O poeta de mitos e magias, Péricles Prade, autor de Gaiola de açúcar, pensou que o livro é desvio dessa poética que se tornou emblemática.
E chegou à conclusão de que poderia ser um equívoco
de sua parte.
Desvio,
não equívoco. O desviar-se ou ser desviado tem sido o que renova o formado na linha
porosa entre tradição e modernidade. E falar em moderno é estar disponível à formação,
ao que não se sabe na mesma forma com que a física nuclear avança de hipóteses a
hipóteses, com a hipótese maior: o que se procura nem sempre é encontrado, ou o
procurado vai ao encontro de outra coisa. Rossmann, ao pisar o porto de Nova Iorque,
voltou ao vapor por ter esquecido o guarda-chuva no porão. Ou, depois das batidas
do estrangeiro na porta de Fang tudo pode acontecer.
O
esquecimento não é exterior ao fazer artístico como é o equívoco. Se o poeta se
desviou no âmbito do que o caracteriza, o esquecer foi provisório. Uma pausa que
favorece o que não estava no oblívio, e sim no reverso do desvio, no caso o poeta
operando deslocamentos na mitologia do artista criada por Marcel Duchamp, para Octavio
Paz o artista da obra, enquanto seus contemporâneos foram produtores de obras.
Não
do equívoco a gaiola foi lembrada por Péricles Prade na revolução de Duchamp, que
preferia jogar xadrez a pintar metros e metros de tela. Preferia respirar, e fez
o melhor uso do tempo, a quarta dimensão que tem o buraco por onde passa o que não
é arte. Duchamp desviou-se do pai – o estético. Antiédipo, aquele que não tem os
pés inchados, limpou o frasco farmacêutico, levando de Paris o ar a Nova Iorque.
Esta
é a farmácia de Duchamp, pois, “aliás, são os outros que morrem”.
HÉLICE DUCHAMPIANA
| Ao visitar a Exposição de Tecnologia da Aviação com Brancusi e Léger, em 1912,
Paris, Duchamp perguntou aos amigos: “Quem conseguirá fazer algo melhor do que uma
hélice?” Eles devem ter entendido sua mente prodigiosa que se afastava da arte retiniana,
mas quem, ao nortear a pintura cubista, definiu o que pensava Duchamp foi Apollinaire:
Talvez
um artista tão liberto de preocupações estéticas, um artista em busca da energia
como Marcel Duchamp, venha a ter por tarefa reconciliar a arte com as pessoas.
Duchamp
significa, radicalmente, o marco zero da arte contemporânea. Até o silêncio depois
do “Grande vidro”, e com a obra em segredo, “Sendo dados”, ele desconstruiu a representação
com a apresentação, o que também Apollinaire definiu: a realidade da visão foi ultrapassada
pela realidade do conhecimento.
RESPIRAR?
| A Duchamp interessava o que as coisas fazem, porém sob o controle dos sentidos.
E, irônico, evitava a tautologia, não a contradição para não se repetir como os
lógicos de Viena.
Os
lógicos de Viena elaboraram um sistema no qual tudo é tautologia, quer dizer, uma
repetição de premissas. Em matemática, isto vai de um teorema muito simples ao muito
complicado, mas tudo está dentro do primeiro teorema. Então, a metafísica: tautologia;
a religião: tautologia, tudo é tautologia, exceto o café preto, porque há um controle
os sentidos!
Apesar
de criticar os lógicos, a higiene artística efetuada por sua obra equivale à terapia
gramatical de Wittgenstein. Duchamp dizia, depois do “Grande vidro”, que a lógica
não dava conta do que fez. Ao pensar a pintura, fez a pintura pensar e com o pensamento
deixou de pesar a mão, tornando-se o mais impessoal possível com o retard para se livrar do regard. Antes de chegar a tanto, Duchamp
preferiu ser influenciado por conhecimentos exteriores às artes visuais. Ficou impressionado,
isso para exemplificar, com uma frase de Poincaré: “As coisas em si mesmas não são
o que a ciência pode alcançar, mas apenas relações entre as coisas. Fora destas
relações, não há uma realidade conhecida”.
