aquém de nós mesmos. É esta pobreza de espírito que impede a aventura sempre prazerosa e positiva de sair de si em busca do outro. O que significa buscar outras expressões que renovem e/ou reafirmem a ideia que temos de nós mesmos. O intelectual brasileiro evita esse diálogo com o mundo, ou seja, vive a fugir de si mesmo. Eu não sei que monstro tão insuportável imagina possa encontrar nesse caminho, mas o fato é que acabamos ficando eternamente no meio do caminho, como uma sociedade engasgada, uma bandeira a meio-pau, enfim, qualquer que seja a metáfora para designar algo que não se completa, que não reconhece a própria força, sempre oriunda do reconhecimento de vícios e virtudes, erros e acertos, blá-blá-blá. Mas este é problema de um poeta brasileiro e não de um poeta boliviano. Vilma Tapia é poeta de uma amplitude invejável. Que seja muito bem vinda ao Brasil.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Graciela Rodo Boulanger (1935)
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
10 AGULHA HISPÂNICA (2010-2011)

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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