O
relacional, portanto, mesmo antes do “Grande vidro” apresentava seus efeitos com
“Roda de bicicleta”, ironia ao analógico que não excede o campo da representação,
inclusive antecipando-se ao analógico imitativo de Picasso, a arte como ilusão que
se vê em “Cabeça de touro”, objeto feito com selim e guidão de bicicleta. A roda
que Duchamp instalou sobre o banquinho, apesar de ser um objeto, fez a arte sair
do campo da visão com a quarta dimensão, que é invisível, embora seja o que se experimenta
a todo instante. Duchamp, então, pensou a arte como o lugar do infrafino, que é
correlacional em todos os aspectos: a luz que incide sobre um objeto projeta uma
sombra em duas dimensões; por que não podia o mundo, que tem três dimensões, ser
a projeção de outra realidade que não se conhece?
Era
meio que um sofisma, mas enfim, era uma coisa possível. Foi nisso que eu baseei
A noiva no Grande vidro, como sendo um objeto de quatro dimensões.
Dentre
outras influências, Bergson havia estimulado os jovens artistas mais avançados no
início do século 20. Duchamp ficou fascinado com seu primado, de que jamais se desligou:
“Somente a intuição pode levar a pessoa a transportar-se para o interior de um objeto
a fim de coincidir com uma qualidade que lhe é exclusiva, inefável”.
As
especulações artísticas de Duchamp, desta maneira, eram científicas e filosóficas.
Tanto é que, enquanto a maioria dos artistas dele se afastava, pensadores se aproximavam.
É memorável a conversa de Duchamp com o suíço Denis Rougemont sobre calma e silêncio,
que derivou para o que está entre e assim não visto. Naquele momento, Duchamp olhava
a paisagem com o lago “através de uma cortina de pinheiros”, comentando sobre o
infrafino, “o espaço entre o verso e o reverso de uma folha de papel”.
Alguns
artistas não subestimaram o silêncio de Duchamp desde sua admiração de uma pintura,
de Odilon Redon, a da mulher que tem os dedos sobre os lábios, o silêncio no segredo
do alquímico. Ao preferir a indiferença à produção, Duchamp realizou a obra com
ascetismo e metaironia: “Gosto mais de viver, respirar, do que trabalhar”. Ainda
hoje, ao se explicar o ready made aos
jovens, eles estão o suficiente preparados para sorrir e rir porque não têm o gesso
da arte olfativa, que cheira à terebintina. Dizer, portanto, que sua obra é hilariante
é um pleonasmo. Por que, então, não respirar e espirrar?
AS COISAS
FAZEM | Ao retornar a Nova Iorque, em 1920, no ano seguinte Duchamp manipulou com
a ideia uma gaiola qualquer de passarinhos. Dentro introduziu cento e cinquenta
e dois torrões de açúcar feitos de mármore, um termômetro e um osso de siba ou choco,
molusco dotado de câmeras internas com gás, que o faz flutuar e emitir tinta negra
para se defender, e que também serve como pigmentação na fabricação de tinta sépia,
a sua cor preferida. O título: “Por que não espirrar, Rose Sélavy?”
O
ready made zombeteiro do senso comum não
foi bem visto. Se fosse, teria frustrado Duchamp. Mesmo porque a gaiola é para entrever,
isto é, pensar a imprevisibilidade bergsoniana – o torrão que deixa de ser, sendo
mármore, o torrão mesmo dissolvido no copo d’água, no entanto sem perder o sabor.
Nas anotações à gaiola Duchamp foi lapidar: nos cubos de mármore perde-se “a possibilidade
de reconhecer dois objetos similares”, deslocação da semelhança (aparência) para
a diferença (transparência), o que tanto atormentava os artistas modernos no impasse
entre a imitação e o anímico. Indagado publicamente sobre a origem da gaiola, ele
retificou a dissociação que há entre espirrar e não espirrar:
Afinal,
você não espirra deliberadamente; normalmente você espirra à revelia. Portanto,
a resposta à pergunta “Por que não espirrar?” é simplesmente que você não pode espirrar
por querer!
Por
falar em espirro, eis aí uma resposta de Pirro, o pensador nu, indiferente e imperturbável,
que Duchamp voltou a estudar na Biblioteca Sainte-Geneviéve, na qual “trabalhou”
depois de abandonar a Sociedade dos Independentes, pois os membros do júri, desprovidos
de humor, deram sumiço ao penico de parede enviado por ele à mostra anual, “Fonte”,
mais tarde fotografado como inabalável Buda por Man Ray.
Veja-se
que as escolhas foram deliberadas e que o título acrescentava o desconcertante.
Na realidade o termômetro crítico de Duchamp sugerido, também, pelo osso do molusco
de gás, referenciando o onanismo dos “Moldes machos” do “Grande vidro”, que se inflam
e transformam em gás o fluido magnético da “Noiva”, obra que remonta a “Rapaz e
rapariga na primavera”, o casal incestuoso redimido pela androginia alquímica.
O
não pesar a mão, em “Por que não espirrar”, deu continuidade ao pensamento de Duchamp
no que as coisas fazem e desnudam a noiva ontológica do sensível. As coisas são
o que fazem, obtendo-se, assim, a linguagem do que pode ser para o espectador, neste
caso coautor de um “coeficiente artístico” que Duchamp elucidou em O ato criativo. Esse coeficiente está em
toda a sua obra, considerada a revolução de um único artista e que gerações sucessivas
não desdenharam: o ato a que refere Duchamp é a singularidade da arte. O que marca
as vanguardas é o gesto único, bom ou ruim, pois Duchamp assim pensava: a arte é
como a emoção.
MÃO QUE
NÃO PESA | O mais novo no lugar do novo, ou reduzir uma coisa à outra é a principal
linha de acesso a Duchamp.
Dessa
linha mestra, outras linhas são traçadas conforme a disposição das peças no tabuleiro.
O
mínimo que se vê na pintura deve ser visto como não retiniano e como extensão de
um sentido em outro sentido.
Uma
porta abre e fecha outra. Balança de precisão, espelho no espelho. Deslocamentos.
Devir bumerangue. Devir delirante. Ao descer majestoso, o nu da escada abole o conflito
dos contrários. O vaivém do trenó no moinho. O trem em movimento e o jovem movido
no pensar.
O
efeito entre a intenção e a realização faz a obra. Ironia filosófica, circular:
o desejo da “Noiva” chega aos “Celibatários” e a ela retorna.
A
negação de um objeto é afirmação da arte no imaginário verbal, que se adianta no
tempo, este astronômico, o infinitivo no que é novo.
E
Roussel mostrou a Duchamp como poderia fazer isso. E Duchamp mostra como o não verbal
tem sido a roda da fortuna do poema moderno e metamoderno. Do não verbal ao verbal.
Instalação de palavras que referenciam a genealogia de Duchamp, a mitologia do artista
no ventríloquo poeta de Gaiola de açúcar,
a principal ferramenta da écfrasis:
Artesão, inflado, inventor,
múltiplo, irônico, transgressor,
bufão, paradoxal, transparente,
preguiçoso, lúcido, insolente.
Duchamp
reduzia o gosto ao máximo. Se havia algum problema, este era o da escolha. Não é
fácil distanciar-se do hábito, da norma, do gosto. Escolha e seleção aqui não se
confundem. Quem escolhe é escolhido pela sorte do momento, que, em Duchamp, sobrevinha
com a indiferença estética.
Decidir
que em um momento vindouro (tal dia, tal hora, tal minuto) elejo um ready made.
O que conta então é a cronometria, o instante oco, é uma espécie de encontro.
Mecânica
que mede os intervalos do tempo, o estar entre, no clinamen da imaginação delirante. Roussel, afirmei, o caminho mostrou:
“Senti que, como pintor, era melhor sofrer a influência de um escritor que a de
um pintor”. Escolha do vazio entre as linguagens: das palavras imagens que escapam
do analógico e fundam o combinatório, contraveneno de máquinas irônicas, isto é,
antimecânicas. E tantos ainda colavam.
A
mão que não pesa descola de Duchamp a poesia de quarks: Gaiola de açúcar,
a poética ready made.
A
mão que não pesa é permutável, móbile de palavras. Basta movê-lo de um verso para
outro, de poema em poema, obras de obras. Conjugações e conjunções se taxionomias
são poéticas.
O
poeta Péricles Prade passou a mão e derramou o tinteiro. Quem tem senso de humor
vai entender a vida das abelhas no domingo. É divertido se ouvir o secreto ruído
do objeto que não se sabe qual. Todos os nomes do objeto poético são possíveis.
Desvios e paratáticas que abolem a cronologia nos poemas que na obra são silhuetas
de várias direções, retalhadas.
De quem são as silhuetas invisíveis,
os imãs dos refugos, os resíduos
voláteis dos objetos cambiantes
enlatados pelo acaso?
O
acaso da passante no ocaso, de várias direções que não chegam somente aos olhos,
e se chegam são cambiantes como era a mulher nas células periféricas de uma paixão
celibatária à última vista como de Baudelaire, poema que Duchamp memorizou. O contato
à distância, onanista nos orifícios da porta hermética:
É justo, sobre patins,
com pregos machos raspar
os pentelhos da boneca?
Bigode
e cavanhaque da Gioconda foram raspados, e a boneca de genitália glabra que segura
a lamparina de gás Bec Auer atrás da porta, Maria Martins raspada sem piedade da
peluda de Courbet, a criadora do mundo.
Não
foi a primeira vez que Duchamp pensou nisso. No filme em três dimensões realizado
com Man Ray, restaram fotogramas de uma mulher depilando a vulva, mais conhecida
como xoxota, Elsa Von Freytag-Loringhoven, biruta alemã que se apaixonou por Duchamp,
dizendo que era “correspondida”, mas ele “jamais iria roçar a fímbria” de seu “impermeável
vermelho”.
Quase
quebra-cabeça, diz o poeta, que da passante retalhada passou a “Sendo dados”. E
ao “Grande vidro” com o crocodilo gasoso da “Via Láctea” que lembrou ao poeta o
ready made “Farmácia”.
Seria do crocodilo gasoso
o esqueleto exposto
na janela da farmácia?
Farmácia
que não ensina a arte olfativa. Ready made
ajudado pelo anoitecer, ao longe o vislumbre de luzes que se pareciam com as garrafas
de líquido colorido nas janelas de farmácias francesas.
Eu
a fiz num trem, na semiescuridão, no crepúsculo, quando ia a Rouen em janeiro de
1914. Via-se duas pequenas luzes no fundo da paisagem. Colocando-se a vermelha ao
lado da verde, aquilo parecia uma farmácia. Era uma espécie de distração que eu
tinha em mente.
A
ajuda foi conservada numa reprodução com toques de vermelho e verde, destas que
representam vegetações e que os pintores canhestros costumam copiar. Alguém disse,
da distração, que Duchamp na cabine do trem pensou no divórcio da irmã Suzanne de
seu marido farmacêutico, quando, segundo o artista, sua intenção foi outra: distorcer
o visual através do intelectual.
CONSTELAÇÕES:
ROTAÇÕES | Nas sequências dos poemas, a simultaneidade. Giram em torno de Duchamp
e formam rotações de suas obras que têm particularidades que se correspondem.
Assim
são os poemas, sem linearidade, em constelações que venho seguindo nos rastros que
deixam e não se fixam – partículas verbais ao sabor da escrita. Os signos oscilam.
Esta
é uma boa definição do desvio que atomiza o poema em exposição irradiante da atividade
mental, a mesma da “Caixa verde”, que vai do aparente ao transparente, da anotação
à conotação do retarde em vidro: resistência ao olhar em favor do pensar.
Bolinhas
de gude, fios elétricos, gasolina, cordas, lâminas, torrões, baionetas, luvas de
box, arames, cobre cigano, faróis, amortecedores, diagramas, relógios, painéis,
redes de fissura
Listas
que alternam os significantes de Duchamp, que podem ser alternados na leitura ou
na montagem que vai além do cubismo e do futurismo, o primeiro estático demais,
o segundo limitado à sensação de velocidade, quando o que se move é o “Motor desejo”,
a “Máquina agrícola”, as “Tesouras”, o “Moinho”, o “Trenó”, o gás nos “Tubos capilares”,
os “Tiros de canhão”, as “Testemunhas oculistas”.
Os
retardes no papel de Gaiola de açúcar
com o efeito Wilson- Lincoln que, na comparação de “Sendo dados” com o “Grande vidro”,
Octavio Paz associou ao “princípio-bisagra: o gonzo convertido em eixo material e espiritual do universo”.
Solteiro,
régua e compasso
no bolso, na
lixeira jogou
a tatuagem
extraída de um braço.
No
“Domínio inferior”, aos “Moldes” celibatários resta a bronha com salpicos no “Domínio
superior”, onde prefigura a beleza moderna, a “Noiva pendurada” que se destrói a
si mesma. A tatuagem quem sabe deve ser a do realismo romântico. Duchamp jovem leu
Flaubert fascinado por Laforgue. Mundos paralelos e antagônicos, porém solteiros.
Nada se pode
fazer
quando o destino
é puxado pela
mulher cocheira,
cigana inocente
que adormece
no cemitério dos vencidos.
Os “Moldes machos” também são chamados de
“Cemitério de uniformes e de librés”. Alucinados diante do espelho de suas complexidades,
“moem seus próprios grãos”.
PLACAS GIRATÓRIAS | O disco gira peixe, ovo, xícara
e cálice. Benevolente é o cientista. O poeta de camafeus pensa o xadrez que nele
se pensa e nudez na anatomia do nome. Dos diagramas, epigramas.
De uma proposição a passagem ao rebote. O
fim do poema está em seu começo com palavras entre a finalidade e o meio quase imaterial
como as cores no “Grande vidro”. Projeções do não verbal no reflexo e na contemplação
de um signo mutante na ideia de que numa palavra está outra palavra, cujo sentido
vem da curva que cada poema faz para se encontrar. Quem encontra não procura, um
sofisma formidável no paralelismo elementar entre obsessão e jogo, entre nudez e
anatomia.
No penso
de “Obsessão”, segunda parte de Gaiola de
açúcar, quem pensa logo joga.
Penso.
Penso xadrez,
em qualquer
tempo
&
espaço.
Duchamp teve a ambição de se tornar jogador
profissional de xadrez, e assim foi nesta arte também de silêncio e antecipação.
Chegou a escrever a Katherine Dreier: “Saiba que o xadrez é minha droga!” E sabemos
que nada o desconcentrava, nem os fartos seios de Eve Babitz, a jovem que com ele
nua jogou, em 1963, no Museu de Pasadena. A ideia foi de Julian Wasser, fotografar
Duchamp ao lado do “Grande vidro”.
Penso.
Penso xadrez
sem ver os
seios
de Eve Babitz.
A écfrasis
mínima é densa como a moça que foi batida várias vezes pelo “velho celibatário”.
A foto circulou com facilidade, e o suposto incesto do jogador recirculou à boca
pequena.
Penso.
Penso xadrez
e quando penso
nem pelo canto
da boca eu
falo.
Do ponto de vista da semiótica, não há distância
entre palavra e imagem, somente os meios é que são diferentes. E se o poeta, como
é o caso do autor de Gaiola de açúcar,
pertence ao tempo da visualização tipográfica, a palavra torna-se imagem de outra
imagem de tal forma que o não verbal no verbal revela a metaimagem.
Penso.
Penso xadrez,
vício gêmeo
de José Raul
O apelo visual da palavra em arco-íris-móbile,
na poética de Péricles Prade, tem antecedentes na letra que dá lugar à imagem. Ou
a sugere no contexto em que aparece como signo propriamente dito, e associado ao
que fazem os personagens. Em Alçapão para
gigantes, no relato “A grande concha”, Miochi, um professor de cegos, tem a
unha encravada que cresce sem que consiga apará-la a tempo. De outro professor,
o Senhor U, ficou sabendo que poderia resolver a anomalia cortando a unha em V.
Em “O provador de venenos”, de Ao som do realejo,
a serpente anda ereta e comporta-se “como um S maiúsculo”. A serpente, curativa,
se parece com uma bengala, que, por sua vez, simboliza quem precisa de asilo. As
aparências aqui não enganam. A serpente-bengala é palavra da imagem e a imagem a
letra cabalística: carântula protetora.
O que gira da imagem à palavra se dá por exposição
meteórica: o que é visto, no poema configura outra imagem conforme a leitura que
for feita. O ato de ver, com a velocidade de um raio, filtra o visto com os nomes
que lhe dão tangência de um objeto para outro. Assim, na sequência de “Anatomia”,
quarta parte, o aparecimento do termo nu
pontua-se em variações, despindo os objetos.
Pensar nu se basta a si mesmo com todas as
vestes de sentidos virtuais. Se não fosse isso, o poema não se desvestiria o tempo
todo. E de um poema para outro se forma um único poema que pode ter outras ordens,
se bem que a écfrasis procede numa ordem
determinada: do ver ao escrever e do escrito ao ver outra vez.
CABIDE DE IMAGENS | Na teoria da écfrasis, em detalhes estudada por W. J.
T. Mitchell, o verbal é breve, e, na origem, dizia sobre objetos de usos pessoais
e culturais como jarros, cálices, urnas, arcas, armas, armaduras, escudos, frisos,
relevos, afrescos e estátuas. Geralmente descreviam com sutis interpretações que
teve vida longa e continua existindo como recorte poético, fragmentário, mas decisivo
na intermediação de linguagens.
Nessa vertente, que faz do escrito uma vinheta,
não faltam exemplos contemporâneos que desfazem fronteiras não somente entre o visual
e o verbal. Os poemas de Gaiola de açúcar
percorrem estas propriedades ecfrásicas de objetos que, curiosamente, uma vez representados
escondem a figuração, isto é, tornam-se verbais no olhar. Duchamp, e outros artistas
únicos como ele, são pródigos nesta matéria objetual que uma vez transferida realiza
de outra forma o que foi visto.
Em todos os poemas de Gaiola de açúcar a transferência seguiu a
livre projeção ou reflexão que liberta a arte do ver na arte do dizer. Leia-se a
vinheta “Em Montecarlo”, composta de outras vinhetas que acumulam, ready made conservado, várias obras de Duchamp:
No cabide
empilhei
cupons de roleta.
No porta-garrafas
pendurei
cubos de mármore.
Na gaiola de
açúcar
escondi
a ideia do movimento.
A écfrasis
desdobrada – além de conceituar Duchamp com empilhar, pendurar e esconder – possibilita
outras leituras na ideia de migração de obras no movimento sucessivo das palavras
nas alternativas do poema.
O título da vinheta, “Em Montecarlo”, por
si mesmo permite a écfrasis que suscita
o jogo que se sabe nesta cidade ao sul da França, em Nice. Lá Duchamp esteve durante
seis meses pondo em prática um método que inventou para ganhar na roleta com cálculos
estatísticos por meio de combinações numéricas.
Querer que a roleta fosse transformada num
jogo de xadrez: com ou sem estatística é o que se dá no poema sujeito à perda e
ao ganho, que se anulam com a palavra precursora, que desencadeia as demais e o
poeta chega à fonte de sua intuição:
basta um urinol
de porcelana
para construir
novas catedrais.
A matéria-prima é bruta e a vontade da matéria
é polida. O caráter inevitável, a forma essencial, a mais natural. E a matéria sonha,
imagina-se cúpula, abóboda, nave de cada tempo. Cada poema sonha o seguinte, cada
poema na espreita, na escuta além do “Grande vidro” de volta ao “Grande vidro” do
matrimônio alquímico.
Alquímica aventura
reúne enxofre
e mercúrio,
macho
&
fêmea
nesse lúdico
altar agrícola
à margem da
retina.
A “Noiva” do “Grande vidro”, celeste, colhedora
do orvalho, deusa da agricultura, Ceres. Também mariposa, e fêmea louva-deus que
abate o macho após a fertilização. Ambivalência na chama alquímica. Incesto do casal,
conúbio andrógino: enxofre e mercúrio. A chama erótica na chama que não queima.
A écfrasis é perfeita: a obra que se passa
na mente é presépio.
O poeta de Gaiola de açúcar pensou imagem que nele se pensou nomes. A testemunha
foi ocular com o que resplandece quando a íris não mais olha, somente vê nas células
de seu entorno as palavras nas palavras das palavras.
*****
JAYRO SCHMIDT (Brasil). Artista visual, escritor e professor
de arte. Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado
desta edição de ARC.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número
104 | Novembro de 2017
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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